sexta-feira, 29 de junho de 2012

A FALSA GÊNESE DO POVO ACREANO: A MENTIRA DA UNIDADE NA REVOLUÇÃO ACREANA.


“Não podemos nos esquecer que antes da Revolução não havia acreanos, mas tão somente brasileiros do Acre.
 E foi durante essa luta que surgiu nossa identidade como povo” (VIANA, Jorge. Apresentação. In: CALIXTO, 2003).


O Acre constituiu-se no final do século passado, como uma unidade de território, povo e Estado” (VIANA, Jorge. Apresentação. In: Revista Galvez e a República do Acre, 1999)“. 


Esta identidade, bastante fraca, contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob uma máscara é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam” (FOUCAULT, 2001, p. 34).


Eduardo Carneiro - Professor da UFAC. 

A história oficial afirma que os brasileiros do Acre foram movidos pelo patriotismo quando resolveram se unir para “expulsar” os bolivianos daquelas terras. Então, nesse caso, o patriotismo foi o motivo e, a guerra, o acontecimento mobilizador da comunhão. Mas realmente houve um consenso entre os acreanos em relação à Revolução Acreana? Teria ela significado a mesma coisa para todos os que nela se envolveram?  É provável que não.
O discurso histórico fez da revolução o exemplo constituinte da unidade do povo acreano, no entanto, é inegável que durante todo período revolucionário, de José Carvalho a Plácido de Castro, sempre houve dissidentes - aqueles que apoiavam o governo boliviano; opositores – aqueles que desejavam esperar a intervenção direta do governo brasileiro na questão; indiferentes – aqueles que, mesmo sabendo da insurreição, preferiram não fazer parte dela; e desinformados, aqueles que nem ao menos tomaram conhecimento da revolução.
Em maio de 1899, José Carvalho (2003), o líder da chamada “primeira insurreição acreana", dispôs-se a colher o máximo de assinaturas possíveis num Manifesto a favor da expulsão do governo boliviano da região. Apesar de todo o esforço do revolucionário, não conseguiu nem sessenta rubricas. Por que o restante do “povo” não assinou? O motivo não pode ser explicado simplesmente pelo analfabetismo.
Com Galvez não foi diferente. O Estado Independente nunca foi consenso, até porque se tratou de um projeto “partejado” (cf.: BARROS, 1993, p. 39) com o apoio de alguns poucos seringalistas de expressão da região do baixo Acre. Desde os primeiros meses de seu governo, o espanhol teve que combater “energicamente todos os focos de agitação”, como afirma o historiador Leandro Tocantins (2001, p. 349).
 Vários grupos se insurgiram: o liderado pelo coronel Neutel Maia, do seringal Empresa; o do Capitão Leite Barbosa, de Humaitá; e a da Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros; do Alto Acre. Isso sem dizer que “as pessoas de maior destaque [de Xapuri] não haviam aderido ao Estado Independente” (idem, p. 350). Sem citar que o Juruá, no geral, nem sequer tomou conhecimento dos decretos expedidos por Galvez.

De Xapuri, Galvez receberia ofício assinado por Manoel Odorico de Carvalho, auto-intitulado Prefeito de Segurança Pública pela vontade soberana do povo, comunicando que, no alto Acre, a população resolvia não aderir a essa revolução sem primeiro ouvir a decisão do governo brasileiro [...] Somava-se a este movimento dissidente do Alto Acre, um outro que, sob a denominação de Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros, procurava, de todas as formas, minar o governo provisório. No baixo Acre, para completar, havia, ainda, a propaganda anti-governo provisório, liderado por Neutel Maia do seringal Empresa e pelo Capitão Leite Barbosa, do seringal Humaitá, este último outrora ativo colaborador na administração Paravicini. (CALIXTO, 2003, p. 162) [grifo nosso].

A famosa Expedição dos Poetas é o exemplo clássico da desunião. Ela partiu de Manaus em fins de 1900 com o objetivo de expulsar os bolivianos que regressaram à região após a derrocada do governo de Galvez. “As divergências sempre surgiam, a toda hora, por falta de unidade de comando” (MEIRA, 1974, p. 57).
O próprio Plácido de Castro se queixou da dificuldade em arregimentar voluntários. E isso é mencionado por Azcui Benjamin (1925), como prova de que os acreanos eram de modo geral pacíficos em relação ao governo boliviano. É o próprio Plácido de Castro quem diz que “todos declaravam que empenhariam o melhor da vida, mas ninguém queria ser o primeiro” (CASTRO, 2002, p. 55); “os proprietários tudo prometiam, mas em verdade mostravam-se receosos” (idem, p.57).

Al estalhar la conflagración separatista, el Acre contaba con más de treinta mil habitantes, mostrándose case la totalidad indiferente a lo que ocurría, de tal modo que los promotores de la revueta, para hacer consentir en su popularidad expedían despachos de coroneles a granel, sin que por ello lograsen el concurso de los agraciados, porque el ideal de los acreanos era el de continuar como hasta entonces, sin freno a sus desmanes ni autoridade que los gobernase, imperando entre ellos los de mayor fuerza física o institinos sanguinarios más deprazados (BENJAMIN, 1925, p. 45). [grifo nosso].

No tenían la suficiente preparación, ni combatían en defensa de un sagrado derecho, conscientes de la justicia que les asistiera; mercenarios recolectados en los antros del vicio y la miseria, trabajandores obligados por sus patrones a batirse y perder la vida pro una causa ignorada por ellos, lógicamente, debían perder la moral ante individuos patriotas que abandonaron las fruiciones del hogar por acudir en amparo de nuestra integridad territorial” (idem, p. 97) [grifos nossos].

É Plácido de Castro quem toma as providências para que todos os acontecimentos do dia 6 de agosto de 1902 fossem devidamente documentados. Uma ata da proclamação do Estado Independente do Acre foi redigida e 20 cópias dela foram enviadas “rio abaixo”. Castro acreditava que com essa medida “se alguém franqueasse, não pudesse recuar, visto se haver comprometido com a assinatura da ata” (CASTRO, 2002, p.58). Enfim, o coronel conhecia bem as “convicções revolucionárias e patrióticas” de seus comandados. Por isso, teve que liderá-los “pela espada e pelo revólver” (ibidem, p. 60).
A unidade dos acreanos em torno da Revolução Acreana foi tão grande que Plácido de Castro inicia sua campanha com apenas 33 seringueiros-soldados (cf.: idem, p. 56). E no auge da guerra esse número não ultrapassou o montante de 2.000 revolucionários (cf.: GOYCOCHÊA, 1973, p. 118). O argumento de que eles se uniram por causa de um ideal, a de darem “o melhor de suas vidas à causa de tornar o Acre parte do Brasil” (MARQUES, 2008, p. 71) é tão evidente que o próprio Cel. Plácido de Castro afirmou que “a autoridade do chefe teve de ser mantida pela espada e pelo revólver” (Apud BENCHIMOL, 1977, p. 389).
A população “branca” na região das margens do rio Acre foi estimada em: 15.000 habitantes, por Tocantins (2001, p. 191); em 25.000, pelos próprios chefes da Revolução (BRAGA, 2002, p.15. Cf.: CABRAL, 1986, p.35); em 50.000 por Hernán Ribera (1997, p. 54) e em 100.000, por Craveiro Costa (2005, p.219).
Se for levado em consideração esse último número, significa dizer que menos de 2% da população local verdadeiramente empunharam armas contra os bolivianos. E isso sem levar em consideração a população da região do Juruá, que sofreu apenas “ecos” do movimento. Essa paupérrima porcentagem dispensa comentários.
Até hoje não se tem provas que confirmem o envolvimento da maioria da população do Acre na chamada Revolução Acreana. “Tudo indica que essa espinhosa questão”, como dizia Rocha (1903, p.5), não tenha sido unanimidade entre a elite da sociedade gomífera. E é provável que aqueles que nela se envolveram, não tenham assim procedido pelos mesmos motivos. “Cada segmento se relaciona com a guerra por motivos e interesses bastante particulares”, já dizia Miceli  (1994, p. 78).
Sendo assim, não é errado dizer que os acontecimentos que ficaram etiquetados como “Revolução Acreana” foram alvos de diversas representações. Uma coisa foi o “olhar” de quem participou da luta armada, outro foi de quem não participou. Dentre aqueles que participaram certamente a polifonia era reinante. As expectativas do seringueiro com relação aos resultados do conflito armado certamente não eram os mesmos do seringalista. “Waterloo não foi a mesma coisa para um soldado e um marechal” diria Veyne (1982, p. 12). Além do mais, alguns dos seringalistas que fizeram parte da idealização e execução do combate, no decorrer dele, mudaram de posição política.
Como podemos observar o passado fundador com o qual o acreano é ensinado desde o ensino fundamental a venerar, não passa de uma região tumultuada de discursos. A imagem compacta e homogênea que temos da Revolução Acreana não passa de uma construção discursiva politicamente sustentada. Quando se olha a representação da Revolução Acreana hoje, diria Foucault, está se olhando para um “monumento”, crivado de subjetividades e de silêncios.
A “questão acreana” foi sustentada por múltiplos interesses. O governo do Amazonas queria garantir a arrecadação dos impostos. Os seringalistas queriam garantir suas propriedades privadas e a manutenção do lucro gomífero. Os profissionais liberais sonhavam em assumir importantes cargos públicos. E os seringueiros pretendiam quitar suas dívidas e, quem sabe, ter saldo ou para comprar o seu próprio seringal ou para voltar à sua terra natal. Desnecessário dizer que os interesses aqui mencionados foram os parecem ter prevalecido em cada segmento social, o que não quer dizer que outros não tenham existido.
O Acre enquanto comunidade carecia de unidade, isso é um fato. O que existia em comum entre aqueles brasileiros do Acre para torná-los uma comunidade? Seria o território? Com certeza não, pois as fronteiras só foram plenamente consolidadas em 1909. Seria a língua? Não, naquela região existia de tudo: do espanhol aos dialetos indígenas. A cultura? Não, as mais diversas tradições estavam ali representadas pelos nordestinos, gaúchos, sírios, libaneses, franceses, bolivianos etc.
Apesar de todo esforço dos chefes da revolução, o que parece é que a unidade foi uma construção discursiva póstuma. Não havia nada forte o suficiente que ligassem aqueles migrantes, a não ser a ambição pelo “ouro negro”. Naquela realidade social era impossível qualquer sentimento de solidariedade e comunhão entre seringueiro e seringalista. A unidade ganhava forma e tornava-se “sólida” somente no e pelo discurso.

Eduardo Carneiro – é professor da UFAC, doutorando (USP).

Referências Bibliográficas

BARROS, Glimedes Rego. Nos Confins do Extremo Oeste: a presença do capitão Rego Barros no Alto Juruá (1912-1915). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1993, Vol. I.
BENCHIMOL, Samuel. Amazônia: um pouco – antes e além – depois. Manaus: Editora Umberto Calderaro, 1977.
BENJAMIN, Azcui. Resumen histórico de las campañas del Acre (1899-1903). Intendência de Guerra: La Paz, 1925.
BRAGA, Antonio de Souza. et al. A questão do Acre: Manifesto dos chefes da revolução acreana ao venerado presidente da república brasileira, ao povo brasileiro e às praças de comércio de Manaus e do Pará. Rio Branco: FEM, 2002.
CALIXTO, Valdir. Plácido de Castro e a Construção da ordem no Aquiri: contribuição à história das ideias políticas. Rio Branco: FEM, 2003.
CARVALHO, José. A primeira insurreição acreana. Rio Branco: FEM, 2002.
CASTRO, Genesco. O Estado Independente do Acre: excerptos históricos. Brasília: Senado Federal, 2002.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 16º ed. Rio de Janeiro: Graal. 2001.
GOYCOCHEA, Castilhos. O espírito militar na questão acreana — Plácido de Castro. Comissão Nacional do Centenário de Plácido de Castro. Rio de Janeiro: Cia. Brasileira de Artes Gráficas, 1973.
MARQUES, Binho. Plácido de Castro: o gaúcho que liderou a conquista do Acre para o Brasil. In: Revista Princípios. N° 98. Outubro/Novembro de 2008.
MEIRA, Silvio Augusto de Bastos. A epopeia do Acre: batalha do outro negro. 2° ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1974.
MICELI, Paulo. O mito do herói nacional. 5. ed. São Paulo: Contexto, 1994.
RIBERA, Hernán Messuti. La dramática desmembración Del Acre. Sucre: Ed. Judicial, 1997.
ROCHA, Julio. O Acre: documentos para a história da sua ocupação pelo Brasil. Lisboa: Minerva Lusitana, 1903.
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. Brasília: Senado Federal, 2001, Vol. I. 
VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Foucault revoluciona a história. 4. ed. Brasília: Editora UNB, 1982.


sexta-feira, 22 de junho de 2012

HOMENAGEM A LEANDRO TOCANTINS









"A primeira obra de Leandro Tocantins que tive contato foi o monumental livro ‘Formação Histórica do Acre’. Desde então fiquei fascinado pela história acreana e pela obra de Leandro Tocantins. Aproveito a ocasição para saudar, entre outros, Marcos Afonso e Marcos Vinícius Neves que ultimamente têm-se empenhado no resgate da memória e do pensamento de Leandro Tocantins, inclusive  com a aquisição de parte do acervo pessoal do escritor, doado pela famíla à Biblioteca da Floresta, em Rio Branco. Que este possa ser apenas um passo inicial, e que trabalhos semelhantes possam se dar com J.G. de Araújo Jorge, Djalma Batista, José Potyguara, Miguel Ferrante, por exemplo, personagens ainda olvidados no Acre recente ou que não vão além de nomes de escolas". ISAAC MELO


FONTE: http://almaacreana.blogspot.com

O Acre e a ditadura da Novilíngua

FONTE: http://o-seringueiro.blogspot.com.br/


O Politicamente Correto é um câncer de origem revolucionária esquerdista, que tenta impôr por força de lei a mudança cultural sobre um povo – é a agenda gramsciniana. Faz parte da mentalidade revolucionária decidir o certo e o errado e nos obrigar a todos a seguir conforme eles ensinam em suas cartilhas embebidas de hipocrisia histórica e totalitarismo. Enfim, o Politicamente Correto é a imposição por parte de um grupo de sábios sobre o que eles projetaram que nos seja o melhor, o que é o certo para o bem comum.

Esta sandice teve sua origem nos Estados Unidos e logo foi exportado para diversos países do mundo. Aqui chegando, em terra brasilis, rapidamente encontrou adeptos que se empenharam em defendê-lo. Entre os casos mais notáveis, encontra-se o ícone da decadência ideológica Aldo Rebello (do PC do B, claro!), que resolveu, num surto de delírio revolucionário, proibir o povo de usar palavras estrangeiras! Isso mesmo! O Politicamente Correto é a invasão do público no privado ou, usando uma expressão mais ao meu gosto (e deliciosamente incorretíssima): o Politicamente Correto é o estupro do Coletivo no Privado!

Mas não foi apenas o nobilíssimo Deputado Aldo que nos presenteou com suas quimeras, pois até mesmo já se havia confeccionado uma cartilha de palavras proibidas (Index Verborum Prohibitorum!), que, segundo ensinam os sábios de plantão, são palavras que ofendem, diminuem, humilham determinadas minorias: é o bullying linguístico! Entretanto, essa cartilha também foi engavetada e você sabe por quê? Pelo simples fato de que o então Presidente Lula da Silva falava também muitas dessas palavras em seus próprios discursos. Que constrangimento!

Mas como se anuncia no título deste post, a sanha do Politicamente Correto atingiu as terras distantes do Oeste Brasileiro: incomodaram o Acre com mais essa gama de conversa mole sobre palavras proibidas ou a re-escrita de antigas para se adaptarem aos novos tempos. Tudo se deu por causa da suposta - suposta, porque ainda é deveras controversa – origem do nome “Acre”. Veja abaixo um resumo da questão.

nome, que passou do rio aoterritório, em 1904, e ao estado, em 1962, origina-se, talvez, do tupi a'kir ü "rio verde" ou da forma a'kir, de ker, "dormir, sossegar", mas é quase certo que seja uma deformação de Aquiri, modo pelo qual os exploradores da região grafaram Umákürü, Uakiry, vocábulo do dialeto Ipurinã. Há também a hipótese de Aquiri derivar de Yasi'ri, Ysi'ri, "água corrente, veloz".[23]
Na viagem que fez ao rio Purus, em1878, o colonizador João Gabriel de Carvalho Melo escreveu de lá ao comerciante paraense visconde de Santo Elias, pedindo-lhe mercadorias destinadas à "boca do rio Aquiri". Como em Belém, o dono e os empregados do estabelecimento comercial não conseguissem entender a letra de João Gabriel ou porque este, apressadamente, tivesse grafado Acri ou Aqri, em vez de Aquiri, as mercadorias e faturas chegaram ao colonizador como destinadas ao rio Acre.[23]

O fato é que no Acordo Ortográfico de 2009 quiseram mudar a grafia de “Acreanos” para “Acrianos”! E novamente a mentalidade revolucionária se revela por impôr sobre os indivíduos uma decisão de sábios por força de lei! A crença que a mudança de grafia ou a proibição de palavras irá alterar o curso da História ou, num passe de mágica, irá fazer do cidadão comum um ser mais consciente, mais digno e repleto de direitos da cidadania só pode se operar na cabeça de alguns sábios de plantão mesmo, pessoas sempre atentas em interferir na vida privada de cada um de nós. É a crença de que, se reformarmos a linguagem, estaremos reformando a mente das pessoas também! Mude-se uma letra e todo o mundo descobrirá a verdade sobre os acrIanos e sua história, seu povo, lutas e anseios – evidentemente, essa tese é, no mínimo, ridícula! É a ditadura da novilíngua tão bem retratada na obra1984 de Orson Wells. 

Enquanto o Estado não promove uma economia leve que gere empregos e oportunidades e que também possibilite a independência dos cidadãos de suas bolsas-esmola (este cabresto moderno), segue gastando fartamente verba pública desvendando mitos linguísticos que não resolvem os problemas nem dos acreanos e nem dos acrianos!

OS APÓSTOLOS DE MAMÓN - o engodo da teologia da prosperidade

quarta-feira, 20 de junho de 2012

ELEGIA AO PT: "A sua piscina está cheia de ratos, suas ideias não correspondem as fatos" Cazuza.


PARA TER $$ DINHEIRO $$ O HOMEM É CAPAZ DE TUDO. 

NÃO HÁ IDEOLOGIA, só corrupção!!!!

TODOS OS POLÍTICOS ENRIQUECEM... 

o povo... que se lasque.


No dia que a política não render DINHEIRO e PODER, saberemos realmente quem faz política como um ato sacrificial em prol da melhoria do seu próximo, ou seja, se doa em prol de uma causa coletiva.


Lula e MALUF

Não é tão diferente de

 ORLEIR e VIANA

OS COMPANHEIROS se unem para sucatear a máquina pública. Cadê a Reforma Administrativa e Política?

Perpetuam a corrupção e os vícios da política coronelista brasileira. O que irá acrescentar Maluf ao governo de Dilma?

O mesmo que Orleir acrescentou ao governo dos Vianas.


A HIPOCRISIA HUMANA É GRANDE


Pessoas mudam de postura e ideologia conforme o máximo de conforto, prazer e dividendos que obtiver...                           é o HOMO ECONOMICUS




Não me envergonho de Lula, mas dos políticos do Brasil.


Lembrem-se, esse cidadão que se diz amigo dos trabalhadores, já fez campanha para a filha do ex-presidente e agora senador José Sarney. HIPÓCRITA!!!!!!!!




domingo, 17 de junho de 2012

Quanto custa o Acre? (por Leandro Narloch)


Apesar de sobrarem suspeitas sobre sua existência, o Acre é frequentemente objeto de polêmicas. Em 2006, Evo Morales, presidente da Bolívia, reclamou que o país deu o território do Acre ao Brasil em troca de um cavalo. Logo vieram protestos: na verdade, não foi pelo preço de um cavalo, mas por 2 milhões de libras inglesas de 1903, que em 2006 valeriam por volta de 230 milhões de dólares. Acreanos mais indignados apareceram depois que o jornalista Diogo Mainardi, no programa Manhattan Connection, disse que até um pangaré seria um preço alto pelo Acre.

A fala do presidente Evo Morales fez parecer que o Brasil aproveitou um momento de ingenuidade dos vizinhos para fazer um negócio da China. Foi o contrário. A Bolívia aproveitou um momento de ingenuidade do Brasil para se livrar do Acre. Conseguiu ganhar um dinheiro com a venda e largar mão de um território que lhe traria gastos monumentais. Talvez o governo brasileiro da virada do século previsse que o Acre seria um mau negócio. Até adquirir a área definitivamente, em 1903, o Brasil teria tentado, por três vezes, empurrá-la para os bolivianos. Só aceitou ficar com a região depois da insistência de seringueiros teimosos, militares clandestinos patriotas e até de um visionário espanhol que sonhava em fazer do Acre uma sociedade perfeita.


A primeira vez que o Brasil tentou se livrar do Acre foi em 1867, com o Tratado de Ayacucho. Era época da Guerra do Paraguai. O imperador dom Pedro II queria agradar os vizinhos para evitar que eles armassem confusão, como fizeram os paraguaios. Ser generoso nos acordos territoriais era um jeito de reforçar a amizade com a Bolívia e assegurar a paz. Para delimitar a região, os diplomatas brasileiros usaram como referência as latitudes e a posição dos rios do Alto Amazonas. O extremo oeste do país seria marcado pela união dos rios Beni e Mamoré, de onde sairia uma linha para o oeste, até encontrar o rio Javari, que até hoje faz a fronteira do sudoeste da Amazônia. Como ninguém sabia muito bem onde esses rios começavam ou convergiam, o art. 3º do Tratado de Ayacucho determinava:


No prazo de seis meses, contados da troca das ratificações do presente Tratado, nomeará cada uma das altas partes contratantes um Comissário; e, nos mais breve tempo que for possível, procederão os dois comissários, de comum acordo, à demarcação da linha divisória, nos pontos em que isso for necessário, e de conformidade com as estipulações que procedem.


Era para ser seis meses. Quase trinta anos depois do Tratado de Ayacucho, os bolivianos não tinham sequer aparecido no Acre. Ainda não se sabia exatamente o que era o estado e onde ficava a fronteira. Em 1895, o Brasil resolveu dar uma ajuda. Mandou para lá uma missão demarcatória chefiada por Gregório de Thaumaturgo de Azevedo, um oficial obstinado que já havia sido governador do Piauí. No Rio de Janeiro, os ministros dos primeiros anos da República esperavam que o enviado fizesse as mediações e determinasse de uma vez por todas qual era a parte boliviana. Thaumaturgo, no entanto, percebeu que povoados brasileiros cheios de seringais ficariam do lado boliviano caso o Tratado de Ayacucho fosse obedecido. Escreveu ao Rio de Janeiro dando o alarme:


Toda essa zona perderemos, aliás, explorada e povoada por nacionais e onde já existe centenas de barracas, propriedades legítimas e demarcadas e seringais cujos donos se acham de posse há alguns anos sem reclamação da Bolívia.


Depois de uma comunicação como essa, a atitude mais esperada pelo governo era aceitar os avisos do oficial, tentar reverter a fronteira do Acre e garantir as riquezas que poderiam vir de lá. No século 19, a exploração da borracha fez de Manaus e Belém cidades com avenidas e teatros riquíssimos, cujos moradores importavam vinhos e queijos franceses e mandavam engomar camisas em Portugal. Além dos impostos provenientes da borracha, o governo central tinha outro bom argumento para negociar com a Bolívia. Naquela época, impasses sobre fronteiras distantes eram geralmente decididos pelo princípio do uti possidetis, segundo o qual a soberania da área pertence a quem de fato a ocupa. 


O Acre vinha sendo habitado por brasileiros desde 1879, depois que uma grande seca atingiu o Ceará e desencadeou uma migração nordestina para a Amazônia. Se o governo brasileiro quisesse ficar com a região, tinha motivos. Mas o Rio de Janeiro não deu a mínima para os avisos do oficial Thaumaturgo, que acabou afastado da missão. Um novo chefe foi nomeado, o capitão-tenente Cunha Gomes. Ele tratou de fazer vista grossa para os povoados brasileiros e estabelecer a divisa com base no tratado anterior, lembrando os bolivianos mais uma vez: o Acre é de vocês. O governo do Rio de Janeiro adorou – até hoje, Cunha Gomes nomeia a linha reta que delimita a fronteira norte do estado.


Essa foi a segunda vez que o governo tentou se livrar do Acre. Em 1898, o ministro das Relações Exteriores, Dionísio de Castro Cerqueira, pôde enfim escrever um telegrama ao governador do Amazonas. Pediu-lhe para “concordar no estabelecimento de posto aduaneiro à margem do Acre ou Aquiri, em território incontestavelmente boliviano, isto é, acima da linha tirada do Madeira à margem do Javari, na verdadeira latitude determinada pelo capitão-tenente Cunha Gomes”. O governo federal resolveu, assim, ignorar os brasileiros que moravam no Acre. Até hoje os acreanos guardam uma raivinha por causa disso. No livro Plácido de Castro, editado em 2003 com dinheiro do governo do Acre, o professor universitário Valdir de Oliveira Calixto diz:


Estultice, falta de patriotismo, cega obstinação de Ministro desqualificado para o exercício do cargo, conforme sugeriria Thaumaturgo Azevedo? Ou uma atitude calculada de poder, em extrema dificuldade para administrar um crise que vinha penosamente se arrastando desde 1895?


Com o ok por parte do Brasil, a Bolívia tratou de se apossar do Acre. A nova região dava uma esperança aos bolivianos. Vinte anos antes, durante a Guerra do Pacífico, eles tinham perdido para o Chile o território de Antofagasta, ficando sem saída para o mar. A conquista de terras disputadas com o Brasil foi uma pequena compensação. Para tomar o poder do Acre, a Bolívia designou José Paravicini, embaixador do país no Rio de Janeiro. No fim de outubro de 1898, o diplomata se apressou para emprestar 40 contos de réis dos Bancos de Londres e do Rio da Prata, prometendo pagar a dívida com os impostos que o Acre renderia. 


Enviou ainda um telegrama para o embaixador boliviano em Londres, pedindo que mandasse um bom engenheiro e verbas para a construção da sede acreana do governo da Bolívia, e partiu de barco para a Amazônia. Numa escala em Fortaleza, Paravicini recebeu a notícia de que não iriam ao Acre nem o engenheiro inglês, nem o dinheiro solicitado, e pensou em desistir da aventura e regressar ao Rio. A viagem só continuou porque o diplomata emprestou mais dinheiro do Banco de Londres. Consegui assim chegar à Amazônia. Por onde passava, a comitiva boliviana recebia saudações das autoridades brasileiras. Em Belém, Paravicini conseguiu crédito da Casa & Cia, com o qual comprou materiais de construção e contratou pedreiros, ferreiros e carpinteiros. Em Manaus, o representante boliviano foi recebido com um brinde de champanhe pelo governador do Amazonas, Ramalho Júnior.


No começo da noite de 30 de dezembro, depois de dois meses de viagem, a comitiva boliviana enfim chegou ás terras do Acre. Até então, os seringueiros daquela região não tinham sido informados de que não moravam mais no Brasil. A chegada dos estrangeiros causou uma surpresa que o escritor Leandro Tocantins, autor da principal obra sobre a história do Acre, reconstituiu com tons dramáticos:


De repente, destacou-se no silêncio da noite o apito prolongado de um navio. Todos dirigiram-se, pressurosos, para o barranco, atraídos pela boa nova do gaiola que traria um pouco de vida ao solitário povoado. Jornais de Belém e Manaus, cartas de parentes e amigos, notícias do mundo, uma pequena amostra de civilização que vinha naquele vapor, certamente abarrotado de mercadorias, para receber, em troca, as “pelas” negras, acontecimento comum naquela época de rios cheios.


Distinguiram aproximar-se nas sombras da noite o navio iluminado, vibrando as máquinas para vencer as máquinas para vencer a forte correnteza do Purus, na manobra de atracação. A bordo, uma algazarra invulgar, palavras soltas de um idioma que não era o português.
Havia entre os seringueiros um oficial do governo brasileiro chamado José Carvalho. O homem não pôde deixar de ficar atordoado com os forasteiros bolivianos. Escreveu ele anos depois:


A noite toda passamos numa inquietação indizível de espírito num laboratório de cogitações. Para mim – confesso francamente – aquela tomada imprevista do Acre era um assalto arrojado de aventureiros que poderiam, em poucos dias, fazer uma fortuna numa grossa espoliação da borracha.


A despeito da surpresa dos seringueiros brasileiros. Paravicini se nomeou delegado boliviano no Acre. Seus homens abriram uma clareira num terreno alto, onde o diplomata hasteou a bandeira da Bolívia. Foram criadas duas repartições – a de registro de direitos reais e a de direitos fiscais. Tratava-se da estrutura necessária para cobrar impostos dos seringueiros. Pela primeira vez, a região tinha um escritório oficial de algum país. A questão ficaria resolvida, e o Acre estaria confortavelmente nas mãos da Bolívia, não fosse um excêntrico diplomata e jornalista espanhol e seu sonho de montar seu próprio país por ali.


O nome dele era Luis Gálvez Rodríguez de Arias. Na Andaluzia, o rapaz tinha boa vida: sobrinho de um ministro da Marinha espanhola, era simpático, elegante e tinha um bom trabalho no Banco da Espanha. Até que, em 1891, aos 27 anos, Gálvez se meteu em dívidas de jogo e perdeu o emprego. Derrotado e envergonhado, resolveu fugir para a América do Sul. Tentou a vida em Buenos Aires e no Rio de Janeiro, mas acabou se estabelecendo na Amazônia. Em Manaus virou dono de um cabaré e repórter do jornal Comércio do Amazonas. Em maio de 1899, Gálvez viajou a Belém exatamente quando o representante Paravicini e alguns de seus funcionários passavam pela cidade. O espanhol acabou participando de um almoço com a comitiva boliviana. Foi quando uma notícia bombástica circulou à mesa.


Gálvez ouviu os bolivianos discutindo a hipótese de arrendar o Acre para o Anglo-Bolivian Syndicate e a Companhia de Borracha dos Estados Unidos. As empresas extrairiam borracha para a fabricação dos carros dos americanos e dariam ao governo boliviano 60% dos lucros da exportação. O caso virou manchete do jornal Província do Pará de 3 de junho de 1899 e incendiou a Amazônia. Na sacada de redações de jornais de Belém e Manaus, deputados e jornalistas declaravam seu ódio à Bolívia e aos americanos.


No Rio de Janeiro, Rui Barbosa chegou a comentar a questão, dizendo que se a região fosse concedida àquelas companhias, poderia ceder á política imperialista dos Estados Unidos, assim como acontecera no Havaí. Agora os acreanos tinham um trunfo: o patriotismo e o sentimento popular de ter seu patrimônio ameaçado.


No meio daquela controvérsia, o jornalista espanhol percebeu que a razão de sua existência tinha enfim chegado. A questão acreana pedia atos heróicos e ele estava disposto a isso. Bom de papo, Gálvez alarmou o governador do Amazonas sobre a quantidade de impostos que o estado perdia com a intervenção da Bolívia ou dos Estados Unidos. O Acre vinha exportando 2 mil toneladas de borracha por ano e os tributos dessa venda não ficavam para o Brasil. 


O governador aderiu aos alertas do espanhol e deu a ele armas e um canhão para a batalha de reconquista do Acre. Gálvez reuniu vinte soldados e partiu para seu destino heróico no Eldorado amazônico. É provável que sua motivação fosse parecida com a dos europeus fascinados pelas utopias do século 19, que vieram à América Latina construir sociedades perfeitas. Entre 1842 e 1843, por exemplo, cerca de 150 franceses seduzidos pelo socialismo utópico criaram em Santa Catarina o Falanstério do Saí, o protótipo de uma sociedade que durou apenas um ano. No Paraná, imigrantes italianos montaram uma sociedade anarquista, a Colônia Cecília, que teve um princípio de liberação sexual, admitindo casamentos de uma mulher com dois homens – isso em 1890. 


O espanhol deveria nutrir um sonho parecido para o Acre. “Gálvez foi uma mistura de dom Quixote e Lord Jim que reivindicava seu valor depois de um erro cometido no passado”, afirma o jornalista Alfonso Domingo na biografia La Estrella Solitaria. Apesar de não ter revelado essa intenção ao governador do Amazonas, o visionário espanhol não queria apenas levantar os seringueiros contra a Bolívia, mas criar uma nova nação: a República Independente do Acre.


Entre os soldados de Gálvez havia atores e atrizes de um grupo espanhol de zarzuela. De passagem por Manaus, os artistas foram seduzidos por ele para fundar um país. É interessante imaginar o choque de culturas que deve ter ocorrido quando essa trupe chegou ás margens do rio Acre, no fim de junho de 1899. Os europeus, cheios de sonhos tirados de livros e com o coração exasperado por teorias, passaram a viver com os seringueiros, personagens que se destacavam pela desesperança. 


Como escrevia Euclides da Cunha em 1905, ao visitar o Acre, o seringueiro “não se rebela”, “não murmura”, “não reza”, “não tem diluições metafísicas” e é resignado o suficiente para acreditar que “os grandes olhos de Deus não podem descer até aqueles brejais, manchando-se”. Na fundação da República do Acre, dois grupos tão distintos devem ter protagonizado cenas dignas da zarzuela, tipo de teatro que intercala diálogos ridículos com músicas, lembrando uma ópera-cômica.


Para conquistar aqueles rudes homens, o visionário Gálvez tocou no assunto que mais os indignava: o fato de o Brasil não estar nem aí para aquele lugar. No discurso que consta na primeira ata da Junta Revolucionária do Acre, ele disse:


Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecíamos passivamente todos os julgamentos praticados pela alta e baixa justiça do Delegado Nacional da Bolívia, na esperança de que nossa idolatrada Pátria, a gloriosa e humanitária Nação Brasileira, acudisse em nosso socorro e atendesse nossos justíssimos pedidos. [...] O Governo do Brasil não respondeu aos nossos patrióticos alarmes. É justo, pois, que cidadãos livres não se conformem com o estigma de párias criado pelo governo de sua Pátria – nem podem de forma alguma continuar sendo escravos de uma outra nação: a Bolívia.


O novo país foi fundado em 14 de julho de 1899 – a data foi escolhida por Gálvez para coincidir com o 14 de julho francês. A capital ganhou o nome de Cidade do Acre – hoje Porto Acre, na divisa com o Amazonas. O grupo formou um conselho ministerial, uma bandeira e um selo comemorativo. Um barracão de madeira virou o palácio do governo, em cuja fachada havia a inscrição “Pátria e Liberdade”. Criaram-se também a Força Pública Nacional, composta de batalhões de infantaria, cavalaria e corpo de bombeiros, e a Força de Instrução, para educar os acreanos. 


Vinte e sete decretos de Gálvez regulavam os futuros serviços de água, transporte, abastecimento, iluminação pública, os incentivos às indústrias e famílias de colonos que quisessem se instalar por ali. Em francês, língua oficial da diplomacia da época, o “Imperador do Acre” mandou um comunicado aos países da América do Sul anunciando a proclamação da nova nação de 6.742 cidadãos. A Argentina, então país mais rico da América do Sul, chegou a reconhecer a legitimidade do Acre como nação. Gálvez mandou também um aviso especial para o presidente brasileiro, Campos Salles. 


Dizia que, se o Brasil quisesse se apoderar de novo do país, tudo bem: “Se o ato que praticaram [os brasileiros no Acre] pode trazer consequências desastrosas à Nação Brasileira, o Governo Provisório deste Estado, embora tenha que tragar uma dolorosa humilhação, cederá perante o que for a conveniência da Pátria. O espanhol provavelmente queria que o Acre tomasse o mesmo rumo do Texas, que décadas antes tinha se declarado independente do México para logo depois ser incorporado aos Estados Unidos. O governo brasileiro, porém, não queria incorporar um novo país. Pela terceira vez, tentaria se livrar do Acre.


Em 1900, navios de guerra brasileiros chegaram á região e desfizeram a república Independente do Acre. Apesar da superioridade militar, os brasileiros não ficaram com o território: reintegraram sua posse para a Bolívia. Luiz Gálvez foi preso, mandado para Pernambuco e, de lá, de volta para a Espanha, onde morreu em 1935.


O governo do Rio de Janeiro só desistiu de recusar o Acre quando uma expedição militar clandestina quase provocou uma guerra de verdade com a Bolívia. Em 1902, os bolivianos já tinham, além de alfândega, pequenas instalações militares na região. Também haviam declarado publicamente que iriam arrendar o Acre ao Bolivian Syndicate. A questão ficaria resolvida, e o Acre estaria confortavelmente nas mãos da Bolívia ou dos americanos, não fosse a intervenção do gaúcho José Plácido de Castro, um ex-militar que tinha lutado no Rio Grande do Sul durante a Revolução Federalista. 


Patriota radical, Plácido achou um absurdo a possibilidade de americanos mandarem num pedaço do Brasil. Em agosto de 1902, ele montou uma tropa de setenta seringueiros-soldados e saiu derrubando as instalações bolivianas que encontrava. A Bolívia revidou um mês depois, matando 22 homens da tropa de Plácido. Líder militar experiente, o brasileiro não desistiu: com pouquíssimos homens, montou um cerco aos bolivianos, fazendo mais de 150 deles se render. Em janeiro de 1903, sua tropa conseguiu desbancar todos os bolivianos de Porto Acre. O lugar era novamente uma república, desta vez o Estado Meridional do Acre.
Os generais da Bolívia preparavam uma revanche avassaladora, que poderia criar um novo conflito equivalente ao da Guerra do Paraguai, quando o governo brasileiro percebeu que não tinha mais como ignorar o Acre. O barão do Rio Branco, então ministro das Relações Exteriores, foi à Bolívia para acalmar os vizinhos. No fim de 1903, em Petrópolis, os dois países fecharam um acordo. O Brasil se comprometeu a pagar 2 milhões de libras esterlinas pelo Acre, ceder à vizinha um pedaço do Mato Grosso e ainda construir uma ferrovia para que os bolivianos tivessem acesso ao rio Amazonas e, assim, ao oceano Atlântico. 


Tratava-se da ferrovia Madeira-Mamoré, que envolveu 22 mil operários – 2 mil deles morreram na construção. O dinheiro da obra, vindo de bancos europeus, foi gasto em vão. Enquanto os acreanos travavam batalhas patrióticas, seringais mais densos cresciam na Ásia. Eram fruto de 70 mil semens que o inglês Henry Wickham tinha levado do Brasil em 1876. No Sri Lanka, as árvores foram plantadas uma do lado da outra, criando um sistema muito mais inteligente que o do extrativismo de árvores distantes da Amazônia. O novo fornecedor logo conquistou o mundo. A venda da borracha asiática passou de 45 toneladas em 1900 para 107 mil em 1915. Já o Acre, produtor de uma borracha mais cara, nunca mais daria dinheiro. Como os presidentes do Brasil devem ter previsto, adquirir aquele território foi um tremendo mau negócio.

Existem muitos lugares irrelevantes pelo mundo – como Porto Rico, a Bélgica, o Paraná -, o que não chega a ser um problema. A questão muda quando esse lugar cria despesas para os outros. O dinheiro gasto em nome do Acre não foi tanto o pagamento para adquiri-lo em 1903, mas o que veio depois. Até hoje, mais de um século após a região passar a fazer parte do Brasil, o estado continua custando milhões por ano. 


Em 2007, o Acre, que tem um Produto Interno Bruto tão grande quanto o da cidade de Limeira, no interior de São Paulo, arrecadou 177 milhões de reais em impostos federais. No mesmo ano, o orçamento federal executado (a quantia que o Acre tirou do Tesouro Nacional) foi três vezes maior: 605 milhões de reais. Os números foram parecidos em 2008: 627 milhões de orçamento executado, arrecadação de imposto de 204 milhões, novamente três vezes menor. Ou seja: a cada ano, o estado custa mais de 400 milhões de reais á nação. O custo do Acre pode ser ainda maior, já que o orçamento federal não inclui investimentos diretos dos ministérios nem gastos com deputados federais e senadores.


Em 2007, segundo a ONG Transparência Brasil, cada deputado brasileiro custou 6,6 milhões de reais por ano; cada senador, 33 milhões. Por ano, os oito deputados e três senadores acreanos custam 150 milhões de reais. A montanha de dinheiro que deve ter ido para aquele canto da Amazônia é incalculável. Para chegar a uma soma, é melhor ignorarmos alguns gastos, mesmo que no fim das contas o custo Acre fique menor que o real. Imagine que, em média, desde 1908, tenhamos gastado com o Acre metade do rombo de 2008, o que daria mais ou menos 280 milhões de reais. Em cem anos, seriam 28 bilhões.


É interessante imaginar o que poderia ser feito com esse dinheiro. Uma nova linha de metrô com 13 quilômetros de extensão, como a Linha Amarela construída em São Paulo enquanto este livro é escrito, exige do governo em valores de 2007, um investimento inicial de 700 milhões de reais – o resto vem de empréstimos de instituições como o Banco Mundial que acabam sendo pagos com os bilhetes dos passageiros. Com metade daqueles 28 bilhões de reais queimados com o Acre nos últimos cem anos, poderiam ser criadas pelos menos vinte linhas de metrô. Se fossem construídas em São Paulo, a cidade teria um sistema de metrô com mais de 260 quilômetros, o que faria o metrô de São Paulo ser maior que o de Paris, um dos maiores do mundo. Um cenário parecido seria possível em outras capitais, já que existem vários outros Acres pelo Brasil: Rondônia, Roraima, Amapá, Tocantins, Alagoas... Esse raciocínio leva a uma conclusão assustadora. Se tivéssemos vendido parte da Amazônia ou se algum país tivesse se apossado de pelo menos um pedacinho dela, seríamos hoje muito mais felizes.


Quando eu era criança e fazia bagunça demais em casa, minha mãe costumava brincar dizendo que, se alguém me seqüestrasse, ela daria 1 milhão a mais de resgate para o bandido ficar comigo. É mais ou menos o que deveríamos ter feito com o Acre.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

BREVES NOTAS SOBRE O HEROISMO HUMANO NA HISTÓRIA: BRAVURA, GLÓRIA E IMORTALIDADE.


“Em todas as épocas da história do mundo, encontraremos o grande homem como o salvador indispensável do seu tempo. Como disse, a História do mundo é a biografia dos grandes homens [...] o culto aos heróis há de perdurar para sempre” (CARLYLE, s/d, 23).

“O culto do herói sempre justifica um contexto autoritário” (FEIJÓ, 1984, p. 42).

A concepção de heroísmo é movente. Vários tipos de heróis são identificados no decorrer da história. As qualidades e desventuras que assumem são marcadamente influenciadas pelas aspirações políticas do grupo social que as fazem circular. O antropólogo e linguista Joseph Campbell num dos mais clássicos livros sobre o assunto O herói de mil faces faz, especificamente no capítulo Transformações do herói, um minucioso estudo de pelo menos seis tipos de herói: o humano, o guerreiro, o amante, o tirano, o redentor e o santo. Buscou com isso traçar o curso da história legendária da raça humana ao longo dos seus estágios típicos. O herói aparece em cena e assume várias formas, atendendo as necessidades de cada “raça”.
Apesar das “mil faces”, o mito do herói, segundo Campbell (1988), é uma metáfora semelhante empregada nas diversas culturas. Os heróis têm “jornadas” quase idênticas, passando por rituais de separação, iniciação e retorno. A explicação para tal semelhança, de acordo com o antropólogo, é que o mito é uma produção espontânea da psique “e se torna parte da vida cultural de um povo” (FEIJÓ, 1984, p. 20).
O escritor Campbell tem por principal objeto de estudo os clássicos exemplos da mitologia universal. Feijó (1984) e Carlyle (s/d), no entanto, trabalham com figuras reais e históricas.  A seguir, algumas tipologias de heroísmo e seus respectivos representantes: o profeta (Maomé), o revolucionário (Che Guevara), o bandido (Robin Hood), o músico/roqueiro (Joh Lennon), o poeta (Dante), o presbítero (Lutero), o gênio (Rousseau), o político/estadista (Napoleão).
O status de herói geralmente é atribuído postumamente. Eles não nascem heróis, não foram predestinados para tal. A heroificação deles tem uma história. E toda história, como já foi visto, é entremeada por relações de poder. Os estágios: separação, iniciação e retorno, também são cumpridos nesses casos - eles saem do mundo dos mortais, passam pela metamorfose simbólica e voltam para os mortais em forma glorificada.
O herói sempre vira um instrumento de poder da classe dominante. Isso não quer dizer que os excluídos não tenham seus heróis. A história oficial foi quem conspirou contra os heróis deles, negando-lhes memória. O herói da elite é quem entra na história, o do povo não tem vez na ordem do discurso, é interditado, vira anônimo. A memória é sempre um instrumento da classe dominante.
A historiografia durante muitos anos foi o lugar privilegiado do culto aos heróis. Thomas Carlyle (s/d), no século XIX, foi quem firmou as bases dessa filosofia. Na Inglaterra, no auge das transformações industriais e no apogeu dos movimentos sociais ele pregava a necessidade do culto aos heróis para evitar a anarquia e a revolução.

Carlyle defende um caráter divino nos heróis e que uma sociedade fundada em seu culto seria estável e respeitaria a hierarquia como coisa sagrada [...] cultivar o ensinamento dos feitos heroicos para a juventude respeitar a ordem e conservar a história sem mudanças. Ele chega a ser taxativo: o verdadeiro herói é filho da ordem; sua missão é garanti-la [...] o problema é que sua teoria acabou impregnando todo um pensamento histórico (FEIJÓ, 1984, p. 34).

A história assim concebida seria a biografia dos grandes homens. Homens esses eleitos pela divina providência. Os arquétipos são aqueles que destacaram de alguma forma no período significativo das “origens”, se tornando, por isso, a matriz heroica dos antepassados da comunidade.   
Os heróis e o heroísmo são frutos da imaginação humana. Um comportamento pode ser considerado heroico para um grupo social e repugnante para outro. Os heróis “podem ser produzidos e desfeitos, ao sabor de novos interesses ou paixões” (MICELI, 1994, p. 12). Mil são as faces do herói, no entanto, para efeito desse trabalho, apenas a do guerreiro será abordada aqui.
Na mitologia grega, o herói era fruto da união de um humano com um deus, portanto, era um semideus que herdava poderes extraordinários dos deuses e a mortalidade dos homens. Aos heróis, a mitologia atribui realizações grandiosas, impossíveis de serem realizadas por homens comuns. Realizações esses que geralmente são acompanhadas de muito derramamento de sangue. A violência que acompanha a trajetória do herói não é tão notada, pois a narrativa batiza como nobres e altruístas as motivações dele. Os heróis são sempre guiados por ideias briosos.
A perspectiva bélica do herói permeia até hoje o imaginário da civilização ocidental. As guerras produziram os mais ilustres heróis dos civilizados, que por mera coincidência, são os responsáveis diretos pelo assassinato de dezenas e até centenas de vidas humanas. Não é preciso citar nomes, basta dizer que matar o outro é uma prática habitual dos heróis ocidental, que chegam ao Olimpo por “salvarem” de cruéis inimigos toda uma coletividade.
É práxis no mundo ocidental justificar a guerra criando um motivo nobre para ela. Os motivos sempre são elevados. É por isso que os EUA nunca figura como vilão nas inúmeras guerras que promovem no oriente. A história oficial e o jornalismo “canalha” sempre mostram o lado “bonzinho” da tragédia. Muito sangue é derramado, mas a macabra tarefa é feita com “dignidade”.
No mundo capitalista, a maioria das guerras é produzida em defesa do capital. Nelas causas materiais, intimamente ligadas aos grupos socioeconômicos e, em geral, ao egoísmo humano são incrivelmente beatificadas. A história, escrita oficial da elite, resume todas as motivações em jogo na quimera do idealismo, altruísta de regra. Negando que: “na guerra, os mais mesquinhos apetites humanos são expostos à consagração da história” (MICELI, 1994, p.78).
Para finalizar: o Herói não pode ser aquele que mata ou o responsável por ela, não há nobreza nenhuma nisso. O Herói deve ser aquele que resolve conflitos respeitando a vida. A bravura deve estar nos gestos de tolerância e não nos de eliminação do outro; no amor e não no ódio; na vida e não na morte; no altruísmo e não na xenofobia; no amor e não na violência. Numa guerra não há vencedores no sentido pleno da palavra. Nela todos se tornam estúpidos, insanos e bárbaros. Esse modelo militar de heroísmo não deve ser incentivado.

Eduardo Carneiro – professor da Universidade Federal do Acre.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Pensamento. 1988.
CARLYLE, T. Os heróis e o culto dos heróis. São Paulo: Cultura Moderna, s/d.
FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. São Paulo: brasiliense, 1984.


quinta-feira, 14 de junho de 2012

A genealogia da “economia-mundo capitalista”: ensaio sobre a violência e corrupção.

           
“Toda história do capital é uma história de violência e saque, de sangue e lama” (LÊNIN, 1968. p. 35).

A História Econômica é um campo de estudo do conhecimento acadêmico que analisa as atividades econômicas do homem no tempo. As atividades econômicas têm a ver com a produção, circulação e consumo de bens e serviços. E “bens” e “serviços” têm em comum o fato de serem obras do trabalho humano que visam à satisfação de necessidades individuais ou sociais, quer sejam físicas ou mentais.
O homem, independente de sua genealogia fundadora - criacionista ou evolucionista, sempre precisou consumir. É uma questão biológica de sobrevivência, pois sem a alimentação mínima, o homem tende a morrer em poucos dias. E para tanto, o trabalho é imperativo. Pode-se dizer que o trabalho é a ação mental e/ou empírica do homem sobre “o mundo que o cerca” a fim de produzir utilidades que venham satisfazer as necessidades dele e/ou as de outrem.
As habilidades do homem em sustentar a si mesmo e a outros se aprimoraram com o tempo. Os instrumentos de trabalho se aperfeiçoaram de modo que as “utilidades” passaram a ser feitas com mais rapidez, maior qualidade e menor esforço físico. Resultado: a capacidade produtiva humana se tornou ilimitada. Hoje se tem condições de suprir a miséria mundial. No entanto, a produção acontece no limite da demanda solvível ou realizável.
Concomitante a esse aumento da capacidade produtiva humana, aconteceu que muitos passaram a ser sustentados ou terem suas necessidades supridas por outros. Classes sociais, propriedade privada, divisão social do trabalho e desigualdade social são temas relacionados a esse fato. Mas a discussão sobre eles não serão priorizados aqui. Basta afirmar que todos eles fazem parte da história econômica do homem. As formas como esses fenômenos se manifestaram no tempo, serviram para que muitos estudiosos caracterizassem ou classificassem as diversas sociedades.  
Há quem defenda a hipótese de uma etapa inaugural universal do desenvolvimento material humano: o comunismo primitivo. A característica dele seria a ausência de propriedade privada, de classes sociais e do Estado (ENGELS, 1986). No entanto, tal proposição não é harmônica com a hipótese da existência de instintos naturais ao ser humano que são inibidores ao comunismo. Exemplo disso é a agressividade, o egoísmo e o impulso à dominação, dentre outros. 
A riqueza e a pobreza são milenares. A violência do homem sobre o homem também. A riqueza parece não existir sem a pobreza. E esse estado de coisas não se mantém sem o uso da violência. Sendo assim, a história das experiências humanas em sociedade aponta para algumas premissas: a de que o mais fraco serve ao mais forte; a de que o mais forte geralmente é aquele que tem maior poder de destruição; e a de que o mais fraco é sempre o mais pobre.
O historiador marxista Perry Anderson (1992) afirma que nos países ocidentais a riqueza de uns sempre requer a miséria de muitos. Embora o modelo neoliberal seja tão bem defendido por personalidades como Francis Fukuyama (1989) e Friedman (1974), fica patente que a desigualdade social lhe é constitutivo.    Se a riqueza tem ligação com o trabalho e se quem trabalha realmente não fica rico, então alguma coisa está errada. Grupos de pessoas estão laborando em prol do enriquecimento e satisfação dos desejos de outrem.
E como ninguém aceita uma situação de exploração pacificamente, o uso da violência física e simbólica se tornam quase inevitáveis. O uso da força é um instrumento de dominação antigo, mas que até hoje é utilizado. Está presente em todo o processo “civilizatório” do homem. O desenvolvimento econômico ocidental, por exemplo, teve a exploração colonial como um dos seus fatores principais. Consequentemente, o assassinar e o roubar foram práticas inaugurais da “modernidade” europeia.
Por tudo isso, é que a riqueza e a violência estão muito próximas para serem estudadas separadamente. É como diz Keegan (1996, p. 16): “a guerra está indiscutivelmente ligada à economia”. Pois, “se a essência do poder é a efetividade do domínio, não existe então nenhum poder maior do que aquele que provêm do cano de uma arma (ARENDT, 1994, p. 23, grifo nosso). A dominação econômica de um continente por outro, de um país por outro, de uma classe social por outra sempre terá como aliada a hegemonia do poder de destruição.

Ninguém que se dedique à meditação sobre a história e a política, consegue se manter ignorante do enorme papel que a violência sempre desempenhou nas atividades humanas, e à primeira vista é bastante surpreendente que a violência tão raramente tenha sido objeto de consideração. (ARENDT, 1994, p. 7, grifo nosso).
Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora esses poucos tenham parado de trabalhar a muito tempo [...] É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em suma, pela violência. (MARX, 1968, p. 829, grifo nosso)

Para satisfazer, sem muito esforço, os seus infinitos desejos, o homem é capaz de qualquer coisa. Quando objetivo é “se dar bem”, o respeito e a observância de princípios morais e éticos sempre ficam em segundo plano. A “lei” do máximo conforto por meio do mínimo dispêndio de energia pode ser empiricamente observada no tempo por meio das diversas formas de exploração do homem pelo homem.
O homem enquanto agente econômico parece não estar tão preocupado com o seu semelhante. É aquilo que o filósofo inglês Thomas Hobbes (1984) disse: “o homem é o lobo do próprio homem”. É fácil verificar isso, pois a História Militar muita das vezes acaba sendo uma extensão da História Econômica. Os fins dos mais forte sempre justificam os meios nem sempre tão democráticos utilizados sobre os mais fracos. Matar, escravizar, servilizar, assalariar, roubar, guerrear, infringir leis, invadir territórios são alguns poucos exemplos.

O homem é um animal político, disse Aristóteles. Clausewitz, herdeiro de Aristóteles, disse que um animal político é um animal que guerreia. Nenhum dos dois ousou enfrentar o pensamento de que o homem é um animal que pensa, em quem o intelecto dirige o impulso de caçar e a capacidade de matar [...] a psicanálise busca persuadir-nos de que o selvagem que há em todos nós espreita não muito abaixo da pele. (KEEGAN, 1996, p. 19 e 20, grifo nosso).

Infelizmente a história do desenvolvimento econômico mundial é a história da violência e da corrupção humana. É uma narrativa “encharcada” de “sangue” e “lodo”. Tais expressões foram empregadas pelo economista alemão Karl Marx após estudar a acumulação primitiva de capital que financiou a dita “revolução industrial” na Europa. Ele diz que “o capital ao surgir escorem-lhes sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés” (1968, p. 879).
O “sangue”, de modo geral, simboliza toda a exploração do homem pelo homem, a ação predatória dele sobre a natureza e as incontáveis mortes que o sistema exige para “sobreviver”. São óbitos oriundos da subnutrição de milhares de excluídos e dos conflitos armados ocasionados pela expansão do capital. O “lodo” representa toda estrutura criada para manter a ordem de exploração aceita ou pelo menos imexível na essência. Tudo aquilo que legitima os interesses e privilégios da elite econômica e a continuidade das desigualdades sociais. Os poderes executivo, judiciário, legislativo e midiático[1] são espertes nessa tarefa.
Portanto, nem sempre é o “cano da espingarda” que legitima a exploração do mais forte pelo mais fraco. As leis, cultura, as escolas, as tradições, os meios de comunicação, a história oficial, o patriotismo e outros também podem assumir esse papel, ou seja, o de manipular a coletividade a fim de fazê-la aceitar as “regras do jogo” de maneira pacífica. São as chamadas “violências simbólicas” tanto estudadas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1975). Por meio dela, o grupo dominante inibe as “inevitáveis” revoluções.
Num mundo onde os recursos estão cada vez mais escassos e não há como universalizar o padrão de consumo vivenciado pelos países desenvolvidos, o convite à violência fica mais tentador. Tanto pelo lado do explorador, quanto pelo do explorado. A “perfectibilidade[2]” defendida Jacques Rousseau (1989) e a “razão” como condutora do “progresso” humano das teorias iluministas, não foram capazes de livrar o mundo contemporâneo de guerras mundiais e regionais, cujas causas envolveram questões econômicas.   
Mas para prosseguir na discussão a que esse capítulo propõe, necessário se faz falar sobre o conceito “capitalismo”. O termo só foi plenamente utilizado no século XX (BRAUDEL, 1987, p. 42)[3]. Alguns estudiosos contemporâneos aplicam o termo a realidades europeias do século XVIII e, outros chegam a utilizá-los ao se referirem a algumas economias europeias dos séculos XVI e XVII[4].
Os fenômenos econômicos europeus pós-feudais ou pré-revolução industrial se manifestaram das mais diversas formas. No entanto, para facilitar os estudos, muitos pesquisadores preferiram acomodar aquele “turbilhão de realidades” em conceitos que transmitem certa homogeneidade. Não é inoportuno lembrar que os conceitos são abstrações, meras categorias de análise. Eles não espelham a realidade tal qual elas são. A própria “economia em si, é coisa que não existe” (BRAUDEL, 1987, p. 11), pois empiricamente é inseparável do social, do cultural e de outras dimensões. A separação é apenas uma ação metodológica.
O capitalismo é um desses conceitos que tende a nomear diversas realidades economias. A dificuldade em continuar com o conceito se intensificou com as contradições que a “sociedade industrial” (ARON, 1981) foi desenvolvendo, ao ponto de o “capitalismo” ter de ser adjetivado, a fim de melhorar a compreensão dele. A utilização somente do termo “capitalismo” se tornou insuficiente para explicar uma dada realidade econômica. Vão surgindo, com isso, os conceitos de “capitalismo liberal”, “mercantil”, “imperialista”, “monopolista”, “dependente”, “tardio”, “central”, “de Estado”, “planificado”, “desenvolvido”, “subdesenvolvido”, “atrasado”, “colonial”, “neoliberal”, “global”, etc.
A opção por adjetivar o substantivo “capitalismo” ao invés de criar novos conceitos aconteceu em consequência da aceitação do pressuposto de que, apesar das diferenças estruturais ou conjunturais, as economias do mundo ocidentais tinham em comum o fato de “a atividade produtiva ser controlada pelo capital e realizada pelo trabalho assalariado” (BASTOS, 1996, p. 27). Ou seja, “o capitalismo apesar das transformações sofridas ao longo da sua história, mantém características básicas distintas” (idem, p. 5).
A preferência por preservar o conceito de “capitalismo” e, dependendo do tempo e do espaço, “adjetivá-lo” da forma que melhor possa distingui-lo, sugere dois pressupostos: a) existem fortes semelhanças econômicas entre as sociedades pós-feudais e contemporâneas ocidentais ao ponto de ambas serem estudas hoje como “capitalistas”; b) o capitalismo enquanto fenômeno socioeconômico não é estático, mas dinâmico e capaz de mudanças, embora preserve sua essência.
A identificação da “essência” ou “natureza” do capitalismo (HEILBRONER, 1988) que em hipótese se mostra “imóvel” na “longa-duração” é importante para qualquer estudo na área das ciências humans. Mas o debate sobre a “essência” ou a “lógica” do capitalismo não é de hoje. Muito já se escreveu sobre o assunto. Não compensa aqui acrescentar mais palavras sobre isso. Basta dizer que, com o fim de analisar o objeto do estudo aqui proposto, a hipótese da existência de um “núcleo” identificador do sistema é aceita. E que tal “âmago” se caracteriza, dentre outras coisas, pela expansão ou valorização do capital a qualquer custo, pela concentração da renda e de uma economia-mundo geradora de conflitos armados internacionais.

A lógica de um sistema expressa a energia potencial criada por sua natureza. Essa energia potencial é descarregada em inúmeros processos e pode ser considerada em muitos níveis de complexidade [...] Efetivamente, alguma coisa está errada. O sistema capitalista é ineficaz e destrutivo, irracional e injusto. É ineficaz e destrutivo porque periodicamente está em crise, em inflação ou em deflação. E quando chega a crise já não é um quarto, mas, mais da metade da capacidade produtiva que fica paralisada [...] O sistema capitalista é ineficaz e destrutivo porque é incapaz de dar trabalho útil a todos os homens e mulheres que desejam e ao mesmo tempo permite que milhares de pessoas física e mentalmente sãs vivam sem nunca terem trabalhado. É incapaz de desenvolver os recursos do país, de aproveitar a totalidade do potencial humano, é incapaz de resolver a contradição da existência de terras incultas ao lado de camponeses sem terra. [...] É ineficaz e destrutivo, porque ocupa muitos homens e equipamento na produção dos bens de luxo mais extravagantes, não produzindo os bens mais elementares para a vida do povo. É incapaz e destrutivo porque, no delírio de aumentar os preços e os lucros, em vez de satisfazer as necessidades humanas, destrói as colheitas e os bens em geral para aumentar a procura e assim subir os preços [...] a economia capitalista funciona com muita dificuldade em situação de paz [...] na guerra e somente na guerra, o capitalismo consegue dar trabalho aos seus milhões de desempregados. (HARNECKER, 1979, p. 9-10, grifo nosso).

O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições [...] o sistema vomita homens. (GALEANO, 1994, p. 16).

              O economista brasileiro Paul Singer (1987, p. 11) chegou a afirmar que o capitalismo era um “sistema irracional” e “desumano”. Outra afirmação similar é a do famoso advogado e romancista carioca Eduardo Novais (2008, p. 4) que diz que “o capitalismo é o lobo sob a pele do cordeiro da democracia [...] é o mais desumano, injusto, perverso e antidemocrático de todos os sistemas econômicos”. Se aceita, portanto, que o “sangue” e o “lodo” são fenômenos que integram o “miolo” do chamado sistema capitalista, ou melhor, fazem parta da “genética” dele.

As contradições internas do sistema capitalista engendraram graves doenças econômicas e sociais no meio da sociedade, que se intensificam cada vez mais. O desemprego, a inflação, a crescente criminalidade, os acessos periódicos de febres econômicas, as crises destruidoras, o medo crescente do futuro [...] o capitalismo é responsável pelos sofrimentos de milhões de pessoas na Europa, Ásia, África, América e Austrália. (BUZÚIEV, 1987, p. 4-5).

Obviamente não há como negar o quanto a economia mundial se desenvolveu nos últimos trezentos anos. Foi muito mais do que os mil e quinhentos anos anteriores ao século XVIII. Mas nem por foi aceita aqui uma visão otimista do progresso como a dos liberais[5], a dos neoclássicos, a dos neoliberais e outros. Devido ao fato que todo o inigualável avanço da capacidade produtiva humana ocasionou “externalidades” tão negativas, que os conceitos de “progresso”, “razão”, “ciência” e “civilização” tiveram que ser repensados. Isso aconteceu principalmente nos anos 1960 pelos intelectuais da dita “pós-modernidade”.
Depois das barbaridades cometidas na Segunda Guerra Mundial pelos países desenvolvidos e considerados “letrados”, tomou-se mais consciência de que havia algo de errado nessa “modernidade” projetada pela razão e pela ciência iluministas. Ficou patente a existência de “patologias sociais” (FROMM, 1983) na “sociedade da razão”. O “sangue” e o “lodo” formam a parte “ilógica” da expansão do capital.
Até então a história universal humana parecia caminhar tranquilamente numa reta em direção ao progresso. Até mesmo os comunistas olhavam o futuro com certo otimismo, procurando entrever nele uma sociedade marcada pela igualdade e justiça social. Hoje se tem plena consciência de que o “amanhã” é uma incógnita, mais tendencioso a um apocalipse do que a um final feliz.
Apesar de toda a “evolução” cultural que marca o terceiro milênio, o homem ainda hoje é capaz de praticar as mais cruéis atrocidades para satisfazer suas necessidades e desejos, de preferência com o mínimo de esforço. As guerras mundiais do século XX estão aí para provar que o invejoso progresso tecnológico advindo com capitalista não alterou significativamente as patologias sócias (FROMM, 1983).
O homem “moderno” continua tão rude e primata quanto o “bárbaro” da antiguidade. O querer de dar bem com o menor custo possível faz do homem “lobo do próprio homem” (HOBBES, 1984), na medida em que se preciso for ele se dispõe a práticas bestiais para conseguir seu intento, como escravizar, roubar, matar, dentre outros. Vale ressaltar que não foram os analfabetos que decidiram pelas guerras mundiais, muito menos são eles os maiores corruptos de dinheiro público dos Estados Nacionais. Os chamados “letrados” têm espaço privilegiado na trágica história econômica humana ocidental.
Não é em vão que o historiador Victor Hanson (2004) chegou a afirmar que a Europa somente retomou a hegemonia econômica mundial depois dos mil anos de “trevas” medievais por conta do “jeito ocidental de matar”, “da letalidade singular da cultura ocidental em guerrear” (idem, p. 9). A economia mundial não se tornou eurocêntrica sem que o “sangue” e o “lodo” se fizesse presente nessa história. Por isso que a “idade moderna”, tão exaltada nos livros didáticos de história como um período de “renascimento cultural”, na verdade, um momento de atuação do homo brutalis.
A expansão marítima comercial europeia e toda a ação colonizadora iniciada nos idos do século XV representou um dos mais sanguinários processos de pilhagem econômica que se tem conhecimento. Ela ocasionou milhares de vítimas nos continentes americano, asiático e africano. Os europeus se tornaram “os soldados mais mortais da história da civilização” (idem, p. 19). E foi por meio dessa “qualidade” que eles conquistaram a hegemonia econômica mundial.
O período foi analisado pelo economista Karl Marx (1818-83) como requisito para compreender a formação do Modo de Produção Capitalista[6]. Ele o estudou como sendo um momento de acumulação primitiva de capital[7] europeia. Em consequência, ele afirmou que a origem do capital que desencadeou as revoluções industriais europeias não tinha nada de “moderno”.

Roubo dos bens da igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade feudal e do clã em propriedade privada moderna, levada a cabo com terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da acumulação primitiva. (MARX, 1968, p. 850, destaque nosso).

As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravidão das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos são fatores fundamentais da acumulação primitiva. (idem, p. 868).

O sistema colonial, a dívida pública, os impostos pesados, o protecionismo, as guerras comerciais, etc., esses rebentos do período manufatureiro desenvolvem-se extraordinariamente no período infantil da indústria moderna. (idem, p. 875).

Essas mesmas ideias foram defendidas pelo advogado e historiador francês Gilles Perrault (1931-), em seu famoso livro “O livro negro do capitalismo” ele diz que:

As devastações, no espaço de um século e meio, pelo colonialismo e o neocolonialismo, são imaculáveis, como impossível é calcular os milhões de mortos que lhes são imputáveis [...] escravatura, repressões impiedosos, torturas, expropriação, roubo das terras e dos recursos naturais pelas grandes companhias ocidentais, americanas ou transnacionais ou por potentados locais a seu soldo, criação ou desmembramento artificial de países, imposição de ditaduras, destruição dos modos de vida e das culturas ancestrais, desmatamento e desertificação, desastres ecológicos, fome, êxodo das populações rumo às megalópoles, onde as esperam o desemprego e a miséria [...] Quais são os meios de expansão e de acumulação do capitalismo? A guerra, a repressão, a espoliação, a exploração, a usura, a corrupção, a propaganda. (PERRAULT, 1999, p. 19-20, grifo nosso).

A Europa foi como um útero para o capitalismo e o os séculos XV a XVII como o período gestacional dele. As revoluções liberais e industriais do século XVIII ocasionaram o parto e o imperialismo do século XIX o seu amadurecimento. Em todas essas fases, o “sangue” e o “lodo” estão por toda parte. Como diz o socialista francês Jean Jaurès[8] (1859-1914): “o capitalismo traz em si a guerra como a nuvem traz a trovoada”.
O que se quer dizer com tudo isso é que o capitalismo é um sistema econômico provocador de violência social. Ou seja, que os conflitos armados entre países, por exemplo, são consequências naturais da expansão do capital. Como também são as violências urbana e rural protagonizadas pelos excluídos no interior de cada nação. A sociedade contemporânea, como afirma Erich Fromm (1967), carece de sanidade mental, pois não consegue “desenvolver a capacidade do homem para amar o próximo” (p. 81).
A economia de mercado não é capaz de gerar uma situação de paz por muito tempo. A concorrência comercial e a disputa por áreas de influência provocam, mais cedo ou mais tarde, conflitos armados. Isso sem dizer da violência ou do uso da força no interior de cada nação, onde compatriotas se digladiam com frequência, ora na tentativa de enriquecer-se cada vez mais, ora na esperança de sair do estado pleno de miséria. 

Dada a natureza anárquica e competitiva das rivalidades entre as nações, a história das questões internacionais nos últimos cinco séculos tem, com demasiada frequência, sido uma história de guerras ou pelo menos de preparação para a guerra [...] a maioria dos estudos históricos supõe que ‘guerra’ e ‘sistema de grandes potências’ andam de mãos dadas. (KENEDY, 1991, p. 510).
A guerra [...] é um instrumento quase incontornável de solução dos conflitos da concorrência no controle dos mercados, onde a diminuição constante do poder de compra que a ei do lucro origina reduz ainda mais os canais de distribuição possíveis. (WEYL, Monique. In: PERRAULT, 1999, p.534).

De modo geral, por trás de todo declaração de guerra há sempre um fato econômico não resolvido no rol da exposição de motivos. Às vezes, está disfarçado em um discurso religioso, nacionalista, patriótico ou racial. As justificativas mais nobres possíveis são sempre empregadas para convencer a opinião pública da necessidade do conflito e das consequentes mortes de militares e civis. 

Ficamos endurecidos para o que conhecemos e racionalizamos e até justificamos as crueldades praticadas por nós e nossos semelhantes ao mesmo tempo em que retemos a capacidade de nos chocar diante de práticas igualmente cruéis que, nas mãos de estranhos, assumem uma forma diferente. (KEEGAN, 1995, p. 25).

No mundo regido pelo capital, conflitos armados são provocados para justificar gastos governamentais que, a curto prazo, geralmente “aquece” a economia e “espanta” o perigo da recessão. Sem dizer que o comércio de armas além de gerar lucro e impostos, ainda oferece oportunidade de emprego. É a chamada “economia de guerra”.
Hoje, os meios de destruição se constituem no seleto grupo das mercadorias que mais se aperfeiçoaram nos últimos trezentos anos. Consequentemente, há de se deduzir também que a indústria bélica foi uma das que mais recebeu investimentos. Os estados e as elites nacionais sabem que não há como manter a atual divisão internacional do trabalho, nem a propriedade privada, nem impor respeito com “poder de fogo” defasado.
Muitas economias nacionais já foram “salvas” por improvisarem conflitos armados. Isso por que numa situação de guerra, o Poder Executivo tem mais liberdade de planejar e executar o orçamento público sem tanta interferência ou controle do legislativo. Para proteger a população ou os interesses da nação, o Estado acaba tendo “carta branca” para “queimar dinheiro” na indústria bélica e em outros empreendimentos que em tempos de paz seria impossível.
No capitalismo, grande parte das crises é oriunda de superprodução, por isso a necessidade de se destruir capitais. A guerra é um dos meios usados para isso. Pois, ela força o poder público a “comprar” a crise. Isso por que o Estado se endivida liberando verbas públicas para a iniciativa privada, principalmente para as empresas que formam a chamada indústria bélica. 
É provável que somente no século XX tenha morrido algo em torno de 100 milhões de pessoas em consequência de conflitos internacionais. Um contingente um pouco superior à metade da população brasileira atual[9]. Se fossem consideradas as vítimas oriundas de movimentos sociais populares contra governos e oligarquias regionais, contra a concentração da terra e a da renda[10], a quantidade certamente seria bem maior.
Segundo dados da Federação Internacional da Cruz Vermelha[11], atualmente um bilhão de pessoas dormem sentindo fome. A Revista Veja[12] divulgou que a subnutrição infantil é a causa de mais de um terço das mortes de crianças menores de cinco anos ao redor do planeta. Ao todo, a desnutrição é responsável por cerca de três milhões e meio de mortes infantis ao ano. A fome acaba sendo “um meio civilizado e honesto do mundo capitalista”, como ironizou o anarquista italiano Carlos Cafiero (1990, p. 110). Mesmo na paz, o sistema econômico se mostra tão sanguinário como se estivesse em situação de guerra.
Duas são as explicações para as constantes interrupções da paz na sociedade capitalista. A primeira tem a ver com as contradições entre o capital e o trabalho; a segunda, com a constante necessidade que o capital tem de expansão. As disputas pela dominação e controle de mercados e de espaço são os motivos mais corriqueiros das guerras capitalistas.
A paz militar não significa ausência de violência no mundo capitalista. A política é a continuação da guerra por outros meios[13]. Como afirma Hanson (2004, p. 43) “os ocidentais há muito tempo viram a guerra como um método para fazer o que a política não conseguia e, por isso, estão dispostos a destruir quem quer que esteja no seu caminho”. Todo o “sangue” derramado nas páginas da história da sociedade moderna tem a conivência ativa dos políticos profissionais que se elegem para representar o “povo”. A corrupção política é uma ação mortal contra as vítimas da miséria. Os poderes executivos, legislativos e judiciários legitimam toda essa estrutura social desigual e brutal.
A corrupção faz parte da “essência” do capitalismo. É um mal necessário sem o qual o sistema como um todo não “roda” com segurança. O processo eleitoral e o sistema representativo democrático como um todo é uma farsa. É controlado desde as eleições até o planejamento e execução orçamentária do Estado. E quando acontece algo que coloque em risco o lucro dos grandes capitalistas ou a propriedade privada deles a ditadura é sempre acionada. A história está cheia de exemplos, basta lembrar o que aconteceu nos países da América Latina nos anos 1960.
O “estado democrático de direito” e a “igualdade, liberdade e fraternidade” ainda são uma das superstições mais imaculadas da modernidade. Se não fosse a “bandalheira”, os “senhores do capital” não conseguiriam fazer prevalecer suas opiniões e interesses. Licitações direcionadas, paraísos fiscais, “lavagem” de dinheiro, “caixa dois”, propinas, lobbies, tráfico de influência e manipulações contábeis, eis aí o “lodo” sem o qual o sistema democrático deixaria de ser “burguês”. A impunidade é algo banalizado, todos sabem que ao final tudo acaba em “pizza”.
A “violência” e “sujeira” ou o “sangue” e o “lodo” se fizeram presentes na formação do Estado Nacional Moderno. E por mais que Perry Anderson (2004) insista na ideia de um “estado feudal” durante o período, não se pode negar que foram instrumentos importantes para ascensão econômica europeia e, consequentemente, para a própria acumulação primitiva de capital europeia.

Os Estados em que vivemos nasceram de conquistas, guerras civis ou lutas pela independência. Ademais, os grandes estadistas da história escrita foram, em geral, homens de violência, pois ainda que não fossem guerreiros, e muitos o foram, compreendiam o uso da violência e não hesitavam em colocá-la em prática para seus fins. (KEEGAN, 1996, p. 399)

Diante de tudo que foi dito, não dá para pensar em qualquer compromisso humanitário e ecológico no processo de geração de riqueza capitalista. Capacidade econômica se tem para garantir a alimentação dos sete bilhões de seres humanos que vivem hoje no mundo, no entanto, “a produção capitalista volta-se, logo de início, para o mercado: o capitalismo produz para vender” (PERRAULT, 1999, p. 26). Portanto, pouco importa se há milhões de miseráveis passando fome, eles pertencem ao grupo de consumidores sem poder de compra.

Quanto mais desenvolvido se encontra um país capitalista, mais se acentuam os males assinalados. Esta ineficácia e destruição não é um simples desejo que se possa corrigir, mas sim uma característica da natureza do sistema capitalista [...] porque é que na sociedade capitalista existe um pequeno grupo de pessoas que possui tantas riquezas e goza uma vida fácil, enquanto a grande maioria dos trabalhadores vive numa situação muito difícil [...] de onde vem a grande riqueza deste grupo minoritário? (HARNECKER, 1979, p. 9-10, grifo nosso).

              O economista Karl Marx foi um dos que mais tentou explicar a última pergunta da socióloga chilena Marta Harnecker. Foge aos limites desse estudo desenvolver todo o raciocínio dele para solucionar tal questão. O que interessa aqui é apontar a existência dessas contradições inerentes ao sistema.  E que, portanto, são características fundantes dela.  O “sangue” e o “lodo” são as principais peculiaridades dessa verdadeira “contradição em processo” (MAZZUCHELLI, 1985) que é a expansão do capital.
           
Eduardo de Araújo Carneiro – é professor da Universidade Federal do Acre e bloqueio
www.eduardoeginacarli.blogspot.com



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] “É preciso desmantelar o universo da publicidade como se faz com as armas de destruição em massa [...] atualmente o capitalismo deve manter vivas as suas vítimas, transformadas em meros consumidores: ele já não mata, elimina cérebros [...] os seus mísseis chamam-se publicidade” (FRÉMION, In: PERRAULT, 1999, p. 513).
[2] Disposição natural do homem para o aperfeiçoamento pessoal.
[3] Isso sem falar daqueles que nem se quer utilizam o conceito de “capitalismo” para estudar a economia pós-feudal, como o professor de História do Comércio da Universidade e Harvard, o Ph. D. N. Gras (1943) e escritor norte-americano Alvin Toffer (1980).
[4] O período que vai do Séc. XV ao XVIII, do ponto de vista econômico, já foi qualificado das mais diversas formas, tais como: “feudalismo urbanizado”, “capitalismo comercial”, “mercantilista”, “pré-capitalista”; “capitalismo primitivo”; período de “transição”, etc.
[5] Os economistas e políticos liberais e neoclássicos são os principais defensores do capitalismo. Há quem diga que eles assim o fazem por estudarem o capitalismo do ponto de vista da minoria, daqueles que se apoderam de todo o excedente econômico do sistema.
[6]O sociólogo Wallerstein (1930- ), apesar de se basear em Marx, faz uma leitura infiel dele, não utilizando o conceito de “Modo de Produção Capitalista”. Embora Marx não trate tal período de “acumulação primitiva de capital” como capitalista propriamente dito, o pesquisador Wallerstein já o considera como uma Economia-Mundo Capitalista. O conceituado historiador Fernand Braudel (1902-85) vai mais além, identificando o surgimento do capitalismo na Itália do século XIII (BRAUDEL, 1998), mas afirma que seu triunfo só aconteceu quando o capitalismo se “identifica com o Estado, quando é o Estado” (BRAUDEM, 1987, p. 70). O economista italiano Arrighi (1937-2009), seguidor de Wallerstein, chegou a dizer que o período fez parte de pelo menos dois ciclos sistêmicos de acumulação de capital do “capitalismo histórico”, a saber: o Genovês (do XV ao início do XVII) e o Holandês (fim do XVI ao XVIII). Resumindo: o surgimento do capitalismo não está tão associado e dependente do aparecimento do trabalho assalariado como afirmava Marx.
[7] (in: MARX, 1968).
[8] Defensor da revolução socialista por meio da democracia e não da violência.
[10] Segundo Viviane Forrester (1997), a causa do que ela chama de “horror econômico” é o fato de a economia nacional não ser capaz de oferecer emprego a todos.

[13] Invertendo a frase do militar alemão Carl von Clausewitz quando diz: "A guerra é a continuação da política por outros meios". <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_von_Clausewitz> (acessado em setembro de 2011).