sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

A HERÓICA E DESPREZADA BATALHA DA BORRACHA

Marcus Vinícius Neves (*) Sem ter sido um episódio propriamente militar, a tentativa de ampliar dramaticamente a produção brasileira de borracha foi um projeto governamental que recebeu apoio técnico e financeiro dos norte-americanos em guerra contra o eixo Roma, Berlim e Tóquio. Os nordestinos recrutados para trabalhar nos seringais foram chamados de "soldados da borracha", mas jamais receberam soldo nem medalhas.

De repente, em plena Segunda Guerra, os japoneses cortaram o fornecimento de borracha para os Estados Unidos. Como resultado, milhares de brasileiros do Nordeste foram enviados para os seringais amazônicos, em nome da luta contra o nazismo. Essa foi a Batalha da Borracha, um capítulo obscuro e sem glória do nosso passado, ainda vivo na memória dos últimos e ainda abandonados sobreviventes. No final de 1941, os países aliados viam o esforço de guerra consumir rapidamente seus estoques de matérias-primas estratégicas. E nenhum caso era mais alarmante do que o da borracha. A entrada do Japão no conflito determinou o bloqueio definitivo dos produtores asiáticos de borracha. Já no princípio de 1942, o Japão controlava mais de 97% das regiões produtoras do Pacífico, tornando crítica a disponibilidade do produto para a indústria bélica dos aliados. A conjunção desses acontecimentos deu origem no Brasil à quase desconhecida Batalha da Borracha. Uma história de imensos sacrifícios para milhares de trabalhadores que foram para a Amazônia e que, em função do estado de guerra, receberam inicialmente um tratamento semelhante ao dos soldados. Mas, ao final, o saldo foi muito diferente: dos 20 mil combatentes na Itália, morreram apenas 454. Entre os quase 60 mil soldados da borracha, porém, cerca da metade desapareceu na selva amazônica. (Fonte: http://altino.blogspot.com/2005/12/histria-do-acre.html)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2007

Revolução Acreana: um elogio ao capital

“Capital é uma forma especifica de relação social, na qual os burgueses empregam o trabalho dos despossuídos dos meios de produção para produzir mais-valia... é a contínua expansão do valor através do processo de produção e circulação de mercadorias” (Paul Singer).

Este artigo deseja ser uma contribuição ao debate sobre a “encantada” Revolução Acreana. A historiografia oficial muito já fez para se acreditar que a origem dessa guerra está no sentimento antiimperialista de Plácido de Castro e no patriotismo daqueles que fizeram a “revolução pelo direito de serem cidadãos de um país que os negava”.
Ao contrário desse raciocínio que forja um passado heróico, expondo em primeiro plano o idealismo dos combatentes, pretendemos tornar a “Revolução” mais transparente aos olhos dos leigos, ressaltando a latente cobiça dos “coronéis de barranco”. Porquanto “Não é a consciência dos homens que determina a realidade; ao contrário, é a realidade social que determina sua consciência” Marx.

A “guerra do Acre” fez parte de uma conjuntura internacional em que a busca pelo lucro foi levada ao extremo através da política imperialista dos países “centrais”. A conquista territorial e o domínio econômico sobre outras nações eram vitais para a sobrevivência das indústrias; por meio do controle das fontes de matérias-primas, pretendia-se vencer a “encarniçada” concorrência. No final do século XIX, o Acre torna-se um dos principais alvos do capital, por ter a maior fonte de látex, elemento essencial à indústria pneumática.

O capital chega ao Acre em seu modelo selvagem e constrói toda a engrenagem do sistema de aviamento. Em busca de inversão lucrativa rompe as “veias acreanas” e, indiferente às danosas conseqüências sociais, suga o máximo de seu látex. Para obter o excedente, o capital não tem ética – invade as terras bolivianas, destrói a floresta, extermina os índios, submete as pessoas à semi-escravidão, encobre a corrupção, apóia a sonegação fiscal, promove conflitos, produz o subdesenvolvimento e até patrocina historiografias capazes de justificar suas ações. Mas não se pode esquecer que havia quem, no âmbito local, se enriquecia com tudo isso: os seringalistas e os governadores do Amazonas e do Pará.

Inegavelmente o Acre pertencia à Bolívia. Na verdade essas terras nunca se configuraram como brasileiras, tratados e acordos não faltam para comprovar esta afirmação, desde a “Bula Papal Intercoetera” assinada em 1493, até a definição da linha “Cunha-Gomes” em 1898 (não considerando o ‘Uti Possidetis’). No entanto, seringalistas brasileiros financiados pelas casas aviadoras, trouxeram milhares de nordestinos para essa área, a fim de explorá-los até produzirem a derradeira mais-valia absoluta. Os seringueiros “trabalhavam para se escravizar” enquanto garantia o lucro dos “coronéis de barranco” e os impostos dos governadores. O sistema funcionou “harmoniosamente” até a Bolívia exigir “as terras não descobertas” de volta.

A Bolívia soube da invasão de suas terras em 1894, pelo coronel boliviano Manuel Pando. A partir de então, começaram os conflitos que culminariam na “Revolução Acreana”. O governo do Brasil tudo fez para deixar a região com o verdadeiro titular e, após alguns acordos diplomáticos, em janeiro de 1899 a Bolívia constrói um posto aduaneiro em Puerto Alonso, lugar estratégico por onde trafegavam boa parte das embarcações. A aduana boliviana cobrava impostos de até 40% em cima do valor do produto. Não havendo como repassar esse aumento às casas exportadoras, uma vez que estas já preestabeleciam os preços, os seringalistas tiveram que arcar com os prejuízos e os governadores com a diminuição drástica da arrecadação tributária. Eis aí o verdadeiro elemento causador da Guerra do Acre: $ DINHEIRO $.

Não aceitando a situação, o governador do amazonas aliado aos seringalistas começaram a contratar líderes que organizassem revoltas contra os bolivianos: em maio de 1899 o jornalista José de Carvalhos; em julho de 1899 o espanhol Galvez; em dezembro de 1900 os poetas da “expedição Floriano Peixoto”. Não resolvendo o litígio, essas revoltas só pioraram a situação, já que o governo boliviano decide buscar ajuda dos ingleses e norte-americanos para “colonizar” o Acre. Surge o conhecido “Bolivian Syndicate”. Contra esse consórcio levanta-se nada menos que Plácido de Castro, o herói dos desavisados, que aceita participar da “epopéia acreana” por uma quantia de 250 mil contos de réis.

A guerra foi, do início ao fim, um elogio ao capital, pela “bela” coreografia apresentada aos dois países, pela sedução com a qual cativou-os ao engodo. O que estava no centro da questão não era a luta contra o imperialismo internacional, a região já estava dominada pelo capital internacional por meio do sistema de aviamento; a “Bolivian Syndicate” seria apenas um acesso “vip” ao “leite amazônico”. Na verdade, bolivianos e “brasileiros do Acre” entraram em guerra, para saber com quem ficaria as “migalhas” dos gigantescos lucros que fluíam da “havea brasiliensis” para a Europa. “Todos os movimentos armados ou diplomáticos pela posse do Acre... foram motivados pela riqueza” Prof. Dr.Carlos Alberto, autor do livro Acre: novos tempos, novas abordagens.

Por fim, as “revoluções acreanas” não se fazem só de ideologia, subjacentes a elas existem as profundas ambições de seus líderes e da classe que representam. Comprovadamente a vida dos seringueiros em nada mudou, continuaram “trabalhando para se escravizarem”, as “revoluções” sempre se negam a ir ao encontro dos “pequeninos”. Em contrapartida, são benévolas com seus líderes. Plácido de Castro tornou-se um seringalista rico, dono de terras no Acre, Amazonas e Bolívia; foi governador do Acre meridional e depois prefeito do Alto Acre. O dia 06 de agosto já se aproxima, novamente seremos lembrados de todos os feitos heróicos e patrióticos de nosso passado. Comemoremos!!! Afinal “temos um herói para dar a conhecer a todos os brasileiros” (citação extraída da apresentação do livro: O Estado Independente do Acre, de Genesco Castro reeditado em 2002).

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

A República Oligárquica e a questão do Acre

Valdir Calixto* Ao pronunciar-se, de modo contundente, contra a visão positivista da história, Nietzsche negava a existência dos fatos, afirmando serem estes um constructo, ou uma interpretação. Concordando, em parte, com o filósofo de Roecken quanto à crítica ao objetivismo positivista, mas nos posicionando contrariamente ao reducionismo subjetivista expresso nessa concepção, queremos, neste breve artigo, refletir sobre o que significou o nascimento da República para aqueles que, desde o último quartel do século XIX, vinham intensificando suas incursões na região dos altos rios amazônicos, povoando e explorando sua exuberante e lucrativa floresta, de modo especialíssimo suas “árvores que jorravam leite”. Proclamada pelo Marechal Deodoro da Fonseca, amigo pessoal do imperador D. Pedro II, a (res) pública, melhor dizendo, a condução de seu destino, logo decepcionaria certos grupos sociais e suas respectivas visões de mundo. A proclamação de Deodoro da Fonseca conseguiu desagradar tanto a jacobinos, sociocratas positivistas (civis e militares), quanto a românticos liberais revolucionários identificados com as idéias da Revolução Francesa. A partir de seu primeiro presidente civil, Prudente de Morais, culminando com as presidências de Campos Sales, Rodrigues Alves e Afonso Pena a (res) pública e identificar-se-ia aos interesses – refiro-me particularmente ao poder político - da oligarquia cafeeira, representada, naquele momento, por diversos partidos republicanos regionais, sintonizados aos interesse maiores do principal deles, o Partido Republicano Paulista – PRP. Em 1898, em plena presidência de Manuel Ferraz de Campos Sales, abastado cafeicultor paulista e membro destacado do “grupo da oligarquia”,criado e consolidado no próprio âmago do PRP, a questão do Acre, isto é, a questão relativa ao preciso tracejo das linhas geodésicas concernentes às nascentes dos rios Acre, Iaco, Purus e Juruá, era definida pelo Ministro do Exterior Dionísio Cerqueira como uma questão nascida nas praças comerciais de Belém e Manaus e que tais questões não deveriam “embaraçar a marcha da República, que [ precisava ] seguir seu caminho, sem ter que se incomodar com tais estrepes”. Assim, para a República, agora em sua face decididamente oligárquica, uma questão de vida ou morte para milhares de seringueiros que, patrões à frente, fabricavam milhares de quilos de borracha era entendida como estrepe ou empecilho à marcha da República, vale dizer, à política gestada no laboratório oligárquico perrepista. Em telegrama enviado a Silvério Nery, o mesmo ministro autorizava este governador a concordar com as pretensões bolivianas. O Acre, dizia o ministro, podia ser considerado “incontestavelmente boliviano”. Indignados, os seringalistas – patrões pegaram em armas. A Revolução eclodiu nas barrancas dos rios. Luta contra o exército boliviano. Luta, também, contra a decisão do governo federal oligárquico. Houve até os que pensaram em separatismo, não apoiado nem por Galvez, nem por Plácido de Castro. Esses proclamaram o Estado Independente do Acre, pensando, mais tarde, incorporá-lo à Federação Nacional. Decorridos 114 anos da proclamação da República, é mais do que oportuno refletir/problematizar o passado para que o presente ganhe em significado. Deste modo, lembrar e comemorar a proclamação da República no que diz respeito à emergência de uma vasta e rica região desejosa de integrar o território nacional, é não esquecer os interesses em jogo. De um lado, aqueles dos cafeicultores - a oligarquia do Partido Republicano Paulista; do outro, os interesses dos grupos dominantes bolivianos, dos seringalistas, das Casas Aviadoras e Exportadoras, assim como os da própria oligarquia regional (Belém e Manaus). É valido instituir a tradição, mas não de forma acrítica e descomprometida. * Professor-doutor em História e pesquisador da UFAC (Fonte: Jornal Página 20, dia 16 de novembro de 2003).

Trajetórias e centenários na lembrança de veteranos combatentes

Por Gerson Albuquerque *
Quem lembra, lembra de algum lugar, sob dadas perspectivas e projetos. As coisas significativas de um tempo e espaço repletos de mobilidades e de experiências sociais: um bosque, um riacho, uma viagem, as festas de natal, os aniversários, os tombos e traumas, os desencontros amorosos, as derrotas e vitórias, o sorriso da namorada, os sonhos de infância... O olhar para o passado somente é possível sob a ótica de um momento presente. Visões de mundo, propostas, concepções políticas, condicionamentos sociais, preferências, gostos, vontades, entre outros, se manifestam no momento de trazer à tona representações acerca do vivido. Nesse processo, a memória vai selecionando as coisas visíveis e invisíveis, as dizíveis e indizíveis, as possíveis e impossíveis de serem ditas, como "fagulhas que relampejam no momento de um perigo", na bela acepção do filósofo alemão Walter Benjamin.
O passado, portanto, não pode ser apresentado como algo imóvel, estático, mitificador daquilo que deve ser lembrado e sacralizado pela lógica de um pensamento que se quer dominante a qualquer custo. É de matéria viva que ele fala, de coisas infinitas e diálogos em aberto, possibilitando muitas histórias, interpretações e sentidos múltiplos. Com amor, contrário a apegos e nostalgias falseadoras, temos condições de dialogar com o passado que, centrado nas coisas do presente, nos permite a reflexão no experienciar da vida.
É nesse sentido que um grupo de alunos do curso de História (diurno e noturno) da UFAC vem desenvolvendo pesquisas acerca da "Revolução Acreana", procurando, com isso, dialogar e problematizar com as omissões, os caminhos cortados, as vozes silenciadas e as trajetórias de mulheres, homens e crianças que, identificados como "obscuros" coletivos, tornaram-se "massa" moldável às conveniências dos discursos e intenções circunstanciais.
A partir de diferentes fontes, dentre as quais destacamos jornais que circularam no Acre, no início do século XX, e depoimentos de ex-combatentes, procuramos identificar as fissuras que ameaçam e põem a nu as enferrujadas engrenagens de uma história oficial da "revolução", cuja característica principal é o apego às lógicas formais de causa e efeito, despertadoras de "paixões" e visões redentoras acerca dos homens e das "acontecimentos" passados.
As lembranças de "velhos combatentes", nos permitem antever trajetórias de pessoas comuns, colocando na cena historiográfica pontos de vista e formas de encarar outras dinâmicas e sujeitos envoltos na "guerra pela borracha".
É o caso de Maria Antas Pereira, que residindo no Seringal Bom Destino, para onde fora deslocada em companhia de seus tios e, levada à margem, em conjunto com outras mulheres, onde ficaram "lavando roupas e servindo no serviço de rancho do Barracão que se transformou em Quartel. Durante toda a Revolução permanecemos naquele serviço".
As lembranças da paraibana Maria Antas, representação de um "real vivido", recolocam em debate o papel das mulheres no contexto das lutas pela "anexação do Acre ao Brasil", geralmente, relegadas ao esquecimento pelos historiadores amazonialistas ou representadas na figura de uma ou outra heroína tirada em nota de canto de página de um relato folclórico. Nessa mesma linha, é possível ressaltar a narrativa de José Júlio da Silveira, que tinha 13 anos, quando "rebentou a revolução" e, assim como outros garotos de sua idade, passariam a atuar dando assistência aos seus familiares, enquanto os pais estavam a "serviço da guerra". No trabalho de levar mercadorias (rancho) do barracão para suas colocações, essas crianças transitavam pelas perigosas "áreas proibidas": os varadouros, na proporção em que não tinham conhecimentos suficientes para fazer tal serviço pelo interior da floresta. Mantendo fidelidade aos tabus impostos por uma abordagem histórica de matriz positivista e europeizante, a memória celebrativa da "epopéia acreana", silenciou em relação às crianças, tratando-as como inexistentes. Nesse sentido, Os depoimentos dos "velhos combatentes" são referenciais importantes para reabrirmos o diálogo com esses personagens e, particularmente, com os papéis por eles desenvolvidos nos litígios acerca da região acreana.
A idade desses "revolucionários" não é o elemento mais importante e decisivo acerca da "revolução", mas, inevitavelmente, coloca o debate em outros termos, rompendo a dimensão dos "grandes homens" e da supremacia do acontecimento em detrimento dos fios e tramas que modelam o tecido vivo da experiência humana. Insistir nas comemorações de caráter triunfalista, sem levar em conta esses aspectos implica fazer com que histórias tão recentes continuem a ser encaradas como algo distante, abstrato e sem sentido para a grande maioria de nossa população.
Para encerrar quero lembrar, ainda, a trajetória de dois outros "veteranos" que, a exemplo de centenas de outros combatentes, tiveram suas lembranças tratadas como coisa "velha", "causos sem sentido" e, dessa forma, colocadas de lado ou, numa alusão figurativa ao que comumente acontece aos velhos em nossa sociedade: recolhidas ao fundo dos quintais, em pequenos quartos, separadas do mundo, encostadas como peças sem utilidade: José Joaquim Meireles, nascido em maio de 1888, no Rio Grande do Norte e Euclides Ferraz Viana, nascido em julho de 1883, na Paraíba.
O primeiro passou a atuar no exército revolucionário, através de recrutamento obrigatório. O Segundo, como os amigos Ezequiel Alves, Raimundo Silva e Pedro Chaves, fora recrutado para compor a tropa do coronel Joaquim Vítor, tendo como preocupação básica não desguarnecer o fabrico de borracha no interior do seringal.
Segundo seu relato, após receber as instruções "para guerrear contra os bolivianos sediados em 'Puerto Alonso' (hoje Porto Acre). Foi incorporado ao Batalhão de 'Franco Atirador', sob o comando do Cel Hypólito Moreira, pertencia ao contingente do major Daniel Ferreira de Lima, lutou em Porto Acre até dia 24 de janeiro de 1903, quando as tropas do Coronel Lino Romero capitularam ante o poderio da força Acreana."
As centenas de processos, como os que aqui foram destacados, colocam em evidencia desconhecidas histórias sobre a "revolução". Os únicos traços familiares são as localidades, os nomes dos comandantes dos batalhões e de algumas batalhas. No entanto, esses traços são carregados de sentidos que desafiam as "harmônicas" referências dos registros oficiais. Como esses relatos, constituídos através de processos produzidos por funcionários e/ou diretores do Instituto Histórico e Geográfico do Acre, bem como por "escribas" do serviço público federal, as narrativas de inúmeros descendentes dos "desconhecidos revolucionários", que podemos encontrar em qualquer "beira de rua" das cidades acreanas, possibilitam-nos produzir não respostas ou "conclusões" hermeticamente fechadas, mas indagações, perguntas e pistas acerca de nossa história.
O marco de 2002 singulariza não o centenário das memórias e histórias de sujeitos de origens, idades, nacionalidades, etnias, línguas, culturas múltiplas, mas a memória oficial sacralizada que insiste em cercear-lhes o direito ao passado. Os lançamentos de livros, as exposições, as inaugurações de monumentos de várias ordens sob os auspícios da pompa e do protocolo oficial, retratam não a história desse mosaico cultural, mas a apologia a um modelo civilizatório constituído pela barbárie.
Nesse ponto, recorro mais uma vez a Walter Benjamin, segundo o qual nem os mortos estarão em segurança enquanto o inimigo não parar de vencer. A beatificada exaltação aos heróis, o ritmo das marchas militares de nosso hino ameaçando o "audaz estrangeiro", dão conta de que, com o emudecimento de crianças e mulheres, pobres das cidades e da floresta, indígenas, bolivianos e peruanos, o inimigo (as classes dominantes) não tem cessado de vencer.
* Professor do Departamento de História e Diretor do Centro de Documentação e Informação Histórica da UFAC (Fonte: Jornal Página 20 - Edição de terça-feira 06/08/02)

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2007

O Carnaval e as religiões pagães


“Carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular de milênios passados... é o mundo às avessas”. (Bakhtin, 1970)

O carnaval realizado no Brasil é a maior festa popular do mundo. Grande parte dos foliões brasileiros, no entanto, não conhecem as origens e as implicações dessa festa. Pensa-se que o carnaval é uma brincadeira típica do Brasil, mas várias cidades do mundo como Nice (França), Veneza (Itália), Nova Orleans (EUA), dentre outras, também a celebram anualmente.

O carnaval, para surpresa de muitos, é um fenômeno social anterior a era cristã. Assim como atualmente ela é uma tradição em vários países, na antiguidade, o carnaval também foi praticado por várias civilizações. No Egito, na Grécia e em Roma, pessoas de diversas classes sociais se reuniam em praça pública com máscaras e enfeites para desfilarem, beberem vinho, dançarem, cantarem e se entregarem as mais diversas libertinagens.

A diferença entre o carnaval da antiguidade para o de hoje é que, no primeiro, as pessoas participavam das festas mais conscientes de que estavam adorando aos deuses. O carnaval era uma prática religiosa ligada à fertilidade do solo. Era uma espécie de culto agrário em que os foliões comemoravam a boa colheita, o retorno da primavera e a benevolência dos deuses. No Egito, os rituais eram oferecidos ao deus Osíris, por ocasião do recuo das águas do rio Nilo. Na Grécia, Dionísio, deus do vinho e da loucura, era o centro de todas as homenagens, ao lado de Momo, deus da zombaria. Em Roma, várias entidades mitológicas eram adoradas, desde Júpiter, deus da urgia, até Saturno e Baco.

Na Roma antiga, o mais belo soldado era designado para representar o deus Momo no carnaval, ocasião em que era coroado rei. Durante os três dias da festividade, o soldado era tratado como a mais alta autoridade local, sendo o anfitrião de toda a orgia. Encerrada as comemorações, o “Rei Momo” era sacrificado no altar de Saturno. Posteriormente, passou-se a escolher o homem mais obeso da cidade, para servir de símbolo da fartura, do excesso e da extravagância.

Com a supremacia do cristianismo a partir do século IV de nossa era, várias tradições pagãs foram combatidas. No entanto, a adesão em massa de não-convertidos ao cristianismo, dificultou a repressão completa. A Igreja foi forçada a consentir com a prática de certos costumes pagãos, muitos dos quais, cristianizados para evitar maiores transtornos. O carnaval acabou sendo permitido, o que serviu como “válvula de escape” diante das exigências impostas aos medievos no período da Quaresma.

Na Quaresma, todos os cristãos eram convocados a penitências e à abstinência de carne por 40 dias, da quarta-feira de cinza até as vésperas da páscoa. Para compensar esse período de suplício, a Igreja fez “vistas grossas” às três noites de carnaval. Na ocasião, os medievos aproveitavam para se esbaldar em comidas, festas, bebidas e prostituições, como na antiguidade.

Na Idade Média, o carnaval passou a ser chamado de “Festa dos Loucos”, pois o folião perdia completamente sua identidade cristã e se apegava aos costumes pagãos. Na “Festa dos Loucos”, tudo passava a ser permitido, todos os constrangimentos sociais e religiosos eram abolidos. Disfarçados com fantasias que preservavam o anonimato, os “cristãos não-convertidos” se entregavam a várias licenciosidades, que eram, geralmente, associadas à veneração aos deuses pagãos.

O carnaval na Idade Média foi objeto de estudo de um dos maiores pensadores do século XX, o marxista russo Bakhtin. Em seu livro Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin observa que no carnaval medieval – “o mundo parecia ficar de cabeça para baixo”. Vivia-se uma vida ao contrário. Era um período em que a vida das pessoas tornava-se visivelmente ambígua, pois a vida oficial - religiosa, cristã, casta, disciplinada, reservada, etc. – amalgamava-se com a vida não-oficial – a pagã e carnal. O sagrado que regulamentava a vida das pessoas era profanado e as pessoas passavam a ver o mundo numa perspectiva carnavalesca, ou seja, liberada dos medos e da ética cristã.

Com a chegada da Idade Moderna, a “Festa dos Loucos” se espalhou pelo mundo afora, chegando ao Brasil, ao que tudo indica, no início do século XVII. Trazido pelos portugueses, o ENTRUDO – nome dado ao carnaval no Brasil – se transformaria na maior manifestação popular do mundo, numa das maiores adorações aos deuses pagãos do planeta e, por tabela, num grande incentivo à promiscuidade. Você vai participar do CARNAval?

domingo, 11 de fevereiro de 2007

Afinal, de quem era o Acre?


"Nunca houve, talvez, uma geografia tão confusa, hesitante, cheia de erros e de reticências do que a do ocidente do rio Madeira, durante os tempos coloniais". (Leandro Tocantins, 2001, 387p. )

A pergunta que traz o título desse artigo parece ter uma resposta óbvia para os acreanos. O Acre pertencia ao Brasil. Mas, se questionarmos a história, veremos que outros dois países também reivindicavam essas terras: o Peru e Bolívia. Então, o Acre era realmente de quem?

Do BRASIL? Juridicamente todos os Tratados Internacionais anteriores ao de Petrópolis (1903) respondem negativamente a essa pergunta. A Bula Papal Intercoetera (1493) Tratado de Tordesilhas (1494), Tratado de Madri (1750), Tratado de El Pardo (1761), Tratado de Santo Ildefonso (1777) e o Tratado de Badajós (1801). O próprio Brasil Imperial reconheceu que o Acre pertencia à Bolívia (Tratado de Ayacucho, 1867).

Do PERU? Lembremos que na época em que o Peru era um dos quatro vice-reinados da Espanha aqui na América, as terras que compõem o território boliviano, lhe pertenciam. A Bolívia conquistou a independência em 1825. No entanto, não houve consenso em relação aos limites fronteiriços com entre os dois países. O Peru alegava que era dono de todo o vale do Amazonas, a leste do meridiano do nascente do Javari. Quando a “revolução” acreana aconteceu, essa questão ainda estava latente. No caso, o Brasil teria de negociar o Acre com o Peru e não com a Bolívia. O Barão de Rio Branco em poucos meses resolveu a questão acreana com a Bolívia. Com o Peru, ao contrário, a pendenga durou seis longos anos.

Da BOLÍVIA? A Bolívia considerava o Acre como “Tierras non descobiertas”, ou seja, terras ainda não exploradas pelos bolivianos. A atenção econômica desse país estava voltada para a extração de ouro e prata, negócio seguro e certo. Além do mais, a Bolívia vinha de uma guerra contra o Chile de quatro anos (1879-1882), portanto, teve que deslocar recursos humanos em direção oposta ao Acre. Aproveitando-se do patrocínio internacional e da crescente valorização do preço da borracha, milhares de nordestinos ocuparam as terras, criando o que se chamou de “Questão do Acre”. A Bolívia, mesmo sem ter ocupado a terra, alegava que o Acre lhe pertencia baseando-se nos mesmos Tratados Internacionais que o Peru, exceto o de Ayacucho.

De quem era o Acre, afinal? Ora, segundo a retórica aceita do UTI POSSIDETIS, o Acre pertenceria não aos seus descobridores, e sim aos seus ocupantes. Então, o Acre inegavelmente pertencia ao Brasil, certo? Não, errado. Os brasileiros foram um dos primeiros brancos a assassinarem índios na região, e não os seus primeiros ocupantes.

Os primeiros ocupantes foram os índios.Até a segunda metade do século XIX, viviam no território hoje conhecido como Acre cerca de 150 mil índios, distribuídos em 50 povos. Os sítios arqueológicos descobertos recentemente em Sena Madureira (AC) revelam indícios da existência de vida indígena há pelo menos dez mil anos.O que fazer com essa presença milenar? O que dizer da diminuição abrupta dessa população?

O índio é um tema nevrálgico na historiografia oficial acreana. Sofre interdições abertas - é controlado, selecionado, organizado e redistribuido por procedimentos que têm por função conjurá-lo. Nos dizem que que pertenciam a uma pré-história do Acre e que não conseguiram se adaptar ao progresso da civilização. Na verdade, até hoje são tratados como estrangeiros.Mas o leitor pode me perguntar: eram índios brasileiros ou bolivianos? Eu responderei que as nacionalidades são invenções recentes, criadas pela modernidade.

O Estado-Nacional que conhecemos hoje nasceu no século XIX, na Alemanha de Bismarck. Portanto, não podemos enquadrar o índio numa categoria criada pelo branco. O que podemos dizer é que os índios foram mortos aos milhares. O genocídio foi fruto da intolerância e da ambição dos brancos. É bom lembrar que esses brancos são, em sua maioria, constituídos por brasileiros - os nossos antepassados que tanto cultuamos como heróis. O branco patriota dizimava índio por meio das famosas “correrias”.

Atualmente vivem no Acre um pouco mais de 10 mil indígenas. No dia 19 de abril, dia em que o branco concedeu ao índio para vãs “comemorações”, geralmente vemos políticos tentando convencer outros brancos, que os índios no Acre têm VALOR. Pode o índio ter valor sob a tutela do branco? O Acre pertencia aos índios, mas esse debate pouco importa numa terra feita de “heróis”.

eduardo.eginacarli@gmail.com