segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Professor de História da UFAC publica livro "Acre, a Sibéria Tropica".

Fonte:http://altino.blogspot.com.br/

Por "limpeza", Rio de Janeiro desterrou para o Acre mais de 2 mil "criminosos", diz historiador Francisco Bento

Mais de duas mil pessoas foram desterradas do Rio de Janeiro para o Acre pelo governo federal como criminosos políticos, sem condenação judicial, por participarem das revoltas da Vacina (1904) e da Chibata (1910). A constatação resulta de uma pesquisa do professor Francisco Bento da Silva, 43 anos, do curso de História da Universidade Federal do Acre, autor de uma tese de doutorado cuja narrativa foi adaptada no livro "Acre, a Sibéria Tropical", que lança uma nova leitura sobre o processo de ocupação da região mais ocidental do país.
Os desterros foram adotados pelo governo federal como medidas de "limpeza" dos indesejados sociais da cidade do Rio de Janeiro, então capital da República. Eram homens, mulheres e até crianças pobres. Alguns sobreviviam de trabalhos avulsos, esporádicos e não reconhecidos formalmente pelas autoridades, enquanto outros viviam de pequenos crimes e contravenções, como roubos, furtos, jogos de azar, conto do vigário, capoeira, prostituição etc.
- Mas também havia pessoas que não se enquadravam no perfil retratado pelo governo e pela imprensa – os trabalhadores e operários que foram apanhados na rua protestando contra o governo. O governo aproveitou para mandar pessoas que durante as revoltas estavam em presídios da cidade. Fica claro que a motivação para o desterro não foi somente por alguém ter participado das revoltas – assinala o historiador em entrevista exclusiva ao Blog da Amazônia.
Para a região do Alto Madeira, no atual Estado de Rondônia, foram desterradas 400 pessoas. Homens e mulheres eram pintados pelo governo federal como expressões natas do crime e da discórdia, profissionais habilitados da desordem. De acordo com o relato do agente sanitário Belfort Booz de Oliveira, da Comissão Rondon, testemunha do desembarque, "os quatrocentos desgraçados foram guindados, como qualquer cousa, menos corpos humanos, e lançados ao barranco do rio".
- Eram fisionomias esguelhadas, mortas de fome, esqueléticas, e nuas como lêmures das antigas senzalas brasileiras. As roupas esfrangalhadas deixavam ver todo o corpo – acrescenta Belfort de Oliveira em carta enviada ao amigo dele, o senador oposicionista Rui Barbosa, no dia 30 de maio de 1911. 
Os desterrados do Madeira foram submetidos a trabalhos forçados e muitos foram fuzilados para servir de exemplo quando se opuseram às normas e regras dos superiores. Na então prefeitura do Alto Juruá, no Acre, os desterrados viviam em cárcere privado, em um galpão, e também realizavam trabalho forçado.
- No Departamento do Alto Acre, existem denúncias de muitos terem sido assassinados por autoridades locais e enterrados com atestados de óbitos falsificados pelos médicos da prefeitura. Além disso, parece que pela mácula que carregavam, os desterrados era mal vistos pela população local como criminosos irrecuperáveis e para os quais os castigos recebidos eram válidos – diz Francisco Bento. 
Distante, vazio, selvagem e isolado, o então Território Federal do Acre era tratado pela imprensa da época como "Sibéria do Brasil". Era considerado o lugar ideal para manter distante da capital federal quem se insurgia contra as ordens dos mandatários da República.

BLOG DA AMAZÔNIA – Por que mais de duas mil pessoas foram desterradas do Rio de Janeiro para o Acre, em 1904 e 1910?
 
FRANCISCO BENTO - Os desterros foram desdobramentos de duas grandes revoltas que ocorreram naquele período na cidade do Rio de Janeiro: a Revolta da Vacina e a Revolta da Chibata. O governo, para debelar os protestos, implantou o estado de sítio na capital federal, que suspendia por trinta dias algumas garantias legais – constitucionais e jurídicas. De posse desse instrumento, o governo federal prendeu e desterrou aqueles sujeitos -homens e mulheres pobres- que há muito causavam preocupações, infundadas ou não, nas autoridades da República. Pessoas que eram vistas como desviantes das normas de “bem viver”, em descompasso com os valores urbanos e “civilizatórios” que estavam sendo implantados. À época, o Acre era o oposto do Rio de Janeiro: local distante, “vazio”, selvagem, isolado e outros atributos correlatos. Ou seja, torna-se o espaço adequado para os indesejados que a República queria se desfazer. Além desses estereótipos negativos, o Acre era um Território Federal, administrado diretamente pela Presidência da República através do Ministério da Justiça. Não havia a necessidade de costura política com autoridades locais para viabilizar o recebimento dos desterrados.   
 
Quem eram esses homens e mulheres?
 
Eram pessoas pobres. No cotidiano do Rio de Janeiro, sobreviviam de atividades que transitavam na fronteira tênue do ilegal e legal: trabalhos avulsos, esporádicos e não reconhecidos formalmente pelas autoridades. Outros viviam de pequenos crimes e contravenções no espaço urbano -roubos, furtos, jogos de azar, conto do vigário, capoeira, prostituição etc. Mas também havia pessoas que não se enquadravam no perfil retratado pelo governo e pela imprensa – os trabalhadores e operários que foram apanhados na rua protestando contra o governo. E por fim, o governo aproveitou para mandar pessoas que durante as revoltas estavam em presídios da cidade. Por este ultimo exemplo, fica claro que a motivação para o desterro não foi somente por alguém ter participado das revoltas.
 
Até crianças foram desterradas?
 
Sim, existem fotografias de época que demonstram claramente crianças enfileiradas para identificação e embarque para o Acre. Uma ressalva é que, de acordo com o Código Criminal de 1890, a partir dos nove anos de idade a pessoa já tinha responsabilidade penal. Contudo, havia uma preocupação por parte das autoridades com a chamada “infância perdida”. Muitas crianças eram compulsoriamente alistadas na marinha como grumetes, como forma de “prevençao”, para que não se tornassem criminosas. E sobre o Acre e crianças, existe uma crônica conhecida do poeta Olavo Bilac, publicada em 1908, intitulada “Menor perverso”. Bilac narra o assassinato de uma criança de três anos morta com requintes de crueldade por outra de 10 anos. E pergunta que punição será dada ao menor assassino: Casa de Detenção, fuzilamento ou envio para o Acre? Ou seja, ser mandado para o Acre era uma punição vista como rigorosa até mesmo para um criminoso.
 
Penalizava-se pessoas ou atos?
 
Penalizavam-se pessoas acima de tudo. Os rigores e atenuantes da lei eram de acordo com a posição social do faltante. No caso das duas revoltas, só foram desterradas pessoas pobres, sem padrinhos ou posses materiais para contratar advogados. Militares de alta patente e jornalistas acusados de participação nas duas revoltas não foram desterrados. Foram presos, processados e depois anistiados. Mas a anistia não atingiu os desterrados para o Acre, pois não havia processos contra eles. Era como se não existissem perante o monstro Hobessiano do estado autoritário da Primeira República e seus valores de classe elitista.
 
 
Eles partiam para o Acre com esperança de retorno ou sabiam que o caminho era sem volta?
 
Aqui só podemos especular, pois lidamos com subjetividades individuais e coletivas. Mas podemos fazer um exercício de especulação. Historicamente, partidas forçadas são traumáticas e os deslocados sempre desejam voltar para onde estavam. Neste caso em particular, os desterrados para o Acre certamente tinham um imaginário sobre a região do Acre, na Amazônia, bastante negativo e tenebroso: local de morte e isolamento certos.
 
Quantos desterrados permaneceram no Acre?
 
Impossível quantificar. Mas a grande maioria jamais retornou ao local de origem. Parte pequena morreu durante a viagem devido as condições insalubres dos porões dos navios o por fuzilamento em tentativas de revoltas. Outros morreram na Amazônia devido doenças tropicais endêmicas. E a grande maioria refez certamente suas vidas carregando a pecha de desterrados permanentes ou escondendo esta mácula nos novos espaços de sociabilidades em que foram se inserindo.
 
Algum deles conquistou projeção na vida social, política ou econômica local?
 
Isso não procurei mapear porque não era o foco da minha pesquisa. Ainda é um trabalho a ser feito, pois muitas pontas dessa história dos desterros permanecem soltas e talvez nunca se amarrem por completo.
 
Com o advento da internet e suas redes sociais, muita gente diz que o Acre não existe. No Dicionário Aurélio consta a expressão ir para o Acre entre os sinônimos do verbete morrer. Em outros dicionários, dos anos 1960, constava "acreana" entre os sinônimos de prostituta. O desterro é mais amplo?
 
A figuração do Acre como parte do território brasileiro é ainda motivação de equívocos e estereótipos. E isso resvala evidentemente para aqueles que nasceram e vivem no Acre. Talvez essa incorporação tardia ao território nacional, a condição de Território Federal sustentado pela União, após o fim do ciclo da borracha, foi gerando um conjunto de olhares externos que reforçou uma imagem que desde muito tempo já era extremamente negativa. O Acre como última fronteira, como última unidade da federação, torna-o também o ultimo “sertão” do Brasil. A Sibéria tropical legou uma imagem perene e que ainda é  muito forte nos dias de hoje. O advento da internet e a circulação desses estereótipos irônicos e exagerados é algo que segue o mesmo padrão das charges, crônicas e versos publicados no inicio do século XX, no Rio de Janeiro. Mudam-se os veículos, mas a mensagem é semelhante. 
 
 
Você estudou o autoritarismo em outro trabalho de sua autoria e sabe que os governos do Acre também desterravam seus adversários. Isso ainda acontece? De que maneira?
 
Não podemos falar em desterros internos no Acre no sentido clássico do modelo republicano que estudo em meu trabalho. Mas existem relatos de pessoas mais idosas ao dizerem que na época territorial e até mesmo já na fase pós 1962, os adversários políticos daqueles que estavam na situação eram deslocados ou lotados em postos distantes e isolados como forma de penalização. Hoje as formas de ostracismo e punição são mais veladas, mas atingem basicamente aqueles que desempenham cargos públicos em níveis municipal e estadual ou em firmas que dependem de contratos com a administração pública. O nível de influência na vida pessoal dessas pessoas certamente é maior por parte dos dirigentes políticos e partidos quando estão no domínio da máquina pública.   
 
A forma como o Acre foi ocupado e conquistado, com seus coronéis de barranco no barracão do seringal, com os desterrados, é a nossa gênese? Qual a influência disso na política atual? O estado parece controlar a tudo e todos, existe pouco espaço para a crítica e o contraditório e isso foi agravado nos últimos 14 anos de dominação de uma suposta esquerda. Como avalia?
 
A gênese do acreano -com "e", como prefiro- é das mais diversas do ponto de vista étnico, cultural e dos tipos de gentes. Contudo, a narrativa historiográfica, popular e política sobre isso é hegemônica em ressaltar a origem heroica, do conquistador e do desbravador. O fato é que ninguém gosta de realçar suas raízes “não nobres” e o Brasil como artefato étnico e cultural foi formado por muitos indesejados portugueses enviados para a colônia além mar. O Acre também foi marcado por migrações espontâneas e forçadas das mais variadas desde finais do século XIX, mas para o poder estabelecido é sempre mais interessante marcar aspectos positivos dessa trajetória coletiva e “inventar” as tradições em torno dessas narrativas formadoras. Independente da coloração político-partidária, essa apropriação emerge e é reinventada em datas simbólicas -centenários ou datas “redondas”- que por coincidência marcou a ascensão de um grupo político ao poder no executivo acreano no inicio da primeira década do século XXI. Grupo que através de suas lideranças, chega ao cúmulo de imaginar uma linearidade temporal onde eles se colocam como redentores de ideias do passado que não foram efetivados em sua época.    
 
Mas voltemos ao Rio de Janeiro. Ele já era a Cidade Maravilhosa quando desterrou tanta gente e como era o Acre em 1904 ou 1910? 
 
O Acre era o oposto imagético da cidade do Rio de Janeiro. Esta era a capital da República recém-proclamada, cosmopolita, estava passando por reformas urbanas e arquitetônicas inspiradas em modelos europeus, que lhe deram o epíteto de Cidade Maravilhosa já em 1909. O Acre e suas vilas e espaços urbanos eram vistos como o oposto de tudo isso, pois a maioria da população vivia nas matas e colônias. Interpretava-se que a civilização, normas de bem viver, costumes refinados, presença do Estado nacional e o sentimento pátrio eram elementos frágeis ou ausentes no Território Federal do Acre recém incorporado ao Brasil. Como disse Euclides da Cunha, o Acre teve uma formação à gandaia, fora das bases do progresso nacional. Em suma, duas localidades que formavam diante desses imaginários e discursos uma antítese poderosa.      
 
Como a sociedade acreana reagia à presença dos desterrados? Eles chegavam, digamos, carimbados como tal?
 
Pelas esparsas e frágeis informações, sabemos que a presença desses desterrados na Amazônia era de difícil aceitação. Antes mesmo da chegada deles, jornais locais, memórias e relatórios oficias de época expressam isso. A mácula de bandidos, prostitutas, gatunos, capoeiras, rebeldes, inadaptados à vida em sociedade, irá acompanhar esses homens e mulheres do embarque ao desembarque e perdurará localmente enquanto a lembrança e identificação deles forem possíveis. Muitos dos desterrados devem ter criado estratégias para mascarar ou apagar a marca que passaram a carregar como um estigma permanente, de difícil esquecimento coletivo e pessoal. Mas a má fama às vezes era útil, como denúncias feitas à época do uso de alguns desterrados como capangas do prefeito Acauã Ribeiro, do Departamento do Alto Acre.
 
 
A decisão de expulsar tanta gente foi uma decisão social e política?
 
Os dois elementos se conjugam. Foi política do ponto de vista do uso do estatuto do estado de sítio, expresso na Constituição Federal de 1891, que facultava ao presidente da República ou ao Congresso Nacional fazer uso desse expediente em momentos de “comoção intestina”. Decretado o estado de sítio, estavam suspensas várias garantias legais. Esse instrumento dava às autoridades o poder de desterrar, deportar e banir as pessoas acusadas de causar graves distúrbios sociais. Só que nem todas as pessoas acusadas de causarem distúrbios e serem culpadas de participação nas duas revoltas foram desterradas. Essa punição só foi adotadas contra sujeitos oriundos daquilo que na época era chamado “membros das classes perigosas”: pobres que transitavam na tênue linha do “bem viver e mal viver”. Portanto, o componente da origem social, independente da cor da pele, gênero e idade, foi um elemento definidor de que seria ou não desterrado.
 
A Sibéria tropical era mesmo imaginada pelas autoridades como um destino de morte certa?
 
Sim, muitos acreditavam que as regiões tropicais amazônicas e o Acre em particular se configuravam em localidades mortíferas devido a presença de doenças endêmicas que eram mais severas nos corpos dos adventícios que aportavam na região. À época, a literatura meédico-higienista apontava a questão dos ares corrompidos, águas pútridas e calores excessivos como elementos propícios para doenças cujas causas e vetores ainda não eram plenamente conhecidas. A construção discursiva de regiões insalubres, como a do Acre, eram bastantes frequentes em jornais, relatórios e escritos literários. As autoridades, portanto, estavam permeadas por esse tipo de pensamento quando decidem escolher o Acre como local de envio dos indesejados sociais do Rio de Janeiro.  
 
Como o seu trabalho pode nos influenciar a rever concepções sobre o Brasil?
 
Talvez contribua para pensar o quanto o Estado brasileiro da Primeira República e a elite social da época eram fechados aos gritos e vozes descontentes e alijadas de direitos sociais e políticos. A questão social era caso de polícia e resolvida com o sufocamento e repressão vigorosas que barravam qualquer possibilidade alteração do modelo implantado em 1889, mas que mantinha algumas continuidades vigentes desde o regime imperial: latifúndio, participação restrita, modelo agroexportador, preconceitos de classe e cor. E os desdobramentos disso vão atingir e ter consequências para outras localidades distantes da capital federal.
 
Qual era o papel estatal à época, como os desterrados eram manipulados?
 
O Estado é o elemento de força e que implementa os desterros com poucas vozes contrárias ou silenciadas, que só tornaram isso publico após o fim dos respectivos estados de sítios. Os desterrados foram os bodes expiatórios e a demonstração de como as autoridades imbuídas de poder tratavam essas vozes e comportamentos vistos como dissonantes. Eles tornaram-se os indesejados da República e que servem para mascarar as contradições e fissuras internas da falta de hegemonia política daquela elite política em conflito. A situação, nos dois momentos, usa os desterros para causar medo nos adversários e capitalizar politicamente diante de seus apoiadores. Em sentido mais restrito, os desterrados em alguns momentos serão utilizados como mão de obra compulsória e barata, como foram nos trabalhos da Comissão Rondon e em trabalhos das prefeituras dos Departamentos do Acre Federal.
 
 
Os abusos eram tolerados, institucionalizados?
 
Parece que sim. Na prefeitura do Alto Juruá os desterrados viviam em cárcere privado, em um galpão da prefeitura, e realizavam trabalho compulsório. Na região do Madeira, trabalhavam também compulsoriamente e muitos foram fuzilados quando se opuseram às normas e regras dos superiores. No Departamento do Alto Acre, existem denuncias de muitos terem sido assassinados por autoridades locais e enterrados com atestados de óbitos falsificados pelos médicos da Prefeitura. Além disso, parece que pela mácula que carregavam os desterrados era mal vistos pela população local como criminosos irrecuperáveis e para os quais os castigos recebidos eram válidos. 
 
 
 
Quem se beneficiou da presença dos desterrados?
 
Como foi dito anteriormente, os beneficiados com os desterrados foram as autoridades que os usaram como mão de obra compulsória parte deles. Foram usados como capangas políticos por autoridades locais e muitos desses desterrados refizeram suas vidas no Acre e em Rondônia, contribuindo às suas maneiras para o desenvolvimento, povoamento e diversidade da região.
 
Qual a matriz do degredo, desterro e banimento no período imperial, bem como do desterro republicano?
 
As formas de expulsão de indesejados sociais e políticos têm uma matriz muito antiga: gregos e romanos já faziam isso. Portugal utilizava indesejados metropolitanos como mão de obra e povoamento da sua Colônia americana. Quando vem a ruptura com Portugal, em 1822, o Brasil Imperial conserva as práticas do degredo e desterro internos no território nacional. A República aboliu o degredo, visto como degradante (palavras de mesma raiz semântica), mas mantém o desterro (interno e só para nacionais), banimento (de nacionais para fora do território pátrio) e a deportação (de estrangeiros para seus países de origem).
 
O Acre virou porta de entrada de imigrantes de várias partes do mundo, sobretudo de haitianos. Como você avalia essa nova realidade? O que é o Acre hoje?
 
Há uma diferença, pois os haitianos a princípio chegam voluntariamente. Mas seus deslocamentos são atravessados por elementos que fogem ao controle deles quando resolvem partir -máfias, coiotes, roubos, violências etc. O ponto de semelhança talvez seja o fato de que localmente eles são vistos como elementos indesejados por vozes difusas que ecoam através de conversas e na imprensa por pessoas de diferentes classes ou grupos sociais. O fato é que o “outro” muitas vezes serve para reforço de uma autoidentidade coletiva e individual, onde a comparação serve para elevar o coletivo “nós” ou o individual  “eu” e diminuir, macular, rebaixar o “outro”, o adventício, aquele que chega sem ser “convidado” e querido.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Plácido de Castro, Revolução Acreana e Estado Independente do Acre

Fonte: http://altino.blogspot.com.br/2013/08/estado-independente-do-acre.html

Estado Independente do Acre

Como um militar gaúcho no comando de um bando de seringueiros destreinados redefiniu o mapa do Brasil e conquistou a região oeste da Amazônia




Altino Machado, de Rio Branco

Ainda era madrugada de 6 de agosto de 1902. A guarnição boliviana ainda dormia na cidade de Xapuri, que décadas depois, já como cidade brasileira, se tornaria famosa por causa do sindicalista Chico Mendes. Um pequeno grupo de 33 seringueiros brasileiros, armados com rifles, desembarcou de suas canoas. Subiram o barranco íngreme do Rio Acre e tomaram posição em pontos estratégicos, divididos em três grupos. Os bolivianos estavam exaustos. Haviam comemorado na véspera a data nacional de seu país, com muito, muito álcool. O militar brasileiro Plácido de Castro, que comandava os seringueiros, seguiu em silêncio até a grande casa de madeira onde funcionava a Intendência do país vizinho. Dios Fuentes, o intendente e maior autoridade do local, despertou de um salto e, pensando tratar-se de um compatriota, ainda com sono, avisou:

-Es temprano para la fiesta.  

Castro retrucou:

-Não é festa, senhor intendente. É revolução.

Terra sem lei

Tão logo o intendente boliviano se rendeu, os brasileiros recolheram as armas e aprisionaram a guarnição. Era o começo da Revolução Acreana. Com a população de Xapuri em festa – muitos confundiram o movimento com o Dia da Independência da Bolívia –, Plácido de Castro anunciou o sucesso da revolta e justificou a ação com o argumento de que em troca de favores financeiros, La Paz pretendia entregar a região ao capital norte-americano e britânico na forma do chamado Bolivian Syndicate. A ideia era ocupar com soldados e explorar a região por pelo menos 30 anos. O Acre era uma região da Bolívia, mas a cada ano, entre o final do século 19 e o início do século 20, aumentava o número de brasileiros, especialmente nordestinos, que corriam para lá em busca da riqueza da borracha.

A Bolívia estava disposta a recuperar o território por causa dos lucros que poderia aferir com a borracha, uma das commodities mais desejadas em um mundo que começava a ser desbravado pelo automóvel e pelo uso industrial do látex. O governo brasileiro não pleiteava a região. Portugueses e espanhóis haviam definido que o Acre era boliviano desde 1750, com o Tratado de Ayacucho. Em 1898, o Brasil independente reconheceu que o território pertencia mesmo à Bolívia. Mas como era distante, de difícil acesso e em plena floresta amazônica, os bolivianos não se interessaram em colonizar a região. Até aparecer o interesse internacional pela borracha.

O gaúcho Plácido de Castro chegou à Amazônia em 1899, aos 26 anos, depois de viver no Rio de Janeiro e em São Paulo. Três anos depois, seringalistas (compradores e distribuidores do látex) viram no militar, que havia lutado na Revolução Federalista do Rio Grande do Sul, uma oportunidade para ampliar seu território. Ofereceram a Castro armas, munição e dinheiro para enfrentar os bolivianos. Ele, imaginando que poderia ganhar dinheiro demarcando os latifúndios da seringa (era formado em agrimensura), topou treinar e comandar 2 mil seringueiros, a maioria armado apenas com facões.

Estado soberano

A Revolução Acreana durou pouco, desde a ação de 6 de agosto. Terminou em 24 de janeiro de 1903, e as ações mais agudas, decididas rapidamente, facilitou o desfecho favorável para os brasileiros. De acordo com o especialista em história do Acre Marcos Neves, o principal fator de sucesso foi o fato de pela primeira vez se formar um exército organizado na região. “Era composto por seringueiros sem experiência militar, mas foi suficiente para direcionar corretamente os esforços militares na região”, afirma Neves. “E nesse aspecto a experiência de Castro foi fundamental.”

Depois da vitória militar, coube a Castro organizar a vida política e administrativa do novíssimo Estado Independente do Acre. Seu decreto número 1, de 26 de janeiro de 1903, mandava aplicar à justiça civil, criminal e comercial a lei brasileira, até que se promulgasse a Constituição do Estado soberano. Considerou válidos todos os títulos de propriedade, definitivos ou provisórios, expedidos pela Bolívia e pelo Estado do Amazonas. Definiu o português como língua oficial e adotou o padrão monetário do Brasil. Mas encontrou inimigos em seus antigos aliados. “Rodrigo de Carvalho e Gentil Norberto, os principais articuladores da Revolução Acreana com o governo do Amazonas, tornaram-se seus adversários”, afirma o professor Eduardo Carneiro, da Universidade Federal do Acre. “Os dois acusavam Plácido de Castro, entre outros, de ter acumulado riquezas com a revolução.” Em carta ao Barão do Rio Branco, Rodrigo de Carvalho, ministro da Fazenda, Justiça e Guerra do Estado Autônomo, enviou tempos depois uma carta ao Barão do Rio Branco repleta de acusações. “Plácido de Castro não é honesto; é feroz e sanguinário”, registrou.

Nos meses que seguiram à vitória de Plácido na Revolução Acreana, a diplomacia brasileira agiu rápido. O Barão do Rio Branco convenceu os bolivianos a evitar um conflito armado de consequências imprevisíveis na região.

Primeiro território

No dia 17 de novembro de 1903, o Acre foi finalmente incorporado ao Brasil com a assinatura do Tratado de Petrópolis. O país pagou à Bolívia 2 milhões de libras esterlinas (o equivalente hoje a XX milhões de reais) e indenizou o poderoso Bolivian Syndicate com 110 mil libras (cerca de XX milhões de reais) por causa da rescisão de contrato de arrendamento que havia sido firmada com o governo boliviano. Também cedeu terras no Amazonas e se comprometeu a construir a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré para escoar a produção boliviana pelo Rio Amazonas.

No princípio de 1904, o Acre se tornou o primeiro Território Federal da história brasileira. Exemplo de um novo sistema político-administrativo, não previsto na Constituição, pelo qual seria gerido diretamente pela Presidência da República, a quem caberia nomear seus governadores e arrecadar os impostos. Transformado em herói pelos locais, Plácido de Castro tornou-se uma ameaça para as novas autoridades brasileiras que passaram a gerir o território. O presidente de República, a mais de 4 mil km de dist6ancia dos problemas acreanos, nomeava sucessivamente militares, magistrados ou políticos derrotados em eleições para governar o primeiro Território Federal.

 Afastado do poder, mas com muito cacife político, Castro virou latifundiário e gerenciava um seringal, até que resolveu voltar à política defendendo a criação de um Estado independente. Em agosto de 1908, a situação era de conflito entre ele e o prefeito de Alto Acre, o coronel Gabino Besouro, que o acusou de planejar uma revolta armada. Neste cenário, cinco anos depois de dar início à Revolução Acreana, o militar gaúcho deixou Rio Branco em direção ao seu seringal, o Capatará, com seu irmão, Genesco, dois amigos e um funcionário. No dia 9, o grupo cruzou o Igarapé Distração preocupado com o alerta de Castro, conhecedor do região: “Esse é o lugar das emboscadas”. Mal atravessaram, foram recebidos por 14 homens armados. O militar recebeu dois tiros a queima roupa: um no braço, outro que perfurou seu pulmão esquerdo. Ainda assim, conseguiu esporear o cavalo e fugir. Foi socorrido por um amigo, o seringalista João Rola, que apareceu com 20 homens armados e o levou para sua casa, no seringal Benfica. O local foi atacado à noite e no dia seguinte pelo mesmo grupo da emboscada. Antes de morrer, às 16h do dia 11 de agosto, aos 35 anos, pediu ao irmão que tirasse seus ossos do Acre. Segundo Genesco, estas foram suas últimas palavras:

Direi como aquele general africano: “Esta terra que tão mal pagou a liberdade que lhe dei é indigna de possuí-los”. Ah, meus amigos, estão manchadas de lodo e sangue as páginas da história do Acre...

O nome de Plácido de Castro está inscrito no "Livro dos Heróis da Pátria, que se encontra no Panteão da Liberdade e da Democracia, em Brasília, desde 2002, como o Libertador do Acre, ao lado, entre outros, de Dom Pedro I, Duque de Caxias, Santos Dumont e Chico Mendes, que, nascido em Xapuri, não fosse pelo militar gaúcho, seria um famoso boliviano.

“A posteridade o julgará” - A furiosa carta da mae de Plácido de Castro

Em 1929, o senador J. Pires Ferreira apresentou um projeto de lei que promovia postumamente Plácido de Castro a general. A honraria não convenceu a mãe do militar, Zeferina, de 92 anos, que enviou uma carta ao político. A seguir, os principais trechos.

“Chegando ao meu conhecimento que transita pelo Senado Federal um projeto de lei de autoria de Vossa Excelência dando honras de general ao meu pranteado filho, J. Plácido de Castro, e de coronel a dois dos principais cúmplices no seu assassinato – Gentil Tristão Norberto e Antônio Antunes de Alencar – venho pedir-lhe o grande favor de retirar o nome do meu filho do mesmo projeto.

Em vida, ele nada pediu à sua pátria e nada recebeu além da perseguição, da injúria, da calúnia e da morte por mão das principais autoridades federais; é justo que depois de morto, quando de nada precisa, também nada receba. Os governos já tripudiaram muito sobre o seu nome e sobre a sua memória...

É preciso que a Pátria seja coerente: com honrarias póstumas ela não ressuscita a vítima nem lava as máculas do passado. Continue ela a proteger, amparar e distinguir os assassinos, procurando apagar os vestígios da covarde tragédia de 9 de agosto de 1908 e a transformar os criminosos em heróis. Isso é justo: mas que aos 92 anos eu veja o nome do meu filho servir de escada para a ascensão dos seus matadores, isso é demais...

A posteridade julgará meu filho, e é o bastante."

Meu reino por dois cavalos

Na Bolívia, a culpa pela perda do Acre para o Brasil é creditada ao presidente Mariano Melgarejo. Ele negociou com o Brasil um tratado sobre os limites ainda durante a Guerra do Paraguai (1820-1871). O governo brasileiro, temeroso de criar uma fronteira hostil no norte, topou renegociar o Tratado de Ayacucho, de 1867. O cônsul brasileiro na Bolívia, Regino Correa, conhecia a paixão de Melgarejo  por equinos e o presenteou, antes de começar as negociações com um casal de cavalos brancos.

Conta-se que o boliviano ficou tão feliz com o presente que deu de presente ao Brasil “dois dedos” de terra marcados no mapa, pois se tratava de uma área despovoada. A linha divisória que era reta desde 1750 tornou-se oblíqua, a origem da chamada Linha Cunha Gomes (veja mapa). As terras do norte da Cunha Gomes são do Amazonas. As do sul são as conquistadas pela Revolução Acreana. O historiador Marcos Neves afirma que a história é “estranha” e muito pouco conhecida no Brasil. Mas reconhece que, à época, era importante para o Brasil neutralizar qualquer aliança entre Bolívia e Paraguai.



A sequência dos conflitos

Tomada de Xapuri - 06 de agosto de 1902

Inicio da última e mais sangrenta fase da Revolução Acreana. Xapuri foi tomada pelo exército revolucionário acreano, sem o disparo de nenhum tiro.

1º Combate da Volta da Empresa - 18 de setembro de 1902

Tropas comandadas por Plácido de Castro foram emboscadas e derrotadas na Volta da Empresa (atual Rio Branco) por um pelotão boliviano comandado pelo general Rozendo Rojas.

Combates do Telheiro e do Bom Destino – 23 e 24 de setembro de 1902

De Puerto Alonso (atual Porto Acre) partem ataques do exército boliviano contra os seringais Telheiro e Bom Destino de Joaquim Victor, mas são derrotados pelos revolucionários brasileiros.

2º Combate da Volta da Empresa - 05 a 15 de outubro de 1902
Plácido de Castro volta a atacar a Volta da Empresa que tinha posição estratégica para o domínio do médio rio Acre. Depois de dez dias de luta vence e toma o povoado.

Combate do Bahia – 11 de outubro de 1902

De Xapuri parte uma coluna revolucionária para dominar o barracão do igarapé Bahia, mas são atacados e derrotados pelos seringueiros e campesinos bolivianos que formavam a famosa Coluna Porvenir.

Combates de Santa Rosa e Costa Rica – Novembro e dezembro de 1902

Para consolidar o domínio do médio e do alto Acre, Plácido de Castro ataca povoados bolivianos as margens do Abunã e do Tahuamano, destruindo-os e vingando o massacre de brasileiros no igarapé Bahia.

Combate de Porto Acre – 15 a 24 de janeiro de 1903

Depois de seis meses de guerra, Plácido de castro e seu exército de seringueiros vence o exército regular da Bolívia e toma seu o quartel general em Puerto Alonso. Foi a vitória definitiva da Revolução que tornou o Acre brasileiro.

Fonte: revista Aventuras na História, da Editora Abril