segunda-feira, 25 de novembro de 2013

ANACRONISMO HISTÓRICO DO ENSINO DE HISTÓRIA NA SALA DE AULA


Por Alcidark Costa
Professor História Substituto na Universidade Federal do Acre – UFAC


O pluralismo e a dinâmica da sociedade tem conduzido vários especialistas da educação à inúmeros debates, que por sua vez, tem proporcionado, ao longo das ultimas décadas, profundas reflexões e propostas transformadoras na dimensão pedagógica, e porque não dizer, cultural, social e estética da escola.

O avanço cada vez mais acentuado de uma sociedade de consumo, pautada pela ética capitalista e pela dinâmica do mundo do trabalho, tem conduzido a escola cada vez mais ao pragmatismo da formação de “máquinas” de respostas de questões de vestibular, proporcionando assim, ao ensino de História, uma disciplina estática, presa a velhos paradigmas de conteúdos que privilegiam a abordagem factual e de narrativas políticas, de grandes feitos (guerras, conquistas), bem como de grandes homens (militares, estadistas).

Com efeito, esta realidade tem proporcionado frustrações de ambos os lados – do professor que se sente desmotivado diante da falta de interesse do aluno e, deste, que não consegue encontrar respostas para uma simples pergunta, para que serve isto?

A reflexão e a sugestão de novas abordagens do ensino de história não significa reduzir o peso da importância dos conteúdos, afinal, o bom professor é aquele que domina os conteúdos da disciplina assim como os conceitos pedagógicos, trata-se de tentar buscar um caminho de ruptura, sem prejuízo dos conteúdos, de velhos paradigmas que conduzem o ensino de história a um anacronismo histórico.

Ademais, buscar estabelecer uma abordagem que proporcione ao educando uma concepção da história enquanto uma relação entre passado e presente como processo de construção da sociedade, com valores, costumes e tradições historicamente determinados, bem como a compreensão de si mesmo como sujeito deste processo.
  



quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Itinerários de um “Casarão” mal resolvido



(Gerson Rodrigues de Albuquerque,
Professor vinculado ao Centro de Educação, Letras e Artes
da Universidade Federal do Acre e membro titular do
Conselho Estadual de Patrimônio Histórico).


“... Precisamente porque sofremos
nas condições do deserto é que ainda somos humanos
e ainda estamos intactos; o perigo está em nos
tornarmos verdadeiros habitantes do deserto
e nele passarmos a nos sentir em casa”.
(Hannah Arendt)



Em 28 de agosto de 2009, o Diário Oficial do Estado do Acre publicou a Resolução de tombamento do “Casarão” como patrimônio histórico e cultural do Acre. A partir daquela data, levando em consideração a deliberação do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico, bem como o que estabelece a lei n° 1.294, de 8 de agosto de 1999, o “Casarão” está sob a proteção do poder público estadual, através da Fundação Estadual de Cultura e Comunicação “Elias Mansour” (FEM).
A publicação dessa resolução torna obrigatória não apenas que a FEM deva proteger e zelar pelo bem público tombado, mas que qualquer manifestação da vizinhança no sentido de construir ou fazer qualquer tipo de reforma em suas propriedades, deve ser precedida de autorização da fundação de cultura, sendo proibida “qualquer edificação que venha impedir ou reduzir a visibilidade” do bem tombado.
No entanto, sem atentar para os dispositivos legais no que diz respeito a bens tombados como patrimônio histórico, no dia 20 de outubro de 2009, o engenheiro Wolvenar Camargo, Secretário Municipal de Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas (Seduop), expediu um Alvará de Licença, sob número 437/2009, para a construção de um prédio em alvenaria de mais de quatro mil metros quadrados em área vizinha ao “Casarão”. Tal construção é de propriedade de Aparecida Valladão da Rosa e tem como responsável técnica pelo projeto a arquiteta e urbanista Regina Lúcia Bezerra Kipper.
Até ai, nada muito complicado, posto que a direção do Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural (DPHC) da FEM, sem ouvir seu congênere municipal e tendo em vista que os responsáveis pela construção do “novo e moderno prédio” em frente à “Praça da Revolução” cumpriram os protocolos e “exigências legais” junto à Seduop, autorizou “verbalmente” o início da construção, no mês de novembro do ano passado. Essa informalidade deixa transparecer uma relação de condescendência entre o poder público e a iniciativa privada, mas, embora pareça estranho, foi exatamente isso o que aconteceu, posto que a “autorização de obra no entorno de patrimônio tombado”, somente foi emitida em 8 de janeiro deste ano, assinada pela “Chefe da FEM”, a professora Suely de Souza Melo da Costa. Aos incrédulos, sugiro uma espiada no Diário Oficial do Estado do último dia 13 de janeiro e uma visita ao local da obra onde as máquinas e homens trabalham a pleno vapor nas fundações e alicerces do “moderno” empreendimento.
             Curioso é que a relação publico-privado se mistura, agrega ou confunde um pouco mais quando nos damos conta de que, embora a propriedade do prédio em edificação seja particular, em nome da qual foram concedidas as licenças, o objeto do projeto é a construção de uma nova sede para a Caixa Econômica Federal (CEF), uma instituição estatal. No projeto e nos pareceres técnicos e licenças dos diferentes órgãos públicos municipais e estaduais não constam os custos da obra, razão pela qual não temos como estimar os valores que a proprietária, Aparecida Valladão da Rosa, está desembolsando para erguer as estruturas modernosas da nova agência da caixa econômica, a “nossa caixa”. Espero que o Ministério Público Federal se interesse pela questão e investigue a dimensão e profundidade dessa parceria um tanto promíscua entre o público e o privado. Se for aos moldes do malfadado PPP (Parceria Público Privado) do governo Lula, que desloca recursos destinados às universidades públicas para “as privadas”, tem “treta na história”.
            As facilidades para a liberação e, inevitavelmente, o início da obra, coloca em evidência não apenas o amadorismo com que o Departamento de Patrimônio Histórico e Cultural (DPHC) da FEM tem lidado com a questão, mas uma total falta de zelo com o primeiro imóvel tombado nos trâmites do que reza a legislação estadual. As incongruências no projeto, os desencontros protocolares no encaminhamento das questões e a falta de informações precisas no âmbito de todo o processo chamam a atenção e tornam o caso prenhe de dúvidas que precisam ser urgentemente esclarecidas pelo poder público.
            No entanto, o fato mais gritante é que, não obstante à cantilena repetitiva e ultrapassada com que a responsável pelo projeto, passionalmente, pontua os benefícios da “nova sede da Caixa Econômica Federal” para a população de Rio Branco (com um “impacto positivo no local onde será implantada”, oportunizando “a prestação de um serviço de qualidade, com alto impacto social, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida”, entre outros argumentos dessa natureza), uma outra arquiteta, Aurinete Franco Malveira, do quadro de pessoal da própria FEM, discordou dos argumentos do projeto e se manifestou pela “paralisação imediata da obra”, até a devida adequação aos dispositivos legais. O parecer da arquiteta da FEM é datado de 2 de dezembro de 2009, embora, como aludido acima, caricaturalmente, a licença para “autorização de obra no entorno de patrimônio tombado”, somente tenha sido assinada pela diretora do DPHC em 8 de janeiro de 2010, evidenciando que o estado de direito nada tem a dizer àqueles que costumam tratar a coisa pública como sua propriedade particular e, cientes da impunidade, “colocar o carro na frente dos bois”.    
A direção do DPHC da FEM tratou com naturalidade o fato de uma construção ter sido iniciada em área vizinha a um bem tombado e sob proteção daquele órgão. Ao fazê-lo não apenas deixou de cumprir o que assevera a legislação, como tratou de “passar um verniz” de legalidade sobre a questão. É surpreendente que, ao invés de acatar o parecer da arquiteta da FEM, a pessoa em condições técnicas de avaliar os impactos da construção de um prédio em alvenaria ao lado de um bem tombado, a diretora de patrimônio histórico tomou o partido dos responsáveis pela construção e, no dia 7 de dezembro de 2009, solicitou “em caráter de urgência uma perícia técnica” à Secretaria de Obras Públicas e Habitações (Seoph) para “avaliar o grau de visibilidade ou impedimento” da nova construção em terreno vizinho ao “Casarão”.
Três dias depois, em 10 de dezembro do ano passado, a perícia técnica, por intermédio de Rodolfo Quiroga, Gerente de Projetos, se manifestava em um “Parecer preliminar relativo à interferência visual da futura sede da Caixa Econômica Federal sobre o imóvel denominado Casarão”. Tendo escolhido três diferentes pontos para sua observação, o parecerista informa que: “1- Observação a partir da Praça da Biblioteca: a partir deste ponto a interferência é praticamente nula, uma vez que existe recuo previsto no prédio da Caixa, sendo que o prédio vizinho, do Banco do Brasil, encontra-se implantado no limite frontal do terreno, encobrindo a obra, não interferindo na visão da fachada do Casarão; 2- Observação a partir da Praça da Revolução: neste ponto é possível visualizar-se os dois imóveis, com preponderância para o prédio da Caixa, dada a sua forma e também a altura, que é maior que a do Casarão; 3- Observação a partir da Av. Brasil, sentido bairro-centro: neste caso o Casarão aparece em primeiro plano com o prédio da Caixa fazendo o plano de fundo. Também neste caso prevalece o prédio da Caixa, mais uma vez determinado pela sua altura, pelo menor recuo frontal, e também pelo contraste entre a forma arrojada da nova edificação e a singeleza do prédio do Casarão”.
Apesar de toda a carga de ambigüidades o parecer técnico, torna evidente o quanto o bem tombado é atingido em sua visibilidade pelo “novo prédio da CEF” que está sendo construído ao seu lado. Apesar de não concordar com os três pontos escolhidos pelo parecerista Rodolfo Quiroga e, ainda, sem esquecer que toda escolha implica em deixar outras possibilidades de fora, os três ângulos nos permitem perceber o quanto a edificação é nociva ao “Casarão” tombado. No primeiro ponto, o parecerista se refere à fachada do Casarão, omitindo que o objeto do processo de tombamento não se reduz à fachada do imóvel. No segundo e terceiro pontos escolhidos pelo técnico, destinado a “dirimir as dúvidas” da diretora do DPHC, o “novo prédio da Caixa” se impõe com preponderância não apenas por sua altura que “é maior”, mas, principalmente, nas palavras do próprio parecerista, “pelo contraste entre a forma arrojada da nova edificação e a singeleza do prédio do Casarão” (o grifo é meu).
Com outras palavras, o parecer técnico, externo à FEM, coincide com o parecer da arquiteta Aurinete Franco Malveira que fora menosprezado por seus superiores na hierarquia interna daquele órgão público: o “novo prédio da CEF” que está sendo construído por Aparecida Valladão da Rosa sob a responsabilidade de Regina Kipper Arquitetos, “não está em concordância com a Lei 1.294 Art. 23 – sendo instrumento de redução da visibilidade do bem tombado que possui um caráter histórico, cultural e social de extrema importância no contexto da formação político-cultural da sociedade acreana”.
A visibilidade aludida pela solitária arquiteta da FEM, presente no corpo da legislação brasileira sobre tombamentos é, segundo o Dicionário Michaelis, palavra oriunda do latim visibilitate, sendo o que tem a “qualidade de visível” ou, pela perspectiva da física, a “propriedade pela qual os corpos são percebidos pelo sentido da vista”. A visibilidade do “Casarão” tombado como Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Cultural do Estado do Acre, fica comprometida, prejudicada ou reduzida com a construção do “novo prédio da CEF”. Reduz a visibilidade, ressalta a arquiteta da FEM. Reduzir, do latim reducere, voltemos ao Michaelis, significa entre outras coisas: diminuir, tornar menor, abreviar, compendiar, resumir, apertar, estreitar, limitar, restringir, constranger, forçar, obrigar, violentar, simplificar, desmoralizar.
Porém, as dúvidas da diretora do DPHC não ficaram dirimidas e, em 17 de dezembro de 2009, a mesma requisitou ao Diretor-Presidente da FEM, Daniel Zen, um parecer jurídico sobre a questão. No dia seguinte, atendendo à solicitação do mesmo, o assessor jurídico da Fundação Estadual de Cultura, advogado José Luiz Gondim dos Santos, manifestava-se sobre a questão e, numa surpreendente interpretação da legislação e do parecer técnico de Rodolfo Quiroga, rechaçou as “razões” de Aurinete Franco Malveira. Era o sinal verde que o DPHC da FEM esperava para expedir a “autorização de obra no entorno de patrimônio tombado” e, com isso, legitimar a ilegítima autorização verbal que tinha concedido aos construtores da edificação em terreno vizinho ao “Casarão”.
O parecer do assessor jurídico é uma incrível constatação de que a lógica dos guarda-livros dos velhos barracões dos seringais acreanos continua em pleno vigor por estas plagas. Talvez, na crença de que ninguém iria ler seu despacho e que qualquer coisa serviria para um DPHC que tinha como única meta “conceder ou conceder” a tal autorização, o mesmo passou a formular um simulacro de discussão sobre ausência de delimitação do “entorno”, palavra que consta no artigo 23 da lei estadual n° 1.294/99 e que sequer é dicionarizada como substantivo, mas que apenas substitui a expressão “vizinhança” presente na primeira legislação brasileira sobre tombamento, organização e preservação do patrimônio histórico: o Decreto-Lei n° 25, de 30 de novembro de 1937. 
Na ausência de delimitação sobre o “entorno”, isto é, a vizinhança do “Casarão” tombado, José Luiz Gondim dos Santos diz que fica “a cargo do administrador (Chefe do DPHC), no exercício de suas atribuições, fazer um juízo de razoabilidade com base em critérios de necessidade e adequação da obra e um juízo de discricionariedade com base em critérios de oportunidade e conveniência da obra para com a proteção do bem tombado e atendimento aos anseios sociais contemporâneos”.
Deixando clara sua tomada de posição no debate em questão, quanto ao juízo de razoabilidade, assevera o jurista da FEM, o administrador deve levar em consideração que a edificação da “nova sede da CEF” não viola “qualquer disposição legal” utilizando-se para ancorar sua representação da realidade, o parecer técnico de Rodolfo Quiroga, considerando que das “três posições de observação do perito quanto a possível interferência visual da futura sede da Caixa Econômica Federal sobre o imóvel do Casarão, vislumbra-se apenas mera preponderância do prédio da Caixa sobre o imóvel do CASARÃO, o que sempre haverá em algum momento”.
Quanto ao juízo de discricionariedade, arremata o intencionado assessor jurídico, o administrador deve levar em consideração que a “construção se vislumbra oportuna em face dos benefícios que trará aos serviços bancários e diretamente ao consumidor e se vislumbra conveniente por respeitar as normas regulamentares de construção em perfeita coexistência com as normas de patrimônio estadual...”, etc, etc, numa primorosa simbiose entre seu parecer e boa parte da caracterização e justificativas presentes no projeto da Regina Kipper Arquitetos. Exemplo disso, está presente na finalização de seu “parecer jurídico”, quando enfatiza que “não se pode deixar de ressaltar que depois da construção da obra da Caixa Econômica Federal pela iniciativa privada e restauração do bem público de relevante valor histórico-cultural (CASARÃO), pelo Poder Público, a Avenida Brasil – Centro vai se tornar um local perfeito para contemplação de duas estruturas arquitetônicas que expressam tempos antigos e modernos em construções tradicionais e arrojadas”.   
Empolgado, o assessor jurídico da FEM, induziu e levou a diretora do DPHC ao encontro de esdrúxulos argumentos para a emissão de seu – um tanto fora de tempo – primeiro ato público do ano: a autorização n° 0001/2010 para construção de “obra no entorno de patrimônio tombado”. O contraste entre a “tradição” e a “modernidade”, nas palavras do advogado da obra, digo da FEM, “ao se mesclar no tecido urbano” rompe com o sentido de ambiência que o mesmo, profundamente equivocado, tenta se apropriar em sua defesa de coisas contrastantes, como “antigo” e “moderno”.
É exatamente o conceito de ambiência analisado com profundidade e maestria pela professora de Direito Administrativo e Urbanístico da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), Sonia Rabello, que se torna o instrumento mais preciso para pontuar o quanto o modernoso prédio que está sendo construído por Aparecida Valladão da Rosa e Regina Kipper Arquitetos para a Caixa Econômica Federal é dicotômico com o “Casarão” tombado como Patrimônio Histórico, Artístico, Arquitetônico e Cultural do Estado do Acre. E, mais ainda, com o que estabelece a legislação em vigor, as deliberações do Conselho Estadual de Patrimônio Histórico e as obrigações administrativas da unidade executiva: a FEM.  
Em seu livro “O Estado na preservação de bens culturais – o tombamento”, Rio de Janeiro, Iphan, 2009, Sônia Rabello, analisa com detalhes os condicionantes da aplicação da legislação sobre tombamento do patrimônio histórico nacional, advindos da aplicação dos dispositivos da legislação federal que trata dessa questão e que se constituiu como referência para um conjunto de normas e leis estaduais e municipais em todo o país. O artigo 18 da lei federal em vigor, cuja essência constitui a base do artigo 23 da Lei estadual nº 1.294/99, diz que: “Sem prévia autorização do Serviço do Patrimônio Histórico e Ar­tístico Nacional, não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade, nem nela colocar anúncios ou cartazes, sob pena de ser mandada destruir a obra ou retirar o objeto, impondo-se neste caso multa de cinqüenta por cento do valor do mesmo objeto”.
Na reflexão da autora, a visibilidade do bem tombado, exigência da lei, impõe restrições à vizinhança ou ao seu “entorno”, conforme consta na legislação do Estado do Acre. A finalidade de tal restrição é para que o bem imóvel tombado “seja visível e, conseqüentemente, admirado por todos”.
Atentando para um amplo conjunto de ações que tramitaram em diferentes instâncias do Poder Judiciário nas esferas estadual e federal, Sonia Rabelo pontua que a visibilidade foi ganhando uma interpretação menos literal, posto que “não se deve consi­derar que prédio que impeça a visibilidade seja tão somente aquele que, fi­sicamente, obste, pela sua altura ou volume, a visão do bem; não é somente esta a hipótese legal. Pode acontecer que prédio, pelo tipo de sua constru­ção ou pelo seu revestimento ou pintura, torne-se incompatível com a visão do bem tombado no seu sentido mais amplo, isto é, a harmonia da visão do bem, inserida no conjunto que o rodeia”. A finalidade da defesa da visibilidade é, portanto, a “proteção da ambiência do bem tomba­do, que valorizará sua visão e sua compreensão no espaço urbano”.
“Ambiência”, diz a professora, é “harmonia e integração do bem tombado à sua vizinhança, sem que exclua com isso a visibilidade literalmente dita”. Isso, não significa uma restrição ou subtração do conceito de visibilidade presente na lei, como quis fazer crer o assessor jurídico da FEM ao rechaçar o parecer da arquiteta Aurinete Franco Malveira e favorecer a liberação de alvará para a construção de um prédio alienígena ao lado do “Casarão” tombado. Ambiência é uma ampliação do conceito de visibilidade; é harmonia do imóvel tombado com sua vizinhança ou seu “entorno”, com aquilo que está ou vai ser construído ao seu lado ou que é seu vizinho. Mais ainda, porque, como ressalta Sonia Rabello, “não só prédios reduzem a visibilidade da coisa, mas qualquer obra ou objeto que seja incompatível com uma vivência integra­da com o bem tombado”.
Na direção apontada por essa irretorquível reflexão, a única manifestação sensata e coerente com a preservação do “Casarão” tombado nos marcos do que estabelece a legislação, no processo em questão, é a da arquiteta da Fundação Elias Mansour (FEM) que não deixa dúvidas em seu parecer ao afirmar que: o “entorno do bem tombado é a área de proteção localizada na circunvizinhança” do mesmo, cujo objetivo é o de “preservar a sua ambiência e impedir que novos elementos obstruam, reduzam sua visibilidade, afetem as interações sociais tradicionais ou ameacem sua integridade”. A área do entorno, quem fala é ainda Aurinete Franco Malveira, arquiteta da FEM, “não é apenas um anteparo do bem tombado, mas uma dimensão interativa a ser gerida tanto quanto o objeto de conservação”. E, mais ainda, “quando algo é tombado, aquilo que está próximo, em torno a ele, sofre a interferência do processo de tombamento, embora em menor grau de proteção, não podendo ser descaracterizado (...) O tombamento não tem por objetivo ‘congelar’ a cidade ou outro bem. Tombar não significa apenas cristalizar ou perpetuar edifícios ou áreas, sem considerar toda e qualquer obra que venha contribuir para a melhoria da vida na cidade”.
Incrivelmente, foi esse parecer que a diretora do DPHC não aceitou e, quero crer, que não aceitou porque sua “praia é outra” e sua compreensão sobre patrimônio histórico é profundamente limitada e deficiente. Porém, o advogado que presta assessoria jurídica à FEM, sabia que Aurinete Franco Malveira se manifestava nos estritos limites da legislação e baseada em suas experiências e formação no âmbito do próprio patrimônio histórico do Estado do Acre, ou seja, com conhecimento de causa. Não por acaso, José Luiz Gondim dos Santos, manuseou o livro da professora Sonia Rabello, invertendo suas assertivas para desqualificar a pertinência do parecer da arquiteta da FEM. Em outras palavras, a direção do DPHC queria conceder a licença e seu assessor jurídico produziu a retórica farsesca de uma bizarra interpretação “histórico-evolutiva e teleológica” (sic) da lei para lhe conferir a “capa de legalidade” e legitimar o insustentável ato de “autorização de obra [alienígena] no entorno de patrimônio tombado”.
A arquiteta da FEM leu e interpretou de forma coerente a legislação e as reflexões produzidas pela professora Sonia Rabello que retoma o debate sobre questões dessa natureza dizendo que: se “em relação aos bens tombados, a obrigação é de conservar, de fazer a conservação e de não lhes fazer alterações que descaracterizem o bem, com relação aos prédios vizinhos passa-se a exigir que estes não per­turbem a visão de bem tombado, sem que, contudo, tenha de se manter o imóvel tal como é; basta que sua utilização ou modificação não afete a ambiência do bem tombado, seja pelo seu volume, ritmo da edifica­ção, altura, cor ou outro elemento arquitetônico. São, portanto, de ordem e intensidade diversas as limitações feitas ao bem tombado, cujo objetivo é a conservação, e ao bem vizinho, cujo objetivo, não sendo a conservação, é a de não perturbação da ambiência da coisa tombada. Para um a obrigação é a de fazer (conservar), e para outro é de não fazer (não perturbar)”.
Por um lado, o juízo de razoabilidade proposto pelo assessor jurídico da FEM à diretora do DPHC viola a visibilidade-ambiência do “Casarão” tombado no panorama urbano em que o mesmo está inserido, a partir do momento em que se posiciona favoravelmente pela construção do “novo prédio da Caixa Econômica Federal” no lote vizinho, contíguo ao bem sob proteção da lei. Por outro lado, sua noção e juízo de discricionariedade são arbitrários ao não levar em consideração a “perspectiva histórica na busca da cidade humanizada”, como enfatiza o arquiteto Maturino Luz que, citando Gaston Bachelard em sua “Poética do Espaço”, diz que “o ser abrigado sensibiliza os limites de seu abrigo. Vive a casa em sua realidade e em sua virtualidade, através do pensamento e dos seus sonhos. Por conseqüência, todos os abrigos, todos os refúgios, todos os aposentos têm valores de onirismo consoante... O verdadeiro bem-estar tem um passado”.
Um dos aspectos mais burlescos do parecer do assessor jurídico da FEM é argüir que a lei nº 1.294/99, em seu artigo 23 (“No entorno do bem tombado não é permitida qualquer edificação que venha impedir ou reduzir a visibilidade, colocação de cartazes ou anúncios, bem como, qualquer tipo de placas ou letreiros que venham comprometer a imagem ou a estrutura do bem tombado...”), não trata da “delimitação do entorno”, ou seja, não diz qual a metragem para um imóvel ser considerado vizinho do outro. O lado mais patético dessa argumentação é que não se trata de um imóvel que fica há uma ou duas quadras de distância (o que talvez nos deixasse a dúvida se a edificação é ou não vizinha do “Casarão”), mas de uma casa construída em um lote de terra que mede 20 metros de frente, ao lado de um outro lote de terra que tem a mesma metragem e no qual está sendo construído um novo prédio alvo da presente polêmica.
As sanções da lei estadual se aplicam, como ressaltou Aurinete Franco Malveira, perfeitamente ao caso em questão e a tentativa de promover um falso debate sobre os limites do que é “entorno” ou “vizinhança”, como faz o assessor jurídico da FEM, tem como meta não apenas deslocar a discussão para questões irrelevantes sobre quem é ou não vizinho em dois terrenos no centro da cidade de Rio Branco (que juntos medem 40 metros de largura em sua área frontal), mas justificar o injustificável e tentar conferir legitimidade à construção do “novo prédio da Caixa Econômica Federal” que fere a legislação e atenta contra e visibilidade-ambiência do “Casarão”, um bem tombado e sob a guarda e proteção do Estado do Acre, cabendo ao DPHC da Fundação Elias Mansour, garantir sua proteção, preservação e não diminuir, tornar menor, abreviar, compendiar, resumir, apertar, estreitar, limitar, restringir, reduzir sua visibilidade e ambiência.


sábado, 2 de novembro de 2013

Discurso do escritor brasileiro Luiz Ruffato na abertura da Feira do Livro de Frankfurt (2013)

"O que significa ser escritor num país situado na periferia do mundo, um lugar onde o termo capitalismo selvagem definitivamente não é uma metáfora? Para mim, escrever é compromisso. Não há como renunciar ao fato de habitar os limiares do século 21, de escrever em português, de viver em um território chamado Brasil. Fala-se em globalização, mas as fronteiras caíram para as mercadorias, não para o trânsito das pessoas. Proclamar nossa singularidade é uma forma de resistir à tentativa autoritária de aplainar as diferenças.
O maior dilema do ser humano em todos os tempos tem sido exatamente esse, o de lidar com a dicotomia eu-outro. Porque, embora a afirmação de nossa subjetividade se verifique através do reconhecimento do outro --é a alteridade que nos confere o sentido de existir--, o outro é também aquele que pode nos aniquilar... E se a Humanidade se edifica neste movimento pendular entre agregação e dispersão, a história do Brasil vem sendo alicerçada quase que exclusivamente na negação explícita do outro, por meio da violência e da indiferença.
Nascemos sob a égide do genocídio. Dos quatro milhões de índios que existiam em 1500, restam hoje cerca de 900 mil, parte deles vivendo em condições miseráveis em assentamentos de beira de estrada ou até mesmo em favelas nas grandes cidades. Avoca-se sempre, como signo da tolerância nacional, a chamada democracia racial brasileira, mito corrente de que não teria havido dizimação, mas assimilação dos autóctones. Esse eufemismo, no entanto, serve apenas para acobertar um fato indiscutível: se nossa população é mestiça, deve-se ao cruzamento de homens europeus com mulheres indígenas ou africanas - ou seja, a assimilação se deu através do estupro das nativas e negras pelos colonizadores brancos.
Até meados do século XIX, cinco milhões de africanos negros foram aprisionados e levados à força para o Brasil. Quando, em 1888, foi abolida a escravatura, não houve qualquer esforço no sentido de possibilitar condições dignas aos ex-cativos. Assim, até hoje, 125 anos depois, a grande maioria dos afrodescendentes continua confinada à base da pirâmide social: raramente são vistos entre médicos, dentistas, advogados, engenheiros, executivos, artistas plásticos, cineastas, jornalistas, escritores.
Invisível, acuada por baixos salários e destituída das prerrogativas primárias da cidadania --moradia, transporte, lazer, educação e saúde de qualidade--, a maior parte dos brasileiros sempre foi peça descartável na engrenagem que movimenta a economia: 75% de toda a riqueza encontra-se nas mãos de 10% da população branca e apenas 46 mil pessoas possuem metade das terras do país. Historicamente habituados a termos apenas deveres, nunca direitos, sucumbimos numa estranha sensação de não pertencimento: no Brasil, o que é de todos não é de ninguém...
Convivendo com uma terrível sensação de impunidade, já que a cadeia só funciona para quem não tem dinheiro para pagar bons advogados, a intolerância emerge. Aquele que, no desamparo de uma vida à margem, não tem o estatuto de ser humano reconhecido pela sociedade, reage com relação ao outro recusando-lhe também esse estatuto. Como não enxergamos o outro, o outro não nos vê. E assim acumulamos nossos ódios --o semelhante torna-se o inimigo. 
A taxa de homicídios no Brasil chega a 20 assassinatos por grupo de 100 mil habitantes, o que equivale a 37 mil pessoas mortas por ano, número três vezes maior que a média mundial. E quem mais está exposto à violência não são os ricos que se enclausuram atrás dos muros altos de condomínios fechados, protegidos por cercas elétricas, segurança privada e vigilância eletrônica, mas os pobres confinados em favelas e bairros de periferia, à mercê de narcotraficantes e policiais corruptos.
Machistas, ocupamos o vergonhoso sétimo lugar entre os países com maior número de vítimas de violência doméstica, com um saldo, na última década, de 45 mil mulheres assassinadas. Covardes, em 2012 acumulamos mais de 120 mil denúncias de maus-tratos contra crianças e adolescentes. E é sabido que, tanto em relação às mulheres quanto às crianças e adolescentes, esses números são sempre subestimados. 
Hipócritas, os casos de intolerância em relação à orientação sexual revelam, exemplarmente, a nossa natureza. O local onde se realiza a mais importante parada gay do mundo, que chega a reunir mais de três milhões de participantes, a Avenida Paulista, em São Paulo, é o mesmo que concentra o maior número de ataques homofóbicos da cidade. 
E aqui tocamos num ponto nevrálgico: não é coincidência que a população carcerária brasileira, cerca de 550 mil pessoas, seja formada primordialmente por jovens entre 18 e 34 anos, pobres, negros e com baixa instrução.
O sistema de ensino vem sendo ao longo da história um dos mecanismos mais eficazes de manutenção do abismo entre ricos e pobres. Ocupamos os últimos lugares no ranking que avalia o desempenho escolar no mundo: cerca de 9% da população permanece analfabeta e 20% são classificados como analfabetos funcionais --ou seja, um em cada três brasileiros adultos não tem capacidade de ler e interpretar os textos mais simples. 
A perpetuação da ignorância como instrumento de dominação, marca registrada da elite que permaneceu no poder até muito recentemente, pode ser mensurada. O mercado editorial brasileiro movimenta anualmente em torno de 2,2 bilhões de dólares, sendo que 35% deste total representam compras pelo governo federal, destinadas a alimentar bibliotecas públicas e escolares. No entanto, continuamos lendo pouco, em média menos de quatro títulos por ano, e no país inteiro há somente uma livraria para cada 63 mil habitantes, ainda assim concentradas nas capitais e grandes cidades do interior.
Mas, temos avançado.
A maior vitória da minha geração foi o restabelecimento da democracia - são 28 anos ininterruptos, pouco, é verdade, mas trata-se do período mais extenso de vigência do estado de direito em toda a história do Brasil. Com a estabilidade política e econômica, vimos acumulando conquistas sociais desde o fim da ditadura militar, sendo a mais significativa, sem dúvida alguma, a expressiva diminuição da miséria: um número impressionante de 42 milhões de pessoas ascenderam socialmente na última década. Inegável, ainda, a importância da implementação de mecanismos de transferência de renda, como as bolsas-família, ou de inclusão, como as cotas raciais para ingresso nas universidades públicas.
Infelizmente, no entanto, apesar de todos os esforços, é imenso o peso do nosso legado de 500 anos de desmandos. Continuamos a ser um país onde moradia, educação, saúde, cultura e lazer não são direitos de todos, e sim privilégios de alguns. Em que a faculdade de ir e vir, a qualquer tempo e a qualquer hora, não pode ser exercida, porque faltam condições de segurança pública. Em que mesmo a necessidade de trabalhar, em troca de um salário mínimo equivalente a cerca de 300 dólares mensais, esbarra em dificuldades elementares como a falta de transporte adequado. Em que o respeito ao meio-ambiente inexiste. Em que nos acostumamos todos a burlar as leis.
Nós somos um país paradoxal.
Ora o Brasil surge como uma região exótica, de praias paradisíacas, florestas edênicas, carnaval, capoeira e futebol; ora como um lugar execrável, de violência urbana, exploração da prostituição infantil, desrespeito aos direitos humanos e desdém pela natureza. Ora festejado como um dos países mais bem preparados para ocupar o lugar de protagonista no mundo --amplos recursos naturais, agricultura, pecuária e indústria diversificadas, enorme potencial de crescimento de produção e consumo; ora destinado a um eterno papel acessório, de fornecedor de matéria-prima e produtos fabricados com mão de obra barata, por falta de competência para gerir a própria riqueza.
Agora, somos a sétima economia do planeta. E permanecemos em terceiro lugar entre os mais desiguais entre todos...
Volto, então, à pergunta inicial: o que significa habitar essa região situada na periferia do mundo, escrever em português para leitores quase inexistentes, lutar, enfim, todos os dias, para construir, em meio a adversidades, um sentido para a vida?
Eu acredito, talvez até ingenuamente, no papel transformador da literatura. Filho de uma lavadeira analfabeta e um pipoqueiro semianalfabeto, eu mesmo pipoqueiro, caixeiro de botequim, balconista de armarinho, operário têxtil, torneiro-mecânico, gerente de lanchonete, tive meu destino modificado pelo contato, embora fortuito, com os livros. E se a leitura de um livro pode alterar o rumo da vida de uma pessoa, e sendo a sociedade feita de pessoas, então a literatura pode mudar a sociedade.

Em nossos tempos, de exacerbado apego ao narcisismo e extremado culto ao individualismo, aquele que nos é estranho, e que por isso deveria nos despertar o fascínio pelo reconhecimento mútuo, mais que nunca tem sido visto como o que nos ameaça. Voltamos as costas ao outro --seja ele o imigrante, o pobre, o negro, o indígena, a mulher, o homossexual-- como tentativa de nos preservar, esquecendo que assim implodimos a nossa própria condição de existir. Sucumbimos à solidão e ao egoísmo e nos negamos a nós mesmos. Para me contrapor a isso escrevo: quero afetar o leitor, modificá-lo, para transformar o mundo. Trata-se de uma utopia, eu sei, mas me alimento de utopias. Porque penso que o destino último de todo ser humano deveria ser unicamente esse, o de alcançar a felicidade na Terra. Aqui e agora."


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Por causa do discurso, brasileiro sobre duras críticas por parte da imprensa governista.