domingo, 4 de abril de 2021

Professor Eduardo Carneiro da UFAC publica mais um livro sobre história do Acre - Não foi Revolução nem Acreana


 

INTRODUÇÃO

 

            Essa obra é parte do relatório de pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) durante o período de agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação da UFAM teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, desde a graduação em História, a saber: teria sido a anexação do Acre uma dádiva dos heróis acreanos?  Os livros que li sobre o assunto dizem que sim, os discursos que anualmente ouvi nas paradas cívicas também. Porém, assim como o príncipe Hamlet, no livro de Shakespeare, eu também suspeitava de que “havia algo de podre no reino da Dinamarca”.

          Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na historiografia acreana e sim a ausência de alguns que considerava dignos de mesma áurea, como o Barão do Rio Branco e os governadores do Amazonas Ramalho Júnior e Constantino Nery. Obviamente que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes feitos”. Sei que os “homens” e “feitos” não são “grandes” ou “pequenos” em si mesmos e que a valoração ou depreciação deles depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que escreveram as narrativas documentais preservadas.

 


 

  Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por interesses econômicos como é o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar os fatos e avaliar quais deles foram realmente decisivos para a nacionalização da região do Acre ao Brasil. E foi isso que eu fiz em meus livros anteriores e é o que continuo fazendo neste. Em outras oportunidades (CARNEIRO, 2017) eu já havia explicado a importância da atuação diplomática do Itamarati na nacionalização do Acre e como o Movimento Autonomista Acreano foi minando a figura do Barão do Rio Branco como herói regional.

No presente livro mostro a participação do Estado do Amazonas para o sucesso da anexação do Acre. Em 1861, o governo do Amazonas contratou o amazonense Manoel Urbano da Encarnação para mais uma expedição de reconhecimento, que subiu o rio Purus e alcançou o atual rio Acre e também o Xapuri. Ele é considerado, por muitos, como o “descobridor do Acre”, pois de acordo com a hipótese defendida por Castelo intelectuais amazonenses o Branco (1950), ele teria sido o primeiro a identificar seringueiras nessa região do Purus[1].

Essa foi a forma que encontrei para pôr em prática o meu projeto revisionista, aquele que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consistiu em atitudes simples, como a de descentralizar a figura de Plácido de Castro na Questão do Acre, bem com a dos próprios moradores do rio Acre que resistiram a soberania boliviana na região em fins do século XIX e início do XX.

Outra coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução, na parte sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os sentidos que têm hoje. Eles gozavam de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos têm atualmente.

Para tentar reconstituir o passado com maior fidelidade, eu procurei compreender as fontes documentais da época a partir das condições históricas de emergência de delas. Afinal, é bom lembrar que o sentido de um vocábulo não lhe é imanente; é mera convenção. Sendo assim, a depender da situação comunicacional e dos interactantes, os sentidos podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra também se torna outra, embora a mesma grafia seja preservada. As palavras homônimas são todas aquelas que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos particulares, constituem-se em signos distintos.

 


Tendo em vista isso, perguntei às fontes documentais que estudava: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” no contexto histórico amazônico em fins do século XIX? O que se queria realmente dizer com o emprego delas? Teria o narrador dos fatos ou o enunciador do discurso plena clareza terminológica ao empregar o conceito de “revolução” para caracterizar a resistência armada feita pelos brasileiros contra os bolivianos? O fato de o acontecimento ter sido qualificado pelos protagonistas do evento como revolução, é suficiente para o feito se tornar revolução? Qual o sentido de revolução que se tinha? Por que revolução e não subversão, rebelião ou revolta?

O livro foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de “revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política no caso do Acre.  No segundo capítulo, evidencio a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre. No último capítulo, exponho as razões pelas quais acredito que a resistência à soberania boliviana na região do rio Acre não tenha sido acreana. 

 


 

          Se eu estiver com a razão, temos mais um fenômeno histórico mal “etiquetado”. As etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se diz História Moderna, somos levados a crer que fatos ocorridos na Europa durante os séculos XV e XVIII, como o colonialismo e o tráfico de seres humanos, foram práticas sociais “avançadas”. O adjetivo “moderno” é uma etiqueta que faz parte de um projeto etnocêntrico de História. Quando se estuda as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV com a etiqueta “Grandes Navegações”, somos induzidos a pensar que eles foram os primeiros a se aventurarem nos mares. A verdade é que os chineses, antes dos europeus, já dominavam os oceanos, com tecnologias bem mais avançadas.

Até que ponto não é “preciosismo” chamar de “Revolução” os fatos políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Seria a etiqueta “Revolução de 1930” uma dissimulação ao Golpe de Estado que de fato aconteceu? Uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia? Será esse o mesmo caso da dita “revolução” “acreana”?

Por que tenho eu que acreditar acriticamente no que estão dizendo? Não seria melhor recorrer aos documentos primários e analisá-los à luz das relações de poder emaranhadas do contexto histórico? Se um dia alguém chamou de moderno o Estado Absolutista europeu do século XV, por tenho que dar credibilidade? Se alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que foi assassino, e tal fama chegou até mim, por que tenho que aceitar sem pesquisar? Não seria mais sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu? Acaso a fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja como herói e não como assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não foi mero fetiche a encobrir a verdade? Até que ponto o patriotismo ou o nacionalismo pode justificar atos criminosos como o de tirar a vida de outrem?

Infelizmente, essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de “penduricados” ideológicos e “etiquetas” interpretativas. Então, a história é consumida como verdade, porém, é apenas uma visão cômoda, romântica e apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania consciente e a atuação política crítica no tempo presente.

A história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela, até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.

Há, porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que se torna muito difícil mudar-lhes os enfeites. É que o formato agrada a “gregos e troianos”, independentemente da classe dominante, ele é usado politicamente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Lembro que o abuso da história sempre foi um instrumento de poder bastante usado por governantes com tendências autoritárias ou populistas. É assim que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.

 


 

Independente do grupo político que esteja governado o Acre, no dia 6 de agosto, feriado estadual em que se comemora o início da chamada Revolução Acreana, os políticos da hora sempre irão exaltar o feito e manifestar o orgulho de ser acreano. Nas paradas cívicas, redes sociais ou tribunas, os políticos vão fazer questão de dizer que os acreanos foram os únicos a lutarem para ser brasileiros. Diante de um passado original supostamente tão grandioso, persuadem os acreanos a serem otimistas no tempo presente, confiando em seus líderes, que aparecem como os novos candidatos a heróis.

Como historiador, já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano, com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico, patriótica, cordial e ecológico. Quando a verossimilhança é ensinada como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.  

 


 

Quando os fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a suposta grandeza do povo acreano, quando conseguem, já não se temos mais a História e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada” ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático, festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.

Sob o efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.

Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos por causa do consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate.

 

Boa leitura!



[1] Apesar da importância de Manoel Urbano, quem de fato ficou consagrado como “fundador do Acre” foi o cearense João Gabriel de Carvalho e Melo. Segundo a tradição, em 1857, foi ele quem primeiro colonizou uma parte do território que hoje pertence ao Estado do Acre, a saber, a região próxima da foz do rio Purus. Anos depois, expandiria a iniciativa rio acima.