domingo, 17 de dezembro de 2017

PROFESSOR UNIVERSITÁRIO QUESTIONA A DATA OFICIAL DE ANIVERSÁRIO DE FUNDAÇÃO DA CIDADE DE RIO BRANCO (O DOUTOR EDUARDO CARNEIRO)


Dr. Eduardo Carneiro, é professor da Universidade Federal do Acre, é licenciado em História (
UFAC), bacharel em Economia (UFAC), mestre em Letras (UFAC),  Doutor em História Social (USP), e doutorando em Estudos Linguísticos pela UNESP. É membro da Academia Acreana de Letras, escritor e editor de livros. Autor de A formação da sociedade econômica do Acre: sangue e lodo no surto da borracha (1876 - 1914); A Fundação do Acre: uma história revisada da anexação (fase invasiva, fase militar e fase diplomática); A Epopeia do Acre e a manipulação da História no Movimento Autonomista & no Governo da Frente Popular; e O Discurso Fundador do Acre(ano): História & Linguística; História do Acre: resumão para concurso; Acreanismo e comemorações cívicas; Poesias Noturnas e Poesias Diurnas.


QUAIS SÃO AS SUAS PALAVRAS INICIAIS SOBRE O ANIVERSÁRIO DE RIO BRANCO?
Bem, primeiro eu precisaria saber sobre qual Rio Branco você está se referindo. Pois historicamente temos vários, cada um com o seu respectivo decreto de criação historicamente datado, a saber: Vila Rio Branco (1904), Município de Rio Branco (1912), Rio Branco como capital do Território do Acre (1920) e Rio Branco como capital do Estado do Acre (1962). Assim devem ser vistos porque são entes da divisão administrativa da República brasileira com identidade geográfica e status jurídico-político distintos. O fato de a grafia dos topônimos serem os mesmos, ou seja, Rio Branco, não significa que estamos nos referindo a uma mesma coisa em estágio de evolução diferentes. São simplesmente fenômenos históricos singulares de mesmo nome, ou seja, homônimos.

TUDO BEM, MAS O SENHOR NÃO MENCIONOU O 28 DE DEZEMBRO DE 1882 E NEM O 13 DE JUNHO DE 1909 COMO DATAS PROVÁVEIS DA CRIAÇÃO DE RIO BRANCO. POR QUÊ?
A não indicação das datas não foi mero esquecimento meu, foi proposital. Primeiro porque tanto a primeira que faz alusão à fundação de um seringal por nome Volta da Empresa, quanto a segunda que faz referência à criação da cidade de Penápolis, não guardam relação homonímica com o topônimo Rio Branco. Segundo por achar que o fato de o seringal e a referida cidade ter se localizado em áreas que atualmente pertencem ao território da capital acreana não os credenciam como parte genealógica do município. Nos dois casos, estamos tratando de vocábulos heteronímicos. Porém sou sabedor da celeuma que muitos políticos e historiadores têm feito a respeito dessas datas, basta lembrar que o cinquentenário da cidade de Rio Branco foi comemorado levando-se em consideração o 13 de junho de 1909, já o centenário, o 28 de dezembro de 1882. O que posso dizer é que as expressões “cidade de Rio Branco” e “município de Rio Branco” só foram usadas oficialmente pelo Decreto Federal Nº 9.831, de 23 de outubro de 1912. Portanto, essa talvez seja a data do nascimento teórico ou jurídico do município, já que, na prática, de fato, como é sabido, ele só veio a ser instalado no dia 15 de fevereiro de 1913.



MAS PROFESSOR, PRATICAMENTE TODOS OS HISTORIADORES AFIRMAM QUE O SERINGAL VOLTA DA EMPRESA, A CIDADE DE PENÁPOLIS E O MUNICÍPIO RIO BRANCO SÃO NOMES DIFERENTES PARA DESIGNAR A MESMA COISA. CERTO?
Errado (Risos). Essa confusão toda foi feita propositalmente para justificar o 28 de dezembro como data de aniversário do Município de Rio Branco. No entanto, uma coisa é um seringal, outra coisa é uma cidade, e outra coisa é um município. Um seringal é uma unidade de produção rural extratora de borracha que, no Acre, no último decênio do século XIX, era fundado por meio da invasão de território estrangeiro, grilagem de terra e genocídio indígena. Já uma cidade é caracterizada por uma população urbana que se dedica a atividades econômicas não rurais, que geralmente se constitui em sede administrativa de um Município, Departamento, Distrito ou Intendência. Município é uma pessoa jurídica de direito público interno, um ente administrativo do Estado, que é criado por força de decreto oficial e abarca um território composto por áreas rurais e urbanas. No caso do Acre, estamos tratando de um seringal fundado ilegalmente em território estrangeiro, que figurava do lado direito do Rio Acre; de uma cidade fundada “por resolução prefeitoral” em um uma área contraditoriamente rural, situada no lado esquerdo do rio Acre, que passou a servir de sede administrativa de um dos Departamentos do antigo Território do Acre; e de um município que é a capital do Estado do Acre, cujo o território abarca tanto áreas rurais quanto urbanas situadas tanto do lado direito do rio Acre, quanto do lado esquerdo. Portanto, geograficamente, identitariamente e juridicamente são fenômenos históricos distintos.
 
O SENHOR ESTÁ AFIRMANDO QUE A FUNDAÇÃO DO SERINGAL VOLTA DA EMPREZA NÃO É A DATA DE ANIVERSÁRIO DO MUNICÍPIO DE RIO BRANCO?
Exatamente. O 28 de dezembro de 1882 é a provável data de aniversário do seringal Volta da Empreza e não do Município de Rio Branco. O referido seringal provavelmente completa 135 anos em 2017, digo provavelmente pois tal data é, até hoje, duvidosa. Já o município de Rio Branco, unidade político administrativa do Departamento do Alto Acre, do Território do Acre, completou 105 anos. Já o município de Rio Branco como capital do Território do Acre completou, neste ano, 97 anos. Já o município de Rio Branco como capital do Estado do Acre completou 55 anos. Foge à minha capacidade cognitiva entender como o aniversário do Município de Rio Branco, capital do Acre, que é um Estado do Brasil, pode ter como data de origem o aniversário de fundação de um seringal que, na época, sequer pertencia ao Brasil, num momento histórico que sequer o Acre existia. Isso é um anacronismo sem tamanho. Acreditar nisso é o mesmo que ter por verdade a ideia de que o Município de Rio Branco já estava presente no ato de fundação do Seringal Volta da Empreza, quer seja em potencialidade a ser realizada, capacidade de vir a ser, ou em forma de uma espécie de  “DNA” (risos). Não há nenhuma linhagem ou lastro de significância entre um seringal e um município. O fato de o território do município de Rio Branco incluir, dentre outras, a área que anteriormente funcionava o seringal Volta da Empresa, não faz do seringal a origem do município. Simples assim! Até porque o Vale do Rio Acre em fins do século XIX já era formado por mais de 65 seringais, que, mais cedo ou mais tarde, no todo ou em parte, também foram dissolvidos e urbanizadas, tendo suas respectivas áreas abarcadas pelo território do Município de Rio Branco. Logo, a depender das coordenadas geográficas escolhidas, a data do início da colonização do território do atual Rio Branco poderia mudar. Interessante dizer que expedição que trouxe Neutel Maia foi a mesma que trouxe os irmãos Leite, que desceram do vapor algumas milhas antes que Maia. Os irmãos Leite também fundaram um seringal, um dos maiores do Vale do Acre na época por sinal, que, por sua vez, também passou a fazer parte do atual território de Rio Branco. Ora, se os irmãos Leite desceram da embarcação antes que Neutel Maia, por que este e não aqueles foi “batizado” como fundador de Rio Branco? 

PROFESSOR, ENTÃO POR QUE SE FALA TANTO EM VOLTA DA EMPREZA COMO ORIGEM DE RIO BRANCO?
Para responder essa pergunta, teríamos que reconstituir o cenário político e as correlações de forças que estavam em jogo no momento em que o Projeto de Lei que instituiu a data oficial de aniversário do município de Rio Branco foi redigida, aprovada e sancionada. Uma coisa posso afirmar, até fins da década de 1970, os prefeitos faziam festas cívicas em homenagem ao aniversário de Rio Branco baseados na data de 13 de junho de 1909. Basta verificar nos jornais da época. O primeiro a fazer uso do 28 de dezembro de 1882 para comemorar o aniversário de Rio Branco foi o então prefeito Fernando Inácio dos Santos. A decisão dele pode ser facilmente explicada quando percebemos que fez recair o centenário da cidade no interstício do seu mandato. Os jornais de dezembro de 1982 revelam a mega festividade que organizou para homenagear o suposto 100 anos de Rio Branco. No Acre é assim, a história muda conforme os interesses de autopromoção dos políticos (risos). No centenário do Acre não foi diferente, o poder executivo também deu aula de manipulação da história. Os políticos e membros da elite acreana sempre torturaram a história do Acre a fim de torná-la testemunha dos seus duvidosos “grandes feitos”. A decisão de comemorar o aniversário da cidade baseado na data do início da colonização praticada por Neutel Maia às margens do lado direito do Rio Acre, tinha forte apoio dos familiares e descendentes da elite riobranquence que, até meados dos anos 1960, dominavam o comércio local a partir do que hoje conhecemos como Segundo Distrito, mais precisamente, do bairro Empresa. Já que, como é sabido, a sede do Departamento criado em 1912, na cidade de Penápolis, ficava no chamado Primeiro Distrito. Eu até suponho que a escolha da data também tenha agradado os funcionários públicos municipais, já que ganhariam um feriado pós natalino (risos).

TUDO BEM, MAS COMO SENHOR EXPLICA O FATO DE O SERINGAL VOLTA DA EMPRESA TER SIDO ESCOLHIDO COMO SEDE DO ENTÃO DEPARTAMENTO DO ALTO ACRE?
A região mais urbanizada do Acre no início do século XX era Porto Acre, era ali que se reunia as melhores condições para uma sede departamental, já que a estrutura governamental deixada pelo governo boliviano colaborava para isso. No entanto, aquele povoado se tornou uma forte área de influência de Plácido de Castro, após a vitória do mesmo contra os bolivianos em janeiro de 1903. Por conta disso, é possível que o General Olympio da Silveira tenha preferido, em abril de 1903, criar a sede do governo brasileiro do Acre Setentrional no Volta da Empreza, para onde levou as tropas do exército. Tal região era dominada pela influência cearense Neutel Maia, que era talvez o homem mais rico de todo o Acre, e que havia se recusado a apoiar Plácido de Castro. E foi justamente essa estadia do General com sua tropa composta por mais de mil soldados que alavancou a região do Volta da Empreza como um povoado urbano com estruturas mínimas para uma futura sede departamental. Se o general tivesse escolhido Porto Acre ou Xapuri, a história da capital do Acre, provavelmente, teria sido outra.  E foi esse povoado, formado no entorno do Seringal, que foi elevado à categoria de Vila em agosto de 1904, com o nome Volta da Empresa. E foi essa Vila, e não o seringal de mesmo nome que, em setembro do mesmo ano, foi indicada como sede provisória do Departamento do Alto Acre com o nome de Rio Branco.

DE QUALQUER FORMA PROFESSOR, O SENHOR NÃO ACHA QUE A HISTÓRIA DO SERINGAL FAZ PARTE DA HISTÓRIA DO MUNICÍPIO?
É bom deixar claro que uma coisa é a história do seringal, outra coisa é a do Município de Rio Branco. A história do Seringal Volta da Empreza é apenas um capítulo da história do homem na região que hoje faz parte do território do Município de Rio Branco. A não ser que assumamos uma postura rigidamente acreanocentrica e etnocêntrica para excluirmos da história a milenar presença das nações indígenas na região. Portanto, a fundação do referido seringal é apenas um marco, arbitrário por sinal, do início da colonização do homem “branco” de nacionalidade hegemonicamente brasileira em território que hoje pertence ao dito município. A história do município de Rio Branco, pessoa jurídica e unidade político-administrativa da República do Brasil, que gerencia a ordem pública em um determinado território geograficamente definido, não pode ser confundida com a história humana neste mesmo território. Até porque a área do antigo seringal Volta da Empresa é apenas uma fração do atual território de Rio Branco e, como já mencionamos, antes de Neutel Maia já havia comunidades ali. Resumindo: a data da fundação do seringal Volta da Empreza não é a data de origem do Município de Rio Branco. A Relação entre um e outro foi construída arbitrariamente por meio do abuso da história. O seringal é tão somente parte da história do início da colonização nordestina em terras que a posteriori fariam parte do território do Município de Rio Branco. Pronto! Só é isso... o resto é imaginação dos escribas do poder (risos).

ENTÃO O MUNICÍPIO DE RIO BRANCO NÃO FAZ 135 ANOS. É ISSO? 
Exatamente isso (risos). Rio Branco não faz 135 anos em 2017, a não ser que me provem que Neutel Maia tenha trazido consigo, em meio as suas bagagens, o Projeto Piloto urbanístico de construção do Município (risos). Brincadeiras à parte, é somente dessa forma, meio que hilária, que seria possível justificar um suposto aniversário de 135 anos de Rio Branco. Apenas em uma narrativa teleológica e manipulada da história é fica visível a existência de um Município no ato fundador de um Seringal. Como comemorar o aniversário de nascimento de um ente numa data em que ele sequer existia? Isso só é válido num ambiente espírita, em que o Município apareceria como a reencarnação do seringal em um estágio mais evoluído (risos). Portanto, o que provavelmente faz 135 anos é tão somente a chegada do vapor Apihy, liderada pelo cearense Neutel Maia, às barrancas do lado direito rio Acre, nas proximidades onde hoje conhecemos como gomeleira. Será que é tão difícil entender isso?

PROFESSOR, NÃO ESTAMOS ACOSTUMADOS COM ESSA EXPLICAÇÃO, COMO O SENHOR CHEGOU ATÉ ELA?
A questão é que grande parte dos historiadores com má formação acadêmica confundem as diversas temporalidades históricas, muitas das quais descontínuas, com o tempo cronológico marcado pelo relógio e calendários, limitando àquelas a estes. Escrevem a histórica como se ela fosse uma narrativa evolutiva rumo ao progresso, uma mera sucessão de fatos marcados no tempo cronológico. Como se o lastro de continuidade fosse algo natural e não um ato arbitrário, resultado de escolhas. Precisamos vencer a ideia de que o presente já existia potencialmente no passado, e que, portanto, caberá ao historiador tão somente a tarefa de realizar a montagem teleológica dos fatos. A história real e empírica é cataclísmica, ela é saturada por várias temporalidades e de acontecimentos simultâneos e desconexos. No entanto, quando a história é representada graficamente por meio de uma narrativa escrita, ela acaba tomando forma, por culpa dos historiadores e escritores “embriagados de evolucionismo”, de uma sucessão cronológica e consequencial de fatos. Mas os fatos históricos não obedecem a uma lógica ritmada do tipo “causa e efeito”, pelo contrário, as relações de forças que envolve cada evento são multiformes, e estamos falando de vários eventos simultâneos e desconexos dos quais a escrita da história cronologicamente marcada não consegue abarcar. A narrativa da história não pode mais ficar refém de uma ideia de tempo absoluto newtoniano (físico Isaac Newton), que já foi superada. A física quântica está aí e a noção de tempo relativo é fato! Portanto, há descontinuidades na história, ela não é uma narrativa do progresso humano. As conclusões a que cheguei sobre esse debate sobre o aniversário de Rio Branco são facilmente percebíveis por qualquer cidadão acreano. Não é preciso se ter um diploma de nível superior para tal. Basta se ter uma compreensão semiológica básica dos seguintes vocábulos, marcando a diferença semântica entre eles, a saber: um seringal, um povoado, uma vila, uma sede departamental, uma cidade, um município, uma capital de estado. Quem domina minimamente o conceito exato que o vocábulo “município” evoca, jamais verá num seringal, a origem de Rio Branco. É só entendermos que quando as terras que anteriormente fazia parte do seringal se urbanizaram, tal região já não era mais exatamente um seringal. Além do mais, a urbanização teve início nos arredores do seringal, que foi, aos poucos, loteado. A área do seringal tendeu a diminuir na proporção que a do povoamento tendeu a aumentar.

ENTÃO, COMO PENSAR A HISTÓRIA DE RIO BRANCO PARA ALÉM DA NARRATIVA LINEAR E EVOLUTIVA?
É fazer exatamente isso que estou tentando aqui. Mas a maioria das pessoas ainda têm resistência a isso, pois estão presas à noção de tempo do século XIX. A história de Penápolis não tem origem na do seringal Empreza; assim como a história de Rio Branco não está potencialmente viva na de Penápolis. Vila Rio Branco, capital de um departamento é uma coisa; Município de Rio branco, Capital do Estado do Acre é outra coisa. Rio Branco, atual capital do Estado do Acre, não é a versão melhorada da Vila Rio Branco (1904). Um não é a continuação evolutiva do outro. Não estamos falando de um mesmo ente com nomes diferentes, pelo contrário, estamos nos referindo a entes com status jurídicos e identidade territorial díspares que assumem nomes iguais, ou seja, são homônimos. De modo que a Vila Rio Branco (1904) não é a mesma coisa que o município de Rio Branco (1912), que por sua vez não são a mesma coisa que a capital do Acre (1920 e 1962). O bairro Empresa localizado no Município de Rio Branco nos anos 1950 não pode ser visto como um estágio evoluído do seringal de mesmo nome. Embora homônimos, são coisas diferentes, com histórias diferentes, embora em alguns aspectos, convergentes.

DOUTOR, PARA FINALIZAR, DEVEMOS COMEMORAR O ANIVERSÁRIO DE RIO BRANCO?
No dia em que um prefeito de Rio Branco parar de fazer uso abusivo de indicações políticas para ocupação de cargos públicos estratégicos para sustentar um projeto de poder ou tomar a iniciativa de parar de pavimentar nossas ruas com asfaltos de “papelim”, nós, o povo, talvez o que comemorar. Fora isso, chega de hipocrisia e publicidade governamental!


     



sábado, 18 de novembro de 2017

Se o Acre era da Bolívia e foi anexado pelo Brasil, onde entra o Peru nessa história?




Sobre mapas, fronteiras, Petrópolis e outros Tratados Internacionais relacionados ao território do Acre
Em 17 de novembro os acreanos comemoram o feriado estadual em alusão ao Tratado de Petrópolis, acordo entre Brasil e Bolívia pelo qual o território do Acre passou a ser oficialmente brasileiro em 1903. Sobre isso: “Lamento muito que o Acre foi comprado em troca de um cavalo”, disse o presidente boliviano Evo Morales, durante coletiva de imprensa na 4ª Conferência de Cúpula União Europeia-América Latina/Caribe em maio de 2006, na Áustria.
Contudo, a versão de Morales não tem fundamento histórico e serviu apenas como anedota para ocupar as penas e tinteiros dos historiadores brasileiros durante um tempo. Desta história a maioria dos acreanos estão carecas de saber. Entretanto, se olharmos com atenção o mapa do Estado do Acre, é possível perceber que a parcela de território acreano que pertencia à Bolívia é bem pequena em relação à parte que era peruana.

No mapa é possível perceber que a maior parte do território acreano fazia parte, na verdade, do Peru
Inicialmente, cabe destacar que a anexação do Acre representa a fronteira-final do Brasil em direção ao oeste e também um esforço hercúleo da diplomacia nacional. Se no dia 17 de novembro o Acre para e celebra um tratado internacional referente aos limites territoriais, por que não para também na data de outros acordos tão importantes quanto? O objetivo deste artigo é mostrar que o processo de anexação do Acre ao Brasil começou bem antes de o que se imagina e não terminou em 1903, mas sim em 1909.
De onde viemos?
As regiões do Iaco, Baixo e Alto Acre realmente eram pertencentes à Bolívia até 1903, entretanto, na prática eram mais brasileiras que qualquer outra coisa. A despeito disso, depois de Sena Madureira e Manoel Urbano, oficialmente as terras onde hoje estão o Acre eram do Peru.
Além disso, principalmente no Vale do Juruá, uma das formas de povoamento e exploração econômica criaram uma fronteira diferenciada, sendo necessárias outras negociações. Cabe destacar que os limites territoriais do Peru com a Bolívia também não eram muito precisos antes do Tratado de Petrópolis
Quando se fala em limites territoriais na região amazônica, em especial no Acre, a disputa é bem anterior até ao “descobrimento do Brasil”. Sendo assim, para entender como viemos parar aqui, é importante abordar rapidamente os diferentes tratados internacionais e nações envolvidas na questão.
Brasil x Espanha
Em 1492 navegadores europeus teriam chegado oficialmente ao continente americano pela primeira vez. Detalhe para o oficialmente, já que esse pioneirismo é muito questionado na atual historiografia. Pois bem, o navegador genovês Cristóvão Colombo teria “descoberto” a América durante uma missão do reino Espanhol para chegar às Índias. Com isso a Espanha reivindicaria para si a posse do novo continente.
Todavia, o reino de Portugal, outra importante potência militar e comercial da época, também reivindicou o direito de navegar e explorar as novas terras. Por conta disso, em 4 de junho de 1494 Espanha e Portugal firmaram o Tratado de Tordesilhas. Nesse acordo, uma linha imaginária a 370 léguas de Cabo Verde serviria de referência para a divisão, de forma que as terras a oeste desta linha ficaram para a Espanha, enquanto as terras a leste eram de Portugal. Essa divisão deixou o mapa desta forma:

Linha do Tratado de Tordesilhas estabelecida em 1494, antes do “descobrimento” do Brasil
Inicialmente se pensou que, com a divisão proposta, Portugal teria feito um péssimo negócio e ficado só com pequenas ilhas e água, o que teria mudado drasticamente em 1500. Os navegadores portugueses, diga-se de passagem, os melhores da época, haviam supostamente se perdido no mar enquanto viajavam rumo às Índias, daí então teriam ido parar na América por engano e “descobriram” o Brasil, uma terra que já lhes pertencia desde 1494. Que coincidência, não?
Guerra dos Tronos
Começa aqui a primeira questão de fronteira na Amazônia, pois de acordo o Tratado de Tordesilhas essa região era toda Espanha. Desta forma, os portugueses ocuparam a costa brasileira e poderiam, em tese, explorar só até onde hoje é o Centro-Oeste. Contudo, essa divisão só fez sentido até 1580, com o início do União Ibérica.
Para resumir o que aconteceu nesse importante evento histórico, destaco que o rei de Portugal na época, Dom Sebastião, sumiu em combate na África e não deixou herdeiros. Por conta disso, abriu-se uma sucessão turbulenta no trono português e a coroa a acabou indo parar com o rei da Espanha, Felipe II, que era primo de Dom Sebastião e acabou unificando os reinos na marra. Com isso, a linha de Tordesilhas deixa de fazer sentido, facilitando a penetração dos portugueses na Amazônia.

Com a unificação das coroas espanhola e portuguesa, a linha do Tratado de Tordesilhas deixava de fazer sentido
Durante esse tempo outros reinos tentaram invadir o Brasil, como a França e a Holanda. A União Ibérica durou até 1640, quando os portugueses conseguiram o trono de volta, expulsaram os rivais de boa parte de suas colônias e se separaram da Espanha. Entretanto, as fronteiras agora eram outras e novos tratados internacionais foram necessários para definir os limites entre as Américas espanhola e portuguesa.
Depois de muitas disputas entre os reinos, utilizando o instituto jurídico do uti possidetis, no qual a terra pertence a quem de fato ocupa, foi assinado em 13 de janeiro de 1750 o Tratado de Madrid, que consolidou a presença portuguesa na Amazônia e acabou deixando o mapa mais parecido com que é hoje. Detalhe: a região onde hoje é o Acre continua juridicamente fora do território brasileiro. Antes do final do século XVIII, outro acordo seria assinado entre Portugal e Espanha sobre as fronteiras de suas colônias na América do Sul, o Tratado de Santo Idelfonso, em 1° de outubro de 1777.

O desenho das fronteiras no Tratado de Madrid em 1750 consolidou a região amazônica como colônia portuguesa
A Era das Revoluções
Com o alvorecer do século XIX, novos eventos históricos abalaram as relações internacionais e a forma como o poder se organizava no mundo. A Independência dos Estados Unidos da América em 1783 e a Revolução Francesa em 1789 desencadearam uma série de consequências que não tardariam a reverberar na América do Sul.
No desenrolar da Revolução Francesa e com a fase imperial de Napoleão Bonaparte, todos os monarcas europeus tremeram na base. Por conta disso, para não ser trucidado pelos franceses a família real portuguesa acabou tendo que fugir para o Brasil em 1808. Esse evento histórico contribuiu para que a América Portuguesa criasse uma unidade e desse os primeiros passos rumo à independência da metrópole em 7 de setembro de 1822, mantendo-se como uma só nação, o Império do Brasil.

América do Sul em 1837, o Acre ainda não faz parte do Brasil
Enquanto isso, a América Espanhola, que já era fragmentada em diversos vice-reinos, iniciou suas revoluções de independência e se tornou mais dividida ainda, em diversas repúblicas independentes, porém sem estabilidade política. Desta forma, o Peru conquista sua independência em 28 de julho de 1821 e a Bolívia um pouco mais tarde, em 6 de agosto de 1825.
Agora as negociações sobre a Amazônia e o Acre não são mais problema de Portugal e Espanha, mas sim da tríplice fronteira Brasil-Peru-Bolívia. Assim como as leis em sentido estrito, os tratados internacionais têm vigência por tempo indeterminado e só deixam de valer quando outro acordo é assinado tratando sobre o mesmo assunto. Sendo assim, para todos os efeitos, vigorava o Tratado de Santo Idelfonso (1777) e juridicamente o Acre não fazia parte do Brasil.
Guerra do Paraguai e o tratado da amizade
Como mencionado no início, na região amazônica, por mais que fosse oficialmente estrangeira, os brasileiros pareciam não hesitar e ocupar e explorar economicamente esta região. Do ponto de vista histórico e geográfico, ainda que se houvesse má-fé na posse destas terras, essa ocupação é até justificável, pois as fronteiras eram muito voláteis e de difícil precisão. Destacando-se que até aqui os tratados eram sempre para regular as ocupações brasileiras e aumentar ainda mais as fronteiras deste país.
De qualquer forma, com as novas nações independentes querendo exercer a sua soberania, o Tratado de Santo Idelfonso perdia força e outros acordos precisavam estabelecer novas fronteiras. As negociações até aconteceram no início do século, mas Brasil e Bolívia tinham outras questões urgentes para resolver.

Redimencionamento das fronteiras brasileiras, em especial com o Tratado de Ayacucho
Foi só com a eclosão do Guerra do Paraguai em 1864 que o Império do Brasil precisou reestabelecer suas negociações com a Bolívia para evitar que os bolivianos se aliassem ao inimigo. Daí então, depois de muita diplomacia e novas negociações, foi assinado o Tratado de Ayacucho em 23 de novembro de 1867, no qual, entre outras cláusulas, as fronteiras na Amazônia eram redesenhadas e a Bolívia aceitava manter a neutralidade na guerra.
Nas palavras de Leandro Tocantins, no primeiro volume da sua obra “Formação Histórica do Acre”, tanto o Brasil como a Bolívia firmaram o acerto de Ayacucho para assuntos muito além da fronteira do que aquela obscura linha onde nasceria o Estado Acre.
Comentou o historiador:
“Os dois países assinaram o Tratado de Ayacucho sem conhecerem um palmo da geografia daquele gigantesco e desértico espaço […] Não tinham (Brasil e Bolívia) a menor ideia do valor dessas terras, nem podiam prever o seu futuro, que a borracha (nessa época significava apenas um artigo de exportação amazônica, para satisfazer à curiosidade e ao uso elementar dos povos de uns tantos países) lhes asseguraria no correr dos tempos.”
Bolivian Syndicate
A Bolívia sabia que o Acre lhe pertencia, porém não tinha interesses econômicos exploratórios na região. Inclusive este território constava no mapa dos vizinhos até o fim do século XIX como “tierras non descubiertas”. Os brasileiros, por sua vez, nunca deixaram de ocupar a região, o que se intensificou ainda mais com a grande seca do Nordeste em 1877, que durou três anos e atingiu a região que hoje abrange 6 Estados nordestinos mais o norte de Minas Gerais.
A província do Ceará foi a que mais sofreu com a falta de água, o que intensificou a migração desses brasileiros à Amazônia e consequentemente para a região onde hoje é o Estado do Acre. Essa migração, aliada ao início da exploração econômica do látex em grande escala, deu início ao que alguns historiadores chamam de Primeiro Ciclo da Borracha (1879-1912).

O Acre dificilmente seria anexado ao Brasil se não fosse a importância econômica da borracha a partir do século XIX
O desenvolvimento tecnológico e a Revolução Industrial, na Europa, foram o estopim que fizeram da borracha natural, até então um produto exclusivo da Amazônia, um produto muito procurado e valorizado, gerando muitos lucros e dividendos a quem quer que se aventurasse neste comércio.
As casas aviadoras de Belém e Manaus investiam pesado com capital estrangeiro para explorar a borracha. Este seria o momento perfeito na qual a Bolívia teria a oportunidade de lucrar com este território até então esquecido. Uma das primeiras tentativas de exercer sua soberania no Acre, antes do Bolivian Syndicate, foi abrir um posto aduaneiro na cidade de Porto Alonso (atual Porto Acre) em 1899.
O Acre virou um país
Já era tarde, os vales dos rios Acre, Purus e Iaco já estavam sendo ocupados e explorados economicamente pelos brasileiros há muitos anos. Foi então que se intensificaram as disputas por este território. Vale lembrar que em 14 de junho de 1989 o espanhol Luiz Galvez chegou a declarar o Estado Independente do Acre, uma tentativa de utilizar a jurisprudência internacional do caso Uruguai e transformar o Acre em um país.
O Acre como país só deu certo na cabeça de Galvez, pois o Brasil ficou do lado da Bolívia e assinou um tratado de paz em 15 de março de 1900. Armistício que durou até os brasileiros ficarem sabendo do Bolivian Syndicate, um consórcio entre investidores ingleses e norte-americanos que firmou um acordo com a Bolívia em 1901 para arrendar o território do Acre por 30 anos para extrair borracha.

Estátua do líder da Revolução Acreana, José Plácido de Castro, no Centro de Rio Branco
O governo brasileiro continuava aceitando que o Acre era da Bolívia, mas não aturava o arrendamento. Poderes Legislativo e Executivo se mobilizaram, então o ministro das Relações Exteriores, o famoso Barão do Rio Branco, arquitetou diversas negociações Washington. A essa altura a opinião pública já estava em polvorosa, as tensões em torno da questão foram o estopim da Revolução Acreana, tema já abordado em outro artigo que publiquei aqui na ContilNet.
O Tratado de Petrópolis
Para tentar encerrar a questão. Foi assinado em 17 de novembro de 1903 o Tratado de Petrópolis, no qual o Brasil aceitava pagar 2 milhões de libras esterlinas à Bolívia, além de mais 200 mil libras de indenização ao Bolivian Syndicate pelos investimentos já realizados.
Portando, a incorporação do Acre, foi, de fato, uma compra. Além do dinheiro pago, o Brasil se comprometeu a construir em se território a ferrovia Madeira-Mamoré, na qual a Bolívia teria livre-trânsito, juntamente, com os rios, para acesso ao oceano. Não parou por aí, o Brasil ainda teve que ceder terras, cláusula nunca antes aceita pelo Barão do Rio Branco.
Parte da historiografia boliviana considera que todo este território onde hoje é o Acre seria seu e foi cedido para o Brasil em 1903 com o Tratado de Petrópolis. O mapa abaixo ilustra quais os territórios que seriam originalmente da Bolívia, mas que foram perdidos para os vizinhos. Reparem que todo o Acre, inclusive a parte peruana, teria sido cedida ao Brasil em 1903. Observe o mapa abaixo extraído deste artigo na Wikipédia, que acredito ter se equivocado historicamente e geograficamente sobre a questão do Acre.

A Bolívia perdeu cerca de 80% do seu território original em disputa com os seus países vizinhos
Deixaram o Peru de fora
Com o Tratado de Petrópolis, aparentemente, a questão territorial do Acre estaria resolvida. Entretanto, restava ainda as negociações com o Peru, que não tinha participado do Tratado de Ayacucho em 1867 e ainda tinha diversas disputas territoriais com Bolívia da época em que as duas nações ainda eram colônia da Espanha. Sendo assim, negociar com o Peru seria negociar com a Bolívia novamente.

Peru pouco tempo depois de conquistar a sua independência
Conforme mencionado anteriormente, o último tratado internacional referente às fronteiras na região amazônica foi o de Santo Idelfonso (1777), no qual, segundo os peruanos, as regiões coloniais que corresponde aos vales dos rios Juruá, Tarauacá, Purus e Envira faziam parte de onde mais tarde seria o Peru como nação. Conforme é possível observar em um mapa do país pouco tempo depois da sua independência em 1821.
Pois bem, agora o Barão do Rio Branco tinha outro abacaxi para descascar. Sobre esta situação, o ministro das Relações Exteriores do Brasil vislumbrava três desfechos prováveis:
1°) O Peru ligava-se ao Brasil contra a Bolívia, o que custaria ao Brasil ceder, pelo menos, a região do Alto Juruá, ocupada há muitos anos pelos brasileiros. Aqui o Peru sairia ganhando enquanto Bolívia e Brasil perdiam.
2°) O Peru liga-se à Bolívia contra o Brasil, deixando os brasileiros no prejuízo.
3°) A Bolívia ligava-se ao Brasil contra o Peru. O que não iria mudar nada para o Peru.
Por isso Rio Branco optou por primeiro resolver as questões com a Bolívia antes de fechar negociações com o Peru. Lembrando que sobre a mesma região já tinham sido assinados os Tratados de Ayacucho (1867) e o de Petrópolis (1903), que seria o desfecho da história, caso o Peru ainda não estivesse reivindicando suas terras coloniais, ainda do Tratado de Santo Idelfonso (1777).
O Brasil não aceitaria abrir mão das regiões do Alto Purus e Alto Juruá, pois ainda que esses territórios não tivessem justo título para serem nossos, a diplomacia brasileira utilizava já desde o Tratado de Madrid (1750) o argumento jurídico do uti possidetis, princípio do direito internacional que, em disputas envolvendo soberania territorial, reconhece a legalidade e a legitimidade do poder estatal que de fato exerce controle e ocupa a região, explorando-a economicamente, politicamente ou militarmente.
Cabe destacar que o Brasil se comprometeu a negociar com o Peru, o artigo 8º do Tratado de Petrópolis traduz espírito do Itamaraty em tal sentido: “A República dos Estados Unidos do Brasil declara que ventilará diretamente com a do Peru a questão de fronteiras relativa ao território compreendido entre a nascente do Javari e o paralelo de 11 º, procurando chegar a uma solução amigável do litígio, sem responsabilidade para a Bolívia em caso algum”.
Modus vivendi Brasil-Peru
Por ter ficado de fora das negociações até então, criou-se esse discurso simplista de que o Acre era da Bolívia e foi comprado pelo Brasil. A História tradicional, quando manifestada na forma de discurso dominante, é por essência ufanista, ou seja, serve para a autovalorização de um povo ou nação. Por isso, é muito mais cômodo a quem está no poder unificar as origens do povo que ele comanda em torno de um discurso unitário.
No caso do Acre, a história de que somos um povo descendente de bravos nordestinos que fizeram uma Revolução armada para que hoje este território fosse brasileiro. Além disso, um povo da floresta que desde sempre soube explorar os recursos naturais sem destruir, tendo quase uma relação de “desenvolvimento sustentável” nos seringais.
Entretanto, essa questão Acre-Peru macula esse discurso oficial e torna mais difícil explicar de maneira resumida a História do Acre. Uma questão muito peculiar da vivência entre brasileiros e peruanos na fronteira oeste era o caucho, uma forma diferente de extrair látex para a fabricação de borracha. Para o Peru, o Juruá e Alto Purus não eram “tierras non descubiertas”, os caucheiros já estavam por lá desde meados do século XIX.
Acontece que, enquanto o seringueiro fixava moradia nas colocações no meio da floresta e conseguia extrair o látex de várias árvores sem matar a planta, na fronteira Acre-Peru os caucheiros derrubavam a árvore inteira, deixavam o látex escorrer em uma vala ao redor, colhiam o que precisavam e partiam para outros territórios. Porquanto borracha e caucho criavam formas diferentes de vida, uma fixava moradia nos seringais e a outra era a dos “caçadores de árvores”.

Croqui do Tratado de Petrópolis e negociações com o Peru pelo território do Acre
Não podemos esquecer que tanto caucheiros como seringueiros tiveram que promover verdadeiros genocídios indígenas, tendo em vista que, por mais que as grandes nações firmassem acordos sobre fronteiras, para saber até vão os seus limites e determinar quem vai cobrar os impostos, estas regiões não eram desabitadas. Os ocupantes originais foram, em um número consideravelmente grande, escravizados ou mortos.
Hasta el tratado siempre
Daí se fez necessário o modus vivendi em 1904. Diplomaticamente, modus vivendi é um instrumento que estabelece um acordo internacional de natureza temporária ou provisória, pretendido ser substituído por um acordo mais significativo e completo, como um tratado. Normalmente é informal, e nunca requer ratificação legislativa. Armistícios e instrumentos de rendição são exemplos típicos de modus vivendi.

Nota de 1000 cruzeiros com a foto em homenagem ao Barão do Rio Branco, o “Leopardo Político”
O Peru também tentou envolver o governo norte-americano na questão de limites no Acre, visando apoio diplomático a favor de suas pretensões territoriais. Contudo, diferentemente no caso Brasil-Bolívia, não tinham investimentos dos Estados Unidos como o Bolivian Sydicate. Então os EUA preferiram manter a neutralidade.
Inconformado, o governo peruano anunciou que o país preparava resistência com a “injusta agressão do Brasil”. Bem como ventilou na imprensa que o Brasil estaria se mobilizando militarmente para resistir e uma II Guerra do Acre poderia acontecer. Por sua vez, Rio Branco preferiu não comentar essas especulações do Peru e seguiu na diplomacia. A Capital do Estado do Acre não tem esse nome por acaso.
“O Brasil quer a paz. Basta, para isso, que o Peru o respeite como respeitou até há pouco. Não é muito que se exija do Peru a desistência do domínio sobre populações brasileiras […] Pode acreditar que nessa ocasião não lhe faltará o aplauso dos Estados Unidos agora recusado à sua obra de espoliação”, disse Rio Branco em 7 de agosto de 1904.
“O BRASIL VAI PERDER O ACRE”
Essa foi uma manchete do jornal Diário do Comércio em dezembro de 1908, pois nos últimos cinco anos as relações internacionais tinham esquentado cada vez mais entre Peru e Brasil. O Congresso do país vizinho chegou a autorizar a compra de modernos navios e canhões da Alemanha, com a intenção de promover o conflito armado no Juruá. O barão do Rio Branco usou todas as estratégias que tinha em Washington, o Peru resistia e até apelidou o diplomata brasileiro de “leopardo político”.
Os peruanos recorreram em corte arbitral em Buenos Aires alegando que, pelos limites acertados com a Bolívia em 1851, esta parte do Acre que estava em litígio lhe pertencia desde sempre, portanto não poderia ter entrado na negociação entre Brasil e Bolívia. “O Tratado de Petrópolis será anulado pela arbitral argentina”, diziam os vizinhos.
A notícia repercutiu nacional e internacionalmente, diversos artigos foram publicados em jornais da época refutando a versão dos peruanos, afinal, o Brasil não assinou esse tratado em 1851 e porquanto não estaria obrigado a cumprir. Inclusive pareceres do famoso jurista Clóvis Bevilaqua, autor do Código Civil Brasileiro de 1916, foram publicados no Jornal do Comércio em 1908 alegando que:
“Há regras jurídicas de caráter internacional e outras menos extensas, de aplicação restrita, e neste caso está a regra res inter alios [só funciona entre as partes], justamente a que se aplica no caso sub judice em Buenos Aires. Não sendo o Brasil nem cessionário nem sucessor da Bolívia, a decisão arbitral não lhe poderá atingir. É res inter alios. É um erro, portanto, dizer que o Árbitro argentino vai decidir se o Acre é ou não peruano. O que ele vai fazer é fixar os limites entre o Peru e a Bolívia, segundo os títulos espanhóis que apresentaram.”
Bevilaqua não errou no seu parecer. Em 9 de julho de 1909 a corte argentina deu sua sentença, o juiz não achara nas razões de ambos os países fundamentos precisos para dar ganho de causa a um ou a outro, então o presidente da Argentina “salomonicamente” dividiu o território. Vários trechos da Bolívia passaram a ser peruanos, o que causou mais confusão. O Brasil, no entanto, não fora atingido pela sentença, mantendo os termos do Tratado de Petrópolis.

Croqui das negociações entre Brasil e Peru em torno da questão do Acre
Contudo, esse evento gerou uma crise diplomática Bolívia-Argentina-Peru, qualquer movimento brusco poderia causar uma nova guerra, sendo que a região tinha saído de uma em 1883, quando a Bolívia perdeu o mar para o Chile. Mesmo nessa tensão, o Barão do Rio Branco conseguiu que fosse aprovado em 8 de setembro de 1909 o Tratado do Rio de janeiro, o que os jornais qualificavam como: “O mais sério, o mais difícil, o mais delicado dos nossos Tratados de Limites”.
Alguns documentos dessa negociação estão até hoje classificados como “ultra-secretos”, sendo até alvo de polêmicas durante a tramitação da Lei de Acesso à Informação em 2011. O Itamaraty entedeu que a divulgação dessas informações pode gerar novos conflitos diplomáticos.

Arquivos da negociação do Acre estão em sigilo até hoje, apesar de existirem várias obras a respeito
Valeu a pena?
O ano de 1909, não o de 1903, marca o fim do drama que a História armou em torno das fronteiras do Acre. “O drama da linha verde. Rio Branco transformou-a de linha singela no triângulo verde que é o mais difícil e belo trabalho diplomático do Deus Terminus das fronteiras nacionais”, escreveu Leandro Tocantins.
Segundo o IBGE, em 2015 o PIB do Estado do Acre foi de 13,459 bilhões, ficando na 25° posição, acima de dos Estados do Amapá e de Roraima. Depois de tudo isso, ainda se fala hoje em dia que seria melhor “devolver o Acre para a Bolívia”, mas a primeira pergunta a se fazer é: “Até a parte que era do Peru?”.
Não encontrei dados que confirmem essas informações, mas figuras importantes na região amazônica, como o escritor Márcio Souza e o político Jarbas Passarinho, afirmaram que o valor pago pelo Brasil no Tratado de Petrópolis foi ressarcido em 3 ou 4 anos de arrecadação decorrente da exploração da borracha na região.
Além de todo o esforço diplomático, a indenização aos investidores do Bolivian Sydicate seria equivalente a aproximadamente 50 milhões de reais em valores atuais. Enquanto os 2 milhões de libras esterlinas pagos à Bolívia no Tratado de Petrópolis seriam equivalentes a quase 820 milhões de reais em 2017, de acordo com os sites Historical currency converter e Calculadora do Cidadão. Qual cavalo teria esse valor?