sábado, 21 de abril de 2018

O MITO DO TIRADENTES - 21 de abril (Prof. Dr. Eduardo Carneiro)



É licenciado em História (UFAC) e bacharel em Economia (UFAC). É mestre em Linguagem e Identidade (UFAC), doutor em História Social (USP), e acadêmico do Doutorado em  Estudos Linguísticos (UNESP). É Professor da UFAC, é vice-presidente da Academia Acreana de Letras, escritor, palestrante, editor de livros e poeta nas horas vagas.


Hoje é um Feriado Nacional, quais as suas primeiras impressões sobre isso?
Feriados são uma prática milenar. Desde a antiguidade, povos escolhem datas para se confraternizarem em culto aos deuses ou em honra a um fato ou pessoa que consideram importante. Os feriados tinham como objetivo tirar as pessoas da rotina diária habitual e focá-las no alvo do feriado. Não era igual ao que acontece no Brasil, em que os feriados estão despolitizados ao ponto de o povo considerá-los como dias de lazer. Não se dão conta do fato homenageado pelo feriado. No ano de 2018, o Brasil terá 9 feriados nacionais, 5 deles tem caráter religioso (Portaria Nº 468/2018), além de alguns pontos facultativos. A Índia, por exemplo, tem 18, e lidera o ranking. Os países com menos feriados são México, Hungria e Holanda com 7 a 8 feriados. O que significa dizer que a quantidade de feriados não tem nada a ver com a situação econômica do país, já que temos países pobres com poucos feriados e países ricos com muitos, como é o caso do japão, com 15.
Qual a relação entre feriados e festas cívicas?
Em um Estado Nacional laico era para os dois serem quase sinônimos, ou seja, cada feriado remeter a um acontecimento cívico considerado exemplar, ou seja, digno de imitação e de celebração coletiva. Esse era o projeto de calendário cívico republicano da Revolução Francesa. Nele, não havia espaço para datas religiosas ou lembranças de feitos memoráveis vinculados ao Antigo Regime ou à Monarquia. Tudo deveria fazer lembrar à República e os seus ideais liberais, constitucionais e racionalistas. Então, era de se esperar que em cada feriado nacional o Estado promovesse festas cívicas em comemoração ao motivo do tal feriado. Acontece que o conteúdo nacionalista dos Estados Nacionais contemporâneos está em franco declínio, e os governos já não dão mais tanta importância à promoção da identidade nacional, direção a qual todos os feriados cívicos deveriam apontar. Veja o conteúdo identitário dos feriados na própria justificativa do decreto que instituiu os feriados no Brasil: “considerando que o regime republicano baseia-se no profundo sentimento da fraternidade universal; que esse sentimento não se pode desenvolver convenientemente sem um sistema de festas publicas destinadas a comemorar a continuidade e a solidariedade de todas as gerações humanas; que cada pátria deve instituir tais festas, segundo os laços especiais que prendem os seus destinos aos destinos de todos os povos; Decreta: São considerados dias de festa nacional […]”. (Decreto nº 155-B, de 14 de Janeiro de 1890, grifo nosso).
O senhor falou em Feriado nacional, comemorações cívicas, identidade nacional e historia. O que isso tem a ver?
Tudo! Pois, o feriado nacional foi inventado para ser celebrado coletivamente por meio de comemorações cívicas. O Estado convoca o povo a memorar um acontecimento ou personalidade com alegria, forjando, assim, um espírito de irmandade e de comunhão coletiva em torno de um passado que se mostra único. O passado homenageado é mostrado como um acontecimento arquétipo, ou seja, um modelo identitário. O que caracteriza um Estado Nacional é justamente a preocupação em promover políticas simbólicas de fomentação à identidade nacional. As festas cívicas fazem parte dessas políticas simbólicas e a divulgação de um passado grandioso, digno, apoteótico, também. Por isso, as comemorações cívicas quase sempre honram um passado que só se tornou “fantástico” por ter sido alvo de manipulação embelezadora dos fatos.
Qual sua opinião sobre a história que conhecemos a respeito de Tiradentes?
Tiradentes foi um herói inventado pelos republicanos. Tanto ele quanto o 21 de abril fizeram parte de uma política simbólica identitária cujo objetivo era legitimar a nova ordem ainda carente de legitimação por meio da associação dela com a imagem de heróis. Portanto, operou-se a heroificação de Tiradentes para que o mesmo pudesse servir politicamente à nascente república como um “avatar”. Algo parecido com o que a Frente Popular do Acre fez com a figura do Chico Mendes. Aliás, todo grupo carente de tradição política quando assume o poder executivo faz uso abusivo de políticas culturais de comemorações cívicas e de invenções e louvores de supostos heróis. Assim foi feito na Revolução Francesa, assim foi feito na Revolução Russa, assim foi feito no Brasil a partir de 1964 com os militares.
Então, na sua opinião Tiradentes foi inventado como herói? 
Até 1889, Tiradentes era visto como um criminoso, um rebelde traidor, um membro do exército lusitano que conspirou contra a coroa portuguesa. A memória dele estava entregue ao esquecimento. Ele foi julgado e condenado e sentenciado à morte pelo regime monárquico, portanto, para os monarquistas, tratava-se de uma persona non grata. Ele, assim como a maioria dos heróis republicanos, foi inventado em “gabinete” e estabelecidos por decretos. Podemos explicar isso da seguinte forma: a República no Brasil foi uma ação de participação popular nula, sua proclamação deveu-se a um golpe militar antidemocrático dado em novembro de 1889 contra o Imperador D. Pedro II. Portanto, tratava-se de um movimento elitista sem qualquer legitimação popular, por conta disso, os republicanos trataram logo de criar uma atmosfera política comemorativa em que otimismo pudesse apaziguar o ânimo das resistências. Mas para isso, era preciso criar uma identidade entre o Brasil, o povo brasileiro e a República. Amalgamar todos em uma única figura, projetando uma união em torno dos ideais republicanos. Foi aí que a figura de Tiradentes foi ressuscitada para servir politicamente ao projeto de dominação republicana.
O senhor poderia explicar melhor?
Toda história de Tiradentes foi manipulada a fim de que servisse aos planos republicanos. Em 1890, o governo federal baixa um decreto estabelecendo as comemorações de festas cívicas em homenagens aos acontecimentos pátrios, dos quais figura o 21 de abril foi “consagrada á comemoração dos precursores da Independência brasileira, resumidos em Tiradentes” (Decreto nº 155-B, de 14 de Janeiro de 1890, grifo nosso). Interessante foi que em dezembro de 1930, Getúlio Vargas excluiu o 21 de abril como feriado nacional (Decreto nº 19.488). No entanto, em abril de 1933, o mesmo presidente revê a sua decisão e reestabelece o dia 21 de abril como feriado nacional. Como justificativa para a reinclusão disse: “dentre os feriados excluídos em 1930, o de 21 de abril era o de maior expressão histórica, por isso que fôra consagrado à memória dos precursores da República, simbolizados no mártir, alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes” (Decreto Nº 22.647, grifo nosso). Portanto, Tiradentes foi construído como heróis para servir como arquétipo de brasileiro republicano. Acontece que Tiradentes não era brasileiro, pois o Brasil só passou a existir enquanto país em 1822, com a independência.
Mas Tiradentes não foi um mártir da República brasileira?
Claro que não. Fizeram de Tirandentes um mártir da independência e República brasileira como se ele tivesse motivações patrióticas, como se ele tivesse uma lutado em favor do Brasil num período em que sequer o Brasil existia. A Conjuração Mineira (1789) foi um movimento elitista, separatista e anticolonial de Minas Gerais contra a coroa portuguesa e não do Brasil contra a Metrópole. A principal motivação do movimento não era o idealismo patriótico, liberal e republicano. O que a elite mineira queria era desobrigar-se do pagamento dos abusivos impostos cobrados pela coroa portuguesa. Portanto, romper com Portugal não significava exatamente fundar uma República, o que de fato representava era o não pagamento de impostos. É bom lembrar mais uma vez que o Brasil sequer existia neste período, deste modo, falar de Brasil em 1789 é puro anacronismo. Ser brasileiro era todo aquele que explorava o pau-brasil e não aquele que nascia no Brasil. Tiradentes não deixou nada escrito sobre o que ele defendia de fato. Até mesmo a frase “se dez vidas eu tivesse, dez vidas eu daria” supostamente dita antes de morrer é uma farsa, não há nada que a comprove.
Mas ele foi o líder da Conjuração Mineira não?
Não, não foi. Ele não era o mentor intelectual do movimento, mas uma pessoa simples do povo usada pelos líderes abastados para disseminar a causa elitista no seio das comunidades mais pobres. Portanto, ele não foi um mártir da independência, muito menos da República ou da maçonaria, ele tão somente foi uma vítima da repressão colonial contra os contestadores da ordem lusitana na colônia e um “bode expiatório” para os verdadeiros líderes da “rebelião” que permaneceram vivos por atribuírem a liderança do movimento ao humilde Tiradentes. A história foi manipulada para inventar um sentimento republicano no povo brasileiro anterior à proclamação da República no Brasil. Tal sentimento estaria personificado na figura de Tiradentes, como se a república já fosse querida e desejada há longos anos. Mas tudo foi manipulação, inclusive a própria imagem física de Tiradentes.
No período da Ditadura Militar no Brasil, houve mudanças?
No período da Ditadura Militar, houve uma verdadeira “caça” de militares influentes em cada Estado para receberem homenagens. Queriam mostrar que os militares sempre estiveram presentes positivamente na construção histórica do Brasil. Essa foi uma das formas encontradas pela Ditadura para reafirmar a importância dos militares e estimularem a aceitação popular no “novo” regime. Foi assim que Tiradentes, por ser militar, foi muito mais honrado neste período do que nos anteriores. Leiamos o que diz a Lei 4897/65: “Art. 1º Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, é declarado patrono cívico da Nação Brasileira. Art. 2º As Fôrças Armadas, os estabelecimentos de ensino, as repartições públicas e de economia mista, as sociedades anônimas em que o Poder Público for acionista e as empresas concessionárias de serviços públicos homenagearão, presentes os seus servidores na sede de seus serviços a excelsa memória desse patrono, nela inaugurando, com festividades, no próximo dia 21 de abril, efeméride comemorativa de seu holocausto, a efígie do glorioso republicano. Parágrafo único. As festividades de que trata este artigo serão programadas anualmente. Art. 3º Esta manifestação do povo e do Governo da República em homenagem ao Patrono da Nação Brasileira visa evidenciar que a sentença condenatória de Joaquim José da Silva Xavier não é labéu que lhe infame a memória, pois é reconhecida e proclamada oficialmente pelos seus concidadãos, como o mais alto título de glorificação do nosso maior compatriota de todos os tempos”. Foi nesse período também que Plácido de Castro ganhou notoriedade nacional. Partiu deles a iniciativa de comemorar o centenário de nascimento do “herói” acriano. Para isso, foi criada a Comissão Nacional para coordenar as comemorações do referido centenário pelo Decreto Federal Nº 71.355, de 10 de novembro de 1972. Leandro Tocantins e Arthur César Ferreira Reis foram alguns dos nomes escolhidos. As atividades tiveram início em 1973. No Ministério da Educação estava o acriano de Xapuri Jarbas Passarinho que incentivou a decisão de homenagear nacionalmente o militar Plácido de Castro.
Existe alguma relação entre Conjuração Mineira e Revolução Acreana?
Se essa pergunta fosse feita a um historiador oficial certamente ele lhe responderia que o patriotismo dos envolvidos em ambos os movimentos. Mas eu digo que o que há de comum é o poder de a elite regional em transformar suas causas por meio da manipulação da opinião e da história em “bandeiras” populares. Tanto a Revolução Acriana quanto a Conjuração Mineira foram movimentos elitistas contra o pagamento de impostos. Não foram movimentos libertários, aqui no Acre ninguém foi a favor da libertação do seringueiro do trabalho compulsório, da escravidão por dívida. Lá em Minas Gerais, ninguém apoiava o abolicionismo, até porque eram donos de escravos. Plácido de Castro, assim como Tiradentes, tinham escravos (seringueiros endividados). Ambos não foram os mentores do movimento, mas assim ficaram consagrados. Ambos os movimentos não foram patrióticos, mas assim ficaram imortalizados. Os verdadeiros mentores e financiadores da Revolução Acreana ainda estão para receber homenagens, se é que devem. Portanto, é comum a história oficial maquiar e manipular os fatos, responsabilizar um movimento coletivo na figura de uma única pessoa é típica do personalismo historiográfico conservador. Pior ainda é dissimular as motivações mesquinhas e egoístas com sentimentos nobres de altruísmo, de patriotismo e de fraternidade nacional, como foi o caso dos dois movimentos
Muito obrigado professor, quais são as suas últimas considerações?
Eu acho que está faltando uma Conjuração Mineira popular em nosso país atualmente. Pois o povo brasileiro está sendo colonizado por seus próprios compatriotas. Os abastados de Vila Rica acharam absurdo a cobrança do quinto (20%) e se negou a tentar completar a meta fiscal de arrecadação anual estipulado pela coroa lusitana. Sabe-se que o Brasil e hoje um dos países com maior carga tributária do mundo. Ele fica entre os quinze primeiros em cobrança de impostos e entre os últimos em retorno dos impostos ao bem-estar coletivo da sociedade. Quase 40% dos rendimentos dos brasileiros são destinados ao pagamento de impostos que, no Brasil, o que significa dizer que em média 150 dias ao ano o brasileiro trabalha só para pagar impostos. O povo brasileiro precisa se rebelar duplamente: primeiro contra os abusivos impostos, segundo a favor do retorno social dos impostos pagos. Este ano se comemora 226 anos da Conjuração Mineira, mas a Conjuração Brasileira ainda está por vir.







     

domingo, 15 de abril de 2018

KANARÔ: PERSEGUINDO A POÉTICA DRAMATÚRGICA DECOLONIAL
EM BETHO ROCHA E MATIAS
Por João Veras
A história do teatro acreano – o mesmo que a história do teatro no Acre – é muito recente. Sou de uma geração que assistiu e viveu um de seus capítulos mais significativos nas décadas de 70/80/90. A exemplo das outras manifestações artísticas - como a música, a literatura, as artes plásticas e o cinema - a dramaturgia acreana nasce e caminha como uma possibilidade outra de nos manifestarmos sobre o entorno e o interior de nossos desassossegos no aqui agora do viver social e cultural locais. Uns mais engajados com questões sociais, outros menos, mas, de qualquer modo, é possível afirmar que, como regra, muito dessa produção artística não ignora – pelo contrário enfrenta – as questões de interesse locais que buscam desassociar falseadamente a cultura da política - especialmente as que dizem respeito a relação do poder institucional, de caracteres colonizadora, exploradora, racializadora – com os grupos sociais – nomeados como minorias.
Sempre quando penso no que assisti e vivi nesse passado recente do teatro acreano me vem à mente duas de suas vertentes, estabelecidas ao longo desta jovem história, que a mim parecem significativamente simbólicas dessa dramaturgia que aqui vou adjetivar de decolonial (na frente explico o que isto significa e o porquê): a do Grupo De Olho na Coisa, de Matias, e a do grupo Adsabá, de Betho Rocha, ambos falecidos no mesmo ano de 1997.
Estes grupos dirigidos/concebidos por estes dois artistas acreanos carregam posturas estéticas e temáticas aparentemente diversas entre si. O De olho na Coisa se finca na questão social em volta da relação floresta/cidade, tanto no que diz respeito aos seus efeitos sociológicos quanto ecológicos. Ambos postos de modo a denunciar as condições colonizada/racializada dos sujeitos seringueiros e indígenas e de seus territórios tidos, pelo olhar colonizador, como periféricos, tradicionais e, por isso, atrasados, antieconômicos e inferiores em relação à chamada modernidade sustentável dos centros. Por seu turno, o Adsabá, na fase em que Betho se volta para uma dramaturgia dita antropológica (especialmente com as peças Histórias de Quirá e Lendas de Contato, baseadas na cultura e narrativa indígenas dos Madija, da bacia dos rios Purus e Juruá), ocupa um vazio temático até então contido nas expressões artísticas, não só dramatúrgicas, em razão da então – mantida historicamente - invisibilidade social, política e cultural dos indígenas “acreanos”. Betho, para além disso - assim como Matias faz em relação aos seringueiros - chama atenção para os valores culturais, políticos e sociais dos povos indígenas locais.
Todavia, é no campo da linguagem estética que ambos parecem caminhar de modos um tanto diversos. O De Olho na Coisa busca uma dramaturgia de comunicação direta para a fácil compreensão de todos (para tanto se vale da oralidade e de outros elementos da chamada cultura popular) – o que não arranha seu valor artístico – posto que, na voz de Matias, o seu teatro é uma forma de manifesto político-estético ante a realidade em que se encontram inseridos seus fazedores e expectadores. Não é à toa que o De Olho na Coisa preferia a rua – de livre e imediato acesso a todos - ao espaço da caixa cênica, esta, de certo modo, ainda seletiva e, por isso, muito pouco acessível ao grande público.
O Adsabá, por sua vez, pautado em montagens no escuro da caixa cênica, propõe uma estética da experimentação de caráter dramaturgicamente original, de forte influência da linguagem fílmica, especialmente quanto à luz, e inovadora no aspecto teatral quando a dança – o corpo em movimento/música – supera a palavra. Os seus personagens pouco ou nunca falam. Quase um teatro mudo, sonora, cromática e imageticamente.
O fato é que, ambos os grupos, mantiveram-se resistentes frente a tudo que representa o poder moderno-colonizador no campo da estética e da política. Matias por defender a vida da floresta e seus habitantes seringueiros contra a frente de desenvolvimento e progresso que a destrói, periferiza/subordina os seringueiros e coloca em seu lugar o boi e a exploração madeireira. Betho por tratar nos palcos a dimensão cultural indígena com respeito e sem a instrumentalização folclórica, contra todos os preconceitos/racismos étnicos em face dos índios.
O mundo de Betho parece movimentar-se da cidade para a floresta. O de Matias no sentido inverso. Ambos fazendo tais movimentos às avessas e vice-versa. Betho era forma estética numa estética de pleno conteúdo político. Matias era substância política num conteúdo de plena forma estética. Na prática (e na teoria) tudo se embaralha e vira teatro de cada um em particular próprio.
Por estes dois grupos, dois criadores, o teatro acreano – e no Acre – se manifesta, na forma e conteúdo, uma expressão estética de caráter decolonial, isto é, uma arte não conformada - mas insurgente - tanto em relação ao status quo político, quanto em relação ao sentido artístico dominante de seu tempo. Talvez esta seja a maior razão que me mova à lembrança e, principalmente, ao reconhecimento deles como expressões definidoras de uma dramaturgia marcadamente própria na cena artística acreana - e não cópia, como aos costumes coloniais se espera sejamos em relação aos cânones dos centros de produção e difusão cultural nacional e mundial.
Ambos faziam teatro apesar do teatro, ou melhor da concepção de teatro a que deviam seguir. Ambos faziam um teatro “desacademizado” – isto é, sem a obediência – o que não quer dizer desconsideração - aos padrões das técnicas e cânones teóricos. Ambos faziam teatro apesar da condição hierárquica a que estavam postos – como um teatro inferior, posto que amador... – pela visão cultural colonizadora. Ambos tematizavam o local, ou melhor, partiam dele, seu lugar de enunciação. Ambos traziam nos seus corpos as marcas do racismo da colonização dita modernizadora. Matias era negro, ex-seringueiro, pobre, artista “amador” e morador da periferia. Betho, poeta, homossexual e artista sobre-vivente do teatro amador no Acre. Eles lutavam contra a condição histórica de todo considerado não-ser que a visão colonizadora lhes impingia. Suas obras/eles – em corpo/alma - eram formas de resistência a tais condições. Eles (e seus teatros) foram desobedientes à condição colonial, daí decoloniais.
Dito assim, não estou desconsiderando tudo que na época, depois dela e agora, se fez e se tem feito no teatro local, muito do que se comunica com – e é determinado - por estas duas vertentes, o que as legitima como referência de pesos político e estético neste campo.
Este reconhecimento pontual o faço para considerar que o espetáculo Kanarô, do grupo Vivarte (em sua qualificada experiência de 20 anos de teatro de rua, de floresta e também de caixa cênica), é declaradamente um produto direto da influência destes dois projetos/referências da dramaturgia local. Nessa linha, Kanarô, ao seu modo e no tempo de agora, se propõe muito humildemente a ser um manifesto político-estético da força de um De Olho na Coisa e também um manifesto estético-político pautado nas experimentações cênicas e respeito antropológico de um Adsabá. Se acaso este desejo/desafio não se realizar – pela percepção atenta de cada um dos que o expectarem no arena do Sesc - Kanarô não perderá viagem se for aceito como uma homenagem ao teatro acreano, por estas suas duas expressivas vertentes. Quem assistir verá.
HOJE, DOMINGO, É A ÚLTIMA APRESENTAÇÃO DE KANARÔ, NO ARENA DO SESC, ÀS 19 HORAS.