sexta-feira, 30 de maio de 2008

Indicação de Leitura



LIVRO: Expansão e Trajetórias da Pecuária na Amazônia - Acre, Brasil



FABIANO TONI;JAIR CARVALHO DOS SANTOS


Esse livro tem como objetivo identificar e analisar as situações do trabalho de campo que contribuíram para a expansão diferenciada da atividade pecuária nas regiões amazônicas do Brasil, do Peru e do Equador, realizado no Estado do Acre.

segunda-feira, 19 de maio de 2008

PALESTRA: Desenvlvimento Sustentável no Acre

Cipó e Imaginário entre Seringueiros do Alto Juruá

POR: Maria Gabriela Jahnel de Araújo[gabi@ivanvilela.com.br]
Resumo Baseado em pesquisas feitas entre 1994 e 1995 na Reserva Extrativista do Alto Juruá, Acre, Brasil, o artigo trata do uso do cipó (ayahuasca) entre os seringueiros locais. A partir de relatos da memória oral, a narrativa reconstruiu os usos que os habitantes não indígenas fazem do chá, dos anos 60 à fase das pesquisas de campo, quando presenciamos o uso ritual e acompanhamos momentos das trajetórias de seringueiros junto à bebida. Como background, retratamos a história local, da abertura dos seringais à instituição da Reserva Extrativista. Tal reconstituição é fundamental para a compreensão de mudanças do uso ritual do cipó. Também apoiada em relatos, pesquisa participante e literatura, aproveitamos para pincelar um quadro com nuanças do imaginário local – e suas semelhanças com outras regiões amazônicas - buscando contextualizar o cipó. Percebemos que a história recente e as mudanças sócio-políticas se fizeram acompanhar por transformações no universo religioso, que, por sua vez, mostra-se carregado de diversidades das linhas religiosas ali presentes. Observamos ainda que tal dimensão se faz acompanhar por uma visão do universo ao redor: a floresta e seus habitantes, entre eles plantas, bichos, homens, encantes e o próprio cipó.
Apresentação Estas notas pretendem fazer uma reflexão preliminar sobre os usos do cipó (ayahuasca) entre os seringueiros do Alto Juruá, Acre.[1] Baseados em pesquisas de campo[2] e apoiados em uma bibliografia, descreveremos, do ponto de vista sócio-cultural, os usos da bebida entre seringueiros da Reserva Extrativista do Alto Juruá, noroeste amazônico, local atualmente habitado por seringueiros e agricultores ribeirinhos, vizinho de diferentes povos indígenas de origem Pano e Aruak. Para isso, vamos expor a história recente e o imaginário dos habitantes não indígenas desta região dividindo este trabalho em três partes: a primeira, trata brevemente da ocupação do Alto Juruá e de alguns aspectos sociais e políticos de sua história recente. A segunda, refere-se às paisagens do imaginário local e suas relações com a cultura amazônica. Finalmente, a terceira, introduz o cipó dentro deste contexto imaginário e sócio-histórico.
O Alto Juruá: dos Seringais à Reserva Extrativista A Reserva Extrativista do Alto Juruá, outrora dividida em propriedades de seringalistas, é uma área de conservação ambiental fronteiriça ao Peru, com mais de 500 mil hectares, e de usufruto de seus moradores tradicionais - seringueiros e agricultores ribeirinhos descendentes de nordestinos e índios da região. As histórias sobre a região poderiam começar em estudos arqueológicos, no Nordeste brasileiro ou nas florestas rios e índios do Alto Juruá, que até 1850, tinha sido visitados por alguns exploradores e comerciantes brancos em busca das “drogas do sertão”.[3] Estes atingiram o médio Juruá em busca de borracha[4] e, com o aumento da demanda internacional pela borracha, em cem anos, a área que vai de Cruzeiro do Sul até o rio Breu foi ocupada. A migração para o Acre foi estimulada especialmente no Nordeste,[5] cuja população trouxe na bagagem sua tradição regional: os falares, as celebrações, a devoção, os cordéis e as cantorias.[6] A presença das diferentes nações indígenas foi encarada como obstáculo à expansão dos seringais, o que marcou a história da região e de suas populações originais. Foi uma época de corrida pelas terras e de correrias[7] contra os índios: confrontos que marcaram os primeiros encontros entre migrantes e índios, nos quais malocas foram destruídas, índios dizimados e índias capturadas para esposas dos seringueiros.[8] Em meio a conflitos e embates, aconteceram trocas de conhecimento e casamentos.[9] Monopolizando a propriedade da terra estavam os patrões,[10] cujos territórios - os seringais - eram divididos em colocações.[11] Essas abrigavam os trabalhadores e as famílias que, após a primeira crise do mercado da borracha (1910-1920), desempenhavam várias atividades além da extração do látex.[12]
O patrão dominava o abastecimento do seringal através do barracão, onde estocava mercadorias (bens de consumo) como óleo, sal, querosene, tecido, munição, remédios e outros. Os seringueiros tinham o prazo de uma safra de produção de borracha para o pagamento das mercadorias adquiridas e obrigavam-se a comprar apenas do patrão que as vendera, efetuando o pagamento em quilos de borracha. Essa relação ficou conhecida como sistema de aviamento. As décadas de 1970-1980 implicaram em mudanças em toda Amazônia, inclusive no Alto Juruá. Conjunturas nacionais e internacionais redirecionaram os interesses dos donos de seringais e tiveram inicio diversos movimentos entre os seringueiros.[13] Entre eles é importante ressaltar a chegada, ao Alto Juruá, em 1988, do Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS),[14] representado pelo sertanista da FUNAI e ex-seringueiro Antonio Macedo. Seu objetivo era difundir entre os seringueiros a proposta, já elaborada e desenvolvida pelo CNS, de criação da Reserva Extrativista.[15] Macedo tinha um modo singular – admirado e criticado - de trabalhar: subia os rios com seu violão, organizando reuniões, unificando o movimento e, na palavra de alguns seringueiros, “dando coragem”.[16] Conforme veremos adiante, Antonio Macedo foi precursor de algumas das transformações que o uso do cipó sofreu a partir desse período. O desfecho do processo político descrito acima – e início de um novo período – foi a instituição, em 1990, da Reserva Extrativista do Alto Juruá, alternativa com fins sociais, políticos, econômicos e ambientais. De moradores, os seringueiros passaram a guardiães e conservadores responsáveis pela floresta.
O Alto Juruá e a Cultura Cabocla da Amazônia Vamos agora descrever aspectos da cosmologia dos seringueiros e sua relação com a natureza para compreender a ayahuasca neste imaginário. A cultura do Alto Juruá guarda semelhanças com a cultura cabocla[17] de outras regiões da Amazônia, onde, além de humanos e animais, fazem-se presentes os santos, as almas e os encantados[18]- localmente conhecidos por encantes.
Segundo relatos, os encantes seriam seres deixados por Deus como responsáveis pela floresta, pelas águas, pelas caças etc. Trata-se de entidades com poderes de encantamento, metamorfose e hipnose, que podem ser generosos ou vingativos. Encontramos entre eles o pai ou caboclo da mata, protetor da floresta; a mãe da seringueira, entidade que cuida das seringueiras; a caipora, responsável pelas caças, ou os caboclos d’água, habitantes dos rios e igarapés que podem levar humanos para o fundo das águas. Além dos encantes, há, também, animais que podem proteger, devorar, enganar, hipnotizar ou realizar pactos. Entre eles estão a jibóia, o sapo campu, o veado e o jabuti. Esses são alguns seres com os quais os moradores do Alto Juruá se deparam e se relacionam cotidianamente. Eles habitam ou se originam na natureza, e guardam algumas características humanas e outras próprias de sua qualidade de encante ou ser supra-natural.
No Peru, Luis Eduardo Luna também se deparou com tal universo múltiplo e povoado por uma gama de seres inteligentes e espíritos, figuras “percebidas não como algo totalmente outro, mas como de alguma maneira fluidamente ligadas ao mundo natural” (2002, p. 183). Ali, esses também seriam “donos” de seres ou objetos do mundo natural, com quem seria possível estabelecer contato, entre outras formas, através de plantas de poder.
A presença de tais entidades na natureza torna notável a relação ritualizada com a floresta, as águas e a caça. Atividades cotidianas, como entrar na mata, caçar, cortar seringa, pescar ou relacionar-se com rios são permeadas por atitudes rituais (uma prece, um pedido de licença, um procedimento). O sagrado, neste sentido, se faz perceber em rituais cotidianos que marcam as relações entre seringueiros e o mundo imediato ao seu redor. Por exemplo, o caçador deve seguir alguns procedimentos ao caçar e ter um cuidado especial com o animal já caçado para continuar a ser um caçador produtivo; caso contrário, poderá ficar enrascado.[19] Enrascado é o mesmo que panema, definido por Galvão como uma força mágica capaz de infectar homens, animais ou objetos, incapacitando-os para a ação (1976, p. 81). Há procedimentos, remédios, banhos, defumações para curar uma pessoa enrascada.
Existem, também, artifícios para dotar o caçador de maior poder de caça. Esses são os caborjes, cabojas, pautos (pactos). Feitos com plantas ou animais, alguns caborjes podem também se prestar para atração e sucesso no amor. São realizados secretamente e há quem os condene como porqueira ou porcaria (feitiço, bruxaria).[20] Há caborjes feitos com partes de animais (Almeida 2002, p. 325). Outros com os próprios animais, ou plantas que, em troca do sangue da caça, tornam o caçador mais produtivo (Araujo 1998, p. 67).
Vale lembrar que estamos falando de uma população que depende da floresta para sobreviver, seja pelo extrativismo, seja por ter nela as fontes primeiras de alimentação. Para essas pessoas, cortar seringa, penetrar a floresta, caçar, pescar ou limpar um animal morto são atividades diárias. Ou seja, as recomendações e cuidados para com os encantes e para não ficar enrascado ou enrascar alguém devem ser observados e seguidos quotidianamente. A partir destas observações, podemos perceber que:
Aspectos do campo religioso permeiam o mundo real e são vivenciados e/ou acionados em ações cotidianas.
Há uma humanização da natureza. Isso é percebido quando alguns seres da natureza são dotados de personalidade e preferências. Eles são capazes de se relacionar, realizar trocas e pactos e de realizarem atividades humanas, sejam elas afetivas, ativas ou passivas[21]. Os seres supra-naturais, bem como os encantes, são, ao mesmo tempo, fonte de poder e de perigo[22].
A floresta é local respeitado e temido. Há com ela uma relação de dependência que se mantém equilibrada respeitando-se normas de relação com seus habitantes e de exploração de seus recursos. Seguir tais regras é tentar garantir uma relação pacífica com alguns encantes. Perceberemos adiante que a ayahuasca faz parte desse universo de seres que mediam a relação entre homem e natureza no Alto Juruá.
Há, ao mesmo tempo, um esforço em se distinguir da natureza que se revela em diferenças apontadas por seringueiros entre si e os caboclos. Algumas atitudes desses últimos sinalizariam uma maior proximidade do campo da natureza, como supostos “hábitos” indígenas de comer sem sal, parir no mato e viver por demais próximo da floresta. Ainda no que se refere aos índios, eles são distinguidos em brabos, que vivem plenamente sua própria cultura sem se relacionar com os brancos, e mansos, que de alguma maneira foram integrados à sociedade de seringal. Os brabos, temidos por seus feitiços e pela possibilidade de que façam correrias contra os brancos, estariam mais próximos da natureza, enquanto os mansos mais próximos da cultura.[23] Percebemos, aqui, uma relação homem/natureza mediada por caboclos de um lado, e encantes e seres supra-naturais de outro.
Outra peça do mosaico que constitui o campo religioso do alto Juruá é o catolicismo, cujas crenças e instituições atuam junto aos encantes e seres supranaturais - os quais são provavelmente de origem ameríndia. Galvão os vê como “partes integrantes de um mesmo sistema religioso” (1976, p. 5), como entidades de um só universo, não percebidas como forças opostas. Aparentemente, santos são mais acionados para lidar com assuntos ligados às pessoas, enquanto encantes e caborjes seriam acionados para relações com animais. No entanto, não esqueçamos que há caborjes feitos para o amor (que poderia ser visto, também, como uma caçada) e há, ainda, feitiçarias e técnicas de cura (que poderiam ser vistos como embates) que fazem uso de plantas pertencentes ao âmbito dos “seres supra-naturais”[24]. Ainda que com certo temor, o poder de tais seres é acionado quando se faz necessário[25].
A forma local de vivenciar o catolicismo guarda semelhanças com o catolicismo popular comum a outras regiões brasileiras. No Alto Juruá há atividades e festas nas quais pessoas reúnem-se para rezas de terço; comemorações juninas com fogueiras, pratos típicos, festejos; e novenas ou novenários destinados a santos padroeiros. A presença da Igreja Católica no Alto Juruá se resume a algumas viagens anuais feitas pelo padre, ocasiões em que ele navega os rios promovendo sacramentos diversos (confissões, missas, casamentos e batismos) pelos quais cobra, além de vender remédios e mercadorias.
Tradições como a fé no Cristo, sacramentos e orações, foram fortalecidas no Alto Juruá por Irmão José.[26] Em viagem pela região, na década de 70 do séc. XX, o beato milenarista pregou a proximidade do fim do mundo e ainda hoje esse peregrino - cujo retrato segurando um cajado é presença comum nas casas dos moradores da região – é considerado homem santo que realizou milagres e que, por conta disso, recebe devoção. Ele proscreveu a ayahuasca classificando-a como uma bebida da parte “do outro” e por isso, conforme veremos, interferiu em seus usos (e desusos). Durante a pesquisa de campo, percebemos que o pertencimento a alguma das tradições religiosas institucionalizadas não interferia na vivência de outros aspectos da religiosidade dos seringueiros. Ser católico ou evangélico é, ali, uma experiência acrescida da relação com encantados e seres supra-naturais.[27]
A Ayahuasca É na paisagem esboçada até aqui que nos deparamos com a ayahuasca. Durante a pesquisa de campo, tivemos oportunidade de conhecer diferentes curadores tradicionais e usuários da bebida e, através deles, perceber como a memória oral recorda o encontro entre o cipó e os seringueiros da bacia do Tejo. Pude ouvir sobre algumas iniciações pessoais, caminhos e relações com o chá. É a partir dessas trajetórias, histórias e estórias, e de seus encontro com uma bibliografia adequada que as notas que seguem serão construídas. As histórias dos usos da bebida na região remontam a quatro fases aqui descritas: a primeira, narra a chegada da bebida até os seringueiros através de reconhecidos xamãs de origem indígena; a segunda, contempla um momento em que seu uso por seringueiros era feito secretamente; a terceira, em situação de fortes experiências sócio-políticas, aborda a chegada de elementos exógenos e a transição da tradicional forma de uso entre os seringueiros; finalmente, a quarta fase, que descreve algumas sínteses locais e seus usos mais recentes.
A ayahuasca é usada imemorialmente pelos índios da região e foi a partir dessas populações que os seringueiros tomaram contato com a bebida. Ainda hoje, povos indígenas vizinhos à Reserva Extrativista do Alto Juruá, entre eles Kaxinawás e Ashaninkas,[28] utilizam ritualmente a bebida. Alguns personagens foram marcantes e ainda hoje são localmente lembrados como os responsáveis pela difusão da ayahuasca entre os seringueiros do Alto Juruá. Um deles é Crispim,[29] renomado xamã tanto entre os índios como entre os seringueiros da região. Jamináwa do alto Bagé, Crispim foi adotado por brancos, e viveu também no Ceará e em Belém. Depois, voltou a viver entre os índios, quando foi iniciado no uso da ayahuasca, aprendendo a utilizá-la para a cura.
Crispim passou seus últimos anos no igarapé Dourado, afluente do Tejo, longamente habitado por povos Arara e Jamináwa. Chegou por volta de 1950 e permaneceu até sua morte, no início da década de 80. Ali construiu sua fama de curador utilizando ayahuasca e plantas medicinais. Joaquim Cunha, seringueiro aposentado e curador afamado amigo dos “caboclos do Bagé”, com quem convivi intensamente em 1994, contou-me que Crispim o convidara para aprender seus conhecimentos de cura. O aprendiz recebeu inúmeros ensinamentos sobre plantas da floresta utilizadas para cura, até que chegou o momento de aprender sobre a ayahuasca. Nessa ocasião, Joaquim Cunha viajou ao rio Amônia para conhecer Irmão José.[30] Consultou-se com o pregador a respeito das artes da cura quando foi por ele desaconselhado a trabalhar com a ayahuasca, pois esta seria uma “bebida do diabo”. Temeroso, Joaquim retornou ao Dourado e recusou os ensinamentos do amigo Crispim, que logo veio a falecer. Ainda segundo Joaquim Cunha e depoimentos coletados por Pantoja Franco e Conceição, Crispim preparava a ayahuasca, realizava rituais e, através dela, chegava a diagnósticos, receitas e curas (2002, p. 206).[31] O depoimento de Joaquim Cunha é importante, pois, como em seu caso, outros moradores do Alto Juruá citam Irmão José para mostrar suas dúvidas de que a bebida possa não ser “de Deus”, e, com essa justificativa, evitam utilizá-la, sem, no entanto, condenar aqueles que dela fazem uso.
Para tratar da “segunda fase do cipó” me basearei principalmente em depoimentos de João Cunha, irmão de Joaquim Cunha. João Cunha, hoje com quase 90 anos, é um dos mais respeitados curadores do Alto Juruá. É rezador, benzedor,[32] cura com plantas e remédios de farmácia, com a saliva cura picada de cobra e através da ajuda de um espírito cura feitiços, encosto e atuação de encantes.[33] É também um diplomata, negociador de conflitos e liderança respeitada. Conheceu a ayahuasca com Sebastião Pereira, o Sebastião do Cipó.
Sebastião Pereira foi um seringueiro que chegou ao rio Tejo na década de 60. Aprendeu a utilizar ayahuasca com Crispim e tornou-se um importante nome na expansão do uso da bebida entre os seringueiros. Sebastião curava com plantas e com a ayahuasca, bebida conhecida na região pelo nome de cipó, daí a alcunha que o acompanhou desde então, Sebastião do Cipó. Em suas viagens, promovia beberagens de cipó na casa de algumas pessoas. Eram sessões noturnas, das quais apenas homens participavam. Segundo relatos de João Cunha, no início do ritual ele dava voltas em torno da casa tocando seu maracá feito de cabaça e, ao parar, todos percebiam a chegada dos efeitos da bebida. A finalização do ritual era feita da mesma forma: ele saía ao terreiro com o maracá cantando, assobiando e rodeando a casa.[34] Contam que Sebastião do Cipó tinha poderes extraordinários e que, durante as sessões, curava com a imposição das mãos (Pantoja Franco 2002, p. 207). Ele parece ter sido introdutor de um dos elementos mais comuns nas sessões de cipó do Alto Juruá: o uso da música popular.
A cura não era único mote para as beberagens de Cipó. A possibilidade de desvelar segredos, como a fidelidade da esposa ou a honestidade do patrão; de prever o futuro e saber o resultado da lavoura; de realizar “viagens” para outros lugares, conhecer cidades, eram também impulsos para a realização de sessões. Na década de 70, dizem os seringueiros que, temerosos diante dos possíveis poderes da bebida, os patrões proibiram seu uso, alegando que ela trazia preguiça.[35] As beberagens continuaram, discretas e secretas. Há testemunhos da existência de sessões dessa natureza nos anos 80 e 90. Eram rituais onde os participantes, todos homens, ficavam no escuro deitados em suas redes. Havia silêncio ou a música de um compositor popular. Também a folha de determinada palmeira (jarina) era opcionalmente colocada sob a rede, com o intuito de dar bom rumo à sessão.[36] Esse uso provavelmente continua, porém, dado seu secretismo, tivemos poucas informações a seu respeito e o grupo que realizava este tipo de sessão por ocasião da pesquisa se mostrou fechado e pouco dado a conversas sobre o assunto.
Atualmente, com a idade avançada, João Cunha não bebe mais Cipó; no entanto, seus filhos mantém a tradição das sessões masculinas noturnas.[37] Conversando sobre essa fase, João Cunha disse que “o cipó é a bebida de todos os encantes”.[38] Animais, vegetais, índios (brabos e mansos), brancos, almas, encantes, o cipó a tudo engloba, tudo tem, e tudo contém. O chá permite curar, revelar, produzir visões, receber instruções e adquirir aprendizados. Ele é tratado como um ser, uma entidade poderosa e perigosa.
Essa era a situação do consumo da ayahuasca na região até 1988, quando se iniciaram as lutas do processo que teve como desfecho a criação da Reserva Extrativista do Alto Juruá. Naquela ocasião, Antonio Macedo, forte liderança política entre os seringueiros, promoveu beberagens de cipó. Elas ocorreram entre participantes das reuniões de mobilização para o rompimento do monopólio dos patrões. Tais sessões traziam novas características:
Eram públicas, e não secretas; Eram abertas à participação feminina (inicialmente pequena); A música era um componente forte do encontro. Interpretava-se canções inspiradas pela bebida que remetiam à floresta, a natureza, à própria bebida, ou falavam da vida dos seringueiros e de amor.
Nesse período, em viagens que buscavam a união dos Povos da Floresta,[39] também ocorreram sessões de ayahuasca com a participação de índios e pajés Kaxinawás e Ashaninkas. Reinava um clima de transformação, novidade, luta e união. Neste momento, as sessões não eram fortemente movidas pela cura física - contudo, elas contribuíram para a união do grupo, fortalecendo amizades e demarcando fidelidades. Portanto, junto com as transformações sócio-políticas surgia um novo uso da bebida, que chamo, aqui, de “terceira fase do cipó”. Tive oportunidade de presenciar sessões orientadas por Macedo - nelas, os participantes podiam se deitar, sentar e, desde que o comunicassem, se afastar do grupo ou fumar um cigarro. Eram cantadas canções populares ou inspiradas pela bebida da floresta.
O início da quarta fase é marcado pela chegada de pessoas de fora, visitantes, simpatizantes do movimento e pesquisadores que vieram para o Alto Juruá nesse período. Alguns faziam parte ou eram simpáticos ao Santo Daime[40] - religião ayahuasqueira sediada em Rio Branco, capital do Acre - e dali trouxeram elementos para as sessões de cipó, entre eles orações, hinos e a presença de um ponto de luz, fosse uma vela ou lamparina a querosene. Constituiu-se um novo ritual e, ao mesmo tempo, uma nova geração de preparadores e bebedores de cipó. Cipó, daime, ayahuasca ou vegetal, eram nomes utilizados para se referir à bebida na floresta, as diferentes denominações, contudo, não apontavam necessariamente diversidade em sua forma de uso.
Em 1994 e 1995 presenciamos alguns rituais dessa fase. Eles começavam com orações católicas (Pai Nosso, Ave Maria). Em seguida, a bebida, comumente servida por quem a tinha preparado, era oferecida com o desejo de que o usuário fosse guiado pela “santa luz”. Ao pegar o copo cada um se levantava, fazia o “sinal da cruz” e depois acomodava-se numa cadeira, banco ou rede. Alguns fumavam um cigarro para ajudar a “força” a chegar, até o ambiente se aquietar. Quando os efeitos da bebida começavam a se fazer sentir, ouvia-se comentários como “ele está chegando”, como se alguém estivesse se aproximando. No que se refere à música, cada sessão seguia um padrão: algumas eram mais silenciosas, outras, tão logo a “força” chegava, iniciava uma cantoria de hinos do Daime.[41] Havia um intervalo onde era permitida a conversa ou música popular; seguido de nova dose da bebida para quem assim o desejasse e, depois, momentos de introspecção ou, novamente, canto de hinos. O encerramento ocorria com uma oração seguida de impressões pessoais, abraços, conversas e o compartilhar de alimentos.
As motivações de seus bebedores incluíam cura, busca de conhecimentos místicos, de auto-transformação e autorização da bebida para vir a prepará-la. Alguns testemunham seu aprendizado no preparo do cipó onde tiveram como professor a própria bebida, que lhes ensinou a reconhecer as plantas que a compõem e os modos de preparo. Gostaríamos de chamar atenção para três elementos importantes para a compreensão desse período: primeiro temos a formação de um novo grupo bebedor de cipó que se utiliza de um novo ritual; segundo, a ligação desse grupo ao processo anterior de criação da Reserva Extrativista; terceiro, a inserção de elementos e valores exógenos, alguns pertencentes a outro referencial religioso que utiliza a bebida, o Santo Daime.
Nesse contexto de uso, a bebida torna-se associada ao Bem. Curiosamente, os encantes e caborjes, originários da floresta, assim como o cipó (“a bebida de todos os encantes”), têm a propriedade da ambigüidade, podem servir ao bem ou ao mal. Tanto pode-se fazer uma defumação para desenrascar, quanto para feitiçaria. Um mesmo animal, como a jibóia, por exemplo, pode se prestar a um caborje que torne um caçador feliz, ou hipnotizar um homem na floresta e devorá-lo. Um veado pode salvar uma criança ou fazer alguém se perder. São seres ambíguos, fonte de poder e perigo. Não há exclusividade dessas propriedades (bem/mal) nos encantes e seres especiais. Alguns podem ser mais perigosos (caboclos d’água), outros mais generosos (mãe da seringueira), porém todos são imprevisíveis e potencialmente vingativos.[42] A dicotomia bem/mal presente no catolicismo, no Alto Juruá, se encontrava com essa realidade ambígua e com ela se amalgamava. Talvez pela total dependência do homem da floresta, essa era ambígua de per se: fonte de sustento e riquezas, e de perigos e mistérios.
É importante ressaltar que tudo isso faz parte da experiência religiosa do seringueiro. O campo religioso perpassava, como vimos, toda a vida cotidiana. Ao serem inquiridos, a maioria afirmava ser católica, um catolicismo que incluía a possibilidade de ficar enrascado, de realizar um caborje, de ser pego por um caboclo d’água, de se relacionar com a caipora, de ir ao novenário, de curar uma doença com uma benzedura e de beber cipó. Beber cipó era uma experiência que fazia parte deste modo de vivenciar o universo religioso[43].
Gradualmente, beber cipó passa a ser percebido como um dos mais importantes momentos da experiência religiosa. Alguns que antes diziam “sou católico”, passam a afirmar “sou daimista”. Porém não diziam “sou cipozeiro” ou “sou vegetalista”. Este daimismo, assim como o catolicismo acima escrito, foi constituído localmente de modo singular. Elementos novos foram trazidos de fora e incorporados ao uso do cipó através do acesso a hinários, fitas-cassete gravadas, descrições de rituais de igrejas do Santo Daime etc. A partir de 1995 alguns seringueiros começaram a participar dos trabalhos daimistas em localidades próximas à Reserva, como Cruzeiro do Sul, ali criando fortes laços com a igreja do Santo Daime dessa cidade. Seres dessa religião foram incorporados ao panteão local, entre eles a Rainha da Floresta, entidade protetora da bebida. Veio também o respeito ao Mestre Irineu[44] e a personagens centrais do universo do Santo Daime.
Não se excluíram, no entanto, antigas devoções, como ao Irmão José e às Almas Milagrosas de Nova Olinda,[45] e continuaram vivências do catolicismo popular, assim como as iniciações pessoais com a bebida.
O percurso do cipó no Alto Juruá foi construído por trajetórias pessoais e caminhos de iniciação individual. Isso se faz perceber, também, em algumas histórias que narraremos agora. O processo de surgimento de novos preparadores e bebedores de cipó - que contavam com a própria bebida como professora - para alguns foi frutífero e, para outros, uma inserção em terreno perigoso entre a loucura e o terror.
Nessa última situação encontramos, na ocasião da pesquisa, um grupo de seringueiros ligado por laços de parentesco, compadrio e vizinhança. Tratava-se de um grupo de sete homens liderados por Miário, temido por suas relações com caboclos d’água. Ele comandava sessões nas quais exercia uma liderança violenta, agredindo verbal e fisicamente os membros do grupo. Dois desses membros quase enlouqueceram, acessaram imagens de terror e tomaram atitudes violentas. Durante o surto psíquico, procuraram e/ou foram levados a João Cunha, que, com a ajuda de seu espírito auxiliar, “tirou o cipó” de seus corpos e aconselhou Miário a não mais preparar a bebida, ao que esse fez ouvidos moucos. Outros dois membros converteram-se temporariamente à uma religião evangélica. O quinto não mais quis beber, de modo que o antigo grupo tornou-se uma dupla formada por dois cunhados: Miário e o irmão de sua esposa, Jorge. Este sentia grande aflição pois não conseguia “ver nada”, de modo que Miário “via” por ele e lhe determinava atitudes que teriam sido transmitidas pela Rainha da Floresta.[46] Essas diziam respeito principalmente à esposa de Jorge, a qual, segundo Miário, lhe era infiel e fazia feitiços que impediam as mirações do esposo. A partir de então, o casal passou a viver em crescente desarmonia.
A situação entre a dupla de bebedores era tensa, e pessoas ligadas à um aos dois estavam aflitas por um desfecho da situação. Foi quando Antonio Macedo subiu o rio e realizou uma sessão de cipó com a presença de Miário, que lhe trouxe sua própria bebida. Macedo disse ter os lábios queimados ao provar o cipó de Miário, constatando que este não sabia prepará-lo. Nessa sessão, catártica para Miário, ele recebeu uma reprimenda de Macedo e outro companheiro, e viveu uma longa noite de mirações (visões proporcionadas pela bebida). No dia seguinte veio ter conosco e contou que seu sonho era ser “um pajé do Daime”[47] e que, agora, estava pacificado pois “abriu o coração” para os companheiros sem esconder nada. Descobriu que o ódio que sentia e também uma “vontade de matar” eram pela esposa de Jorge, por quem, supomos, ele nutria um amor reprimido. Aceitou a recomendação, agora proferida por Macedo, de não mais preparar a bebida ou liderar sessões com ela.
Em outra ponta dos novos usos do cipó, destaca-se a participação da família do patriarca Milton Gomes da Conceição e seus filhos, conhecida como os Milton.[48] De reconhecida ascendência indígena, membros dessa família foram se iniciando nos mistérios da bebida, de seu preparo e de seus rituais ao longo do processo de instauração da Reserva Extrativista. Em suas iniciações, a presença indígena foi marcante, seja em encontros pessoais ou em mirações.[49] Entre os Milton as orientações para o preparo da bebida aconteceram sob seus efeitos (Franco e Conceição 2002). O patriarca desenvolveu um modo particular de beber e trabalhar com a bebida e, atualmente, os Milton constituem um respeitado grupo de bebedores do cipó, que realizou suas sínteses a partir das mudanças iniciadas com Macedo, posteriormente influenciadas pelo Daime e absolutamente diferentes da linha de Miário. Temperados pelo Daime, os usos do cipó trazem um olhar transformador para a vida, buscando o bem. A bebida é a professora de conhecimentos espirituais e os usuários buscam uma limpeza física, moral e espiritual que pode ser propiciada por ela. As possibilidades de previsões e as visões são utilizadas agora, também, como orientações de vida. No caso dos Milton, ainda, o cipó veio a reforçar o valor da herança indígena dessa família, a qual é hoje entre eles um fator constitutivo da identidade do grupo.
Refletindo Sobre as Fases do Cipó Buscamos descrever a ayahuasca dentro de uma cosmologia local que inclui profetismo, encantes, seres supra-naturais e catolicismo popular.[50] Isso foi descrito e interrelacionado a um processo sócio-histórico de transformação, no qual a cultura local soube incluir eventos e personagens e também manter tradições.
Em sua fase inicial, o cipó pertencia à mesma categoria ambígua dos encantes e seres supra-naturais. Atualmente ele coexiste com o cipó-daime, forma de uso da bebida da qual os Milton são um bom exemplo, que pertence a uma ótica onde há a nítida oposição bem/mal.[51] No Alto Juruá houve um crescente uso do cipó junto às transformações sócio-econômicas. Manuela Carneiro da Cunha percebe que “em todo ocidente amazônico (...) o crescimento do xamanismo parece ter coincidido com o enfraquecimento ou o desmoronamento das instituições políticas e econômicas de tipo dito tradicional” (1998, p. 223). No caso específico dos Milton, é importante ressaltar que sua atuação política foi fortíssima no processo que culminou com a instituição da Reserva Extrativista.
Gostaríamos de refletir sobre isso junto à observação de Fernando La Rocque Couto (1989) que percebe as sessões de Daime como exercício de um “xamanismo coletivo”. Apesar das iniciações e trajetórias pessoais, os Milton, usados aqui como um modelo do cipó-daime, parecem vivenciar em suas experiências ayahuasqueiras esse “xamanismo coletivo”. Um olhar ampliado percebe que, nas sessões de ayahuasca, os membros desse grupo de bebedores de cipó (e possivelmente também os membros dos grupos secretistas) atuam coletivamente como xamãs. Tomando a concepção do xamã como tradutor, caberia a todos esses seringueiros serem tradutores, decifradores e interlocutores do global e do local.[52] Neste sentido, é como se esses seringueiros, além de seus próprios patrões, fossem seus próprios xamãs.
Com as mudanças, encontros e desencontros que continuam a ocorrer no Alto Juruá, ao universo, construído em conjunto por pessoas de origens diversas - cearenses, índios, seringueiros, patrões, homens, mulheres, crianças, e outros - são acrescidos novos elementos e significações. Os rituais, campo explícito de mudança - aqui, falamos especificamente do cipó - se transformaram. Eles, agora, podem também contar com vela, orações, cantoria de hinos e ainda com redes, canções populares, onde Irmão José e as Almas Milagrosas da Nova Olinda são fontes de inspiração e devoção tanto quanto a Rainha da Floresta. Um rearranjo integrou o antigo conhecimento à mudanças da estrutura social e à novidades do imaginário de outra “tradição” que faz uso da mesma bebida. Como se, ao adquirir um móvel novo, fosse preciso rever toda a organização dos móveis da casa, criando um novo espaço e modificando os antigos.
Bibliografia ALMEIDA, Mauro W. B. Rubber tappers of the upper Jurua river, Brazil. The making of a forest peasant economy., PhD. Dissertation, University of Cambridge, 1992. ________. “Caçar” in, Carneiro da Cunha e Almeida (org.) Enciclopédia da Floresta, São Paulo, Companhia das Letras, 2002. AQUINO, Terri V. Kaxinawá: de seringueiro “caboclo” a peão “acreano”. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Brasília. UNB, 1977. ARAUJO, Maria Gabriela Jahnel. Entre almas, encantes e cipó. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Campinas, Unicamp, 1988. _________. Percursos religiosos e trajetórias individuais no alto Juruá. Projeto de Doutorado. Unicamp, Campinas, 1998. BRANDÃO. Carlos R. Somos as águas puras. Campinas, Papirus Editora, 1994. CABRAL, Alfredo L. Dez anos no Amazonas (1897 - 1907). Mimeo, Brasília, 1984 [1949]. CARNEIRO DA CUNHA, M. Manuela. “Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução”, in Mana, volume 4, número 1, Rio de Janeiro, Contra Capa, 1998. COUTO, Fernando La Rocque. Santos e Xamãs. Dissertação (Mestrado). Brasília, UNB, 1989. GALVÃO, Eduardo. Santos e visagens. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976. GOULART, Sandra. As raízes culturais do Santo Daime. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social). São Paulo, USP, 1998. GUARESCHI, Pedrinho A. A cruz e o poder. Petrópolis, Editora Vozes, 1985. LABATE e ARAUJO, O uso ritual da Ayahuasca. Campinas, Mercado de Letras, 2002. LAGROU, Elsje M. Uma etnografia da cultura Kaxinawá entre a cobra e o inca. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Florianópolis, UFSC, 1991. LOZANO COSTA, Da patronagem à associação: poderes em disputa na Reserva Extrativista do Alto Juruá. Dissertação (Mestrado em Sociologia), Campinas, Unicamp, 1998. LUNA, Luis Eduardo, in Labate e Araújo (org.) O uso ritual da ayahuasca, Campinas, Mercado de Letras, 2002. ______, Vegetalismo – shamanism among the mestizo population of the peruvian amazon. Estocolmo, Almqvist and Wiksell International, 1986. MacRAE, Edward. Guiado pela lua. São Paulo, Editora Brasiliense, 1992. MAUÉS, R.aymundo H. Padres, pajés, santos e festas: catolicismo popular controle eclesiástico. Belém, Editora Cejup, 1995. MENDES, Margarete K. Etnografia preliminar dos Ashaninka da Amazônia brasileira. Dissertação (Mestrado em Antropologia). Campinas, Unicamp, 1991. PANTOJA FRANCO, Mariana P. e CONCEIÇÃO, Osmildo. “Breves Revelações sobre a Ayahuasca” in, Labate e Araújo (org.) O uso ritual da ayahuasca, Campinas, Mercado de Letras, 2002. PANTOJA FRANCO, Mariana P. Os Milton. Cem anos de história familiar nos seringais. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Campinas, Unicamp, 2001. PORRO, Antônio. “História indígena do alto e médio amazonas: séculos XVI a XVIII” in, Carneiro da Cunha (org.) História dos índios no Brasil, São Paulo, Companhia das Letras, 1998. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. “Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio” in Mana, volume 2, número 2, Rio de Janeiro, contra Capa, 1996. WAGLEY, Charles. Uma comunidade amazônica - estudo do homem nos trópicos, São Paulo, Brasiliana, 1977. WOLFF, Cristina S. Mulheres da floresta: uma história – alto Juruá, Acre (1890-1945). São Paulo, Editora Hucitec, 1999.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Dissertação de Mestrado - O Planejamento Estratégico e a Reforma Educacional no Acre

AUTOR:
Arnóbio Marques
(ex-secretário estadual de educação e atual governador do Estado do Acre)
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO:

O Planejamento Estratégico e a Reforma Educacional no Acre

LEIA A DISSERTAÇÃO NA ÍNTEGRA:
Boa Leitura!

quinta-feira, 1 de maio de 2008

A história oculta da floresta: imaginário, conquista e povos indígenas no Acre

A História oculta da Floresta Imaginário, conquista e povos indígenas no Acre José Pimenta1 Autor: José Pimenta UNB Article publié dans la Revue Linguagens Amazônicas, n°2, pp. 27-44, 2003. RESUMO
Este artigo mostra a evolução da questão indígena no Estado do Acre desde os primeiros contatos das populações nativas com os brancos até a criação e afirmação do movimento indígena contemporâneo. O autor discute alguns mitos que guiaram a conquista da região acreana e sua incorporação ao Estado-nação brasileiro durante o período de auge da economia extrativista da borracha, focalizando sua atenção no imaginário construído sobre a Amazônia e seus primeiros habitantes. Marginalizados ou excluídos pela historiografia oficial, os povos indígenas do Acre só adquiriram visibilidade histórica após as políticas desenvolvementistas e integracionistas que caracterizaram a segunda conquista da Amazônia na década de 1970. Para proteger suas terras e reivindicar seus direitos, os índios do Acre criaram alianças políticas estratégicas com seringueiros, ambientalistas e indigenistas. Afirmando sua identidade étnica, eles mostraram, ao longo desses últimos anos, uma dinâmica surpreendente para reverter as vicissitudes da história ocidental e se apresentam hoje como atores desejosos de construir seu próprio destino. PALAVRAS -CHAVE : Amazônia, Acre, Conquista, Índios. À semelhança do Brasil, o Acre compõe-se de uma grande diversidade de povos indígenas cujas situações frente à sociedade nacional também são muito variadas. Enquanto a grande maioria dos grupos se encontrarem em contato permanente ou regular com a população regional (mestiça ou branca), alguns ainda são classificados como “isolados” pelo ór gão indigenista. Segundo Valle de Aquino e Iglesias (2000: 565), o Acre contaria com doze grupos indígenas identificados que representariam um total de cerca de 9 300 índios, ou seja, 1,4 % da população do Estado.
A maior parte desse contingente é compos ta pelos Kaxinawá que representam cerca da metade da população indígena acreana, os outros grupos tendo geralmente uma população inferior a mil indivíduos cada um. As sociedades indígenas acreanas dividem-se de maneira desigual em duas grandes famílias lingüísticas: Pano e Arawak. Alguns desses povos encontramse também nas regiões peruanas e bolivianas fronteiriças ao Acre. Do ponto de vista da antropologia, o conhecimento sobre as sociedades indígenas do Estado é muito desigual. Se alguns povos, como os Kaxinawá ou os Ashaninka, atrairam o interesse de vários pesquisadores, as informações etnográficas disponiveis sobre a maior parte dos povos indígenas acreanos ainda são muito incipientes.
Os povos indígenas ocuparam um lugar marginal na histografia do Acre. Como no resto da Amazônia, o imaginário ocidental sobre a natureza e a alteridade humana projetou seus fantasmas na região acreana e nos seus primeiros habitantes indígenas. A “conquista do deserto ocidental” (Costa [1973] 1998) e a incorporação do Acre à nação revelam alguns mitos fundadores do pensamento ocidental e brasileiro sobre a Amazônia e os povos indígenas. Focalizando o lugar do índio na historia acreana, este artigo mostra as mudanças ocorridas na situação das populações nativas, desde a chegada dos seringueiros nordestinos na região, na segunda metade do século XIX, até a afirmação étnico-política do movimento indígena contemporâneo.
A “INVENÇÃO” DO ACRE COMO EXEMPLO DE BRASILIDADE
A história da colonização do Acre está estreitamente ligada ao extrativismo da seringa. Até metade do século XIX, o atual Estado do Acre ainda era pouco conhecido e as populações indígenas da região viviam num relativo isolamento do mundo moderno. Organizadas em torno da coleta de drogas do sertão (cacau, salsaparrilha, etc.), as raras e tímidas penetrações brancas na região acreana durante o século XVIII não estabeleceram nenhum núcleo de povoamento. Viajando pelas bocas dos rios Juruá e Purus no início do século XIX, os naturalistas alemães Spix e Martius ([1823-31] 1981) notaram em seus diários a presença de “índios selvagens” e a falta de “civilização” que, segundo os autores, caracterizava a região.
Além da exploração da região e de suas riquezas naturais, as primeiras expedições oficiais ao Purus e ao Juruá, lideradas respectivamente por João Rodrigues Cametá e Romão José de Oliveira, em meados do século XIX, tinham como objetivo a atração e a pacificação dos índios. Essas "entradas" permaneceram limitadas, subindo os rios apenas parcialmente, mas inauguraram uma série de explorações da região durante as décadas de 1850 e 1860. Entre essas expedições destaca-se a viagem, a mando da Royal Geographical Society de Londres, do geógrafo inglês William Chandless que subiu o Purus em 1864/65 e o Juruá em 1867. Todavia, a historiografia regional consagrou os nomes de Manoel Urbano, explorador do Purus em 1858, e João da Cunha Corrêa, que percorreu o Juruá em 1861, como os primeiros "desbravadores" e "descobridores" das terras acreanas.
A partir da década de 1870, a situação mudou paulatinamente com a chegada maciça de seringueiros de origem nordestina, vindos principalmente do Ceará. Com uma densidade elevada de hévea brasiliensis, a história do Acre foi profundamente marcada pela economia extrativista da borracha. Em 1899, a região acreana produzia cerca de 60% da borracha amazonense, ou seja, mais de 12 mil toneladas (Costa [1973] 1998: 40). A ocupação da bacia do Purus, de acesso mais fácil a Manaus e Belém, precedeu de alguns anos à exploração de seringa no A lto Juruá. Segundo Oliveira (1992: 50), João Gabriel de Carvalho e Melo foi o primeiro colono a se estabelecer, em 1857, nas margens do Purus com 40 famílias e o fundador, em 1869, do primeiro seringal estável da região. O ritmo da colonização do Acre se acelerou a partir de 1877 em conseqüência das grandes secas do Nordeste. A imigração de milhares de seringueiros, em busca de melhores condições de vida, organiza -se a partir das casas aviadoras de Manaus e Belém apoiadas pelo capital internacional e é geralmente apresentada pelos historiadores, como Euclides da Cunha ([1909] 1998: 92) ou Ferreira Reis (1931: 216), como um movimento “fortuito”, “espontâneo” e sem “iniciativa oficial”.
A chegada dos seringueiros constitui, para usar a expressão de Ricoeur (1978: 40), o “evento fundador” da história oficial acreana. O Acre nasce com os seringueiros e a epopéia da borracha. A história da região na última década do século XIX e no início do século XX é complexa e movimentada. A “conquista do deserto ocidental” é apresentada ao leitor como um exemplo de patriotismo, um ímpeto de brasilidade e de orgulho nacional. Juntos com as figuras emblemáticas de Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco, os seringueiros nordestinos, foram os pilares da incorporação da região ao Estado-nação brasileiro. Através da análise da historiografia regional, podemos desvendar alguns mitos que participam tanto da ideologia nacional brasileira, como da “invenção da Amazônia” (Gondim 1994).
Preocupado em destacar alguns desses mitos funda dores da história oficial acreana, opto aqui por não descrever os eventos e as disputas entre o Brasil e os países fronteiriços para a demarcação das fronteiras internacionais e a incorporação do Acre ao território nacional. Os conflitos do Brasil com a Bolívia e o Peru, as insurreições dos seringueiros, a formação do Estado independente do Acre dirigido por Galvez, a epopéia militar comandada por Plácido de Castro, as negociações diplomáticas lideradas pelo Barão do Rio Branco que levaram progressivamente a definição das fronteiras atuais, são alguns dos principais marcos da fascinante história do Acre cuja exposição seria fastidiosa e ultrapassaria os limites deste artigo. Como antropólogo e não historiador, o meu interesse é discutir o lugar atribuído aos povos indígenas pela historiografia oficial da região, desvendando alguns mitos fundadores da “invenção” do Acre.
Na historiografia brasileira, a integração do Acre à nação é apresentada como um exemplo de patriotismo e de nacionalismo. Apesar das diferenças de interpretações, os historiadores acreanos concentram, geralmente, suas análises em torno da participação do povo seringueiro e dos grandes heróis da conquista: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Encarregado dos trabalhos de fixação da nova fronteira através da “Comissão mista brasileira-peruana de reconhecimento do Alto Purus”, no início do século XX, Euclides da Cunha ([1909] 1998), por exemplo, em seus escritos sobre a Amazônia, salientou a coragem e o patriotismo dos seringueiros nordestinos. Vivendo em condições sub-humanas, prisioneiros do sistema do aviamento e da hostilidade da floresta, os seringueiros são, na visão do autor, um exemplo de miscigenação e os bastidores do novo caráter nacional. Encarregados de domesticar a natureza e de integrar a Amazônia, “terra sem história”, à Pátria, os anônimos seringueiros concentram as virtudes do povo brasileiro e expressam através de uma luta cotidiana os grandes desafios da nação.
A utilização do patriotismo e do nacionalismo aparece também na construção mítica dos heróis da história do Acre. À imagem da República que elegeu Tiradentes como símbolo nacional brasileiro (Carvalho 1990), a epopéia acreana construiu seus venerandos heróis: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco. Ardentes de fensores das idéias positivistas, os militares tiveram um papel importante na proclamação da República no Brasil e na ocupação do território nacional.4 Na história acreana, Plácido de Castro expressa esses valores positivistas e patrióticos do “espírito militar” que o “libertador do Acre” soube transmitir ao povo seringueiro e que foram decisivos para a incorporação da região à nação.
Todavia, a dimensão militar nunca substituiu os esforços da diplomacia. Na versão da história oficial da conquista do Acre, o Brasil sempre valorizou uma resolução pacífica do conflito com a Bolívia e o Peru. Nesse contexto, o Barão do Rio Branco, chefe da diplomacia brasileira, aparece como um negociador excepcional. Ao mesmo tempo defensor do Brasil e respeitoso dos países vizinhos, Rio Branco alcançou um estatuto mítico, além dos interesses egoístas que caracterizam a condição humana. Na apresentação de sua atuação, desvendam-se algumas imagens do "homem cordial", outro símbolo poderoso de brasilidade (Buarque de Holanda [1936] 1989). O patriotismo e o nacionalismo se expressaram também em vários eventos da história regional. Limito-me, aqui, apenas ao exemplo da oposição dos seringueiros acreanos à criação do Bolivian Syndicate. Última tentativa do governo boliviano para ocupar a região, a criação do Bolivian Syndicate exigiu da antiga colônia espanhola concessões enormes de soberania. Segundo os termos do contrato assinado em julho de 1901, a Bolívia oferecia à companhia internacional, composta por grandes grupos finance iros, principalmente norte-americanos, uma concessão de trinta anos para a exploração da seringa na região. O consórcio capitalista dispunha da plena autoridade sobre o comércio da borracha e de direitos políticos e judiciais essenciais. Ele usufruía do direito de compra e venda dos seringais, do direito de navegar e controlar os rios através de uma polícia própria, de estabelecer as leis e exercer a justiça, etc. Em contrapartida, a Bolívia recebia 60% da arrecadação realizada pela companhia. A criação do Bolivian Syndicate foi um dos momentos-chaves do conflito acreano, um “critical event” (Das 1996) que levou à incorporação do Acre ao Brasil. Para os seringueiros brasileiros, o Bolivian Syndicate aparecia como uma espécie de companhia colonial que controlava, não só a terra, mas toda a organização do trabalho extrativista da borracha. Essa situação revoltou a população acreana que conseguiu superar suas divisões internas e se organizar contra o inimigo comum. O sentimento do povo acreano espalhou-se além das bacias do Purus e do Juruá e comoveu o país que deu um apoio decisivo à luta dos seringueiros. A formação do Bolivian Syndicate criou um fervor nacionalista e patriótico que cimentou a nação contra os inimigos do Brasil. Manifestações contra os americanos e bolivianos se organizaram em Manaus, Belém e Rio de Janeiro. Orgulho da Nação, a Amazônia era novamente cobiçada pelo capital estrangeiro. Depois do roubo das sementes da hévea que levará à crise da borracha amazônica a partir de 1910, a ameaça estrangeira sobre o território continuava com claras tentativas de se apropriar das riquezas do Brasil e impedir seu almejado progresso. O clima decorrente da criação do Bolivian Syndicate motivou a decisão do Presidente Rodrigues Alves de enviar tropas do exército para o Acre. Espelho das hesitações da política oficial, as ordens dos militares brasileiros eram confusas e contraditórias: garantir a paz com os bolivianos e apoiar a luta dos seringueiros, defendendo os interesses da nação contra o imperialismo internacional. Ao mesmo tempo que causou a intervenção militar brasileira no Acre, onde se destacaram as façanhas de Plácido de Castro, a criação do Bolivian Syndicate também é usada na historiografia oficial para expressar o gênio diplomático do Barão do Rio Branco que propôs uma indenização financeira à Bolívia e aos americanos para evitar a extensão do conflito. É interessante notar que nessa campanha nacional em defesa dos interesses da Pátria, a imprensa teve um papel essencial. Formador da opinião pública e do sentimento nacional, o “print capitalism” (Anderson 1996) contribuiu para assegurar a vitória dos seringueiros acreanos. Antes da criação do Bolivian Syndicate, a imprensa amazonense já havia atuado de maneira notável na defesa dos interesses do povo acreano, denunciando, periodicamente, a administração boliviana de Puerto Alonso e o imobilismo do governo federal brasileiro, acusado de abandonar seus cidadãos. Essa atitude da imprensa amazonense manifestava claramente os interesses econômicos envolvidos no controle da região. Com a constituição do Bolivian Syndicate, o ardor patriótico dos jornais de Belém e Manaus se multiplicou e os artigos publicados pela imprensa amazonense foram reutilizados por outros diários nacionais, espalhando a indignação por todo o país e fazendo do conflito acreano uma questão de honra nacional. O “amazonismo” ou o lugar dos povos indígenas na historiografia acreana Além de reproduzir e participar da construção dos sentimentos patrióticos e nacionalistas que permitiram a “invenção do Acre” e sua incorporação ao Brasil, a historiografia oficial veiculou e continua veiculando vários mitos sobre a região amazônica e seus primeiros habitantes. A natureza e os povos indígenas que a habitam continuam servindo de palco de projeção para os mitos ocidentais sobre a Amazônia e sua alteridade humana. Esses mitos são bem conhecidos na literatura antropológica e foram sistematizados no trabalho de Gondim (1994). O objetivo, aqui, não é detalhar a concepção ocidental sobre a Amazônia e as populações indígenas, mas apenas expor algumas de suas características, mostrando como elas aparecem na história regional e nos ajudam a pensar o lugar atribuído aos povos indígenas pela historiografia acreana. Como o “orientalismo” de Said (1996), poderíamos definir o “amazonismo” como um conjunto de idéias e de discursos, produzidos pelo imaginário ocidental sobre a Amazônia e as populações nativas, destinado a viabilizar seus interesses políticos e econômicos. Como espaço imaginado pelo Ocidente, o “amazonismo” partilha muitas características com o “orientalismo”. Todavia, enquanto Said nos apresenta um Oriente construído de maneira negativa por um Ocidente hegemônico, o “amazonismo” constitui um campo ambíguo, catalisador de imagens e de discursos contraditórios, que podem ser mobilizados para servir interesses muito divergentes. A concepção ocidental da alteridade enraíza-se na Grécia Antiga, momento onde se estabeleceu uma dicotomia inicial entre o “civilizado” e o “bárbaro” que serviu de modelo para a apreensão do “Outro” nos séculos seguintes. Na história européia, o Renascimento foi uma época-chave de transição entre o mundo medieval e a modernidade. O sistema copernicano e a chegada ao “Novo Mundo” questionaram profundamente a cosmografia e a cosmologia da Idade Média, baseadas num mundo fixo e ordenado pela vontade divina (Woortmann 1997a). Nesse contexto de incertezas, as primeiras informações sobre a Amazônia e seus habitantes apareceram ao mesmo tempo como a transposição de velhas imagens sobre a alteridade, atualizadas e aplicadas à nova situação, e como fonte de inspiração para novas utopias. Primeiras testemunhas da Amazônia e de seus habitantes, os relatos de Carvajal ([1542] 1941) e de Acuña ([1641] 1941) combinaram o fantástico e o exótico e edificaram as bases do “amazonismo”: mito das Amazonas, inferno verde, Eldorado, seres canibais, nobre selvagem, etc. A Amazônia e seus primeiros habitantes concentraram e continuam concentrando todos os sentimentos e as fantasias ocidentais. Símbolo de riqueza e miséria, de medo e esperanças, de sonhos e pesadelos, de futuro e passado, de inferno e paraíso, a alteridade é o espelho invertido do Ocidente e é manipulada conforme os interesses em jogo. Essas imagens contraditórias acompanharam e informaram a conquista da América e o encontro com as populações indígenas. Além de legitimarem a ocupação e exploração econômica, os mitos também serviram a sustentar os interesses políticos e ideológicos da Europa. Guiados pelo racionalismo cartesiano, os naturalistas do século XVIII e XIX multiplicaram as expedições científicas na Amazônia e tentaram se emancipar do universo fantasmagórico e das interpretações bíblicas dos primeiros viajantes. Todavia, a Fé na ciência emergente não revoluciona o discurso europeu sobre a alteridade. Os novos métodos mantêm os mesmos objetivos de conquista e são apenas uma outra versão do imperialismo ocidental (Pratt 1992). Assim, mesmo apontando a diversidade nativa, La Condamine, por exemplo, foi seduzido pelo fantástico, pelo mito das Amazonas e apresentou as características do “homem americano”. Inferiores ao europeu, o índio é um “homem natural” vivendo na infância da humanidade: "abandonado à natureza, privado de educação e sociedade, pouco difere das bestas" (La Condamine [1745] 1944: 45).10 Enquanto o explorador francês ainda acreditava na civilização dos silvícolas, para Spix e Martius, que viajaram pelos rios Purus e Juruá, as populações indígenas são seres decadentes destinados a desaparecer: ...uma raça de gente que, não por orgulho, mas por indiferença e indolência, detesta todas as peias duma civilização (…), temos de inclinar-nos à conclusão de que os índios não suportam a cultura mais alta que a Europa lhes quer inocular, e que a civilização progressiva, elemento vital da humanidade florescente, mesmo os destrói, como um veneno letal, e de que eles, assim como muitos outros seres da natureza, parecem destinados a decompor-se e sair do número dos vivos, antes de terem alcançado o mais alto grau de desenvolvimento, cujo germe está neles implantado. Consideramos, por conseguinte, os homens vermelhos, um ramo atrofiado, no tronco da humanidade, destinado a apresentar apenas tipicamente quase uma forma física de certas propriedades que fazem parte do ciclo, ao qual o homem está sujeito como criadora natural, porém incapacitados de produzir as altas flores e frutos da Humanidade. (Spix e Martius [1823-1931] 1981: 47-48) Essa separação entre cultura e natureza é uma característica estrutural do pensamento ocidenta l sobre a alteridade. Latour (1991) mostrou que, na Europa, a autonomia progressiva da ciência a partir do século XVI levou à afirmação da “Constituição moderna” baseada na ilusão da “Grande Divisão” entre, de um lado, as sociedades ocidentais que separaram a cultura da natureza e, de outro, as sociedades não ocidentais vivendo em “coletivos de natureza -cultura”. A originalidade do trabalho de Latour consiste em mostrar que toda sociedade humana é um coletivo composto de cultura e natureza e que a “Grande Divisão” que funda o sistema de representações do mundo do Ocidente é ilusória. Apesar das sociedades ocidentais jamais terem sido modernas, elas continuam baseadas na ilusão dessa distinção radical entre cultura e natureza. A idéia da “Grande Divisão” latouriana também se aplicou à Amazônia e aos povos que a habitam e nos ajuda a pensar a versão acreana do “amazonismo”. Os trabalhos antropológicos mostram que, para as sociedades indígenas, a natureza é socializada e faz parte da cultura, não existindo uma separação radical entre esses dois termos.11 Contrariamente as sociedades ocidentais que vivem na ilusão da modernidade, podemos afirmar que os povos indígenas da Amazônia formam sociedades “não modernas” no sentido de Latour. Ora, essa ausência de modernidade é considerada, geralmente, no pensamento ocidental como uma falta de civilização. Do mesmo modo, para o Ocidente, a Amazônia é vista, por essência, como um espaço natural, ou seja, um espaço virgem de cultura que deve ser explorado e “civilizado”. Nessa concepção, as populações indígenas se confundem com seu habitat natural. Como a Amazônia, os povos indígenas que a habitam pertencem ao reino da natureza e sua incorporação na cultura passa, necessariamente, pela obra civilizadora. Embora inexplorados, os rios Purus e Juruá cativaram o imaginário europeu desde os primeiros séculos da conquista. A capital do Império Inca, Cuzco, foi considerada a fonte desses dois grandes rios opulentos de riquezas: ouro, salsaparrilha, plantas medicinais, tartarugas, peixes, etc. Suas margens eram o habitat natural de tribos fantásticas que protegiam seus tesouros e cuja ferocidade era temida pelos brancos: Rios enigmáticos, envoltos nas malhas da lenda, impenetráveis ao homem branco temerosos da ferocidade dos silvícola s, habitantes e guardiãs de suas margens. É que a tradição da crônica regional, desde época bastante remota, os apontava como o reino de índios bárbaros e de tesouros salomônicos. No Purus, diz a lenda, havia índios gigantes que se enfeitavam com folhas de ouro, outros que penduravam argolas desse metal no nariz e nas orelhas. A primitiva geografia do Purus e Juruá foi uma geografia de mitos: no primeiro a nação dos gigantes, no segundo o país dos anões e dos homens caudados. (Tocantins 1979 105) Se essas imagens fazem parte da lenda da região, o ouro acreano materializou-se no leite vegetal no final do século XIX. Na historiografia do Acre, apesar do interesse apontado por alguns autores como Castello Branco (1950), a diversidade nativa se confunde, geralmente, com a natureza a ser explorada ou é apresentada como um estado primitivo de humanidade. Antes da epopéia da borracha e da chegada dos seringueiros, a região acreana é tida como não tendo história. Alguns títulos da historiografia regional ilustram perfeitamente essa idéia: “A formação histórica do Acre” (Tocantins 1979); “O último oeste: A conquista do Acre” (Oliveira 1992), “A conquista do deserto ocidental” (Costa [1973] 1998); “Acre: Uma história em construção” (Calixto 1985). Para a história oficial, o povo acreano é formado pelos seringueiros cuja tarefa é de domesticar a natureza e os índios que fazem parte dela. A região apresenta-se como uma “terra virgem”, um “deserto” onde o imaginário do inferno verde se mistura às esperanças do Eldorado; a “última página, ainda a escrever-se, do Gênese” nas palavras de Euclides da Cunha. O Acre foi obra dos seringueiros, heróis anônimos, desesperadamente instalados numa região hostil mas promissora. Com audácia e bravura, o extraordinário nordestino penetrou laboriosamente a selva, desafiando a natureza e as flechas envenenadas dos “índios selvagens” para conquistar palmo a palmo o território e integrá-lo à nação. Como o bandeirante, o seringueiro deflorou a floresta e domou a natureza caótica. A terra é, naturalmente, desgraciosa e triste, porque é nova. Está em ser. Faltamlhe à vestimenta de matas os recortes artísticos do trabalho (…). Há alguma coisa extraterrestre naquela natureza anfíbia, misto de águas e de terras, que se oculta, completamente nivelada, na sua própria grandeza. E sente-se bem que ela permaneceria para sempre impenetrável se não se desentranhasse em preciosos produtos adquiridos de pronto sem a constância e a continuidade das culturas. As gentes que a povoam talham-se-lhe pela braveza. Não a cultivam, aformoseando-a: domam-na. O cearense, o paraibano, os sertanejos nortistas, em geral, ali estacionam, cumprindo, sem o saberem, uma das maiores empresas destes tempos. Estão amansando o deserto. E as suas almas simples, a um tempo ingênuas e heróicas, disciplinadas pelos reveses, garantem-lhe, mais que os organismos robustos, o triunfo na campanha formidável. (Cunha [1909]1998: 88-89). De forma semelhante, o seringueiro civilizou o índio. No momento da conquista do Acre, as populações indígenas são vistas como um obstáculo à exploração da borracha. Quando é apontada pelos autores, a presença nativa é apenas considerada como um freio suplementar ao avanço inevitável e benfeitor do “Progresso” e da “Civilização”. Para os índios, o contato com os seringueiros traduziu-se numa forte queda populacional e na extinção de vários grupos. Se os povos mais vigorosos resistiram corajosamente à conquista de seus territórios, seus atos reforçam geralmente a grandeza e o heroísmo dos colonizadores. A diversidade das sociedades indígenas e a riqueza de suas culturas são geralmente ocultada ou mencionada en passant. Os índios em si não atuam diretamente na “invenção” do Acre. Mesmo quando considerados humanos, os povos indígenas continuam fazendo parte da natureza. Com a chegada dos seringueiros, os povos “sem história” se tornaram apenas objeto de uma história que se constrói sem eles ou sobre eles, raramente com eles. Mal inevitável mas superável, o destino do índio é a “civilização” ou o extermínio e uma dicotomia se estabelece rapidamente entre o índio “civilizado” ou “manso” e o índio “brabo”. Enquanto os “mansos” integram o cativeiro do seringal na categoria generica de “caboclo”, os “brabos”, após serem massacrado e perder suas terras são integrados à cultura local como folclore ou símbolo da gloriosa conquista do povo seringueiro. Nas últimas décadas, o desenvolvimento dos estudos de arqueologia e de etnohistória contribuíram fortemente para rever a imagem da Amazônia como uma “terra virgem”, ou exc lusivamente habitada por pequenos grupos isolados, e mostraram a amplitude do genocídio das populações nativas desde os primeiros séculos da conquista européia. Como a Amazônia de uma maneira geral, o Acre era o habitat de uma grande diversidade de povos. Segundo Calixto (1985: 16), cerca de 60 mil índios representando uns 50 grupos étnicos viviam na região acreana no início do século XIX. As correrias organizadas pelos seringueiros brasileiros contra os índios foram freqüentemente subestimadas pelos his toriadores brasileiros que atribuem geralmente as mortes maciças de nativos aos caucheiros peruanos. Dizimados pelos massacres e as doenças, muitos grupos foram extintos, outros encontraram refúgio nas cabeceiras dos rios, a maior parte de contingente nativo foi, no entanto, incorporada à Apesar de sua obra conter vários estereótipos sobre os povos indígenas acreanos e participar da construção do “amazonismo”, cabe notar o interesse de Castello Branco (1950) em apresentar a diversidade nativa da região. Caso dos Nauá (ou Nawá), por exemplo, cuja história é fascinante. Esse grupo da família etnolingüística Pano vivia nas proximidades da atual cidade de Cruzeiro do Sul, também conhecida localmente como “a Terra dos Nauá”. Valorosos guerreiros, os Nauá resistiram com as armas à penetração dos seringueiros até seu “extermínio oficial” que aconteceu, segundo a historiografia regional, no final do século XIX e início do século XX. Durante as décadas que seguiram o “extermínio” desse povo indígena, a sociedade cruzeirense fez do nome “Nauá” um símbolo da cultura e da identidade local. Existe, hoje, em Cruzeiro do Sul, o teatro dos Nauá, o café nauá, o guaraná nauense, etc. Imprevisto e ironia de uma história mal contada, depois de um século de silêncio, os Nauá “reapareceram” no ano 2000 no Parque Nacional da Serra do Divisor! Exemplo acreano de povo indígena “remanescente”, a presença dos Nauá vivos, que reivindicam hoje a demarcação de suas terras do órgão indigenista, causa muitas polêmicas envolvendo vários atores: FUNAI, IBAMA, CIMI, ecologistas (S.O.S. Amazônia), antropólogos, políticos, etc. Sobre esse assunto, ver as matérias “Grande surpresa no final do século: reaparecem os índios Nauá” (Jornal Voz do Norte, edição semanal de 11 a 18 de agosto de 2000, página 11) e “Resquícios de uma civilização” (Jornal Página 20, edição de 16 de agosto de 2000, página 7). 14 Ver, por exemplo, Roosevelt (1993) ou Porro (1996). Como seringueiros, para a história oficial, os índios do Acre se dissolvem na categoria genérica de “caboclo”. Como mostrou Cardoso de Oliveira no seu trabalho com os índios Tikuna do Amazonas, a identidade “caboclo” é essencialmente uma identidade negativa imposta pelos brancos e incorporada pelos índios (Cardoso de Oliveira 1976: 14-20; 1981:77-96). Se ele se distingue do “brabo”- o índio “selvagem” com traços animalescos -, o “caboclo” acreano é caracterizado por um conjunto de atributos negativos (ladrão, preguiçoso, traidor, etc.) que marcam sua inferioridade em relação ao branco (Valle de Aquino 1977). Mesmo “civilizados” ou “amansados”, através da imagem do “caboclo”, os índios continuam considerados como representantes de uma sub-humanidade. Nos seringais, muitas populações indígenas sobreviventes partilharam um destino funesto com os seringueiros nordestinos, seus inimigos históricos. Na condição de mão de obra servil no sistema escravista e paternalista da borracha, os índios acreanos reprimiram durante décadas sua identidade étnica e continuaram sofrendo os preconceitos da sociedade envolvente. De uma maneira geral, considerando o lugar atribuído ao índio pela historiografia acreana, podemos dizer que a “questão indígena” foi um detalhe na conquista e na integração do Acre ao Brasil. Exterminados, “civilizados” ou isolados em áreas remotas, cujas riquezas ainda não haviam sido cobiçadas, durante a maior parte do século XX, os povos indígenas acreanos desapareceram de uma história oficial que nunca os considerou como atores. Símbolo dessa invisibilidade da questão indígena, a FUNAI começa a atuar realmente na região apenas em 1975. Até essa data, as raras viagens de funcionários do SPI, ligados à Ia Inspetoria Regional de Manaus, legitimaram os patrões seringalistas e alguns políticos locais como representantes do órgão. Até à intensificação das políticas desenvolvimentistas a partir da década de 1970, as instituições governamentais e importantes segmentos da sociedade acreana desconheciam a existência de populações indígenas no Estado (Valle de Aquino e Iglesias 1999: 6). Desenvolver e integrar: a segunda conquista da Amazônia A economia da borracha marcou pofundamente a história da Amazônia.15 Com a crise da seringa, o Estado brasileiro buscou alternativas e multiplicou os esforços para integrar a região amazônica ao resto da nação através do planejamento e da execução de uma séria de políticas desenvolvimentistas. Sempre considerada como um espaço marginal, vazio e selvagem, mas que encobre opulentes riquezas, a Amazônia continua sendo vista como a solução para os problemas econômicos e sociais do país. A construção do “Brasil Grande” passa pelo desenvolvimento da região e sua integração definitiva ao sistema econômico moderno. A Amazônia representa mais da metade do território nacional e acredita-se que a descoberta e a exploração de suas abundantes riquezas, ainda não reveladas, garantirão o futuro próspero do país. Através da valorização econômica da região, o Brasil cumprirá seu prodigioso destino, integrando o círculo restrito das grandes potências mundiais. Essa ideologia desenvolvimentista e integracionista foi o fio condutor das políticas oficiais para a Amazônia a partir da segunda metade do século XX. A comumente chamada “segunda conquista” da Amazônia intensificou-se a partir da década de 1970 e suscitou uma literatura abundante. Para colocar em prática essa ideologia, o Estado brasileiro criou uma série de programas e entidades burocráticas encarregadas de sua execução. 16 Poderíamos mostrar como, através dessa ideologia, a mesma estrutura que informou o mito do “amazonismo” dos séculos passados, com suas imagens ambivalentes e contraditórias, continua se manifestando de uma forma original em um novo contexto histórico nesses programas desenvolvimentistas e integracionistas.17 Todas essas políticas têm como objetivo o povoamento de um espaço visto como vazio, mas habitado por índios; a valorização econômica de uma região considerada improdutiva, mas dissimulando riquezas abundantes; a integração à nação de uma zona marginal, mas primordial. Embora colaborando estreitamente com o capital internacional, a ideologia desenvolvimentista é sempre acompanhada de um discurso nacionalista e patriótico. Os mitos ignoram os paradoxos e se popularizam através de slogans convenientes e eficazes: “Uma terra 15 Para uma história da economia da borracha no Brasil, ver Dean (1989). Num contexto onde a soberania nacional está intimamente ligada à integração e ao desenvolvimento da Amazônia, a proteção e ocupação das fronteiras da região continua sendo uma obsessão permanente. O projeto “Calha Norte” foi pensado para responder a essas exigências. A fobia do inimigo, que se apresenta geralmente sob a figura das grandes potências imperialistas que cobiçam as riquezas nacionais e tentam impedir o Brasil de realizar seu prodigioso destino, continua atual e dispõe de numerosos ideólogos. 18 Nesse cenário contemporâneo do “amazonismo”, a diplomacia ainda exerce um papel fundamental. Em 1978, sob a iniciativa paternalista do Brasil, a assinatura do Tratado de Cooperação Amazônica reuniu os diferentes países da região (com exceção da Guiana Francesa) para coordenar as políticas regionais de desenvolvimento. Ao mesmo tempo que ele propunha garantir e respeitar a soberania de cada país amazonense, o acordo era também uma resposta às pressões internacionais e uma maneira de evitar o espectro da internacionalização da região. A crise da borracha atingiu profundamente o Acre e suas populações. Apesar de iniciativas encorajando a pequena agricultura a partir da década de 1920, a produção de seringa, mesmo em época de crise, continuo sendo a base da economia acreana e a esperança de retorno aos tempos de prosperidade ainda esteve presente durante a maior parte do século XX. Com a segunda Guerra Mundial e o bloqueio dos seringais asiáticos, a borracha acreana conheceu um novo impulso e sua exploração tornou-se novamente rentável. Na década de 1940, a elevação do preço do produto no mercado internacional iniciou um curto período de euforia que trousse novos migrantes nordestinos para a Amazônia em geral e para o Acre em particular. Mas os “soldados da borracha” viveram a mesma história de infortúnios e desilusões que seus antecedentes. Intimamente ligada ao contexto internacional, a economia seringueira acreana entrou novamente em crise com a reativação da produção asiática e passou a ocupar um lugar insignificante no mercado mundial, apesar da s políticas governamentais de subsídios à produção. Acumulados de dívidas, alguns patrões seringalistas abandonaram seus seringais. As falências levaram à desarticulação progressiva do sistema do cativeiro, à migrações de seringueiros para as periferias das cidades ou à emergência de uma nova categoria de “seringueiros autônomos”, liberados da opressão patronal, mas abandonados em suas colocações e condenados a um futuro lúgubre. A partir da década de 1970, o Acre integrou os programas desenvolvimentistas e integracionistas planejados pelo governo federal com o apoio das autoridades do Estado. Como em outras regiões amazônicas, a “segunda conquista” aumentou a pressão territorial e teve conseqüências dramáticas para as populações indígenas. As políticas oficiais foram facilitadas pela construção da rodovia BR 364, Brasília - Cuiabá – Porto Velho, prolongada, em 1968, para Rio Branco e atingiram o Acre e suas populações através da frente de expansão da economia agropecuária. Aproveitando-se de vantagens fiscais e da crise da borracha, importantes grupos industriais e financeiros do sul do país compraram a preços módicos as terras dos seringais em falência para transformá -las em pastos destinados à criação de gado, recuperando também parte da mão de obra seringueira e indígena, que trabalhava na economia extrativista decadente. Na década de 1970, os “paulistas”, termo pelo qual esses novos colonos originários do sul do Brasil e seus representantes passaram a ser definidos pelos regionais, apresentam-se como os novos “civilizadores” do Acre, vindos para desenvolver e integrar a região ao resto do país, trazendo o progresso e a prosperidade a essas terras ainda consideradas “selvagens”. Para eles, o caráter étnico da mão de obra é secundário. O essencial é dispor de uma força de trabalho nas tarefas de desmatamento e nas fazendas emergentes, ou seja, transformar os seringueiros e os índios em peões (Valle de Aquino 1977). Após a economia extrativista da borracha, essa segunda frente de expansão da sociedade nacional em território acreano caracterizou-se por enormes desmatamentos, conflitos acirrados e violências extremas na luta pela terra. Os “paulistas” compraram muitos seringais com títulos falsificados e o processo de concentração fundiária no Estado cresceu. Para “limpar” as áreas de seus ocupantes indígenas ou seringueiros, os novos colonos recorreram freqüentemente à métodos radicais: ameaças, queima de casas, contratação de jagunços, assassinatos, etc. Sob a pressão dos “paulistas”, muitos seringueiros foram expulsos para seringais bolivianos, para as periferias das cidades ou simplesmente incorporaram o trabalho de desmatamento e as atividades agrícolas nas fazendas dos novos patrões. O Vale do Purus foi a região acreana mais atingida pela implantação da pecuária extensiva. Segundo Arnt e Schwartzman (1992: 161), a pecuária foi responsável por mais de 85% dos desmatamentos no Estado. Com a multiplicação dos conflitos fundiários, nas décadas de 1970 e 1980, o Acre figurava tristemente como uma das regiões mais violentas do país. A luta dos “Povos da Floresta”: indigenismo e ambientalismo no Acre As primeiras organizações indígenas, assim como os primeiros sindicados de trabalhadores rurais que, em 1985, deram origem ao Conselho Nacional dos Seringueiros (CNS), apareceram em decorrência das violências dessa segunda fase de colonização do Acre. Frente às políticas desenvolvimentistas e à chegada dos “paulistas”, índios e seringueiros começaram a se organizar para defender seus direitos, principalmente, o direito à terra. O vale do rio Acre foi a primeira zona afetada pelos conflitos e os desmatamentos em grande escala que se intensificaram com a construção, entre 1971 e 1973, da BR 317, ligando Rio Branco à Assis Brasil. O primeiro empate20 ocorreu em 1976 no seringal Carmen, município de Basiléia. Os sindicatos de trabalhadores rurais nasceram na década de 1970 com uma forte participação de seringueiros que procuravam, ao mesmo tempo, se libertar do sistema do cativeiro e lutar contra os desmatamentos da economia pecuária, garantindo seu modo de vida e sua permanência na floresta.21 A forma pacífica dos empates não deve ocultar a violência dos conflitos. Além da figura emblemática de Chico Mendes, muitos outros seringueiros e sindicalistas foram assassinados durante essas lutas pela terra.22 Os povos indígenas acreanos também se mobilizaram, paulatinamente, em decorrência dessa “segunda conquista” e iniciaram novas formas de luta no campo político regional. A emergência e a consolidação do movimento indígena acreano devem ser situadas no contexto político mais amplo da afirmação étnico-política da indianidade que caracterizou as Américas a partir da década de 1970 (Morin 1992). No Brasil, o movimento indígena estruturouse, primeiramente a nível nacional e, posteriormente, regional e local, manifestando uma particularidade no contexto sul-americano. 23 Nesse fenômeno global de afirmação étnico-política dos povos indígenas, o papel desempenhado por autores não índios foi fundamental. No caso do Acre, a regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI-Acre) foram os primeiros porta-vozes da causa indígena e deram o apoio necessário à organização do movimento. Através da regional Amazônia Ocidental, os missionários do CIMI, influenciados pela teologia da libertação, começaram a atuar no rio Purus, no Acre e sul do Amazonas, a partir de 1975, promovendo encontros entre grupos indígenas e desenvolvendo um trabalho de conscientização política junto às lideranças das comunidades. A CPI-Acre foi criada oficialmente em 19 de fevereiro de 1979 por um grupo de acreanos oriundos da “sociedade civil”. Ela pertence a essa geração de ONGs que aspiravam à democratização do país, abafada pela ditadura militar, mas também possui uma forte ide ntidade acreana. Um dos principais fundadores da CPI-Acre foi o antropólogo Terri Valle de Aquino.24 As relações entre a CPI-Acre e o CIMI foram regularmente pautadas por conflitos e rivalidades, mas, nos momentos importantes de luta, as duas identidades souberam atuar em conjunto em favor dos direitos dos índios acreanos. Com a afirmação progressiva do movimento indígena, o CIMI e a CPI passaram a substituir seu papel inicial de porta-vozes por uma atuação de apoio logístico e de consultoria técnica. Formadas e apoiadas por essas organizações indigenistas, as primeiras lideranças indígenas do Acre emergiram no campo interétnico, reivindicando junto ao governo federal a demarcação de suas terras. Assembléias indígenas regionais organizaram-se periodicamente em Rio Branco a partir de 1982. Essas reuniões permitiram a diferentes povos indígenas do Acre confrontar suas respectivas situações, estabelecer os contornos de uma identidade genérica de “índio” para promover suas reivindicações territoriais. Ao contrár io dos estereótipos negativos que caracterizam a identidade “caboclo”, a “indianidade” é reapropriada positivamente pelos índios e essencialmente definida pela sua oposição ao “branco”, o não índio. A organização política dos índios acreanos fortaleceu-se em 1986, momento no qual as lideranças de diferentes povos, reunidas em Rio Branco durante a terceira assembléia indígena do Acre e do Sul- Amazonas, decidiram criar uma organização indígena regional: a União das Nações Indígenas do Acre e do Sul-Amazonas- UNI- Norte- (Valle de Aquino e Iglesias 1995). Com a aceleração do processo de globalização, surgiu um novo tipo de ator no cenário político internacional que vai se revelar um aliado de peso para as populações indígenas e seringueiras acreanas. A partir da década de 1980, as conseqüências da “segunda conquista” da Amazônia mobilizaram a mídia e sensibilizaram uma opinião pública preocupada com a destruição do meio ambiente e os problemas ecológicos planetários (desmatamentos, camada de ozônio, biodivers idade, etc). Nesse contexto, as organizações ambientalistas exerceram uma pressão crescente sobre as instituições financiadoras internacionais e reorientaram a política brasileira do desenvolvimento amazônico (Hurrel 1992; Arnt e Schwartzman 1992; Little e Ribeiro 1996). Apesar de um peso demográfico pouco significante em relação ao total populacional do país, os índios brasileiros beneficiaram-se do crescimento do movimento ambientalista internacional.27 A partir de meados da década de 1980, os índios da Amazônia gozam de uma visibilidade nunca alcançada e de um poder simbólico capaz de mobilizar as consciências coletivas e de colocar a comumente chamada “questão indígena” no centro dos debates sobre o futuro da Amazônia. Socializadas pouco a pouco nos mecanismos da política moderna, as lideranças indígenas contraíram alianças originais com novos parceiros (ONGs ambientalistas, seringueiros, empresas “verdes”, etc.). Através das organizações indígenas, indigenistas e ambientalistas, e beneficiando-se da midiatização de certas lideranças, os índios brasileiros prosseguiram suas lutas, integrando seus discursos à ideologia ambientalista dos novos projetos de desenvolvimento (Conklin e Graham 1995). No Acre, a crescente mobilização dos índios e a maior visibilidade dos problemas ambientais na Amazônia levaram o governo brasileiro a rever parcialmente os objetivos de sua política de desenvolvimento regional no âmbito do “Programa de Proteção ao Meio Ambiente e às Comunidades Indígenas”. Imposto por essa nova conjuntura que, pouco a pouco, sob o rótulo de “desenvolvimento sustentável”, buscará alternativas aos modelos de crescimento econômico predatórios, o PMACI integrou pela primeira vez preocupações ambientais no desenvolvimento acreano. Aprovado em 1985, o PMACI foi planejado após uma série de negociações entre o governo brasileiro e o Banco Interamericano de Desenvolvimento -BID- que condicionou a liberação de um empréstimo de 147 milhões de dólares para a pavimentação dos 502 quilômetros da BR-364, no trecho Porto-Velho / Rio Branco à adoção de medidas efetivas de proteção ao meio ambiente e aos povos indígenas. A obra de pavimentação garantia, pela primeira vez, uma ligação terrestre permanente e estável do Acre com o resto do país. Orçado em 10 milhões de dólares (40% financiado pelo BID e 60% como contrapartida do governo brasileiro), o PMACI representava apenas 7% do valor total do empréstimo, mas incluia a criação de áreas protegidas e a demarcação de terras indígenas para evitar os desmatamentos em grande escala e os conflitos que caracterizaram a pavimentação da mesma rodovia no trecho Cuiabá / Porto Velho. As exigências do BID eram conseqüência direta das pressões de organizações ambientalistas internacionais que exerceram sua influência sobre parlamentares dos Estados Unidos (Valle de Aquino 1991). Durante a execução do PMACI, houve vários encontros entre o governo federal, o governo estadual, o BID, entidades civis e representantes dos movimentos sociais. Apesar das metas iniciais do Programa nunca terem sido alcançadas e dos resultados escassos, foi no contexto do PMACI que tanto o movimento indígena acreano, como o movimento dos seringueiros, adquiriram visibilidade política e poder inédito na região. As alianças entre índios, seringueiros e ambientalistas começaram a se estabelecer e se fortaleceram no âmbito do PMACI onde as propostas conjuntas ganharam projeção internacional. A partir de meados da década de 1980, o movimento indígena e o Conselho Nacional dos Seringueiros se aproximaram. Fundado em 1985 e dirigido por Chico Mendes, o CNS defendia a criação de Reservas Extrativistas, cuja idéia se baseava no conceito de “Terra Indígena”, adaptado a uma população não índia que habitava a floresta e usava seus recursos de uma forma não predatória. Convidado a participar da assembléia indígena da UNI-Norte em 1986, Chico 28 Sobre o PMACI, ver Valle de Aquino (1991) e Arnt e Schwartzman (1992: 159-176). Mendes e as lideranças indígenas entreviram interesses comuns e iniciaram as discussões sobre as modalidades de uma plataforma de reivindicações conjuntas, desenhando os contornos de uma aliança política interétnica. A repercussão internacional do assassinato de Chico Mendes, ocorrido em dezembro de 1988, precipitaram o acordo entre as representações nacionais da UNI e do CNS. O programa dessa aliança política entre índios e seringueiros, à qual se juntaram outras “populações tradicionais” da Amazônia (como, por exemplo, os chamados “ribeirinhos”), foi definido no “Io Encontro dos Povos da Floresta”, também “IIo Encontro Nacional dos Seringueiros”, ocorrido em Rio Branco de 25 a 31 de març o de 1989. Nesse evento, índios, seringueiros e ribeirinhos se aliaram, criaram uma identidade comum e definiram conjuntamente os objetivos a serem alcançados nas negociações com o Estado brasileiro e os organismos financiadores internacionais (Banco Mundial, ONGs ambientalistas, etc.). A “Aliança dos Povos da Floresta” foi lançada oficialmente no dia 12 de maio de 1989 em São Paulo pelos representantes da UNI e do CNS, mas nunca se materializou numa organização conjunta. Ativada ou ignorada em função do contexto político e dos interesses dos envolvidos, ela foi progressivamente abandonada a partir de 1993. Todavia, a “Aliança dos Povos da Floresta” constituiu um marco importante na história do indigenismo acreano, principalmente, na região do Alto Juruá. A “Aliança” surgiu e teve seu maior respaldo no Acre. Ela testemunha, não apenas a capacidade de resistência das populações indígenas frente às políticas integracionistas e assimilacionistas do Estado-nação, mas também a criatividade e o dinamismo das recomposições identitarias contemporâneas. A “Aliança dos Povos da Floresta” superou as fronteiras étnicas e fez dos temas ecologistas o seu pendão. Seu principal inspirador, o líder seringueiro Chico Mendes, conquistou notoriedade internacional com o apoio dos movimentos ambientalistas. As reivindicações eram ao mesmo tempo baseadas na expressão de uma situação de exploração comum aos índios e aos seringueiros e alimentadas pela retórica da ideologia ambientalista internacional, adaptada e modelada às circunstâncias locais (Pimenta 2001). A “Aliança dos Povos da Floresta” é um exemplo desses novos movimentos sociais que Almeida (1994) chamou de “unidade de mobilização”. Essas unidades (“Povos da Floresta”, 29Embora ela tenha sido lançada oficialmente depois da morte de Chico Mendes, a idéia inspiradora e o fundamento ideológico da “Aliança dos Povos da Floresta” estavam muito ligados à personalidade do líder seringueiro. A morte de Chico, as disputas entre correntes políticas no seio do CNS para assumir sua sucessão e divisões internas no próprio movimento indígena levaram progressivamente ao fim da união. Estabelecida num momento histórico específico, a “Aliança dos Povos da Floresta” é um exemplo das variedades de estratégias que os povos indígenas podem construir para concretizar suas reivindicações. Ela foi um instrumento político de reação ao contexto histórico particular imposto pela “segunda conquista” do Acre e, de maneira mais abrangente, da Amazônia. Na “Aliança dos Povos da Floresta”, o local se articulava com redes globais. A criação dessa identidade comum visava satisfazer reivindicações específicas (demarcação de Terras Indígenas, criação de Reservas Extrativistas, etc.), mas também influenciar a política amazônica do governo brasileiro e orientá-la com a nova ideologia do “desenvolvimento sustentável”. Para um observador externo, a “Aliança dos Povos da Floresta” pode parecer em larga medida surpreendente, sobretudo, se consideramos que as relações entre índios e seringueiros foram historicamente conflituosas no Acre. Todas as sociedades indígenas da região sofreram, direta ou indiretamente, os impactos da chegada dos seringueiros no auge da borracha. Os conflitos pela ocupação do território foram extremamente violentos e deixaram profundas cicatrizes na memória dos diferentes povos indígenas. Hoje, para os índios, apesar das afinidades estabelecidas no tempo da “Aliança”, os seringueiros não deixam de ser representantes do mundo dos brancos. Do mesmo modo, os seringueiros, geralmente, continuam vendo os índios como “caboclos em via de civilização”. Todavia, quando as circunstâncias históricas e os interesses envolvidos na situação interétnica exigem, os estereótipos e os conflitos podem se dissimular sob uma identidade comum. Sem dissolver as diferenças e as peculariedades de cada componente, a “Aliança dos Povos da Floresta” encontrou vários pontos de similitude na situação de exploração vivida pelos índios e os seringueiros e soube criar um consenso ideológico para se transformar num instrumento político eficaz na luta dessas populações. A característica desses últimos anos reside na proliferação de associações indígenas locais que se multiplicaram após a Constituição de 1988, que em termos legais representou um avanço significativo para os povos nativos do Brasil. A multiplicação dessas associações locais é um fenômeno comum no movimento indígena brasileiro, principalmente, na Amazônia (Albert 1997; Ramos 1998). O levantamento que pude realizar em agosto de 2000 revelou a existência de 20 organizações indígenas, apenas na região do Vale do Juruá acreano. Geralmente de composição étnica ou pan-étnica, todas essas associações se esforçam, com o apoio de vários parceiros (ONGs nacionais ou internacionais, instituições públicas, empresas privadas, etc.), para defender os direitos políticos das comunidades indígenas que elas representam e tentam implantar programas de desenvolvimento sustentável, de educação e de saúde. A UNI-Norte continua expressando uma identidade regional de “índio” baseada numa solidariedade pan-étnica dirigida principalmente ao “branco”, o “não índio”. No entanto, para os diferentes povos indígenas, a especificidade étnica não se dissolve nessa “indianidade” genérica e homogeneizadora que é essencialmente considera da um instrumento político podendo ser mobilizado nas relações entre índios e brancos em função da situação histórica. Como a “Aliança dos Povos da Floresta” não diluiu as especificidades de seus componentes, as diferenças entre os grupos indígenas se reve lam no seio da UNI-Norte e podem se materializar em rivalidades e conflitos entre associações, povos e lideranças. Nos últimos anos, a ideologia do “desenvolvimento sustentável” investiu a política oficial do Estado do Acre. Com o Amapá, o Acre se distingue hoje no contexto amazônico pela atenção concedida às questões ambientais. Eleito em 1998 pelo Partido dos Trabalhadores (PT), o governador do Estado, Jorge Viana, criou seu programa político em torno desse conceito de “desenvolvimento sustentável” que, idealmente, se propõe a associar o crescimento econômico com a proteção do meio ambiente e das populações tradicionais que nele habitam. Em parte oriundo das lutas políticas da década de 1980, a nova equipe governamental se autoproclamou “Governo da Floresta” e mostrou um interesse inédito pelas “populações tradicionais” (índios e seringueiros). Mesmo se essas iniciativas estaduais ainda permanecem tímidas e pecam, às vezes, por preconceitos ou imagens românticas em relação aos índios, a vontade política do atual 30 Para uma caracterização e uma listagem das associações indígenas da região amazônica, ver Albert (2000). Entre as associações indígenas mais ativas e estruturadas do Acre, podemos citar a APIWTXA (Associação dos Ashaninka do Rio Amônia), a ASKARJ (Associação dos seringueiros Kaxinawá do rio Jordão) e a OAEYRG (Associação dos agricultores extrativistas Yawanawá do rio Gregório). Os “sem história” também investiram aos poucos a vida política local. A participação indígena nas últimas eleições municipais de outubro de 2000 foi inédita. Dos 23 candidatos indígenas, 7 foram eleitos vereadores e, pela primeira vez na história do Estado, um índio assumiu o cargo de Vice-Prefeito (Iglesias 2000). Se a afiliação dos índios a diferentes partidos políticos traz muitas questões e contribui para alimentar os conflitos internos ao movimento indígena, o fenômeno também expressa um desejo crescente da população indígena em participar nas tomadas de decisões da gestão municipal. Apesar das inúmeras dificuldades e da heterogeneidade das situações de cada comunidade, de uma maneira geral, os resultados obtidos pelo movimento indígena no Acre nessas duas últimas décadas são surpreendentes. A luta pela terra foi a primeira reivindicação dos povos indígenas do Acre e talvez seja em relação às questões territoriais que podemos avaliar com mais segurança os avanços realizados pelo movimento indígena regional. Até meados de 1970, a FUNAI estava ausente da região e os índios não dispunham de nenhuma terra reconhecida pela União. Revitalizando suas culturas, eles conseguiram arrancar do Estado brasileiro o reconhecimento de parte de seus territórios ancestrais e se afirmam como verdadeiros sujeitos políticos, desejosos de decidir sobre seu próprio futuro. O Acre possui, hoje, 28 Terras Indígenas que se encontram em diferentes fases de egulamentação administrativa e que representam um total de 2.167.146 hectares, ou seja, 14,3% da superfície total do Estado (Valle de Aquino e Iglesias 1999: 6). A essas Terras Indígenas poderíamos também acrescentar outras áreas protegidas: Reservas Extrativistas, Parque Nacional da Serra do Divisor, Floresta estadual, etc. Todas essas áreas são fruto das lutas políticas destas últimas décadas e das alianças entre índios, seringueiros e ambientalistas. Essas terras protegidas se concentram, sobretudo, no Alto Juruá, considerada uma das regiões de mais rica biodiversidade do planeta. No Acre como em outras regiões amazônicas, ao longo das últimas décadas, os povos indígenas mostraram uma dinâmica inédita para reverter a seu favor as vicissitudes da conquista e do contato interétnico. Após terem sido reduzidos a meros objetos da história etnocêntrica dos brancos, que os condenou precipitada e preconceituosamente à extinção e assimilação, os índios do Acre reivindicam hoje sua etnicidade e se apresentam como verdadeiros sujeitos de uma história que insiste em ocultar seu pecado original. BIBLIOGRAFIA Acuña, Cristobal de.[1641] 1941. Novo descobrimento do Grande Rio das Amazonas, Nacional, São Paulo. Albert, Bruce. 1997. 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