segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

SOBRE A DATA DE ANIVERSÁRIO DA CIDADE DE RIO BRANCO (AC) - Dr. Eduardo de Araújo Carneiro

 Por que hoje no estado a comemoração leva em consideração a data em que foi fundado o Seringal da Volta da Empresa, e não o dia em que o Decreto Federal 9.831/1912 foi assinado, ou pelo menos a data em que esse território virou a Vila de Rio Branco?

 As comemorações cívicas não têm compromisso com a história com “H” maiúsculo. Elas estão filiadas a mitos fundadores. O caso do aniversário do município de Rio Branco é um caso exemplar disso. Não adianta professores com doutorados fazerem pesquisas sérias, pois o Estado se torna surdo a qualquer tentativa de mudança nas tradições históricas, mesmo que elas esteja baseadas em mentiras e equívocos. Para simplificar, posso dizer que o mito fundador é uma narrativa imaginativa da origem de algo que ganha status de história por mera tradição. É preciso muita imaginação para acreditar que Neutel Maia, ao fundar o seringal Volta da Empresa, estaria projetando a capital de um futuro Estado brasileiro. Então, como um seringal, que era uma unidade produtiva rural, localizado em território estrangeiro ao Brasil, em um período em que o próprio Acre se quer existia, pode servir de referência para a capital do Acre? O município de Rio Branco não estava presente no ato de fundação do seringal. Uma coisa é o seringal, outra é o município. Uma é a data de fundação do seringal, outra é a do município. Acaso alguma mente lúcida ainda acredita no chamado “descobrimento do Brasil” em 1500? Claro que não! Ninguém descobre algo que ainda não existe. O Brasil só passou a existir em 1822. Assim como uma colônia lusitana não é Brasil, um seringal não é Rio Branco.  Somente os embriagados de anacronismo conseguem enxergar o 28 de dezembro de 1882 como data de nascimento do Município de Rio Branco.

  

Considerando que na comemoração do cinquentenário da cidade consideraram uma data, e no centenário consideraram outra, quais as implicações simbólicas dessas alternâncias de datas? Que tipos de interesses podem existir por trás dessas decisões?

 A história oficial do Acre é inclinada ao abuso, já que é inventada para ser “fantástica” e politicamente endossada para criar ufanismo, gerar otimismo e fomentar identidade coletiva desejável. Todos os políticos querem tirar proveito dela, uns menos, outros mais. Vivemos em uma terra em que a cultura do patrimonialismo era tão escancarada que a história era mudada por meio de decreto governamental. Os políticos gerenciavam a memória coletiva em gabinetes, decidindo o que devia ser lembrado e o que devia ser esquecido. De modo que o passado chega aos acreanos em uma versão “pasteurizada” e “higienizada”, ou seja, é o passado gerenciado politicamente. Falo assim por puro eufemismo, para não assustar dizendo que a história comemorada pelo Estado em suas datas cívicas é repleta de mentiras, equívocos manipulações.

Lembra o caso da data de aniversário da Polícia Militar do Estado do Acre? Pois, é! Só porque a data de criação dela foi escolhida para homenagear o início do governo dos militares em 1964, um governador civil “achou melhor mudar a história” e alterar a data de criação dessa instituição para uma data que não existia nem Estado nem governo unificado, ou seja, uma aberração. A “dança das datas” do aniversário da cidade de Rio Branco é só mais um exemplo dessa falta de ética. Se houvesse interesse do Estado em elucidar essa questão, ele já teria acionado historiadores de profissão. Departamento de Patrimônio Histórico da FEM, IPHAM e UFAC. 

A mudança das datas estão documentadas. Além dos decretos, temos o projeto de lei e as discussões parlamentares. Quem indicou a mudança da data? O parlamentar fazia parte de qual grupo político? Quais ligações o parlamentar tinha com o prefeito e o governador da época? E quais famílias tradicionais e quais empresários apoiavam o projeto de lei?  Na hora da votação, quem votou contra? Quem votou a favor? Quais documentos primários foram apresentados como justificativas para endossar a mudança da data no Projeto de Lei? Pois é. Faço perguntas só para suscitar o diálogo com os historiadores que o Estado tem lá na Fundação Elias Mansour. São eles que devem responder para o Estado e a sociedade tais questões. Por que eu, mero professor da UFAC com dois doutorados e um pós-doutorado, nunca deram e nunca dão  “ouvidos”, pois as mentiras continuam a se propagar como história a toda hora, tanto nas escolas, como na boca dos políticos em cada festa cívica que temos.

 Existe a possibilidade que em algum momento a capital e o estado passem a considerar a data de 1904 ou 1912, ou já passou do tempo de aplicar essa mudança, uma vez que já virou costume comemorar a data de 28 de dezembro de 1882?

As instituições de poder são conservadoras por natureza. Amam as tradições e desprezam as “inovações”. E se eu provasse com documentos da época que o evento que chamam de Revolução Acreana não foi uma “revolução” e nem foi “acreana”? E se eu provasse que o 6 de agosto não foi o início do Acre e que Plácido de Castro não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil? E se eu provasse que os soldados da borracha foram insignificantes para a vitória dos aliados na segunda guerra mundial? E se eu provasse que o tal “movimento autonomista” nunca foi porta voz da vontade do povo acreano? E se eu mostrasse que Guiomard Santos fez parte do movimento integralista que defendia o fascismo no Brasil e que ele foi um ferrenho defensor da Ditadura? Que Chico Mendes não foi esse ecologista nato que dizem e que o Acre contemporâneo continua uma terra de latifúndios, do clientelismo político e de miséria... mudaria alguma coisa? Certamente que não, o Estado e o Município continuariam ensinando essa ESTORIA linda de um povo heroico para os nossos filhos nas escolas, mesmo que todos nós da academia saibamos que toda essa narrativa não passa de estórias ... risos.

 

Eduardo de Araújo Carneiro – É professor Associado da Universidade Federal do Acre. É licenciado em História (UFAC), é bacharel em Economia (UFAC), é mestre em Letras (UFAC), é Doutor em História Social (USP), é Doutor em Estudos Linguísticos (UNESP), é pós-doutor em História (UFAM). É escritor membro da Academia Acreana de Letras.

 

terça-feira, 14 de junho de 2022

Entrevista com o Dr. Eduardo Carneiro (UFAC) sobre o aniversário do Estado do Acre e o movimento autonomista

 


O que pensa a respeito do aniversário do estado do Acre?

Todo aniversário constitui-se em uma data festiva, momento de homenagens e felicitações. Comemorar é lembrar-se do passado com alegria e, em um aniversário, a data de referência é a do nascimento. Então, a ideia que se tem é que o Estado do Acre está de parabéns e que o povo acreano deva render-lhe honras e congratulações. Entretanto, o povo é um sujeito anônimo (ausente?!) no Estado do Acre, desde a elaboração do Projeto de Lei da dita Autonomia, que não foi de iniciativa popular, até os dias atuais, em que “a máquina pública” não é usada para fins coletivos, como deveria. O povo não tem o que comemorar. A autonomia não tirou o Acre da menoridade, ele continua na condição periférica, dependente, primário-exportadora e latifundiária, com alta desigualdade social, como no período do Territorial. A prosperidade prometida não veio, muito menos o desenvolvimento. Os índices econômicos e bem-estar social no Acre são de lamentar. Quase 40% das famílias dependem de ajuda governamental e o próprio Estado, em pleno século XXI, ainda é carece de autonomia econômica. A participação da economia acreana no PIB nacional continua tão “nula” quanto na época territorial. Basta olharmos os dados sobre o alcance dos serviços de luz elétrica, saneamento básico, coleta de lixo, condições dignas de habitação, etc., para termos uma noção da condição quase miserável de parte da população. Vamos tirar a prova? Basta irmos lá no Jordão ou Santa Rosa do Purus (risos), mas tem “bolsões de miséria” até mesmo em Rio Branco. Infelizmente, desde que foi criado, o Estado só tem servido para o bem dos grupos de interesse que se revezam no poder através de seus políticos profissionais. Quando eleitos, a história sempre é a mesma, o Estado vira um “cabide de emprego” e os “pelegos” prosperam, quer sejam empresários ou “indicados”. Sem dizer que a corrupção é parte quase integrante da história desse Estado, a impunidade também, as aposentadorias para ex-governadores também e o endividamento público com empréstimos que ninguém sabe para onde foi também. O povo fica à margem, até que venha o próximo espetáculo eleitoral. O Estado do Acre que deveria ser um instrumento de promoção do bem-estar coletivo, serve a interesses particulares. Por isso, o povo se cala, em cada 15 de junho que passa, pois ele é um sujeito anônimo e ausente que aparece apenas nos discursos de quem está no poder. O governo convida para o aniversário, porém, quem acende e apaga as velas do aniversariante são os mandatários e “pelegos” da vez. É duro dizer, mas o povo não se reconhece no Estado do Acre.

 

Você afirma que o povo foi um sujeito ausente no Estado do Acre desde a origem do movimento autonomista até à elaboração do Projeto de Lei de apresentado por Guiomard Santos, em 1957, que visava a criação do Estado do Acre. Explique melhor.

 

A proposta de autonomia sempre esteve ligada a uma elite urbana, machista e letrada, quase sempre maçônica, em um Acre hegemonicamente rural, patriarcal, iletrado e oligárquico. Portanto, o projeto sempre careceu de participação popular. As discussões da cidade não tinham “eco” nas comunidades, que se mantinham indiferentes aos acontecimentos políticos, até porque pobre (analfabeto) não podia votar no Brasil e a comunicação no interior do Acre era péssima. Então, a defesa da autonomia estava ligada a pequenos grupos que, por sinal, nunca entraram em consenso, fazendo da autonomia acreana um projeto “esquartejado” por interesses políticos, econômicos e regionais. No início do século XX, os autonomistas do Juruá não apoiavam os autonomistas do Purus e vice-versa. Os autonomistas dos anos 1950 prometiam tudo a todos, mesmo assim, eram rejeitados. Os principais políticos e empresários do Juruá foram contra o Projeto de Lei proposto ao Congresso pelo Deputado Federal Guiomard Santos, em 1957. Eles temiam, como de fato aconteceu, que o Purus continuasse monopolizando regionalmente o orçamento público. Os seringalistas que, até então, gozavam de isenção tributária, temiam ter que pagar impostos ao futuro Estado. Os comerciantes temiam a elevação dos impostos. Os funcionários públicos federais temiam ser remanejados e serem rebaixados ao status de servidores estaduais. Além disso, um dos maiores caciques políticos da época, Oscar Passos (PTB), com os seus apoiadores, criticava o projeto. Dizia que a autonomia seria apenas política e não ocasionaria benefício algum na vida das pessoas comuns. Portanto, “o povo” é um sujeito ausente no processo de criação do Estado do Acre. A participação da mulher no movimento só aconteceu nos anos 1950 e de forma tímida e consentida, porque os autonomistas careciam de legitimação e apoio. Tentaram obter o apoio dos estudantes, prometendo-lhes ensino superior, porém, os estudantes foram às ruas em defesa da criação da universidade e não propriamente da Autonomia. Em síntese: na primeira eleição do Estado do Acre, Guiomard Santos perdeu a eleição de governador para um candidato desconhecido do Juruá. O PTB, partido que fazia oposição ao projeto de autonomia, ganhou todas as prefeituras. O resultado das urnas diz tudo, só não vê quem não quer.

 

Sobre o Movimento Autonomista, o que tem a dizer?

Não foi a continuação da dita Revolução Acreana, como dizem muitos, mas um movimento que teve origem na iniciativa do Estado do Amazonas em incorporar o território nacionalizado pelo Tratado de Petrópolis. Até a publicação do Decreto Presidencial Nº 1.181, de 25 de fevereiro de 1904, a única opção constitucional que se tinha era a incorporação daquelas terras ao Estado do Amazonas, pois esse Estado já administrava a região e era quem fazia fronteira com a Bolívia. Não havia a opção autonomista, pois a Constituição Federal de 1891 impunha diversas condições para a criação de um Estado, dos quais, nem o Purus e nem o Juruá se enquadravam, como ter mais de 300 mil habitantes, condições sanitárias básicas, urbanidade, etc., (não existia o argumento de que o Acre já fora um país e que podia ser um Estado. Todos sabiam que, de fato, o país Acre nunca havia existido, a não ser na cabeça de Galvez e de seus apoiadores. Afinal, declarar a região um país, não faz dela um país. É preciso o reconhecimento internacional, coisa que não houve). Surpreendendo a todos, o Governo Federal cria um “elefante branco” chamado Acre Território, algo inconstitucional para a época, mas que possibilitou pensar a região como algo diferente do Amazonas. Em 7 de abril de 1904, pelo Decreto Presidencial Nº 5.188/04, o território nacional banhado pelos afluentes do rio Purus e Juruá é, pela primeira vez, chamado de Acre. Imediatamente o Estado do Amazonas emite nota de repúdio e contrata Rui Barbosa para processar a União, no Supremo Tribunal Federal. A ação de “Petição reivindicatória de território” foi protocolada em 4 de dezembro de 1905, mesmo mês em que o senador amazonense Jônatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei que condenava a inconstitucionalidade do Território do Acre e solicitava a imediata incorporação das terras ao Estado do Amazonas. Foi nessa conjuntura que o movimento autonomista surge e ganha força, pois a “Revolução” defendia a brasilidade das terras do Purus (o Juruá é excluído) e não autonomia do Acre (Purus e Juruá), que nem existia na época como topônimo brasileiro. Não precisa ser um cientista político para identificar as reais intenções dos autonomistas. Eles queriam fazer no Acre o que todas as oligarquias regionais brasileiras faziam em seus respectivos Estados: se “apoderarem” da máquina pública, dos cargos, do orçamento, dos mandatos de governado, de deputados, de senadores, etc. Na “Velha República”, esse era o tradicional “caminho curto” para quem desejava obter poder, prestígio social e riqueza fácil. O que aconteceu quando o Acre se tornou Estado? Eu desconheço um único autonomista que tenha morrido pobre ou que tenha vivido sem se “lambuzar” em cargos políticos e mandatos. Guiomard Santos é o maior exemplo disso.

 

... E sobre a figura de Guiomard Santos? Qual a sua opinião?

É uma amostra grátis do “pra quê” o Estado do Acre serviu: fomentar o caciquismo político regional e o “parasitismo estatal”. Façamos um desafio: vamos contabilizar todos os gastos públicos que tivemos em mantê-lo como senador pelo Acre por 20 anos (1963-1983), ele e toda sua equipe de assessores. Depois, vamos contabilizar, os benefícios que a população acreana teve com essa sequência de mandatos. O saldo será positivo para o povo acreano ou para o “pai do Estado do Acre”? Falo “pai do Estado do Acre”, como ironia, pois essa consagração é típica de uma sociedade oligárquica que despreza o processo histórico e inventa “heróis”. Basta dizer que ele foi tão somente o autor do projeto e não o responsável pela aprovação dele no Congresso. No Congresso, a dinâmica é outra, não há espaço para o personalismo ou pelo suposto prestígio e persuasão de quem apresenta um projeto. Não se aprova Projeto de Lei gratuitamente sem o “toma lá, dá cá”. O partido de Guiomard Santos era maioria no Congresso e fazia oposição ao Presidente, mas essa discussão pouco importa para os inventores de heróis. Eu julgo que o povo não merece ter “cacique político” como herói. Não esqueçamos que Guiomard Santos era um conservador, apoiador da ditadura militar e faleceu como “senador biônico”. Não esqueçamos que ele foi um “camisa-verde”, como era conhecido os integrantes do movimento integralista que defendiam o fascismo no Brasil. Sem dizer que ele foi um legítimo representante da elite urbana. Ele não é heróis do povo, ele é herói do Estado e, o Estado do Acre, nesses 60 anos, tem se caracterizado como o espaço onde as nossas oligarquias políticas administram os seus interesses. Está na hora de nossos políticos pensarem mais no povo do que nas suas reeleições.

 

Tem algum ponto importante que queria evidenciar nessa data (emancipação)?

O Acre precisa sair desse estado de colonialidade, que lhe é centenário. O Estado, nesses últimos 60 anos, só perpetuou essa condição. O aniversariante não tem servido como instrumento de prosperidade regional. Basta que o tráfego de veículos seja suspenso na BR 364, no trecho que liga Rio Branco a Porto Velho, como em 2014, para que em menos de 10 dias falte “tudo” no Acre. O grau de dependência econômica é alarmante. Não produzimos “quase nada” do que consumimos e o pouco que produzimos é exportado, pois não visa o abastecimento do mercado local, como no caso da carne, castanha, madeira e açaí (por isso, são caros). Se pegarmos o gráfico da participação da produção acreana no PIB do Brasil nos últimos 60 anos, veremos que sofreu variação mínima e se manteve na casa dos 0,2%. O Estado não garantiu ao povo acreano a autonomia econômica, nem autonomia em energia elétrica e nem autonomia na comunicação rodoviária entre os municípios, nem saúde pública de qualidade, etc. Como não cumpriu o seu papel de agente do desenvolvimento regional, recebeu a punição de viver “com pires na mão”, mendigando verbas federais que, nada mais são do que a transferência, para o Acre, de riquezas produzidas em outros Estados do país. Está na hora de revitalizar o Estado do Acre, pois ele é um ente burocratizado e ineficiente, propício ao “parasitismo” e à corrupção. O estado tem endividado o povo acreano com empréstimos “de faz de conta”, a dívida é coletivizada e o dinheiro privatizado. Cadê a CPI da estrada que liga Rio Branco à Cruzeiro do Sul? Cadê o dinheiro da merenda escolar? Cadê os responsáveis pela falência do Banacre? E as viagens internacionais feitas com dinheiro público? Cadê o resultado coletivo delas? O Estado tem se tornado em um fardo pesado demais para a sociedade civil carregar. Será que esses políticos profissionais (os que vivem de fazer política) não percebem que o povo acreano não aguenta mais essa lógica eleitoreira que domina o gerenciamento do Estado? Nesses 60 anos de Estado do Acre, não temos o que comemorar, pelo contrário, temos muito a lamentar.

 

Qual a sua visão sobre a revolução acreana, que dá início ao Acre como território, antes da emancipação?

A “Revolução” não deu início ao Acre como território. O Acre Território foi uma decisão governamental baseada nas obrigações que o Brasil teve que assumir com o Tratado de Petrópolis. A dita “Revolução” não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil, ela não foi a responsável pela nacionalização das terras do Juruá e Purus. O máximo que ela conseguiu fazer foi declarar independente algumas das regiões banhadas pelos afluentes do rio Purus. Portanto, o resultado prático dela foi o separatismo (ponto de vista boliviano) e a independência (ponto de vista brasileiro). A Questão do Acre era muito mais ampla do que a dita Revolução, esta terminou em 1903, enquanto aquela em 1909, com a assinatura do Tratado Brasil-Peru. Com a Bolívia, a questão se resolveu nos EUA e não às margens do rio Acre, pela via armada.  Naquela conjuntura, o Acre seria de quem os EUA quisessem. A Questão do Acre não era uma simples disputa territorial entre dois países sul-americanos e sim um palco de disputa imperialista entre EUA e Inglaterra. Os EUA eram os maiores importadores de borracha do mundo, em contrapartida, a Inglaterra era a maior fornecedora de borracha do mundo. A Inglaterra sabia que, desde 1823, os EUA praticavam a Doutrina Monroe: “América para os americanos”. Por isso, tratou logo de biopiratear as sementes de seringueiras amazônicas para a Malásia, garantindo, com isso, sua autossuficiência gomífera. Acontece que o Brasil era o único país da América Latina que ainda mantinha a Inglaterra como a maior parceira comercial, inclusive, vendendo-lhe, a título de monopólio, toda produção de borracha. Isso ofendia por demais os interesses norte-americanos, por isso, que eles resolveram mexer “nas pedras do tabuleiro”, ajudando a fomentar o “Bolívian Syndicate”, com diversos acionistas ianques, inclusive, o próprio irmão do presidente. Os EUA já haviam anexado a metade do México, incluindo o Texas em 1845 e a Califórnia em 1846. Em 1855, invadiu a Nicarágua, Cuba em 1891 e Caribe e Havaí em 1898. O Panamá, por influência ianque, estava prestes a proclamar a independência. O “destino manifesto” já era praticado nas Américas, subordinando as soberanias nacionais latino-americanas aos interesses ianques. Para os EUA, pouco importava com qual país latino-americano ficaria as terras do rio Acre, contanto que a Doutrina Monroe prevalecesse naquela região. Quem seria Plácido de Castro e seus exércitos de seringueiro diante dos EUA? O Barão do Rio Branco entendeu a situação e enviou aos EUA o diplomata Assis Brasil que confirmou o alinhamento do Brasil à Doutrina Monroe, caso esse país se mantivesse neutro, sem apoiar a Bolívia. Por isso que o Brasil teve que indenizar (subornar?) o Bolivian Syndicate, assumindo um papel que deveria ser da Bolívia. Mas foi uma decisão imposta pelos EUA, que não aceitaria seus acionistas no prejuízo. Foi somente após a solução da Questão do Acre com os EUA e com o Bolivian Syndicate, que a diplomacia brasileira se impôs contra a Bolívia.  Plácido de Castro não exerceu influência alguma nas negociações com a Bolívia, afinal, ele nunca foi o mentor intelectual da dita “Revolução”. A Junta Revolucionária, que era gerenciada de Manaus, incluiu Plácido de Castro no projeto para assumir uma missão estritamente militar.  Portanto, embora o resultado da “Revolução” tenha sido a proclamação da independência do Purus, o objetivo dela era garantir a validação dos títulos fundiários emitidos em Manaus e a permanência da coleta dos impostos sobre a comercialização da borracha pelo Estado do Amazonas. A “revolução” não foi responsável pela nacionalização das terras que formariam o Território do Acre, a Questão do Acre foi resolvida pelo Itamarati, mas a luta armada serviu para dar visibilidade nacional à causa amazonense.

 

Como assim “causa amazonense”? O senhor acredita numa participação amazonense na história de anexação do Acre ao Brasil?

Primeiramente, as terras incorporadas ao Brasil pelo Tratado de Petrópolis não se chamavam “Acre”. Quando o texto do referido Tratado menciona a palavra Acre é para se referir a um rio, que, por sinal, fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense chamado de Floriano Peixoto. Portanto, as terras banhadas pelo rio Acre eram conhecidas pelo referido topônimo municipal, vários documentos provam isso. Mas, basta dizer que o nome original da Expedição dos Poetas, na verdade, era Expedição Floriano Peixoto (1900), pois tinha como missão a libertação do território municipal amazonense Floriano Peixoto. Porém, a historiografia acreanocêntrica “apagou” o nome original e inventou o nome “expedição dos poetas”. Foi o governo do Amazonas que nomeou diretores de índios para o reconhecimento dos afluentes do rio Purus e Juruá, por isso contratou João Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da Encarnação, só para citar alguns dos que aparecem na historiografia acreana como  desbravadores, porém, só não é dito que estavam à serviço do Amazonas, que também foi quem viabilizou o serviço de transporte para a região do atual Acre. Conforme a migração acontecia, o Amazonas ia estendendo sua jurisdição, já que era a parte do Brasil que fazia fronteira com a Bolívia. Em fins do século XIX, ninguém migrava para as terras do rio Acre acreditando que se tratava de uma viagem internacional, pelo contrário, considerava-se uma viagem intermunicipal amazonense – de Manaus para Floriano Peixoto. Todo o território nacional da República estava dividido entre os Estados, de modo que, se lutaram para ser brasileiros, a brasilidade daquelas terras estava condicionada a amazonensidade delas. A “núcleo duro” da Junta Revolucionária era composta por funcionários públicos do Amazonas e o restante eram seringalistas que haviam adquirido títulos fundiários em Manaus, portanto, as terras do rio Acre eram cadastradas como amazonenses. Não existia um topônimo Acre, dando nome a um território brasileiro. Na época, Acre era um hidrônimo. A expressão “Revolução Acreana” queria dizer “revolução às margens do rio Acre”, ou seja, nada a ver com o gentílico “acreano” atual. Em meus livros, eu mostro diversos documentos comprovando que a “Revolução” se constituiu em movimentos armados financiados pelo Estado do Amazonas. Portanto, a historiografia intoxicada de acreanismo foi quem inventou a Revolução como um mito fundador da acreanidade. Revolução que, por sinal, não teve nada de revolucionária, pelo contrário, teve objetivos conservadores de manutenção da ordem. É preciso desacreanizar a história do Acre, pois ela é muito etnocêntrica, e isso transforma a narrativa do passado em uma epopeia de heróis, muito mais próxima da literatura do que da história. O Acre, enquanto topônimo que faz referência a um lugar em território brasileiro, só passou a existir em abril de 1904. Pensar a região banhada pelos rios Purus e Juruá com o nome Acre, anterior a essa data, é um erro de anacronismo. Lembra quando eu disse que Rui Barbosa ingressou com uma ação pública contra a União em nome do Estado do Amazonas? Pois é, a Constituição Federal de 1934, no seu Art. 5º, Disposições Transitórias, diz: “A União indenizará os Estados do Amazonas dos prejuízos que lhes teriam advindo da incorporação do Acre ao território nacional”. O Brasil teve que indenizar o Amazonas pela perda do Acre, ou seja, as terras do Acre deveriam ser amazonenses, porém, essa parte da história do Acre é censurada há anos... e quem sou eu para ressuscitá-la (risos).

 

Eduardo de Araújo Carneiro é Licenciado em História (UFAC) e bacharel em Economia (UFAC). É mestre em Linguagem e Identidade (UFAC), doutor em História Social (USP), doutor em Estudos Linguísticos (UNESP) e pós-doutor em História (UFAM). É professor da UFAC e membro da Academia Acreana de Letras. Autor de diversos livros e editor de mais de uma centena de obras.

 

 

 

 


terça-feira, 7 de junho de 2022

Livro: Não foi Revolução nem Acreana (Autor Eduardo Carneiro - UFAC) Entrevista

 




Como surgiu a ideia do livro?

O livro Não foi Revolução nem Acreana é parte de um projeto que tem como objetivo propor uma revisão da História do Acre, já que, muito do que sabemos do passado acreano, está referenciado em livros que não foram escritos por historiadores de formação, portanto, sem o rigor científico que temos hoje, sem a crítica às fontes, sem o compromisso com a verdade. A faculdade de história no Brasil tem início nos anos 1940 e no Acre em 1970. Então, os escritores que moldaram o nosso imaginário sobre o passado acreano eram militares, jornalistas, engenheiros e advogados e a maioria assumiu uma visão “acreanocêntrica” dos fatos e um estilo epopeico da escrita da história. Temos muitos livros de literatura (romances históricos) que gozam do status de História, porém, trabalham com a verossimilhança, com a imaginação, com as emoções e o prazer estético, não citam documentos comprobatórios do que afirmam. Nenhuma faculdade de História atualmente adota a epopeia como modelo de escrita da história. Entretanto, essa forma não científica de narrar o passado ainda é utilizada aqui no Acre e é, por isso, que equivocadamente a nossa história aparece como uma “saga” de grandes feitos e de grandes heróis. Isso massageia o ego coletivo, porém, está baseada em equívocos e manipulações da história. Então, o projeto revisionista que propus foi enquadrar a narrativa do passado do Acre nos métodos e técnicas de redação científica, tentando aproximar o conhecimento histórico, ao máximo, da verdade e, consequentemente, distanciando-o da “história politicamente correta” que vigora hoje. Revisar a história é isso: criticar a ortodoxia, o oficial, o tradicionalmente aceito, mediante a releitura das fontes, descoberta de novos acervos e emprego de novos métodos e teorias na produção do conhecimento.

 

O que significa “história politicamente correta”?

É aquela narrativa do passado que não tem compromisso com a verdade e sim com os interesses políticos dos vencedores, ou seja, das elites dominantes que protagonizaram ou fizeram parte dos eventos. É uma história que obedece a um projeto de criação e manutenção de identidade coletiva. Identidade essa que singulariza um povo de forma positiva, criando consenso e otimismo e, com isso, docilização e apatia. O que eu fiz foi tentar desacreanizar a história do Acre, pois ela é muito ideologicamente marcada. Ela é etnocêntrica.

 

Pode dar uma sinopse do livro?

O livro propõe um olhar revisionista da fase militar do processo de nacionalização das terras banhadas pelos afluentes dos rios Purus e Juruá. Nós conhecemos o evento como “Revolução Acreana”, porém, o nome dado é uma expressão mal empregada, que não descreve com fidelidade o evento em si, pelo contrário, o reinventa como algo que ele não foi. Então, no livro, eu explico o conceito de revolução, desde o emprego dele na astronomia do século XV. Mostro a evolução do conceito até chegar na dita Revolução Francesa, que se tornou o evento de referência para a semântica moderna da palavra. Então, eu fiz a pergunta: será que o significado de “revolução” que temos nas ciências humanas atualmente é o mesmo que os brasileiros na Amazônia tinham em fins do século XIX?  Certamente que não! Eu historicizei o uso da palavra “revolução” no Brasil, mostrando o quanto ele era mal-empregado. É por isso que temos diversos movimentos contestatórios chamados de revolução: “revolução de beckman”, “revolução praieira”, “revolução pernambucana”, “revolução federalista”, “revolução de 1930”, “revolução de 64”. Tais eventos têm nome de “revolução”, mas não foram revolução. O conceito de “revolução” em seus nomes foi politicamente empregado. A escolha do termo não passou por critérios científicos e sim ideológicos. O desafio que assumi foi mostrar que a Revolução Acreana foi inventada como revolução. Eu mostro como os jornais da época chamavam-na de outros nomes: guerra do Acre, revolta do Acre, insurreição do Acre, etc. Porém, a “revolução” prevaleceu, não que fosse a tipologia mais adequada, mas que era a politicamente correta.

 

No livro eu também tento provar que a “Revolução Acreana” não foi acreana. A pergunta que eu me fiz foi: qual o sentido da palavra Acre em fins do século XIX, na Amazônia brasileira? Certamente não era o mesmo do atual. Quando lemos um documento da época com o quadro semântico que temos hoje da palavra Acre, cometemos anacronismo. Na época, Acre não era um topônimo, não fazia referência a um lugar. A palavra dava nome a um rio. “Revolução Acreana” era a revolução feita às margens do rio Acre. Acontece que hoje aprendemos a dita “revolução” como uma espécie de mito fundador da acreanidade, que é um erro grotesco. Pois, os principais membros da Junta Revolucionária eram funcionários do Estado do Amazonas e o próprio rio Acre fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense Floriano Peixoto. Foi o Estado do Amazonas que incentivou a migração de nordestinos para essa região e, quanto mais a migração adentrava em território estrangeiro, mais o Amazonas estendia sua jurisdição – criando postos aduaneiros e policiais. Quem perderia com a bolivianização da região era o Amazonas, que já administrava a região. Todo o “processo” revolucionário foi amazonense. Afinal, o Acre não existia e aquelas terras eram pensadas como brasileiras por meio de topônimo amazonense. O Amazonas era o Estado mais próximo da Bolívia e não existia outra maneira de pensar a brasilidade daquelas terras sem a amazonensidade delas. Todo território nacional estava dividido em Estados e o mais próximo da Bolívia era o Amazonas. No livro, eu reúno várias provas do envolvimento do Estado do Amazonas com a dita “Revolução Acreana”, desde José Carvalho, Galvez, Expedição Floriano Peixoto (equivocadamente chamada de Expedição dos Poetas) e até Plácido de Castro. Quando as terras acreanas foram nacionalizadas pelo Tratado de Petrópolis e o governo federal criou a figura inconstitucional do Acre Território, o Estado do Amazonas contratou o advogado Rui Barbosa para ingressar uma ação pública contra a União pela perda do Acre. Ninguém sabe, mas o Brasil teve que indenizar o Amazonas, pois, juridicamente, essas terras deveriam pertencer àquele Estado. A partir da Constituição de 1934, o Brasil se obrigou em indenizar o Amazonas. O pagamento foi feito como provo no livro. O interessante foi que, para o pagamento acontecer, era preciso mensurar o valor do Acre. E, na contabilidade feita, consta os gastos que o Estado do Amazonas teve com a Revolução Acreana. Então, prova cabal de que a “revolução” foi Amazonense. Nada foi feito por iniciativa popular, muito menos pelos seringalistas locais. Os autores intelectuais do “evento fundador do Acre” foram os políticos e comerciantes de Manaus. Foram eles também que financiaram a “Revolução”. Alguns dos nossos heróis não passam de mercenários contratados. É difícil para mim dizer isso. Mas foi a conclusão que cheguei.

 

Portanto, a “Revolução Acreana” é um “nome de fantasia” dado ao evento, porém, basta tirarmos essa “etiqueta” do evento, basta desembrulharmos os fatos do seu envólucro ideológico, para termos uma visão do passado mais isenta.  E foi isso que fiz. Esse não foi o primeiro livro que escrevi sobre o assunto. Já se foram mais de seis livros. Todos eles denunciando as manipulações da história oficial.

 

Como foi o processo de escrita?

Já estudo o assunto há mais de dez anos. Defendi meu mestrado, doutorado e pós-doutorado sobre o mesmo. Pesquisei nos acervos que estão no Rio de Janeiro, Pernambuco, Brasília, Manaus e os de Rio Branco. O trabalho foi árduo, pois o que encontrei foi um volume muito grande de livros “embriagados” de acreanismo, ou seja, presos a um projeto identitário. Por isso, que desconsiderei tudo que havia lido sobre Revolução Acreana e voltei-me às fontes primárias e, delas, fiz suscitar um novo conhecimento do assunto, mais isento de paixões e ideologias. Tudo que afirmo está lastreado em documentos e, assim, pude garantir a cientificidade da escrita. Além, do mais, esse livro passou por uma banca de pós-doutorado, o que, por si, já garante a seriedade do mesmo.

 

Qual a importância do livro para a história do estado?

O livro propõe uma leitura alternativa à oficial sobre a nacionalização das terras banhadas pelos afluentes dos rios Purus e Juruá. Um livro baseado na análise de uma vasta documentação. Infelizmente, a conclusão que cheguei fere um pouco o sentimento de acreanidade, porém, eu prefiro provocar feridas narcisistas no eu acreano e ter uma imagem dele mais próxima do real, do que me embriagar de acreanismo e sentir orgulho de um eu acreano que não existe. Acredito que o povo não precisa de uma epopeia, muito menos de heróis. O que todos nós queremos é uma educação emancipatória que promova a conscientização política e não a alienação por meio da manipulação da história. Não precisamos de comemorações cívicas, o que precisamos é de cidadania! 


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

Sites de pesquisa acadêmica

 O Google é tão poderoso que "esconde" outros sistemas de busca de nós. Só não sabemos a existência da maioria deles.

Entretanto, ainda há um grande número de excelentes pesquisadores no mundo especializados em livros, ciência, outras informações inteligentes.
Mantenha uma lista de sites que você nunca ouviu falar.
www.refseek.com - Busca de Recursos Acadêmicos. Mais de um bilhão de fontes: enciclopédia, monografias, revistas.
www.worldcat.org - uma busca pelo conteúdo de 20 mil bibliotecas mundiais. Descubra onde está o livro raro mais próximo que você precisa.
https://link.springer.com - acesso a mais de 10 milhões de documentos científicos: livros, artigos, protocolos de pesquisa.
www.bioline.org.br é uma biblioteca de revistas científicas de biociência publicadas em países em desenvolvimento.
http://repec.org - voluntários de 102 países recolheram quase 4 milhões de publicações sobre economia e ciências afins.
www.science.gov é um motor de busca estatal americano em mais de 2200 sites científicos. Mais de 200 milhões de artigos estão indexados.
www.pdfdrive.com é o maior site para download gratuito de livros em formato PDF. Reivindicando mais de 225 milhões de nomes.
www.base-search.net é uma das pesquisas mais poderosas sobre textos de estudos académicos. Mais de 100 milhões de documentos científicos, 70% deles são gratuitos

segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Carneiro, Eduardo de Araújo. Não foi revolução nem acreana. /Eduardo de Araújo Carneiro. Rio Branco: EAC Editor, 2021, 191 p.: il.

 


INTRODUÇÃO

 

            Essa obra é parte do relatório de pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) entre agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, a saber: teria sido a anexação das terras banhadas pelo rio Acre uma dádiva dos heróis acreanos?  

Os livros que lia sobre o assunto me diziam que sim, a publicidade governamental divulgada nas datas comemorativas e os discursos que anualmente ouvia nas paradas cívicas também. Porém, suspeitava de que havia algo de “podre no reino da Dinamarca”, como diria Hamlet, no livro de Shakespeare.

          Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na historiografia acreana e sim a ausência de algumas personalidades que eu, inocentemente, também considerava dignos de mesma honra.

Obviamente que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes acontecimentos”. Sei que os “homens” e os “acontecimentos” não são “grandes” nem “pequenos” em si mesmos. A valoração ou depreciação deles depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que sempre tem suas narrativas documentais preservadas.

  Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por interesses econômicos, como foi o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar os fatos e avaliar quais deles realmente foram decisivos para a nacionalização da região do Acre ao Brasil. E foi isso que fiz em meus livros anteriores e é o que continuo fazendo neste.

O livro foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de “revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política na Questão do Acre. No segundo capítulo, mostro a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre, pré-requisito fundamental da anexação.

No terceiro, explico que os embates militares contra os bolivianos em fins do século XIX se deu em território administrado, embora ilegalmente, pelo Estado do Amazonas. E que o termo “Acre”, na época, significava tão somente um rio que fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense de Floriano Peixoto. Portanto, a suposta “revolução” foi adjetivada como acreana por ter os seus principais eventos ocorridos às margens do rio Acre que, naquela ocasião, fazia parte da jurisdição do Estado do Amazonas.

Esse livro faz parte de um projeto revisionista que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consiste em atitudes relativamente simples, por exemplo, no caso do processo de nacionalização das terras que vieram a se chamar Acre, em descentralizar a figura de Plácido de Castro da narrativa. Dando ao mesmo uma posição mais realista, portanto, secundária.

Afinal, ele não era o mentor intelectual da dita “revolução”, apenas foi inserido pelos amazonenses em um projeto de resistência à soberania boliviana já em andamento. A vitória em Puerto Alonso em janeiro de 1903, não anexou um palmo de terras sequer ao Brasil, no máximo, tornou-o independente. Sem dizer que não foi definitiva, já que mais soldados bolivianos se dirigiam ao local para a desforra e a região já estava “arrendada” para o Bolivian Syndicate, consórcio internacional diante do qual Plácido de Castro não significava nada.





Outra coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução ocorrida na parte sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os mesmos sentidos que têm hoje. Eles gozavam de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos atualmente têm.


Para tentar reconstituir o passado com maior fidelidade, procurei compreender as fontes documentais da época a partir das suas condições históricas de produção. Procurando entender as palavras inseridas nos documentos a partir do imaginário da época. Fiz isso por suspeitar de que as palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” não eram as mesmas de hoje, pois podia se tratar de palavras homônimas - aquelas que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos particulares, constituem-se em signos distintos.

Isso acontece porque o sentido de um vocábulo não lhe é imanente e sim convencional. A depender da situação comunicacional e dos interactantes, o sentido das palavras podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra já não é mais a mesma, ela se fez outra, embora com a mesma grafia.

Foi, por isso que fiz, às fontes documentais produzidas em fins do século XIX, a seguinte pergunta: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” naquele contexto histórico amazônico? Teria a palavra “revolução” sido empregada na época da chamada Questão do Acre com a mesma força conceitual daquela aplicada na França em 1789? Por que optaram pelo termo revolução e não subversão, rebelião ou revolta?

Eu defendo que o conflito armado entre brasileiros e bolivianos foi mal “etiquetado”. O fato de o evento às margens do rio Acre ter sido qualificado como revolução não é suficiente para transformá-lo em uma revolução.

As etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se diz “História Moderna”, cria a falsa ideia de que todos os fatos ocorridos na Europa, durante os séculos XV e XVIII, tenham sido “avançados”. Acontece que não dá para aceitar como obra do progresso, fenômenos como o colonialismo, o poder absolutista, o tráfico de seres humanos, as guerras religiosas, etc.

Sendo assim, a opção pelo adjetivo “moderno”, só se torna compreensível, se considerada a inserção dele em um projeto etnocêntrico da História. É o mesmo caso das chamadas “Grandes Navegações”, etiqueta criada para nos induzir a acreditar que as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV foram as primeiras do mundo. A verdade é que os chineses já dominavam os mares antes dos europeus e isso com tecnologias bem mais avançadas.

E os fatos políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Até que ponto não é mero “preciosismo” chamá-lo “Revolução”? Acaso a utilização da etiqueta “Revolução de 1930” não foi uma decisão política de dissimular o Golpe de Estado? Ou uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia?

.

Será esse o mesmo caso da dita “revolução acreana”? A utilização do termo não estaria inserida em um projeto de comoção pública nacional em favor da causa? Além disso, por que eu deveria acreditar cegamente no que estão dizendo? Não seria melhor analisar os documentos primários à luz das relações de poder daquele contexto histórico?

Se alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que, pelo Código Penal em vigor, demonstrou ser um criminoso, por que eu tenho que render-lhe tributos? Não seria mais sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu?

Acaso a fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja como herói e não como um assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não fora um mero fetiche usado para encobrir os verdadeiros interesses em jogo?


Infelizmente, essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de “penduricados” ideológicos e “etiquetas” classificatórias. Então, a história consumida como verdade na escola é apenas uma visão cômoda, romântica e apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania consciente e a atuação política crítica no tempo presente.

A história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela, até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.

Há, porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que se torna muito difícil mudar-lhe os enfeites. Isso porque eles agradam a “gregos e troianos”, pois é útil politicamente, independentemente da classe dominante vigente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Não é em vão que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece até hoje “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.


Independente do grupo político que governa o Acre, no dia 6 de agosto, feriado estadual em que se comemora o início da chamada Revolução Acreana, os políticos da sempre exaltarão o feito e manifestar o orgulho de ser acreano. Nas paradas cívicas, redes sociais ou tribunas, os políticos, independente de partidos, farão questão de dizer que os acreanos foram os únicos a lutarem para ser brasileiros. Diante de um passado original supostamente tão grandioso, persuadem os acreanos a serem otimistas no tempo presente, confiando em seus líderes, que aparecem como candidatos a novos heróis.

Como historiador, já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano, com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico, patriótica, cordial e ecológico. Entretanto, quando a verossimilhança é ensinada como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.  

Os fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a suposta grandeza do povo acreano, porém, o resultado já não é mais a História, e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada” ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático, festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.

Sob o efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.



Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos devido ao consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate. Afinal, o consentimento da sociedade em torno de uma memória não é capaz de transformar essa memória em história, muito menos em verdade. A memória, assim como as tradições em torno dela, pode ter sido inventada. A aceitação coletiva pode gerar um consenso em torno de um passado que nunca tenha existido de fato.

 

 Boa leitura!

Rio Branco, 18 de dezembro de 2020.

 

domingo, 4 de abril de 2021

Professor Eduardo Carneiro da UFAC publica mais um livro sobre história do Acre - Não foi Revolução nem Acreana


 

INTRODUÇÃO

 

            Essa obra é parte do relatório de pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) durante o período de agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação da UFAM teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, desde a graduação em História, a saber: teria sido a anexação do Acre uma dádiva dos heróis acreanos?  Os livros que li sobre o assunto dizem que sim, os discursos que anualmente ouvi nas paradas cívicas também. Porém, assim como o príncipe Hamlet, no livro de Shakespeare, eu também suspeitava de que “havia algo de podre no reino da Dinamarca”.

          Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na historiografia acreana e sim a ausência de alguns que considerava dignos de mesma áurea, como o Barão do Rio Branco e os governadores do Amazonas Ramalho Júnior e Constantino Nery. Obviamente que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes feitos”. Sei que os “homens” e “feitos” não são “grandes” ou “pequenos” em si mesmos e que a valoração ou depreciação deles depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que escreveram as narrativas documentais preservadas.

 


 

  Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por interesses econômicos como é o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar os fatos e avaliar quais deles foram realmente decisivos para a nacionalização da região do Acre ao Brasil. E foi isso que eu fiz em meus livros anteriores e é o que continuo fazendo neste. Em outras oportunidades (CARNEIRO, 2017) eu já havia explicado a importância da atuação diplomática do Itamarati na nacionalização do Acre e como o Movimento Autonomista Acreano foi minando a figura do Barão do Rio Branco como herói regional.

No presente livro mostro a participação do Estado do Amazonas para o sucesso da anexação do Acre. Em 1861, o governo do Amazonas contratou o amazonense Manoel Urbano da Encarnação para mais uma expedição de reconhecimento, que subiu o rio Purus e alcançou o atual rio Acre e também o Xapuri. Ele é considerado, por muitos, como o “descobridor do Acre”, pois de acordo com a hipótese defendida por Castelo intelectuais amazonenses o Branco (1950), ele teria sido o primeiro a identificar seringueiras nessa região do Purus[1].

Essa foi a forma que encontrei para pôr em prática o meu projeto revisionista, aquele que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consistiu em atitudes simples, como a de descentralizar a figura de Plácido de Castro na Questão do Acre, bem com a dos próprios moradores do rio Acre que resistiram a soberania boliviana na região em fins do século XIX e início do XX.

Outra coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução, na parte sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os sentidos que têm hoje. Eles gozavam de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos têm atualmente.

Para tentar reconstituir o passado com maior fidelidade, eu procurei compreender as fontes documentais da época a partir das condições históricas de emergência de delas. Afinal, é bom lembrar que o sentido de um vocábulo não lhe é imanente; é mera convenção. Sendo assim, a depender da situação comunicacional e dos interactantes, os sentidos podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra também se torna outra, embora a mesma grafia seja preservada. As palavras homônimas são todas aquelas que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos particulares, constituem-se em signos distintos.

 


Tendo em vista isso, perguntei às fontes documentais que estudava: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” no contexto histórico amazônico em fins do século XIX? O que se queria realmente dizer com o emprego delas? Teria o narrador dos fatos ou o enunciador do discurso plena clareza terminológica ao empregar o conceito de “revolução” para caracterizar a resistência armada feita pelos brasileiros contra os bolivianos? O fato de o acontecimento ter sido qualificado pelos protagonistas do evento como revolução, é suficiente para o feito se tornar revolução? Qual o sentido de revolução que se tinha? Por que revolução e não subversão, rebelião ou revolta?

O livro foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de “revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política no caso do Acre.  No segundo capítulo, evidencio a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre. No último capítulo, exponho as razões pelas quais acredito que a resistência à soberania boliviana na região do rio Acre não tenha sido acreana. 

 


 

          Se eu estiver com a razão, temos mais um fenômeno histórico mal “etiquetado”. As etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se diz História Moderna, somos levados a crer que fatos ocorridos na Europa durante os séculos XV e XVIII, como o colonialismo e o tráfico de seres humanos, foram práticas sociais “avançadas”. O adjetivo “moderno” é uma etiqueta que faz parte de um projeto etnocêntrico de História. Quando se estuda as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV com a etiqueta “Grandes Navegações”, somos induzidos a pensar que eles foram os primeiros a se aventurarem nos mares. A verdade é que os chineses, antes dos europeus, já dominavam os oceanos, com tecnologias bem mais avançadas.

Até que ponto não é “preciosismo” chamar de “Revolução” os fatos políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Seria a etiqueta “Revolução de 1930” uma dissimulação ao Golpe de Estado que de fato aconteceu? Uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia? Será esse o mesmo caso da dita “revolução” “acreana”?

Por que tenho eu que acreditar acriticamente no que estão dizendo? Não seria melhor recorrer aos documentos primários e analisá-los à luz das relações de poder emaranhadas do contexto histórico? Se um dia alguém chamou de moderno o Estado Absolutista europeu do século XV, por tenho que dar credibilidade? Se alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que foi assassino, e tal fama chegou até mim, por que tenho que aceitar sem pesquisar? Não seria mais sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu? Acaso a fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja como herói e não como assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não foi mero fetiche a encobrir a verdade? Até que ponto o patriotismo ou o nacionalismo pode justificar atos criminosos como o de tirar a vida de outrem?

Infelizmente, essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de “penduricados” ideológicos e “etiquetas” interpretativas. Então, a história é consumida como verdade, porém, é apenas uma visão cômoda, romântica e apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania consciente e a atuação política crítica no tempo presente.

A história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela, até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.

Há, porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que se torna muito difícil mudar-lhes os enfeites. É que o formato agrada a “gregos e troianos”, independentemente da classe dominante, ele é usado politicamente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Lembro que o abuso da história sempre foi um instrumento de poder bastante usado por governantes com tendências autoritárias ou populistas. É assim que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.

 


 

Independente do grupo político que esteja governado o Acre, no dia 6 de agosto, feriado estadual em que se comemora o início da chamada Revolução Acreana, os políticos da hora sempre irão exaltar o feito e manifestar o orgulho de ser acreano. Nas paradas cívicas, redes sociais ou tribunas, os políticos vão fazer questão de dizer que os acreanos foram os únicos a lutarem para ser brasileiros. Diante de um passado original supostamente tão grandioso, persuadem os acreanos a serem otimistas no tempo presente, confiando em seus líderes, que aparecem como os novos candidatos a heróis.

Como historiador, já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano, com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico, patriótica, cordial e ecológico. Quando a verossimilhança é ensinada como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.  

 


 

Quando os fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a suposta grandeza do povo acreano, quando conseguem, já não se temos mais a História e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada” ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático, festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.

Sob o efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.

Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos por causa do consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate.

 

Boa leitura!



[1] Apesar da importância de Manoel Urbano, quem de fato ficou consagrado como “fundador do Acre” foi o cearense João Gabriel de Carvalho e Melo. Segundo a tradição, em 1857, foi ele quem primeiro colonizou uma parte do território que hoje pertence ao Estado do Acre, a saber, a região próxima da foz do rio Purus. Anos depois, expandiria a iniciativa rio acima.