terça-feira, 30 de setembro de 2008

Da democracia proscrita à democracia prescrita: a ditadura e a transição política de 1982 no Acre.

Francisco Bento da Silva (professor assistente da UFAC e doutorando pela UFPR).
“A democracia existe, quando existe a incerteza.” Adam Przeworski
01 - Introdução
No fim da década de 70, muitos países na América Latina, incluindo o Brasil, começam a promover a “abertura política”. Este período é chamado por Samuel Huntigton de “terceira onda”[2], por abrir canais mais ampliados de participação e dotar o Estado e a sociedade de mecanismos democráticos nos países até então dominados por ditaduras militares. No Brasil, durante todo o tempo em que existiu a política de caserna no âmbito do poder executivo, movimentos sociais, e outros setores da sociedade civil organizada, lutaram pela volta da democracia e por uma maior participação popular na condução dos interesses coletivos. A abertura política lenta, gradual e a volta do “pluripartidarismo controlado” culminou, em 1982, com o retorno das eleições diretas em todo o país para governador.
Contudo, ocorria uma situação sui generis, enquanto se escolhia de forma direta os governadores, em âmbito nacional continuava um presidente militar, sustentado por um corpo político-burocrático de pessoas ligadas de forma ideológica, senão pragmática, ao sistema político que dava seus últimos suspiros.
No Acre, assim como em todo o país, as forças políticas que polarizaram na primeira eleição pós golpe de 64 foram o PMDB, que abrigava nas suas fileiras alguns políticos com idéias mais progressistas e o PDS, que era em síntese a Aliança Renovadora Nacional (Arena) com uma nova denominação. Apesar do PT e do PTB também terem disputado as eleições, eles não tiveram desempenho comparável com o PMDB e PDS, que herdaram todo o espólio do bipartidarismo, contavam nas suas hostes com políticos tradicionais e já tinham uma base política segmentada através de seus quadros executivos e legislativos nas esferas municipais, estaduais e federal.
É neste cenário que ocorrem as eleições em 1982 no Acre, onde este processo de abertura e distensão, pelo menos no campo político, causou uma espécie de horizontalização da escolha política através de uma maior participação dos cidadãos, que até então estavam alijados, na sua maioria, do processo eleitoral como votantes capazes de escolhas ampliadas de candidaturas e partidos.
A partir destas questões, este trabalho visa buscar discutir como a abertura política que culminou com as eleições de 1982 no Acre, uma participação mais ampliada de partidos, de candidatos e de eleitores através do voto, interferiram na formação, introdução e consolidação dos valores democráticos no âmbito da tomada de decisões da esfera estatal. Ou seja, como se deram as relações com a sociedade civil e o novo governo eleito. 02 - Aspectos da ditadura militar no Estado do Acre Mas antes apenas uma breve digressão. No Acre, como nos demais Estados da federação, os reflexos da ditadura militar implantada em abril de 1964 foram imediatos. O governador José Augusto de Araújo, primeiro governador do Acre eleito democraticamente pelo PTB em 1962 e empossado em 1963, foi obrigado a renunciar no dia 08 de maio de 64 por um golpe implementado pelo capitão do Exército Edgard Pedreira de Cerqueira Filho em conluio com a Assembléia Legislativa acreana.
As cassações também atingiram deputados federais, deputados estaduais e alguns membros da equipe de governo de José Augusto. Os direitos democráticos de liberdade de imprensa, de reuniões de contestação política, de partidos de esquerda e de associações sindicais foram proibidos. Sindicatos, como o dos Trabalhadores Rurais de Rio Branco, foram fechados e as lideranças que não foram presas, estavam sob vigilância continua dos aparelhos repressivos.
Neste contexto, a Igreja foi um elemento fundamental de apoio e participação na resistência ao arbítrio que se estabelecera. A este respeito Abrahim Farhat diz: “... nós fomos de uma inteligência! Nós nunca tínhamos trabalhado com a Igreja porque ela sempre foi aliada do poder. Aí, nós deslocamos ela (sic) e, ela virou parte da luta. Nós vivíamos escondidos na batina do padre.”[3]
Naquela época a Igreja católica funcionou como única instituição que podia servir de abrigo para aquelas pessoas que, de uma forma ou de outra, se sentiam restringidas nas suas atividades políticas. Compreendemos que isto ocorreu não pelo deslocamento da igreja feito pelos que eram contra a ditadura militar e sim, pelo próprio voluntarismo e ideologia de algumas lideranças da própria Igreja, que no Acre se colocaram contra o arbítrio por questões de princípios. Devido questões de ordem histórica existia ainda um certo receio, por parte do Estado, em confrontar o poder clerical.
A repressão da ditadura militar era inevitável, mas a falta de liberdade de expressão, de manifestação e o nível de organização deficiente dos movimentos sociais contribuíam para que quase tudo que fosse feito estivesse sob o manto da Igreja. Na concepção de Nilson Mourão, a Igreja teve um papel muito relevante na luta pela liberdade e pela democracia pois, a Igreja era a instituição que serviu como pólo de aglutinação de todos esses setores desorganizados que vieram dos seringais. Era nas igrejas que eram discutidas as ocupações das áreas urbanas. Era nas igrejas que se discutiam as manifestações públicas, a feitura de boletins; feitos nos mimeógrafos das igrejas. Qualquer manifestação popular tinha que ser sob o guarda-chuva da Igreja.[4] Somente na segunda metade da década de 70 é que surge um órgão de imprensa muito importante na luta pela democratização, marcando de forma indelével a história da imprensa no Acre. Este jornal foi Varadouro, que tinha uma linha editorial bastante identificada com os seringueiros expulsos de suas colocações, dos indígenas, dos desempregados e dos moradores da periferia que começavam a migrar com mais intensidade para as cidades acreanas. Os assuntos que não eram publicados nos outros jornais saíam no “nanico das selvas”.
O Varadouro, devido às próprias condições políticas e econômicas que enfrentava, tinha uma periodicidade irregular e todos trabalhavam sem remuneração, desde a elaboração das matérias para a composição do jornal até sua venda final. Inclusive, a impressão tipográfica de algumas edições foi realizada em outros estados porque os redatores não encontravam meios de imprimir o jornal nas oficinas em Rio Branco, impedidas de fazer serviços para o jornal.
Os principais responsáveis pelo surgimento do “nanico das selvas” foram os jornalistas Elson Martins, Sílvio Martinello, Abrahim Farhat, Sued Chaves, entre outros. No editorial da primeira edição, afirmavam ser “um grupo de pessoas decididas a fazer um jornal decente e dificuldades em dobro e de todos os tipos de matizes — técnicas, econômicas e outras próprias dos dias que correm — a atrapalhar qualquer passo.”
Para o jornalista Bernardo Kucinski[5], que tem um trabalho sobre a imprensa alternativa no período da ditadura, o Varadouro era a expressão do ethos amazônico ao retratar como personagens principais os Índios, diaristas, soldados da borracha, posseiros e estivadores. Era um jornal que se propunha a registrar de forma crítica uma nova ordem econômica que se estabelecia no Acre, marcada pela expansão agropecuária nas terras acreanas após os anos 70.
É em meados desta década que os trabalhadores rurais começaram a se organizar em sindicatos e associações. De acordo com o Varadouro[6], no ano de 1978 já existiam no Acre cerca de 20 mil trabalhadores rurais sindicalizados, fator que contribuiu principalmente para a organização dos seringueiros e posseiros afetados pela expansão da fronteira agropecuária. As Comunidades Eclesiais de Base - CEB’s que existiam organizadas nos bairros periféricos de Rio Branco, nos municípios e ao longo dos rios e seringais proporcionavam além do aspecto religioso, a organização e conscientização da população na defesa de seus direitos, educação e formação de lideranças. Além desses setores mais expressivos, existiam ainda organizações dos trabalhadores da construção civil, estivadores, bancários e lavadeiras.
Esta mobilização e organização de diversos setores populares foi muito importante, já que a oposição no âmbito institucional era quase inexistente como aponta o jornal Varadouro: Na verdade, é difícil saber quem é ou não adesista na oposição do Acre, ou melhor, não é fácil excluir os deputados e vereadores oposicionistas que não fizeram composições, conchavos e toda espécie de negociatas com o partido do governo ou diretamente com os governos que passaram nesses anos todo pelo Palácio Rio Branco. Oposição firme, intransigente, ideológica não só ao governo, mas e principalmente oposição ao regime ditatorial, repressivo, concentracionista anti-popular e anti-nacional que perdura desde 15 anos neste país, a rigor isto nunca foi feito! Dos chamados ‘políticos profissionais’ praticamente nada se pode esperar. A esperança de uma oposição atuante e verdadeira reside mesmo nos grupos populares — sindicatos, Igrejas, estudantes, etc. - que começam a se movimentar para entra na política partidária.[7] 03 – O processo eleitoral de 1982 no Acre: Antecedentes e condicionantes eleitorais Em 1974, ocorreu eleição direta para o Senado e a Câmara Federal. O Movimento Democrático Brasileiro - MDB saiu vencedor fazendo maioria dos parlamentares naquele ano. Para contrapor a isto e antevendo uma derrota maior, em março de 1977 o governo federal fecha o Congresso Nacional e impõe o chamado “pacote de abril” (Emenda constitucional nº 08), contendo novas normas para as eleições de 1978.
Entre estas novidades estava o aumento do mandato do futuro presidente da República para seis anos[8], continuidade de eleições indiretas para os governos estaduais e a obrigatoriedade de 1/3 do Senado ser renovado de forma indireta, escolhidos por um colégio eleitoral especial na proporção de um por estado. Eram os famosos senadores biônicos, que exerceram seus mandatos até 1986.
No ano de 1979, com a anistia e volta do pluripartidarismo tutelado[9], começa a se desenhar um novo cenário para as eleições de 1982. No dia 13 de novembro de 1980 é aprovada, na Câmara Federal, a emenda que estabelece eleições diretas para governador. De acordo com esta emenda ficavam proibidas as coligações partidárias, era obrigação dos partidos lançarem candidatos para todos os cargos da disputa eleitoral, os analfabetos e os soldados não votavam e o voto seria vinculado. Ou seja, só era permitido votar em candidatos de um mesmo partido. Além é claro, dos prefeitos dos municípios de áreas consideradas de segurança nacional serem escolhidos de forma indireta.
Os partidos de orientação comunista continuavam na ilegalidade e ainda vigorava a Lei de Segurança Nacional[10], que era aplicada pela justiça militar aos acusados de cometerem atos contra o status quo vigente. Existia ainda a Lei Falcão, que regia a propaganda partidária nos meios de comunicação.
Manoel Pacífico da Costa, critica de forma dura esse novo cenário desenhado pelas novas normas eleitorais dizendo que:
Esse regime (militar) impede a coligação de partidos, obrigando partidos que mal nascem a inventar (sic) candidaturas no grito, de vereador a governador, impede o acesso ao rádio e a televisão aos candidatos de oposição mantendo a famigerada Lei Falcão, mantendo a Lei de Segurança Nacional como um cutelo sobre a cabeça de todos, impede o voto do analfabeto, estabelece que mais de 20 milhões de brasileiros não podem escolher seus prefeitos e, mantêm uma legislação casuística das mais espúrias, condenando os partidos à clandestinidade.[11] É neste contexto, de convivência entre o arbítrio corporificado e institucionalizado, que a luta pela democracia através dos partidos de oposição e das organizações populares tentam começar a construir uma nova ordem política. Inicia-se aí, a remoção gradual do autoritarismo com o retorno de certos direitos políticos e a instituição das normas mínimas para uma participação formal da maioria.
Neste quadro político condicionado, apenas quatro partidos estavam aptos e puderam lançar candidatos nas eleições de 1982 no estado do Acre: PMDB, PT, PDS e PTB. De acordo com dados da época, o Acre tinha uma população de 302.762 habitantes, destes, 102.762 estavam aptos a votar; sendo que 59.062 eram eleitores da zona urbana e 43.700 da zona rural[12].
O PMDB era composto basicamente dos partidários oriundos do MDB e, constituía-se em um partido muito amplo no que se refere a composição ideológica dos seus membros. Comportava desde políticos moderados e conservadores, até grupos ligados a esquerda. Abrigava membros dos Partidos Comunistas – PCB e PC do B (que estavam na ilegalidade), do MR-8[13], movimentos urbanos e também de indivíduos que não tinham nenhuma inserção e envolvimento nos movimentos populares. Lançou como candidato ao governo, o deputado federal Nabor Teles da Rocha Júnior[14], que acabou sendo eleito com cerca de 42% dos votos válidos.
Já o PT, tinha os seus quadros compostos por certa intelectualidade urbana integrada por estudantes, professores e alguns profissionais liberais. No entanto, no meio rural sua força era muito maior, principalmente entre seringueiros e pequenos produtores organizados através dos sindicatos rurais e das CEB’s. O PT teve como candidato o sociólogo Nilson Mourão, que era ligado as Comunidades de Base da Igreja Católica. Ficou em terceiro lugar, com pouco mais de 05% dos votos.
De acordo com Mourão, a aspiração do partido não era tanto de uma improvável vitória, mas de começar a solidificar o nome do PT como um partido de defesa dos trabalhadores e o mais importante, derrotar a ditadura expressa, segundo ele, no ex-governador Jorge Kalume.
Outro partido era o PDS, que na verdade era a nova denominação da Arena. Era o partido onde permaneciam os políticos mais conservadores e os defensores da manutenção do cenário desenhado durante o governo dos generais do planalto. O candidato escolhido foi o então senador Jorge Kalume[15], figura tradicional no meio político acreano que obteve mais de 39% dos votos, ficando em segundo lugar na disputa eleitoral.
De tradição trabalhista e tendo sua história ligada ao varguismo, o PTB volta sem sua força anterior a 1964. Acaba abrigando em seu interior muitos políticos que tinham sidos preteridos em outros partidos: por questões de ordem ideológica (no caso do PT) ou por excesso de quadros com maior potencial de votos (PMDB e PDS). O partido trabalhista teve como candidato o coronel do Exército Natalino da Silveira Brito, que ficou em último lugar com pouco mais de 3% dos votos.
O jornal Gazeta do Acre em editorial publicou o seguinte artigo três dias depois das eleições: “O povo compareceu as urnas para votar (ao menos quem pôde),[16] fez uma festa bonita, participou do processo com alegria e com o grau de consciência que lhe é peculiar e possível e, esta festa não pode ser estragada de modo algum por métodos antidemocráticos, como de ganhar eleição no grito”[17].
Ganhar mas não levar. Este receio retratado nas páginas da imprensa à época era realmente uma possibilidade factível de ocorrer com candidatos eleitos pelos partidos de oposição. Pois, em 1978, na eleição para o senado, o ex-governador indicado pelos militares, Jorge Kalume (Arena) acabou assumindo no lugar de Alberto Zaire (MDB). Este após ter sido apontado como virtualmente eleito, no apagar das luzes, em uma única urna no município de Sena Madureira foram “descobertos” 62 votos a favor do candidato da Arena. Foi o escore suficiente para reverter o resultado anterior que lhe era desfavorável.
Realmente, o PDS realmente usou de todos os artifícios para lograr êxito no pleito eleitoral para o senado e o governo do estado, desde boatos de um possível golpe, da impugnação de votos, do uso e abuso do poderio econômico patrocinado pelo planalto e pelos membros do diretório nacional do partido.
Nós não elegemos o nosso tio [Said Farhat] porque, ele veio aqui para o Acre a mando Figueiredo [presidente da República], só para concorrer as eleições e ganhar. Esse homem [Figueiredo] jogou um poderio econômico tão grande, que todo dia chegava um avião carregado de material pra ele [Said] e, não ganhou, quem ganhou foi o Mário Maia [PMDB].[18] Caso ocorresse uma ampla vitória do PDS, as eleições serviriam como um elemento de justificativa da permanência dos defensores do regime militares no poder pois, do ponto de vista do regime, as eleições deveriam funcionar como um expediente de auto-legitimação. E os donos do poder não regatearam esforços e, sobretudo recursos para chegar a este resultado. O casuísmo embutido poucos meses antes das eleições, o rio de dinheiro gasto com a propaganda não foram acionados em vão (...) e, a avaliação deve começar exatamente pelo fato de que o regime não conseguiu legitimar-se, como pretendia, não restando outra alternativa senão ver na oposição um interlocutor com quem está obrigado a dialogar. Se é verdade que se quer fazer deste país uma democracia[19]. Dentro deste quadro eleitoral de continuidade com elementos liberalizantes ainda muito tímidos, o resultado eleitoral foi amplamente favorável ao PDS e ao PMDB, os dois maiores partidos surgidos dos estertores do regime militar. Ambos não só ocuparam quase que totalmente todos os cargos eletivos disponíveis, como também tiveram juntos mais de 80% de todos os votos válidos no Acre.
Apesar do PMDB ter sido vitorioso, a votação obtida pelo PDS foi muito significativa, com percentuais muito próximos aos do PMDB. Para reforçar ainda mais essa afirmação, vejamos alguns dados sobre o resultado eleitoral: Para o cargo de governador, Nabor Júnior e Jorge Kalume tiveram juntos 81,15% dos votos; para o senado, o PMDB e o PDS obtiveram 79,38% dos votos; para a Câmara federal, das oito vagas em disputa, cada partido ficou com quatro cadeiras; e na Assembléia estadual, o PMDB elegeu doze deputados, o PDS onze e o PT elegeu apenas um representante, quebrando a hegemonia bipartidária do PMDB e do PDS.
Talvez isto tenha ocorrido, como afirmamos anteriormente, devido ao fato destes dois partidos terem herdado o espólio do bipartidarismo. Ou seja, tinham em suas fileiras políticos que já possuíam inserção segmentada junto aos eleitores e contavam com uma estrutura partidária mais forte que a dos outros partidos. Para completar este quadro, o PDS ainda mantinha o domínio da máquina do Estado em suas mãos, tanto em âmbito estadual quanto federal, o que influiu de sobremaneira para sustentar a transição negociada.
A permanência obrigatória no poder de políticos do PDS era uma imposição que ocorria fora das disputas eleitorais através dos chamados municípios de segurança nacional. Nestes municípios, os prefeitos eram nomeados e suas respectivas aprovações cabiam ao Ministério do Interior, após sanção do presidente da República. Em 1983, eram ainda 109 municípios enquadrados nesta lei, sendo que 11 no Acre. Em matéria sobre este caso o jornal Gazeta do Acre fez o seguinte relato em seu editorial:
Os lideres do PDS nacional deixaram claro que a convivência da democracia com instrumentos de exceção terá de ser tolerada, na melhor das hipóteses até o fim do governo de João Figueiredo. (...) é de 109 o número de municípios considerados de segurança nacional, impedidos como tal de eleger seus prefeitos. (...) Dentro desse estranho principio de convivência dos procedimentos democráticos com os resquícios do arbítrio caminha-se, na verdade, para um caso típico de intervenção branca em parte dos Estados conquistados pelas oposições. No Acre, só a capital pode ter seu prefeito nomeado pelo seu governador, Nabor corre o risco de só ter jurisdição em Rio Branco. Os outros 11 municípios acreanos são considerados de segurança nacional e isso levar a crer que continuarão nas mãos do PDS. Nabor, no fundo, vai se convencer de que não ganhou coisa alguma.”[20] Na verdade, os municípios considerados de segurança nacional continuaram sendo administrados pelo PDS mas, no caso do Acre, isto não significou problemas e nem conflitos entre o governador e estes prefeitos. Até porque, a fraqueza financeira dos municípios fazia com que estes fossem completamente dependentes do governo estadual e o maior mal que poderia acontecer a um prefeito era se indispor com o governador. Então, predominou a mentalidade governista junto aos prefeitos destes municípios, que também não contavam com uma base legislativa considerável, já que o PMDB elegeu nestes municípios a maioria dos vereadores.
Assim, marcado por estas peculiaridades, este foi o resultado das primeiras eleições diretas após o período de inflexão perpetrado pelos militares. Uma eleição que estava eivada de elementos condicionantes, casuísticos, mas que serviu para produzir um novo quadro político junto com a velha ordem que ainda permaneceu, por algum tempo, presente no interior da democracia tutelada surgida após a ditadura militar.
Na verdade, esse conservadorismo embutido na transição foi e é o preço a ser pago nas democracias negociadas. Com bem afirma Maria Lúcia Barbosa o PMDB foi o grande beneficiado desta situação pois, na ambigüidade da situação, todas as vantagens foram possíveis para o PMDB: de um lado, as do poder em si; de outro, a manutenção diante da massa de uma atitude de oposição, capaz de empolgar o eleitorado sempre desconfiado com a distância e a inoperância dos poderosos. Ser poder e ao mesmo tempo combater o poder, quando isto fosse conveniente, nada poderia ser mais ideal. Diante dessas sutilezas políticas, o povo se abstinha de compreender[21]. 04 - Nabor Júnior: um governo de “participação”? Ao tomar posse em março de 1983, Nabor Júnior recebeu o cargo de governador do então último mandatário designado pela ditadura militar, Joaquim Falcão Macedo. O novo governador em seu discurso afirma ser sem vocação para revanches e perseguições e assegura ainda que mesmo com as dificuldades enfrentadas nos diversos setores da administração pública, o estado precisava crescer e desenvolver-se. Para isso, era necessário um governo de participação, como afirmou em seu discurso de posse.
Mas o que seria um governo de participação? Em sua obra participação e teoria democrática, Carole Pateman ressalta que Charles De Gaulle já utilizava amiúde este slogan nas campanhas políticas. Segundo esta autora, o uso contínuo, generalizado e constante do termo nos meios de comunicação, indicava o desaparecimento de qualquer conteúdo preciso e significativo. “Participação” era empregada por diferentes pessoas, de diferentes linhas ideológicas para se referirem a uma variedade de situações[22].
Este mote da campanha e que passou a compor o “projeto” de governo apresentado logo após a vitória em novembro de 1982. As propostas de ações administrativas foram elaboradas pela equipe de governo através de um documento chamado: Acre — Participação e mudança. Diretrizes de governo: 1983/1986. A coordenação da sistematização das diretrizes ficou a cargo de Adalberto Ferreira da Silva[23] e de mais alguns técnicos de áreas especificas da administração. De acordo com essas diretrizes, o objetivo principal da nova administração era aproximar o povo do governo. Pois após muitos anos de ausência de um governo eleito de forma direta, existia a perspectiva de uma administração que fosse realmente voltada para os reais problemas da população. Que esta população pudesse ter então, voz ativa nas discussões acerca das ações governamentais.
Este propalado discurso de um “governo de participação” serviu para desfocar um novo arranjo entre as forças políticas majoritárias que sempre conduziram a política acreana na base do compadrio, nepotismos e favores através do Estado. Foi a continuidade e permanência de figuras políticas tradicionais no interior dos vários níveis da máquina estatal, estes principalmente no âmbito dos poderes legislativos com seus apadrinhados preenchendo cargos nos escalões inferiores. Eram figuras com uma capacidade enorme de adaptação às situações políticas do momento. Tinham poder de barganha para fazer negociatas e acordos com setores administrativos do governo.
Como bem afirma James Petras[24], as transições de regimes militares para governos civis foram organizadas para consolidar as conformações vigentes e de interesse do poder estatal, não para democratizar a sociedade. E isto estava embutido neste modelo adotado de maneira uniforme no Brasil e em muitos outros países que passavam por processos de transição autoritária.
O que foi proposto e idealizado ficou muito distante daquilo que o governo conseguiu realizar no que se refere à participação popular e de democratização no interior dos aparelhos do Estado. No Brasil a democracia surgida após a democratização tutelada conservou promessas e valores que eram incapazes de se efetivarem por estes “novos governos”. O próprio AI-2 possibilitou isto ao instituir o bipartidarismo no país, criando o MDB e a Arena que mais tarde, serviu de arcabouço para o surgimento do PMDB e PDS. Isto demonstra que estes dois partidos têm como origem a mesma matriz, nasceram no mesmo berço, embora no PMDB a mácula autoritária seja menos marcante por conta do seu ecletismo interno e da presença de muitas pessoas comprometidas com o fim do autoritarismo.
Para Adalberto Ferreira, a necessidade de contemplar interesses diversos através do preenchimento de cargos na administração e a falta de unidade interna contribuiu para que as propostas de governo não fossem viabilizadas da forma como se pretendia originalmente. Pois, como diz ele, alguns secretários de governo não estavam alinhados com as metas estabelecidas nas propostas e isso fez com que se distorcesse a proposta inicial de governo.
Estes problemas internos do PMDB foram um complicador da administração de Nabor Júnior, mas não os únicos. Entretanto, antes mesmo da posse, as correntes políticas que existiam dentro do partido começaram uma luta interna por disputa de cargos e de influência na nova administração. Assim, o governador Nabor Júnior começou a sua administração tentando conciliar os interesses dos três grupos majoritários que existiam dentro do partido: os chamados moderados, os conservadores e os progressistas da Tendência Popular. Estes interesses eram basicamente por divisão de cargos e consequentemente, de influência na nova administração.
Esta observação sobre as divergências internas, em tom de previsão, já tinha surgido antes mesmo da posse, quando o jornal Diário do Acre questionava se essa capacidade de aglutinação e conciliação com esses setores não seriam um entrave da administração. Eis o conteúdo de uma matéria publicada no dia 15 de março de 1983:
Sob o ponto de vista político não podem os dizer que o Sr. Nabor Júnior vem com muitas esperanças para a população acreana, até mesmo para os seus seguidores do PMDB. Até agora o que se viu foi uma guerra surda nas hostes peemedebistas, onde a Tendência Popular encabeçada pelos senadores Aluízio Bezerra e Mário Maia fazem frente aos conservadores e a ala moderada do partido. Na divisão do bolo administrativo a Tendência Popular levou nítida vantagem, graças a acordos que teria feito com o governador.
Acontece que pelas próprias tradições do Sr. Nabor Júnior, como pela própria índole do acreano, dificilmente a ala progressista do partido poderá adubar as sementes que plantou e mesmo que o faça, os moderados não haverão de permitir, por uma questão de sobrevivência política, sua germinação (...). O compromisso doravante é do PMDB e os compromissos populares hão de ser cobrados, senão imediatamente, pelo menos daqui a quatro anos quando poderemos afirmar se a oposição cumpriu o que prometeu ou foi mais uma administração onde a tônica foi a insatisfação da grande massa popular por deficiência em vários setores da vida pública estadual[25]. Fazendo uso da mesma linguagem alegórica, a verdade é que as “sementes plantadas” pelos chamados progressistas da Tendência Popular não nasceram. Em seu lugar brotaram ervas daninhas travestidas de progressistas, que gradativamente foram alijando os antigos aliados de dentro dos quadros administrativos ao longo dos quatro anos de governo. Pessoas de dentro do próprio PMDB — como o ex-secretário de planejamento Adalberto Ferreira —, também acham que o arranjo conciliatório e as acomodações feitas em virtude de compromissos eleitorais e partidários, marcaram de maneira negativa o governo do PMDB que tantas esperanças tinha prometido e gerado.
Além desses acordos com políticos na alta cúpula do partido, era necessário também resolver promessas de campanha com os militantes e cabos eleitorais do partido que trabalharam nas eleições. A chamada divisão do bolo, ou seja, das secretárias da administração direta e indireta proporcionou, além da acomodação de correntes divergentes, que se estabelecesse uma relação de barganha e apadrinhamento que levaram a um aumento considerável de servidores públicos do Estado e consequentemente elevação e comprometimento de gastos com o funcionalismo.
As disputas internas não deixaram de ser uma constante, redundando muitas vezes em demissões de secretários e membros do segundo escalão. Até mesmo confrontos entre parlamentares do partido ocorriam comumente, como atesta o discurso proferido na Câmara municipal de Rio Branco pelo vereador Adauto Paiva — que pertencia à ala conservadora — contra o deputado e vice-líder do governo na Assembléia Legislativa Manoel Pacífico. Para o vereador, Manoel Pacífico era “invasor, desestabilizador da imagem do governador Nabor Júnior e culpado da marginalização de um governo eleito pela vontade popular, por suas ações extremistas e perigosas ao regime.”[26] O rótulo de “invasor” e “extremista” explicita bem o sentimento que as figuras conservadoras do partido tinham em relação aos comunistas que permaneciam dentro do PMDB.
O primeiro governador eleito após quase duas décadas de ditadura militar, não conseguiu implementar na sua administração um espírito de equipe de governo coesa porque esta internamente estava cindida entre interesses mais imediatos de facções e pessoas influentes do partido e aqueles que realmente imaginavam construir algo mais participativo, que eram uma minoria. Portanto, estes fatores intrínsecos a prática política de muitos peemedebistas, contribuíram para que a administração do PMDB fosse marcada por diversas facetas, menos a de “participação”.
Na verdade, o período conhecido como transição, conservou em seu bojo elementos de uma nova democracia que engatinhava com os resquícios da ditadura que permaneciam. O PMDB, como partido, privilegiou esta democratização tutelada em lugar de lutar por uma ampla transformação social. Na verdade, o que ocorreu foi uma democratização que embora extremamente necessária, foi signatária e expoente das forças majoritárias que a compunham. Suas fronteiras ultrapassaram apenas os tênues limites do formalismo. Faltou democracia com um conteúdo mais amplo, mas isto não era projeto político das forças majoritárias que ascenderam ao poder no início da década de oitenta. [1] Aluno do curso de Pós-graduação em História da UFPR (doutorado). Professor Assistente do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre - UFAC [2] A “primeira onda” ocorreu na última metade do século XIX e início do século XX e a “segunda onda”, após a Segunda Guerra Mundial. Cada uma entremeada por períodos de reversão democrática. HUNTIGTON, Samuel. A terceira onda: A democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994. [3] Abrahim Farhat Neto foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no Acre. Fez parte do 01º Diretório Nacional do PT e foi candidato ao senado nas eleições de 1982. Entrevista concedida em 28/10/97. [4] Nilson Moura Leite Mourão é Sociólogo, professor universitário e foi candidato ao governo estadual pelo PT em 1982. Atualmente exerce o terceiro mandato de deputado estadual pelo PT. Entrevista concedida em 21/11/97. [5] KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. São Paulo: Scritta editorial, 1991 [6] Varadouro, ano II, nº15, p. 03, junho de 1979. [7] PMDB acreano nasce fedendo a adesismo. Varadouro, ano II, n.º 17, p. 03, dezembro de 1979. [8] General João Baptista de Figueiredo, que assumiu no dia 15/03/79. [9] Em dezembro de 1979 é aprovada a Lei 6.767, que extingue o bipartidarismo e estipula um prazo de 180 dias para as novas formações partidárias. [10] No Acre, o caso mais notório de aplicação da LSN aconteceu em 1981, alguns dias após o assassinato do sindicalista Wilson Pinheiro. Em um comício em Brasiléia, Luís Inácio Lula da Silva, Jacob Bittar, José Francisco (pres. CONTAG), João Maia (delegado da CONTAG) e Chico Mendes, foram acusados pela auditoria militar do Amazonas de incitamento à luta de classes. Ver Varadouro, nº 23, p. 03. Ano IV, ago/set de 1981. [11] Manoel Pacífico foi eleito deputado em 1982 pelo PMDB e pertencia a corrente de esquerda Tendência Popular. Formado em Filosofia, foi dos quadros do PC do B. Entrevista ao jornal O Rio Branco, p. 03, de 05/09/82. [12] Fontes: Almanaque Abril 1982 e Tribunal Regional Eleitoral - TRE/AC. [13] Movimento Revolucionário 08 de outubro. [14] Deputado estadual entre 1962 e 1974, deputado federal de 1974 até 1982 e governador até 1986, quando renunciou para ser candidato ao Senado da República onde exerceu o mandato de senador pela segunda vez. [15] Deputado federal de 1961 a 1966, governador de 1966 até 1971, senador de 1978 até 1986 e prefeito de Rio Branco de 1988 a 1992. [16] O índice de abstenção foi de 15,77%. [17] O povo merece. Gazeta do Acre, p, 03, de 18/11/82. [18] Abrahim Farhat em entrevista citada. [19] Ainda o resultado. Gazeta do Acre, p. 03, de 03/12/82. [20] O limite do poder das oposições. Gazeta do Acre, p. 03, de 07/12/82. [21] BARBOSA, Maria Lúcia Victor. O voto da pobreza e a pobreza do voto: A ética da malandragem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988, p. 81. [22] PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 09. [23] Adalberto Ferreira da Silva, economista e professor universitário. Foi secretário de planejamento do governo de Nabor Júnior. Entrevista realizada dia 16/12/97. [24] PETRAS, James. Ensaios contra a ordem. São Paulo: Scritta editorial, 1995, p, 21. [25] Jornal Diário do Acre, p. 03, de 15/03/83. [26] O vereador se referia a dois fatos. 1) Devido o deputado ter exigido que apurassem as denúncias de irregularidades nas Secretarias de Saúde, Segurança, Deracre e Colonacre; 2) Relacionado às posições ideológicas do deputado Manoel Pacífico que pertencia ao PC do B. Jornal O Rio Branco, p. 03, de 09/10/83. Estes acontecimentos levam M. Pacífico renunciar a vice-liderança do governo na Assembléia no dia 26/11/83.

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO: O Palácio de Juramidam: Santo Daime um ritual de transcendência e despoluição (MONTEIRO, Clodomir)

Para ler a dissertação completa:

terça-feira, 23 de setembro de 2008

A REVOLUÇÃO ACREANA E A GÊNESE DO POVO ACREANO

OBS: Fragmentos da dissertação de Mestrado: O DISCURSO FUNDADOR DO ACRE (CARNEIRO, Eduardo)
Não podemos nos esquecer que antes da Revolução não havia acreanos, mas tão somente brasileiros do Acre. E foi durante essa luta que surgiu nossa identidade como povo. (VIANA, Jorge. In: CALIXTO, 2003). Esta identidade, bastante fraca, contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob uma máscara é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam (FOUCAULT, 2001, p. 34). O Acre constituiu-se no final do século passado, como uma unidade de território, povo e Estado (VIANA, Jorge. In: Revista Galvez e a República do Acre, 1999)
A história oficial afirma que os brasileiros do Acre foram movidos pelo patriotismo quando resolveram se unir para “expulsar” os bolivianos daquelas terras. Então, nesse caso, o patriotismo foi o motivo e, a guerra, o acontecimento mobilizador da comunhão. Mas realmente houve um consenso entre os acreanos em relação à Revolução Acreana? Teria ela significado a mesma coisa para todos os que nela se envolveram? É provável que não.
O discurso histórico fez da revolução o exemplo constituinte da unidade do povo acreano, no entanto, é inegável que durante todo período revolucionário, de José Carvalho a Plácido de Castro, sempre houve dissidentes - aqueles que apoiavam o governo boliviano; opositores – aqueles que desejavam esperar a intervenção direta do governo brasileiro na questão; indiferentes – aqueles que, mesmo sabendo da insurreição, preferiram não fazer parte dela; e desinformados, aqueles que nem ao menos tomaram conhecimento da revolução.
Em maio de 1899, José Carvalho, o líder da chamada “primeira insurreição acreana" (REIS, 1936, p.15), dispôs-se a colher o máximo de assinaturas num Manifesto a favor da expulsão do governo boliviano da região. No entanto, apesar de todo o esforço do revolucionário, não conseguiu sessenta rubricas. Por que o restante do “povo” não assinou? O motivo não pode ser explicado simplesmente pelo analfabetismo.
Com Galvez não foi diferente. O Estado Independente nunca foi consenso, até porque se tratou de um projeto “partejado” (cf.: BARROS, 193, p. 39) com o apoio de alguns poucos seringalistas de expressão da região do baixo Acre. Desde os primeiros meses de seu governo, o espanhol teve que combater “energicamente todos os focos de agitação” (TOCANTINS, 2001, p.349).
Vários grupos se insurgiram: o liderado pelo coronel Neutel Maia, do seringal Empresa; o do Capitão Leite Barbosa, de Humaitá; e a da Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros; do Alto Acre. Além do mais, segundo Tocantins, “as pessoas de maior destaque [de Xapuri] não haviam aderido ao Estado Independente” (idem, p. 350). Isso sem dizer do Juruá, que no geral nem sequer tomou conhecimento dos decretos expedidos por Galvez. De Xapuri, Galvez receberia ofício assinado por Manoel Odorico de Carvalho, auto-intitulado Prefeito de Segurança Pública pela vontade soberana do povo, comunicando que, no alto Acre, a população resolvia não aderir a essa revolução sem primeiro ouvir a decisão do governo brasileiro [...] Somava-se a este movimento dissidente do Alto Acre, um outro que, sob a denominação de Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros, procurava, de todas as formas, minar o governo provisório. No baixo Acre, para completar, havia, ainda, a propaganda anti-governo provisório, liderado por Neutel Maia do seringal Empresa e pelo Capitão Leite Barbosa, do seringal Humaitá, este último outrora ativo colaborador na administração Paravicini. (CALIXTO, 2003, p. 162) [grifo nosso]. A famosa Expedição dos Poetas é o exemplo clássico da desunião. Ela partiu de Manaus em fins de 1900 com o objetivo de expulsar os bolivianos que regressaram à região após a derrocada do governo de Galvez. “As divergências sempre surgiam, a toda hora, por falta de unidade de comando” (MEIRA, 1974, p. 57).
O próprio Plácido de Castro se queixou da dificuldade em arregimentar voluntários. E isso é mencionado por Azcui (1925), como prova de que os acreanos eram de modo geral pacíficos em relação ao governo boliviano. É o próprio Plácido de Castro quem diz “todos declaravam que empenhariam o melhor da vida, mas ninguém queria ser o primeiro” (CASTRO, 2002, p.55); “os proprietários tudo prometiam, mas em verdade mostravam-se receosos” (idem, p.57). Al estalhar la conflagración separatista, el Acre contaba con más de treinta mil habitantes, mostrándose case la totalidad indiferente a lo que ocurría, de tal modo que los promotores de la revueta, para hacer consentir en su popularidad expedían despachos de coroneles a granel, sin que por ello lograsen el concurso de los agraciados, porque el ideal de los acreanos era el de continuar como hasta entonces, sin freno a sus desmanes ni autoridade que los gobernase, imperando entre ellos los de mayor fuerza física o institinos sanguinarios más deprazados (AZCUI, 1925, p. 45). [grifo nosso].
No tenían la suficiente preparación, ni combatían en defensa de un sagrado derecho, conscientes de la justicia que les asistiera; mercenarios recolectados en los antros del vicio y la miseria, trabajandores obligados por sus patrones a batirse y perder la vida pro una causa ignorada por ellos, lógicamente, debían perder la moral ante individuos patriotas que abandonaron las fruiciones del hogar por acudir en amparo de nuestra integridad territorial” (idem, p. 97) [grifos nossos]. É Plácido de Castro quem toma as providências para que todos os acontecimentos do dia 6 de agosto de 1902 fossem devidamente documentados. Uma ata da proclamação do Estado Independente do Acre foi redigida e 20 cópias dela foram enviadas “rio abaixo”. Castro acreditava que com essa medida “se alguém franqueasse, não pudesse recuar, visto se haver comprometido com a assinatura da ata” (CASTRO, 2002, p.58). Enfim, o coronel conhecia bem as “convicções revolucionárias” de seus comandados. Por isso, teve que liderá-los “pela espada e pelo revólver” (ibidem, p. 60).
A unidade dos acreanos em torno da Revolução Acreana foi "tão grande" que Plácido de Castro inicia sua campanha com apenas 33 seringueiros-soldados (cf.: idem, p. 56). E no auge da guerra esse número não ultrapassou a casa dos 2.000 (cf.: GOYCOCHÊA, 1973, p. 118).
A população “branca” na região das margens do rio Acre foi estimada em: 15.000 habitantes, por Tocantins (2001, p. 191); em 25.000, pelos próprios chefes da Revolução (BRAGA, 2002, p.15. Cf.: CABRAL, 1986, p.35); em 50.000 por Hernán Messuti (1997, p. 54) e em 100.000, por Craveiro Costa (2005, p.219).
Se for levado em consideração esse último número, significa dizer que menos de 2% da população local verdadeiramente empunharam armas contra os bolivianos. Essa paupérrima porcentagem dispensa comentários. E é por que a região do Juruá, que sofreu apenas “ecos” do movimento, não foi considerada.
Até hoje não se tem provas que confirme o envolvimento da maioria da população do Acre na chamada Revolução Acreana. É quase certo que essa “espinhosa questão” (ROCHA, 1903, p.5) não tenha sido unanimidade. Por outro lado, é pouco provável que aqueles que nela se envolveram, tenham feito isso pelos mesmos motivos.
A revolução acreana não teve o mesmo significado para cada segmento social nela envolvido. “Cada segmento se relaciona com a guerra por motivos e interesses bastante particulares” (MICELI, 1994, p. 78). Como diria Paul Veyne em relação à revolução francesa: “Waterloo não foi a mesma coisa para um soldado e um marechal” (1982, p. 12).
A “questão acreana” foi sustentada por múltiplos interesses. O governo do Amazonas queria garantir a arrecadação dos impostos. Os seringalistas queriam garantir suas propriedades privadas e a manutenção do lucro gomífero. Os profissionais liberais sonhavam em assumir importantes cargos públicos. E os seringueiros pretendiam quitar suas dívidas e, quem sabe, ter saldo ou comprar o seu próprio seringal ou voltar à sua terra natal. Desnecessário dizer que os interesses aqui mencionados foram os que prevaleceram em cada segmento social, o que não quer dizer que outros não tenham existido.
O Acre enquanto comunidade carecia de unidade, isso é um fato. Mas, então, o que existia em comum entre aqueles brasileiros do Acre? Seria o território? Com certeza não, pois as fronteiras só foram plenamente consolidadas em 1909. Seria a língua? Não, naquela região existia de tudo: do espanhol aos dialetos indígenas. A cultura? Não, as mais diversas tradições estavam ali representadas pelos nordestinos, gaúchos, sírios, libaneses, franceses, bolivianos etc.
Apesar de todo esforço dos chefes da revolução, o que parece é que a unidade foi uma construção discursiva póstuma. Não havia nada forte o suficiente que ligassem aqueles migrantes, a não ser a ambição pelo “ouro negro”. Naquela realidade social era impossível qualquer sentimento de solidariedade e comunhão entre seringueiro e seringalista. A unidade ganhava forma e tornava-se “sólida” somente no e pelo discurso. E como diria Bauman: Como todos os fluídos, eles não mantém a forma por muito tempo. Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluídos em uma forma requer muita atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável (2001 p. 14, 15).

domingo, 21 de setembro de 2008

Família de Chico Mendes teme que seus ideais sejam esquecidos

FOLHA DE SÃO PAULO, 21-09-2008 DA ENVIADA ESPECIAL A XAPURI
À beira do rio Acre, a casa onde Chico Mendes viveu é preservada como no final da tarde em que ele foi assassinado, 20 anos atrás. Até o dominó que ele jogava é mantido sobre a mesa da cozinha, e manchas de sangue ainda podem ser vistas nas paredes de madeira. O livro de visitas do museu registra a passagem de pessoas de outros Estados e países. Entre os conterrâneos de Chico Mendes, no entanto, há divergências sobre a sobrevivência de seus ideais em Xapuri e na floresta.
"Era para ser uma memória muito viva, mas vale o ditado de que santo de casa não obra milagre. Aqui prevaleceu o conceito de destruir para desenvolver, inclusive dentro da própria reserva", observa Raimundo Mendes de Barros, primo do líder seringueiro. Ele mora na reserva extrativista Chico Mendes e disputa vaga de vereador em Xapuri, nas eleições de outubro.À frente da fundação que preserva a memória do pai, Elenira, 24 anos, se preocupa com os mais jovens.
"Aos 17, 18, 19 anos, muitos jovens de Xapuri não sabem quem foi Chico Mendes". A fundação exibe uma cópia de carta dirigida pelo líder ao "jovem do futuro", de um ainda longínquo 6 de setembro de 2120, data de aniversário de uma "revolução socialista mundial" sonhada por ele.Elenira se ocupa dos efeitos das queimadas sobre o clima na região. Ao lado dela, a mãe, Ilzamar diz que é preciso dar atenção também aos seringueiros mais velhos. "Realmente, há muito o que ser trabalhado", insiste a viúva de Chico Mendes.

quinta-feira, 18 de setembro de 2008

Indicação de livro: História no vestibular (FALCÃO, Antônio)

O História no Vestibular foi publicado em 2003 pela editora Ciência Moderna e contém mais de 800 questões resolvidas. Cada tema é introduzido com uma sinópse, depois o autor responde e comenta algumas questões de vestibular, depois vem uma série de questões com gabaritos. O livro é muito bom e possui quase 900 páginas.
Leia o que o autor diz:
"Este livro foi elaborado visando a suprir a carência de uma obra específica para o vestibular. Atendendo alunos de todo o Brasil, a obra apresenta uma síntese do conteúdo histórico, questões resolvidas e propostas, além de um textos complementar que enfoca um aspecto importante de cada unidade [...]"
Prof°Antônio César Esteves Falcão.
ONDE COMPRAR:
Livraria Saraiva:
Livraria Submarino:
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Nós compramos na livraria Saraiva... boa leitura!!!

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Indicação de livro: BAUMAN, Zygmunt. MODERNIDADE LÍQUIDA

Ser leve e líquido
A nova, de diversas formas, modernidade tem semelhança com os fluidos. Ela não se atém a qualquer forma e está sempre pronta e propensa a mudar. Apesar de a modernidade, desde seu começo, constituiu-se em um processo liquefação das instituições, antes estava mais vinculada ao repúdio da tradição, eliminando as obrigações sem relevância que dificultavam o cálculo racional. Essa característica da primeira modernidade possibilitou a dominação da racionalidade instrumental e o papel dominante da economia na constituição de uma nova ordem social. Essa idéia de construção de uma nova e melhor ordem já não está no horizonte da ação política. Aqueles poderes de liquefação, antes no nível marco do sistema e da política, agora passaram ao nível micro da sociedade e da política da vida.
Nesse contexto, a flexibilidade que o tempo adquiriu e o acesso a rápida mobilidade transformaram-se em ferramentas de dominação e poder, o qual se tornou extraterritorial. É o fim do secular Panóptico e sua era de engajamento mútuo entre capital e trabalho, permitindo o surgimento de “senhores ausentes”, que se movem leves e confiantes da desnecessidade de se ocupar com a responsabilidade de administração, gerenciamento e bem-estar. Hoje, são os poderosos que evitam o durável, enquanto a base da pirâmide luta por suas frágeis e transitórias posses. Para que o cenário permaneça, o mundo deve estar livre de barreiras e fronteiras. 1 Emancipação
Nas décadas gloriosas após a Segunda Grande Guerra, Marcuse se questionava quanto à ausência de uma base de massas desejosas de libertação. É que as pessoas sentem-se livres quando há um equilíbrio entre imaginação, desejos e capacidade de agir, e quando isso ocorre, “libertação” é um slogan sem sentido. Os filósofos então se atormentavam com a questão de que as pessoas talvez simplesmente não quisessem ser livres.
O questionamento se a libertação é uma benção ou maldição pode ser respondido tanto como um desvelo do homem comum pela liberdade, por ser enganado ou por não querer assumir responsabilidades, quanto pela aceitação de que talvez a liberdade não traga tantos benefícios, pois não seria garantia de felicidade. Essa última análise deriva da visão hobbesiana do “homem à solta”, idéia reforçada por Durkheim, que afirmou que a submissão do indivíduo à sociedade é uma espécie de “dependência libertadora”, pois a ausência de normas criaria um estado de incertezas que faria da vida um inferno.
Porém, hoje o indivíduo já ganhou toda liberdade que poderia esperar, pois somos seres reflexivos, engajados na “política-vida”, porém sem que essa reflexão alcance os verdadeiros mecanismos que conectam e determinam nossos movimentos, impedindo uma autêntica auto-afirmação. Uma visão crítica atualizada dessa situação deve avançar em relação à teoria crítica clássica, que estava embutida em uma modernidade sólida e tendente ao totalitarismo. Aquela modernidade pesada, identificada com o sistema de controle da fábrica fordista, reduzia a atividade humana a movimentos mecânicos e repetitivos, conduzida aos moldes do Panóptico. Nesse contexto, a teoria crítica buscava a liberdade de escolha em ser e permanecer diferente, sem pretender ultrapassar esse propósito.
Afastados os demônios do totalitarismo, muitos se apressaram em anunciar o fim da modernidade, esquecendo-se que aquela sociedade diagnosticada pela teoria crítica era apenas uma das formas que a sociedade moderna assumiu. Nesse sentido, a sociedade de hoje é tão moderna quanto à de um século atrás, pois continua na busca insaciável por “limpar o lugar” em nome de um “novo e aperfeiçoado” projeto. Entretanto diferencia-se por duas características específicas: o colapso da ilusão moderna de que há um telos, um tipo de sociedade justa ideal alcançável; e a desregulamentação e privatização de tarefas e deveres de modernização.
Nesse novo mundo, indivíduos encontram apenas outros indivíduos, assumindo total responsabilidade por suas decisões, o quem vem a ser a marca registrada da nova modernidade. Essa individualização significa que a “identidade” é algo construído, uma tarefa cujas conseqüências são de responsabilidade de cada um. Na modernidade sólida, a auto-identificação se dava por meio da conformação a certa classe, o que favorecia o coletivismo, pois os elementos em comum projetavam-se sobre a gama de escolhas do indivíduo. Agora, a individualização não é uma escolha e, enquanto os riscos continuam a ser socialmente produzido, seu enfrentamento é fragmentado, criando um abismo entre a individualidade como fatalidade e como verdadeira capacidade de auto-afirmação.
A sensação de impotência, ainda que com liberdade, induz à tentativa de resgate de um passado de marcha ombro a ombro, mas que hoje já não tem função, porque as aflições agora são não-aditivas, não podendo ser condensadas em interesses compartilhados. Assim, o indivíduo passa a ser o pior inimigo do cidadão, porque enquanto o cidadão deve buscar a causa e o bem comum de uma sociedade justa, vê-se que tal objetivo é incompatível com um mundo onde os benefícios do trabalho conjunto são inferiores à busca individual, levando à corrosão e desintegração da cidadania. Esse processo faz com que o espaço público seja preenchido por preocupações dos próprios indivíduos, transformando o interesse público apenas na curiosidade sobre as vidas de pessoas públicas.
Por outro lado, há um crescente déficit entre a condição de indivíduos de jure e de facto, impedindo que o mesmo controle seu destino, situação que somente pode ser superada por meio do resgate da cidadania e da atuação na Política com P maiúsculo. É que, ao revés de haver uma colonização do público pelo privado, conforme preocupações da teoria crítica clássica, o que vem ocorrendo é o contrário, sendo o espaço público o lugar onde se faz a confissão de segredos privado e onde há cada vez menos questões verdadeiramente públicas. Enquanto isso, o verdadeiro poder passa ao largo dos governos e parlamentos, situando-se nas redes eletrônicas. É essa a situação posta à teoria crítica, que deve auxiliar no redesenho e repovoamento da quase vazia ágora, permitindo o reaprendizado pelos indivíduos das capacidades perdidas da cidadania. Todavia, com exercer essa tarefa de maneira a tornar-se compreensível sem deturpar seu conteúdo?
O problema passa pela escolha de um envolvimento político ou o radical distanciamento da prática política. A visão da filosofia como um objeto de ação dos filósofos, sem intercâmbio com o mundo real, não parece adequada, e o desengajamento político cheira a traição. Tal ponte política deve ser enfrentada, ainda que com os riscos inerentes ao processo, buscando-se suavizar a passagem da filosofia para o mundo. De qualquer forma, sendo a política o elo entre os valores universais e a realidade social, a relação com o Estado passa a ser um dilema de formação.
Nesse contexto, a teoria crítica clássica está a ponto de perder seu objeto, o que não significa a perda de seu significado, pois a emancipação ainda está à espera, o que passa pelo abismo entre a individualidade de jure e de facto. Aquela teoria esperava que o perigo fosse a colonização do privado pelo público, descuidando da possibilidade da invasão inversa. Esse processo imprevisto leva ao desaparecimento da política e à impotência da liberdade individual, que hoje precisa de mais e não menos da “esfera pública” e do “poder público”. 2 Individualidade
“Admirável Mundo Novo” e “1984” foram duas obras características da modernidade sólida, sendo que o pesadelo que as ligava era a previsão de “ausência do controle das nossas próprias vidas”. Os autores não podiam imaginar um mundo sem mesas de controle. Naquela primeira modernidade, contexto social da elaboração dos livros, o mundo era dominado pelos administradores das empresas capitalistas, cuja visão alimentava a formação do mundo e do discurso dominante, cuja ordem e regulação se sobrepunham à totalidade da experiência vivida. Naquele estágio, o capital estava fixado ao solo tanto quanto os seus trabalhadores. Todavia, hoje, na modernidade líquida, ele pode saltar a qualquer ponto do caminho, está livre do território, permanecendo o trabalho, contudo, tão imobilizado quanto antes.
Weber previu que haveria o triunfo da “racionalidade instrumental”, o quer tornaria as pessoas obcecadas com os meios. Entretanto, tal previsão não se confirmou, porque hoje as angústias estão mais voltadas, na verdade, às escolhas de objetivos. Essas escolhas são dificultadas pelo fato de que o mundo agora possui um gigantesco universo de possibilidades, o que, apesar de ser divertido, não permite saber se a decisão foi correta ou equivocada, em uma bênção mista de alegria e dúvida. Aquele capitalismo pesado, ao estilo fordista, era determinado pelas autoridades.
O leve, por sua vez, não aboliu as autoridades, mas permitiu a co-existência de tantas que elas se auto-anulam. Assim, programas de TV trazem a público assuntos que antes eram ocultos nas vidas privadas, tornam o indizível dizível, em um ritual de exorcismo que permite agora falar de coisas que estavam destinadas ao sofrimento silencioso. Questões desse tipo têm levado ao desaparecimento da “política como a conhecemos”, pois problemas privados, ainda que apresentados publicamente, não deixam de ser privados, ao mesmo tempo em que expulsa questões públicas verdadeiras. Tal fenômeno ocorre porque o que buscamos hoje são exemplos e não líderes. Assim agimos na esperança de que o conhecimento das experiências de outros indivíduos nos auxilie na tarefa solitária de autoconstrução.
O próprio caminho, e não o prêmio ao fim da caminhada, passa a ser o objetivo, situação cujo arquétipo é a atividade de comprar, o código que povoa a “política-vida”. Precisamos ser mais competentes, e cada vez que o fazemos vamos “às compras”, cuja lista é imensa, envolvendo-nos em torno do papel de “consumidores” e não de “produtores”. Como produtores, na modernidade pesada, precisávamos apenas estar “conforme” às normas, no mesmo nível de nossos “vizinhos”. Como consumidores, somos orientados pelos desejos e quereres voláteis e ninguém é referência para o nosso sucesso.
Passamos a ser guiados por um ideal de aptidão, quando antes o padrão era a saúde, e nosso corpo agora é uma “fortaleza sitiada”, o que nos leva a uma obsessão de comprar nossa defesa e não à abstinência e renúncia. Além disso, tentamos construir e moldar nossa vida como uma “obra de arte”, tarefa que busca a criação de uma “identidade”. A identidade (dos outros), à distância, sempre parece sólida, mas a nossa, experimentada, vivida, somente se mantém com o adesivo da fantasia. Em razão dessa instabilidade das identidades, o caminho para essa realização é determinada pela nossa capacidade de “ir às compras”, de ter acesso às infinitas escolhas. A partilha coletiva dessa experiência absolutamente individual passa a ser condição necessária da vida.
É uma tarefa em certo sentido coletiva, mas que deve ser realizada por cada um em condições diferentes, induzindo à competição e diminuindo a capacidade de cooperação e solidariedade. Mudamos, assim, de uma sociedade do Panóptico para o Sinóptico, onde os espetáculos substituem a supervisão, sem perder o poder de disciplina. Nessa sociedade, os despossuídos não têm mais para aonde desviar os olhos da liberdade tentadora das telas, fazendo com que quanto mais escolhas tenham os ricos, menos suportável se torna a vida. 3 Tempo/Espaço
Comunidades hoje são definidas pela defesa e controle de suas fronteiras e não mais por seu conteúdo, mantendo a separação nos lugares de convivência. Por outro lado, a vida na cidade requer a habilidade da “civilidade”, que é a atividade das pessoas estarem juntas, em um ato de engajamento e participação nos espaços públicos, uma tarefa compartilhada para o bem comum sem a obrigação de retirada da máscara social ou de expressar sentimentos e angústias. Hoje diversos espaços cumprem a função, porém sem se aproximarem do modelo ideal.
Os centros de consumo, por exemplo, referem-se a uma tarefa individual, constituindo-se lugares onde as pessoas são chamadas a descartar seus laços, aonde elas não vão para socializar-se, pois carregam consigo as companhias que querem gozar. Cria-se um sentimento de conforto, com a suposição de que “somos todos iguais” e de que “temos a mesma intenção”, como se fizéssemos parte de uma comunidade, porém evitando que possamos nos confrontar com a diferença, a alteridade do outro, um modo diferente de viver. Esse processo de afastar o diferente, de evitar a chance de encontrarmos estranhos, segundo Lévi-Strauss, utiliza duas estratégias: antropofágica e antropoêmica; a primeira visando à aniquilação dos “outro” e a segunda a suspensão de sua alteridade. Podem-se acrescer ainda os não-lugares e os espaços vazios.
Os primeiros possuem a característica pública, porém claramente não-civis, como o La Défense, em Paris, cuja estrutura faz com que os estranhos tenham presença meramente física, dispensando o domínio da civilidade. Espaços vazios são aqueles em que, por se constituírem áreas habitadas por pessoas totalmente “outras”, são apagadas de nossos mapas mentais, cuja exclusão faz os demais lugares se encherem de significado. Esse afastamento da arte da civilidade, da capacidade de interagir com o estranho sem que a diferença seja utilizada de forma desconfortável, é a característica dessas categorias. Isso porque essa capacidade de interação com o “diferente” não se obtém facilmente, senão com estudo e exercício, enquanto a incapacidade de enfrentar a pluralidade se autoperpetua e se reforça.
A principal forma de se garantir a fuga para um “nicho seguro” quando “ninguém sabe falar com ninguém” é a origem étnica, que tem ares de “natural”, onde “todos são parecidos com todos” e a “fala é fácil”. Assim, a política passa a ser uma valorização da “identidade” em detrimento dos “interesses comuns”, importando o que se é e não o que se faz. É a patologia do espaço público e conseqüentemente da política, com o esvaziamento do diálogo e da negociação.
A modernidade é a história do tempo, é o tempo em que o tempo tem uma história. Antes, a relação das pessoas com o tempo e o espaço se dava nos limites do wetware - humanos, bois, cavalos - e o uso de qualquer dessas alternativas não fazia uma diferença substancial, tornando todos mais ou menos semelhantes. Mais à frente, a modernidade do hardware, onde homens passaram a construir novas formas de transporte, permitiu a manipulação do tempo, tornando os humanos diferentes, pois agora alguns podiam chegar onde queriam bem antes dos outros. Nessa era da modernidade pesada, o poder baseava-se na territorialidade e no princípio do “quanto maior, melhor” – maiores fábricas, imóveis, países.
A rotina normatizada, como meio de controle, criada para o trabalho, o prendia ao solo. Porém, da mesma forma, os prédios e maquinários também acorrentavam o capital e, ainda que pretendesse ser o controlador, estava por esse fato limitado. Contudo, no capitalismo de “software” de hoje, nessa nova modernidade “leve”, o espaço pode ser atravessado em “tempo nenhum”, cancelando a diferença do longe e do perto, desvalorizando o espaço e desprivilegiando qualquer lugar em específico. Quem tem o domínio desse novo tempo e se movem com rapidez, mandam, e os que permanecem presos ao lugar, obedecem.
Assim, o capital finalmente de desvinculou das responsabilidades com um lugar, podendo, agora descorporificado, viajar esperançoso e confiante, enquanto o trabalho, como antes, é irrealizável isoladamente. Entre as empresas, as fusões e a redução do tamanho passaram a ser a regra, fazendo com que cada um lute pela sobrevivência, tornando desnecessária qualquer supervisão, pois o receio de ser ultrapassado é o suficiente para manter a disciplina.
O capital, assim, busca a gratificação ao mesmo tempo em que evita as conseqüências de suas ações. Além disso, a cultura de nossos tempos desconsidera o passado e não acredita no futuro, dificultando as pontes culturais e morais entre transitoriedade e durabilidade e impedindo a assunção de responsabilidades de longo prazo. Essa inflexão do capitalismo pesado ao leve, da modernidade sólida para a fluida, pode ser ainda mais radical que o próprio advento da modernidade e do capitalismo. 4 Trabalho
Havia antes uma fé no progresso da história. Uma confiança de uma marcha em direção a uma vida melhor. Hoje, porém, há uma percepção de não existe uma “agência” capaz de mover o mundo pra frente, e o progresso vem sendo questionado junto com sua soberania, credibilidade e confiabilidade, demonstrando a fadiga do Estado. Ainda que as instituições da modernidade sólida permaneçam, o poder é tirado da política, pois flui em redes deslocalizadas. No capitalismo pesado, o trabalho, era visto como meio de aumento de riqueza e valorizado pela sua contribuição à manutenção da ordem e ordenação do destino humano. Porém agora, no mundo humano labiríntico, o trabalho já não tem aquele significado, constituindo apenas um episódio isolado como o resto da vida, sendo os atos de trabalho mais parecidos como estratégias de um jogador, que estabelece objetivos de curto prazo.
O trabalho perde sua centralidade, esperando-se que seja satisfatório por si mesmo e não pelos resultados para a humanidade, para a nação ou futuras gerações. Difere-se da modernidade sólida, na qual havia a pretensão de se ordenar a rotina de forma a evitar o acidente e a contingência, fazendo com que tudo se aperfeiçoasse e se tornasse mais útil e eficaz. Naquele mundo, o uso do nome de Ford era apropriado, principalmente pela intenção de se atar o capital ao trabalho em um casamento divino: os trabalhadores precisavam do emprego; o capital dependia dos empregados para produção e crescimento. Isso mudou, e a nova mentalidade é de casamentos de curto prazo, onde “flexibilidade” é slogan principal.
Ainda que antes também houvesse incertezas, hoje elas são de natureza diferente e apontam para um fenômeno novo de “individualização” das biografias, que divide e turva a idéia de um “interesse comum”, o qual perde seu valor prático. Em um sentido mais amplo, a liberdade do capital resulta em efeitos para a política, pois as instituições locais competem com a velocidade quase instantânea dos atores capitalistas, em uma batalha que não podem vencer. Os países evitam, assim, qualquer movimento que denote falta de hospitalidade aos interesses do capital, o que em geral significa menos impostos e regras, visando à criação de um mercado de trabalho flexível de trabalho. Esse contexto contrasta com a era anterior, quando o preceito fundamental era o adiamento da satisfação, a procrastinação.
Foi o controle do desejo que possibilitou o crescimento e desenvolvimento da sociedade moderna. A idéia era de que quanto maior a auto-restrição, maiores seriam os prêmios. Hoje, o que se busca é a satisfação imediata do desejo, ao mesmo tempo em que sua satisfação encurta a duração. Contudo, vivemos em um mundo repleto de insegurança e incerteza, combinado com a falta de garantias. Ninguém está a salvo, por exemplo, da nova rodada de “downsizing” ou “racionalização” dos serviços. Como não temos segurança de longo prazo, faz sentido a satisfação instantânea, pois seu adiamento perdeu seu fascínio.
A precariedade do mercado de trabalho transborda para e é reforçada pela política da vida. Laços e parcerias são, dessa maneira, vistos como produtos de consumo. Se a característica mais importante da modernidade era a confiança das sociedades em si mesmas e nas instituições, agora o seu colapso enfraquece o engajamento político e a ação coletiva, conforme já demonstrou Pierre Bourdieu. O Estado, dessa forma, deixa de exercer seu poder de controle na rede e as instituições políticas restam irreversivelmente enfraquecidas. 5 Comunidade
Os elementos que unem os membros de uma coletividade estão cada vez menos fortes. Muitas pessoas buscam, portanto, resgatar um sentimento já perdido de “comunidade”, que costuma ser negada pelos liberais. Contudo, se uma pretensa comunidade tem que apelar aos próprios membros para sua manutenção, significa que ela é mais um projeto que uma realidade, pois só passa a existir após uma decisão individual e, dessa maneira, pode ser considerada uma comunidade postulada.
O processo indutor desse fenômeno é a falta de segurança, e o encontro de um porto seguro nas turbulentas águas das constantes, confusas e imprevistas mudanças é uma das promessas do comunitarismo.
Porém, esse mundo torna o outro hostil e irrelevante, e falar em uma “comunidade includente” seria uma contradição em termos. Por outro lado, como disse Hobsbawm, exatamente em um passado quando a comunidade entrou em colapso inventou-se a identidade. O Estado-nação teve sucesso justamente pela supressão das comunidades, buscando criar cultura, língua e história unificadas, em detrimento de tradições comunitárias, o que foi possível pela imposição de língua oficial, currículos escolares e sistema legal unificado.
Passamos a ter uma noção de “terra natal”, uma percepção que pode ser dividida como nacionalismo e patriotismo, esse último tendo um sentido pretensamente mais positivo. Porém, tal noção pode levar a uma duas estratégias de relacionamento com o “outro”: no patriotismo, a abordagem antropofágica, o que significa “devorar” a distintividade do estrangeiro; e, no caso do nacionalismo, utiliza-se a estratégia antropoêmica, que resulta em metaforicamente “vomitar” os que não estão “aptos a ser nós”, isolando-os nos guetos e nos muros das proibições culturais, ou ainda por meio das deportações e limpezas étnicas.
Nesse processo, o método distintivo entre nós e eles é apenas a configuração de uma diferença, geralmente derivativa e menor, que acaba sobrepondo-se às semelhanças. Em outra linha, e em contraste àquele patriotismo e nacionalismo, evidencia-se que a unidade alcançada é muito mais promissora, por ser constituída pelo confronto, debate, negociação e compromisso entre diversos valores e preferências de auto-identificação, sendo a única variante de unidade compatível com a modernidade líquida. Do contrário, o natural impulso de retirar-se da arriscada complexidade para o abrigo da uniformidade, um verdadeiro sonho de pureza, acaba prevalecendo. Esse impulso afasta os perigos próximos ao corpo ameaçado, buscando tornar o “de fora” parecido com o “de dentro” e refazer o “lá fora” à semelhança do “aqui dentro”, criando uma sede por segurança que não pode ser saciada, pois deixa intactas as verdadeiras fontes da incerteza e da falta de garantias.
Assim, entre liberdade e segurança, o comunitarismo aposta na última, desconhecendo que a liberdade e a segurança podem e devem crescer conjuntamente. Faz-se essa escolha pois as amizades, o trabalho e a própria família são fluidos demais para serem referências confiáveis. Nesse contexto, tendo em perspectiva que é a sociedade quem nos permite experimentar satisfações que não sejam puramente efêmeras e que o comunitarismo enfraquece essa construção, o corpo passa a ser o único referencial de continuidade a “longo prazo”, pois dificilmente algo ultrapassará os limites da mortalidade corporal. O próprio Estado renuncia o papel de responsabilidade pela certeza, segurança e garantia, em uma mudança de grande importância para os rumos da humanidade.
O casamento entre Estado e Nação claramente caminha para o fim e para a constituição de um novo arranjo de “viver juntos”, ainda que haja pouca esperança no resgate daqueles serviços de garantias, em razão da corrosão da política diante dos poderes extraterritoriais. Contudo, diante da falta de resistência soberana dos Estados àquela interferência indevida, a construção de uma ordem supranacional não passa de uma especulação que hoje é até mesmo improvável. Isso traz preocupação em relação à disseminação do que Bourdieu chamou de “política da precarização”. Essa instabilidade poderá ser compensada pelo surgimento de “comunidades explosivas”, que precisam de ameaças comuns e inimigos a serem perseguidos e mutilados, para que cada indivíduo seja cúmplice em uma eventual derrota.
A mistura dessa sociabilidade explosiva com aspirações territoriais e estratégias “fágicas” e “êmicas” resulta em mutações monstruosas, apresentando-se totalmente descontextualizadas da modernidade fluida, com a qual não compartilha código. Em outro fenômeno decorrente dessa instabilidade e precariedade é a constituição das chamadas “cloakroom communities”. Elas se caracterizam por necessitarem de um espetáculo que substitua a “causa comum” em torno do qual os indivíduos se reúnem por certo momento, colocando temporariamente outros interesses divergentes de lado. Contudo, têm o efeito colateral de impedir a condensação de comunidades genuínas e duradouras, dessa maneira reforçando e perpetuando a solidão que caracteriza o novo tempo. Posfácio – Escrever; Escrever Sociologia
Lembrando Beck: se a sociologia é a resposta, qual é a pergunta? A resposta desse questionamento passa pela necessidade de articulação de uma democracia que ultrapasse a “especialistocracia”. Ainda que tenhamos hoje ampla liberdade formal para falar, isso não é insuficiente para realização daquela democratização, pois ela depende da capacitação e auto-afirmação dos indivíduos para decidirem se querem o tipo de vida que lhes é apresentada como fatalidade.
A ausência de “significados absolutos”, de forma a possibilitar a busca de uma conformação social móvel, é condição para construção de uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres. Aquele que nega a possibilidade de alteração da ordem social, responsável pela infelicidade das pessoas, é culpado de imoralidade. Não enxergar isso, suprimindo a possibilidade de contingência, é fator determinante para a perpetuação da situação. A revelação, é certo, não significa sua utilização imediata, mas certamente é o começo (e não o fim) da guerra contra a miséria humana.
LEIA O LIVRO NA ÍNTEGRA:

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

Filme - Ensaios sobre a Cegueira

Adaptação do premiado livro escrito por José Saramago.

ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA conta a história de uma inédita epidemia de cegueira, inexplicável, que se abate sobre uma cidade não identificada. Tal "cegueira branca" - assim chamada, pois as pessoas infectadas passam a ver apenas uma superfície leitosa - manifesta-se primeiramente em um homem no trânsito e, lentamente, espalha-se pelo país. Aos poucos, todos acabam cegos e reduzidos a meros seres lutando por suas necessidades básicas, expondo seus instintos primários. À medida que os afetados pela epidemia são colocados em quarentena e os serviços do Estado começam a falhar, a trama segue a mulher de um médico, a única pessoa que não é afetada pela doença.O foco do filme, no entanto, não é desvendar a causa da doença ou sua cura, mas mostrar o desmoronar completo da sociedade que, perde tudo aquilo que considera civilizado. Ao mesmo tempo em que vemos o colapso da civilização, um grupo de internos tenta reencontrar a humanidade perdida. O brilho branco da cegueira ilumina as percepções das personagens principais, e a história torna-se não só um registro da sobrevivência física das multidões cegas, mas, também, dos seus mundos emocionais e da dignidade que tentam manter. Mais do que olhar, importa reparar no outro. Só dessa forma o homem se humaniza novamente.



Sinopse do livro:


Um dia normal na cidade. Os carros parado numa esquina esperam o sinal mudar. A luz verde acende-se, mas um dos carros não se move. Em meio às buzinas enfurecida e à gente que bate nos vidros, percebe-se o movimento da boca do motorista, formando duas palavras: Estou cego.
Assim começa o novo romance de José Saramago. A “treva branca” que acomete esse primeiro cego vai se espalhar incontrolavelmente pela cidade e, em breve, uma multidão de cegos precisará aprender a viver de novo, em quarentena. “Só num mundo de cegos as coisas serão o que verdadeiramente são”. E, de fato, o que se verá é uma redução da humanidade às necessidades e afetos mais básicos, um progressivo obscurecimento e correspondente iluminação das qualidades e dos terrores do homem.

Impressionante, comovedor, este romance é desde já um marco na literatura em língua portuguesa. É uma visão das trevas, uma viagem ao inferno, e a história de uma resistência possível à violência de tempos escuros. “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, e essa coisa é o que somos”, diz uma personagem. Com característico controle, José Saramago – e seu alter ego furtivo, no romance – luta aqui para combater a inadequação, ou insuficiência das palavras para resgatar o afeto perdido.

Às vésperas do fim do milênio, num período onde imperam, de um lado, a velocidade, a ganância e a abstinência moral e, de outro, a profecia e um misticismo compensatórios, o escritor vem nos lembrar a “responsabilidade de ter olhos quando os outros os perderam”. É um livro, então, sobre a ética, e é um livro também sobre o amor, e sobre a solidariedade. “Parece uma parábola”, comenta alguém no romance; mas sua força, como nas melhores parábolas, vem precisamente do realismo e da descrição, no limite do inominável.

Cada leitor viverá, aqui, uma experiência imaginativa única, no esforço de recuperar a lucidez. “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” A epígrafe resume a empreitada do escritor, como de cada leitor. Não se trata só de reparar no significado das coisas, mas também de proceder à reparação do que foi perdido, ou mutilado – “uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.

Arthur Netrovski
(Texto extraído das abas do livro)


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quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Os Partidos Políticos no Acre (1945 – 1978)

Por Homero de Oliveira Costa
Resumo Este trabalho trata dos partidos políticos do Acre no período compreendido entre 1945 e 1978. a hipótese central é demonstrar como os partidos políticos no Acre são caracterizados, desde sua frmação, por uma inautenticidade e inconsistência ideológica, com um funcionamento meramente eleitoreiro e que se consubstancia em praticas clientelísticas.
Introdução Até o presente momento (1992) não foi publicado qualquer estudo sistemático a respeito dos partidos políticos no Acre. O objetivo maior deste trabalho é trazer uma pequena contribuição nesse sentido, estudando os partidos políticos no Acre no período compreendido entre 1945 e 1978. Tratase de uma pesquisa sistemática que tem como hipótese central mostrar como as elites políticas locais utilizam os partidos excluindo, sistematicamente, as classes trabalhadoras. Não apenas em função de seu isolamento e “atraso”, ou ausência de qualquer tradição de organização, mas como parte de um sistema partidário que desde o seu surgimento sempre excluiu os trabalhadores de participação, quer a nível da direção desses partidos, quer de suas candidaturas em pleitos eleitorais. Ao mesmo tempo, este trabalho tem a pretensão de romper com uma visão estereotipada da historiografia institucionalizada do estado, a exemplo de outros trabalhos já feitos neste sentido.
I – Delimitação do Tema e do Problema Temos ciência de que se quisermos compreender com maior profundidade a trajetória dos partidos políticos acreanos no período compreendido entre 1945 e 1978, impõese como fundamental o estudo do sistema partidário brasileiro (e do processo político como um todo) e apreender as especificidades locais. Como diz Gramsci: “Para se fazer a história de um partido ou sistema partidário, devese conhecer a história do país em que eles estão inseridos”.
Ou seja: é necessária uma visão globalizante que ofereça elementos para que se possa montar um quadro histórico (e teórico) que dê conta da problemática definida como objeto de investigação. Como se sabe, há perspectivas muito distinta, não apenas no que diz respeito à sociedade brasileira, como também em relação ao sistema partidário. Não nos propomos, nos limites de um artigo acadêmico de modestas pretensões aprofundar esse debate. Tomemos o período delimitado (19451978). Ele pode ser dividido em dois momentos: o primeiro, que vai de 1945 a 1965, quando havia um multipartidarismo; e um segundo momento, que vai de 1965 a 1978 quando passou a ter vigência o bipartidarismo.
Sobre esses períodos já existe no Brasil uma extensa bibliografia. Do primeiro período, destacamos a tese de Souza (1976) que vai significar a recuperação da temática partidária como foco de analise fundamental para a compreensão do regime que se inicia em 1946. É um trabalho pioneiro na medida em que relativiza a perspectiva casual partidos/bases social, apresentando o sistema partidário como um conjunto de organizações constituintes de um espaço dentro do universo maior do sistema partidário. O cerne de seu trabalho, nos parece, é a demonstração de que além da continuidade de pessoas à frente do cenário político nacional, teria havido não apenas uma continuidade, mas uma ampliação dos mecanismos centralizadores criados no período anterior (19301945). Ainda sobre esse período, cabe ressaltar os estudos que procuram demonstrar o quanto os partidos surgidos pós 1945 são artificiais, amorfos e indiferenciados em suas conexões sociais e ideológicas. Embora passiveis de criticas são, a nosso juízo, os que melhor permitem compreender os partidos políticos no Acre.
De 1965 – quando a ditadura militar dissolve s partidos e impõe o bipartidarismo – até 1974, os resultados sobre os partidos políticos (e o sistema eleitoral) foram escassos e é só a partir de meados da década de 1970 que vão surgir estudos que tratam especificamente da questão partidária. Neste trabalho nos fundamentamos na perspectiva que procura demonstrar como a tradição do apartidarismo associado ao autoritarismo, que tem permeado a política brasileira, compõe o pano de fundo de uma problemática geral: a frágil e artificial origem dos partidos políticos brasileiros, sempre a reboque de interesses que os superam sendo incapazes, em função de sua fragilidade, de se manterem no topo de uma ingerência que é, em última análise, a razão histórica de sua origem como instituições organizadas.
No caso do Acre, faremos uma breve retrospectiva histórica dos partidos políticos atuantes no período de 19451978. Uma descrição esquemática e quase que meramente factual, na qual serão colocadas algumas questões que servirão de referências à nossa fundamentação.
II – Os Partidos Políticos no Acre A) 1945 a 1965
LEIA O TEXTO NA ÍNTEGRA: