segunda-feira, 31 de março de 2008

CORAÇÃO MAGOADO

Elson Martins
Em 1929, o então senador marechal J. Pires Ferreira apresentou um projeto de lei que dava honras de general ao conquistador do Acre, José Plácido de Castro. A honraria, entretanto, não comoveu o coração de dona Zeferina de Oliveira Castro, mãe do herói assassinado de emboscada em 1908, no seringal Capatará, nas proximidades de Rio Branco.
O crime, supostamente planejado por adversários políticos de Plácido que haviam se aboletado no poder do Acre, nunca foi apurado, e os assassinos comemoraram o feito com a impunidade histórica que perdurou até o fim de suas vidas.
Aos 92 anos, com uma perna fraturada que a impedia de sair de casa, dona Zeferina encaminhou a seguinte carta ao senador e marechal: "Chegando ao meu conhecimento que transita pelo Senado Federal um projeto de lei de autoria de Vossa Excelência dando honras de General ao meu pranteado filho, J. Plácido de Castro, e de Coronel a dois dos principais cúmplices no seu assassinato - Gentil Tristão Norberto e Antônio Antunes de Alencar -, venho pedir-lhe o grande favor de retirar o nome do meu filho do mesmo projeto.
Em vida, ele nada pediu à sua pátria e nada recebeu além da perseguição, da injúria, da calúnia e da morte por mão das principais autoridades federais; é justo que depois de morto, quando de nada precisa, também nada receba. Os governos já tripudiaram muito sobre o seu nome e sobre a sua memória...
Que ele repouse na paz da conspiração de silêncio em que envolveram o seu nome, desde o momento em que não necessitaram mais dos seus serviços, - desde a assinatura do Tratado de Petrópolis. O bárbaro crime que vitimou meu filho prescreveu sem que o mais ligeiro inquérito fosse aberto a respeito; sem que ao menos os nomes dos miseráveis assassinos fossem apontados pela Justiça à execração pública!
É preciso que a Pátria seja coerente: com honrarias póstumas ela não ressuscita a vítima nem lava as máculas do passado. Continue ela a proteger, amparar e distinguir os assassinos, procurando apagar os vestígios da covarde tragédia de 9 de agosto de 1908 e a transformar os criminosos em heróis. Isso é justo: mas que aos 92 anos eu veja o nome do meu filho servir de escada para a ascensão dos seus matadores, isso é demais...
A posteridade julgará meu filho, e é bastante.
Creio que V. Exa. ignore que gentil Norberto e Antunes de Alencar sejam dois dos implicados no assassinato de Plácido, mas o meu fim é apenas arredar o nome de meu filho de tão más companhias e grata ficarei a V. Exa. se me atender.
Convém dizer que não estou caducando: ainda sou mais sadia de espírito do que de corpo e só não vou pessoalmente falar-lhe porque há oito meses guardo leito com uma perna fraturada".

sábado, 22 de março de 2008

IDEOLOGIA E PODER: O Imaginário Social nos Editoriais dos jornais riobranquenses (1977 – 1981).

Por: Maria Iracilda Gomes Cavalcante Bonifácio - é Licenciada em Letras/Vernáculo; Especialista em Cultura, Natureza e Movimentos Sociais na Amazônia; Mestre em Letras – Linguagem e Identidade, pela UFAC. Atua na rede pública estadual de ensino como professora de Língua Portuguesa e Coordenadora do grupo de Pesquisa O Discurso nas Redes do Poder.
INTRODUÇÃO: A presente investigação tem como proposta analisar o imaginário social e as ideologias contidas no discurso dos editoriais dos jornais O Rio Branco e Varadouro, que circularam na Capital acreana durante a Ditadura Militar (1964-1983), bem como discutir como se articulavam as relações de poder entre mídia impressa e política na sociedade acreana do período investigado. Mais de 40 anos se passaram desde que surgiu no cenário nacional o regime ditatorial, entretanto, a análise das relações entre imprensa e poder neste período ainda constitui uma lacuna nos estudos sobre a sociedade acreana. Busca-se, portanto, contribuir para o aprofundamento dos estudos referentes às interfaces do regime ditatorial instaurado no Acre, investigando suas especificidades no contexto da história nacional.
MATERIAL E MÉTODOS: Essa investigação compreende duas etapas: a primeira refere-se à pesquisa bibliográfica, baseando-se no pensamento Mikhail Bakhtin, partindo de sua noção de polifonia e nas concepções de Michel Foucault acerca da noção de discurso enquanto espaço atravessado pelas relações de poder, bem como nas noções de memória de Michael Polack e nas proposições de Stuart Hall acerca da identidade; a segunda etapa corresponde à pesquisa de campo, realizada através da visita aos acervos públicos e particulares (Arquivo Geral do Estado, C.D.I.H. da UFAC e Museu da Borracha). O corpus da pesquisa compõe-se de editoriais pertencentes aos jornais mencionados, os quais estão sendo analisados tendo como foco a tendência temática referente aos conflitos sociais, buscando identificar e compreender, dentro desta modalidade, como se articulavam as relações de poder político-governamentais e como se deu a busca de reassentamento nas periferias da capital acreana empreendida pelas populações provenientes da zona rural. Para a análise dos editoriais está sendo utilizado o método de abordagem hipotético-indutivo, associado ao histórico-literário, aliado às ciências afins, para a compreensão do estudo. Para a conjugação e precisão de dados sobre o imaginário riobranquense tem sido utilizado o método de procedimento analítico-comparativo, contrapondo as posturas ideológicas dos editoriais às entrevistas e leituras teóricas.
RESULTADOS: A análise dos jornais deste período revela que o jogo de interesses evidenciava-se, sobretudo pela celebração de alianças entre a imprensa e o poder político. O poder oficial, que já manipulava a produção jornalística local, passou a financiar de forma mais latente os gastos com os jornais. Verificou-se que com o jornal O Rio Branco inicia o processo de profissionalização da imprensa riobranquense, influenciando de forma decisiva o fazer jornalístico local e destacando-se por ter surgido em uma conjuntura difícil. Desde seu surgimento em 1969, este jornal é marcado pelo predomínio de consonância com a ideologia do poder político dominante, prova disto é a falta de veiculação de crítica aos atos presidenciais ou de governadores por eles indicados. Apesar de predominar o aliancismo entre mídia e política, a resistência se manifestou através de jornais alternativos, sendo o principal deles o Varadouro (1977-1981), que procurando expressar os anseios das camadas populares, refletia as inquietações políticas e sociais de seu tempo, congregando em torno do ideal “revolucionário” jovens preocupados com o destino do Brasil e do Acre. O discurso expresso nos jornais mostra não apenas o saber/poder que se institui com vistas à dominação, mas também permite perceber os conflitos e a exclusão sociais dos sujeitos tidos por “subversivos”: são seringueiros, posseiros, índios, pobres, prostitutas, mendigos, pessoas que sofreram na pele a violência política, abarrotados nos bairros que então se formavam, vindos nas levas de migrantes fugidos da expropriação pelo avanço da pecuária no Acre.
CONCLUSÃO: Embasado por esse viés teórico, segundo o qual a constituição do sujeito apresenta-se marcada por uma heterogeneidade discursiva, fruto de sua interação verbal com vários grupos sociais, os editoriais podem revelar-se como um universo discursivo caracterizado pela inquietude dos sujeitos responsáveis por sua produção e pelas movências destes atores sociais em relação às próprias inscrições dos lugares de onde falam.
PALAVRAS CHAVE: Discurso; Editorial; Identidades.
TEXTO COMPLETO:

sexta-feira, 14 de março de 2008

ENTENDA A CONTROVERSA HISTÓRIA DA COMPRA DO ACRE PELO BRASIL. VALE A PENA CONHECER A VERDADE

Fonte:http://www.bahianegocios.com.br/maio.2006/ultimas.asp?idnoticia=1335 O presidente da Bolívia, Evo Morales, declarou que o estado do Acre foi anexado ao Brasil em troca de um cavalo. A Nossa História publicou, em sua edição 25, um dossiê sobre as fronteiras do Brasil, em que o artigo “A guerra do Acre”, de Everaldo de Oliveira Andrade, explica a verdadeira história da compra do território pelo Brasil, em 1903. Segue abaixo o texto na íntegra. A guerra do Acre Sucessivos confrontos entre seringueiros e autoridades bolivianas resultaram na compra do território pelo Brasil, em 1903 Everaldo de Oliveira Andrade Se no Brasil a conquista do Acre constitui um verdadeiro romance de aventura, com seus heróis e vitórias, para a Bolívia a perda do território é parte de uma história marcada por tragédias e derrotas. Nas terras altas e frias montanhas dos Andes, onde se localizava a maior parte da população boliviana, o colonizador arrancou toneladas de prata, durante mais de trezentos anos. Foi a última região do continente a expulsar, em 1825, os espanhóis, que deixaram para trás um novo país empobrecido e dividido. Crises econômicas, como a provocada pela queda dos preços da prata em 1871 e 1895, ajudaram a enfraquecer ainda mais a economia do país. Grandes áreas do território estavam pouco povoadas e sem controle do Estado boliviano, entre estas as distantes regiões amazônicas. A situação da Bolívia tornou-se pior com a guerra contra o Chile entre 1879 e 1882. O litoral boliviano no oceano Pacífico era cobiçado pelas empresas multinacionais inglesas, que, em aliança com o governo chileno, desencadearam a Guerra do Pacífico, que terminou, para a Bolívia, com a perda da saída para o mar. Naquele momento difícil, a alta do preço da borracha extraída da Amazônia era uma das poucas boas notícias para o governo boliviano. Embora o acordo de limites entre Brasil e Bolívia assinado em 1867 (Tratado de Ayacucho) garantisse as fronteiras na região do Acre, a Bolívia pouco fizera neste tempo para assegurar o controle da área. Este fato certamente deu margem a um avanço sem limites dos seringalistas (donos de seringais) brasileiros, que não encontraram resistência importante no caminho. No final do século XIX, quase 50 mil brasileiros já exploravam borracha no Acre boliviano. Ao perceber, tarde demais, que perdia o controle do Acre, o governo boliviano tentou acelerar sua presença na região. No início de 1899, fundou o povoado de Puerto Alonso, com uma alfândega e uma delegacia administrativa para cobrar imposto da produção de borracha. Os grandes seringalistas, que já trafegavam livremente na região, não aceitaram a autoridade boliviana. Em julho de 1899, um grupo de brasileiros armados tomou Puerto Alonso e, sob a liderança do aventureiro espanhol Luiz Galvez Rodríguez de Arias, proclamou a República Independente do Acre. Galvez e seus companheiros eram “testas-de-ferro” dos grandes seringalistas, comerciantes e políticos do Amazonas. Estes buscavam forçar o governo brasileiro a apoiar a futura anexação do Acre ao Brasil, numa estratégia semelhante à anexação do Texas mexicano pelos EUA. No entanto, oito meses depois, navios da Marinha brasileira depuseram Galvez e restituíram o território à Bolívia. Nessa época, ocorre na Bolívia a chamada Revolução Federal (1899), uma guerra civil que divide o país, consome as energias do governo e provoca uma gigantesca rebelião indígena liderada por Zárate Willka (?-1899). Fazendeiros brancos são assassinados e propriedades destruídas. Quando surge a questão do Acre, o novo governo boliviano, liderado pelo general José Manuel Pando (1899-1904), acabara de controlar rebeliões internas, mandara fuzilar Willka e tentava reorganizar o país. Restavam poucas possibilidades e recursos para uma grande mobilização contra os invasores. O esforço boliviano foi, de todo modo, gigantesco. Para combater Galvez, o próprio Pando, junto com os chefes militares Ismael Montes e Lucio Pérez Velasco, dirigiu-se à região. As expedições militares demoravam cerca de três meses para atravessar rios e selvas até o Acre. Ao contrário do lado brasileiro, que utilizava os rios para chegar à zona de conflito, do lado boliviano não havia caminhos de acesso. Os combates se sucederam ao longo de três anos. As várias expedições bolivianas reuniram mais de 2 mil soldados neste período, enquanto os seringalistas brasileiros mobilizaram cerca de 4 mil homens. O governo boliviano concluiu que apenas postos fronteiriços e expedições militares esporádicas não assegurariam os seus territórios, e decidiu transferir a uma multinacional a exploração da borracha na região, como forma de garantir impostos. É então formada a empresa Bolivian Syndicate Co., constituída por capitais ingleses e norte-americanos, que arrendou o Acre por dez anos. A empresa, prevendo conflitos, preparou uma força policial com o objetivo de tomar posse dos territórios ocupados. Os seringalistas e comerciantes brasileiros trataram de agir rápido, para não dar tempo à empresa de se instalar. No dia 6 de agosto de 1902, organizaram mais uma insurreição. José Plácido de Castro (1873-1908), um jovem e combativo militar gaúcho que caíra em desgraça no governo Floriano Peixoto (1891-1894) e se fixara em Manaus, é escolhido para chefiar o movimento. Ele se põe à frente de um exército mercenário de seringueiros, que inicialmente toma o povoado de Xapuri, prendendo os funcionários e militares bolivianos. Os bolivianos gastam os poucos recursos disponíveis para defender e assegurar seu território. No final de 1902, uma nova expedição militar, com 321 soldados, comandada pelo ministro do Exército, Ismael Montes, é despachada para o Acre e facilmente derrotada. Em fevereiro de 1903, os seringueiros tomam Puerto Alonso e prendem o governador boliviano, Juan de Dios Barrientos. Novamente é proclamado o Estado Independente do Acre. Plácido de Castro organiza o governo, sob sua direção, com sede em Puerto Alonso. A multiplicação de incidentes na região chamou a atenção do governo federal, no Rio de Janeiro, obrigando-o a mudar sua posição. Certamente incomodava ao governo central a presença de um território rebelde e fora de qualquer controle, na despovoada e longínqua fronteira amazônica do país. Para apaziguar a região e intimidar os bolivianos, foi mobilizada uma bem aparelhada força militar, sob o comando de Olímpio da Silveira, general que anos antes contribuíra para massacrar a rebelião de Canudos, no Nordeste brasileiro. O recém-proclamado Estado Independente do Acre foi então ocupado por tropas brasileiras. Com o controle militar, o governo brasileiro impôs uma solução para o conflito e em fevereiro de 1903 realizou um acordo com a Bolivian Syndicate Co., pagando à empresa 110 mil libras esterlinas para que desistisse de explorar a região. O governo boliviano, que fora derrotado militarmente pelos exércitos de Plácido de Castro, estava com poucas condições de oferecer alguma resistência naquele momento. Em março de 1903, o Brasil impôs um tratado preliminar aos bolivianos. O Acre seria dividido em duas regiões: a região norte seria ocupada por tropas brasileiras, e a região sul mantida provisoriamente sob o comando de Plácido de Castro. Finalmente, em 17 de novembro de 1903, fruto da intimidação militar e pressões diplomáticas articuladas pelo barão do Rio Branco,ministro brasileiro das Relações Exteriores, foi assinado entre os dois países o Tratado de Petrópolis, pelo qual o Brasil comprou da Bolívia o território do Acre por 2 milhões de libras esterlinas e comprometeu-se a construir a ferrovia Madeira-Mamoré, que daria à Bolívia a saída para o mar pela Bacia Amazônica. Everaldo de Oliveira Andrade é professor de História na Universidade Guarulhos (UnG) e autor de Revoluções na América Latina Contemporânea: México, Bolívia e Cuba. São Paulo: Saraiva, 2000. Senhores da República do Acre O advogado e diplomata espanhol Luiz Galvez Rodríguez de Arias (1859-1946) trabalhava no consulado da Bolívia em Manaus em 1899, quando tomou conhecimento das negociações do governo boliviano com a Bolivian Syndicate Co. e buscou tirar proveito próprio. Chefiando uma expedição montada pelo governo do Amazonas, Galvez proclama a República Independente do Acre, em 14 de julho de 1899, mas é deposto meses depois. Outro “presidente do Acre” foi o militar gaúcho José Plácido de Castro (1873-1908), enviado em 1902 para a região pelo governador do Amazonas Silvério Néri. Após expulsar os bolivianos, Plácido de Castro fundou novamente a República do Acre, e tornou-se o primeiro governador do território após a anexação oficial ao Brasil, em 1903.

Cantos e encantos da floresta 1, de Laélia Rodrigues

Fonte: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/resumos_comentarios/c/cantos_e_encantos_da_floresta_1
O livro Cantos e encantos da floresta I, organizado pela professora Laélia Rodrigues, é uma coletânea de poemas de autores já publicados e inéditos.Segundo a organizadora, a coletânea mostra que o poeta das terras acreanas não verte seus textos apenas à exuberância da natureza, como pressupúnhamos, mas também se volta a questionamentos íntimos, como o sentimento amoroso e as relações sociais, o que confere aos textos um valor que ultrapassa o tempo de sua produção.É evidente que a relação do homem acreano com a natureza é extremamente fecunda.
E o que faz a presente coletânea de textos é resgatar os outros valores que passam despercebidos não só pela crítica, como também pelos leitores, que buscam, quase inconscientemente, a referência da mata.Assim Laélia define Cantos e encantos da floresta I: ... significa, portanto, um conjunto de poemas que falam da vida. Da vida das pessoas que habitam um ambiente urbano mas que, para ser compreendido na sua totalidade, não se deslinda pela existência da grande floresta que tem a mesma 'escureza...' imaginada pelo poeta do sul e cujo pensamento '(numa indiferença enorme...) ronda sob as seringueiras'.
É justamente esse aspecto que oriente a organização desta coletânea: os poetas fazem uso criativo das palavras, expressando a subjetividade. E essa subjetividade traduz o coletivo, de onde a poesia é produto e força mobilizadora. Assim, assegura-se nossa alteridade.A presente coletânea é um apanhado geral da produção poética literária do acre, numa reunião de textos que rompem o fio cronológico e temático. São vários momentos e diversos pensamentos que não possibilitam caracterizar com precisão o conjunto da obra. São textos que vão desde a década de 50 aos dias atuais, o que implica dizer que várias são as concepções que norteiam as temáticas dos poemas.
É evidente que dentre as temáticas, a exuberância da mata é o que mais se evidencia nas maiorias dos poetas, devido à própria relação íntima entre o poeta e o objeto de contemplação. Contudo, é necessário observar o olhar do poeta diante do elemento natureza. O que se vê nos textos é um admirar constante do elemento mais presente na vida do homem acreano, principalmente em décadas passadas

segunda-feira, 3 de março de 2008

O romance de autoria feminina no Acre: historicidade e regionalismo

Margarete Edul Prado Souza Lopes Doutorado em Literatura Brasileira – Programa de Pós-Graduação emLetras e Lingüística da Universidade Federal da Bahia maga.lopes@gmail.com
O Acre é o Acre. Tudo aqui é tão Acre que existe até a associação Acreana das Viúvas, presidida pelo Raimundo Ceguinho. Um homem. Chalub Leite[1]
Resumo O artigo focaliza a mulher e suas condições de existência na Amazônia com a intenção de enfocar os problemas, os temas e as metáforas presentes nas narrativas de Florentina Esteves e Francisca Trindade Lopes. A atenção se concentra no romance, pois nele se encontram tanto um mecanismo altamente preciso de enredo quanto um sistema inteiro de referências sociais que dependem das instituições existentes da sociedade burguesa, de sua autoridade e poder. Sendo assim, o romance acreano de autoria feminina se revela um excelente instrumento de estudos de mulheres atuantes e determinadas, em que aparece de maneira marcante a mulher indígena. Palavras-Chaves: Mulher, Romance, Amazônia, Gênero e História. Minha preocupação nesse artigo é enfocar os problemas, os temas e as metáforas referentes à mulher presentes nas narrativas de Florentina e Francisca Trindade Lopes. O artigo focaliza a mulher e suas condições de existência na Amazônia, com atenção específica voltada ao romance, que, segundo Edward Said, é artefato cultural da sociedade burguesa e também é entre todas as principais formas literárias, a mais recente. O seu surgimento é o mais datável, sua ocorrência, a mais ocidental, seu modelo normativo de autoridade social, o mais estruturado. Além disso, o romance é uma forma cultural incorporadora, de tipo enciclopédico. Dentro dele, se encontram tanto um mecanismo altamente preciso de enredo quanto um sistema inteiro de referências sociais que depende das instituições existentes da sociedade burguesa, de sua autoridade e poder. Sendo assim, o romance acreano de autoria feminina se revela um excelente instrumento de estudos de mulheres atuantes e determinadas, em que aparece de maneira marcante a mulher indígena. A Amazônia foi palco da contemplação pura e simples dos primeiros cronistas e estudiosos, que se deslumbraram diante dos cenários diferentes e desconhecidos, deleitando platéias curiosas e sôfregas por histórias novas. A imagem construída sobre a região, nos séculos XVI a XVIII, é de uma natureza maravilhosa e mítica, terra do fabuloso e das fantasias. No século XX, surgem vários romances descrevendo uma Amazônia exótica e luxuriante tais como: A Amazônia misteriosa (1925), de Gastão Cruls; Terra de Icamiaba (1932), de Abguar Bastos; Seiva (1938), de Osvaldo Ourico, entre outros. Apesar da força dos mitos e após o deslumbramento inicial diante da nova paisagem durante os primeiros séculos, a partir do século XIX pode-se notar um movimento contrário nos relatos e depoimentos sobre a Amazônia. Surge a necessidade de entender, explicar, explorar e dominar a região. O Acre, que ainda não pertencia ao Brasil na época dos primeiros viajantes, não foi contemplado com relatos deslumbrados dos viajantes diante da nova terra, mas tem sido descrito, desde os primeiros romances, como um lugar do homem branco em conflito permanente com a terra, com os índios, com os estrangeiros (portugueses, bolivianos, americanos, ingleses). Retrata-se o ser humano lutando para sobreviver na floresta, nas mais miseráveis e rígidas condições de vida, uma vida sempre por um fio, em terreno hostil e inócuo, habitado por animais nocivos e de condições climáticas extremas. Pode-se ler o seguinte trecho no romance A Selva, de Ferreira de Castro: Era outro o meio, outra a terra e outros os seres. Nada se criara ali para o comprazer, nada lhe falava das pessoas com quem convivera, dos seus antigos costumes, das coisas que amara. Era um mundo à parte, terra embrionária, geradora de assombros e tirânica, tirânica ! ... Existia o emaranhado vegetal, louco, desorientado, voraz, com alma e garras de fera esfomeada [...] porque ali somente a selva tinha vontade e imperava despoticamente. Nas narrativas que reconstroem os fatos históricos da região, destacam-se Guerra dos Seringueiros, de Jesuíno Ramos e Território de bravos, de Francisco Marins. Embora os dois autores não sejam acreanos, relatam, na forma de ficção, a história detalhada da Revolução chefiada por Plácido de Castro, que resultou na anexação ao Acre ao Brasil. Em relação aos autores acreanos, nas Memórias de um padre seringueiro, de Expedito de Castro, bem como em Ô de Casa, de Francisca Trindade Lopes, os personagens principais se movimentam em meio aos acontecimentos violentos da Revolução Acreana, que serve de pano de fundo. Memórias de um seringueiro, de Jersey de Brito Nunes, conta a história da origem e formação da cidade de Sena Madureira, enquanto O trabalho vence tudo e Luta contra os astros, ambos de José Higino de Souza Filho, resgatam e documentam o cotidiano e costumes dos habitantes de Vila Sobral (hoje Tarauacá), nas primeiras décadas do século XX. Quanto à autoria feminina, são três os romances de mulheres no Acre: Terra de Deus (1993), de Luciana Barbosa; O empate (1993), de Florentina Esteves e Ô de casa (2003), de Francisca Trindade Lopes.[2] Francisca Trindade Lopes escreveu Ô de casa ao longo dos anos, nos intervalos entre uma atividade e outra, em casa ou no ambiente de trabalho. A escrita do romance foi concluída em 2002, mas chegou ao público em 2003, pois a escritora somente obteve recursos para publicá-lo após a venda da própria casa. Foi com parte do dinheiro da venda do imóvel, no qual residia, que ela conseguiu disponibilizar o romance para os leitores[3]. A escritora, além de romancista, também é contista e cronista, mesmo que seus escritos nesses últimos gêneros, ainda não tenham sido publicados. O romance de Francisca Lopes se inicia na cidade, quando um homem que está há muito tempo sumido e dado como morto, reaparece no portão da casa da protagonista chamando: “Ô de casa!”. Imediatamente se inicia um flash-back para contar a história dos dois personagens que se apaixonaram no passado: Luísa e Dêro. Ela com apenas dezesseis anos, ele bem mais velho, nas terras designadas para os seringueiros trabalharem depois que foram expulsos pelos fazendeiros de gado. O relato contém todos os detalhes de como o casal se conheceu e foi se apaixonando devagar. Ela, sempre de gênio forte e voluntariosa e ele, um homem calmo e de atitudes sensatas. Quando eles estão de casamento marcado e ela acaba de entregar-lhe a virgindade na véspera, ele sofre uma emboscada e chegam as notícias de que foi assassinado. Tem início então outro flash back, para os tempos em que o Acre foi anexado ao Brasil, os tempos de Plácido de Castro, gaúcho que liderou a revolução que tomou o Acre da Bolívia. Esse novo relato conta a história de um ascendente do protagonista, Artur, o avô de Dêro, que foi um dos heróis da Revolução Acreana. Mais da metade do romance é tomada por esse relato histórico (da página 57 até 190) e se encerra com ele. As duas primeiras narrativas ficam abandonadas e inacabadas, sem nenhum desfecho. Sobre o romance Ô de casa, Fátima Almeida fez a seguinte crítica: Li Francisca Lopes. Acho que tem potencial, de vir a ser o Jorge Amado do Acre, tem uma narrativa ótima, a gente entra na história, ela denota conhecimento com a realidade do seringal antigo, coisa que não existe de modo algum em Florentina Esteves. Mas comentou um erro atroz ao inserir um capítulo inteiro de Leandro Tocantins, misturando ficção com história científica, não tem nada a ver, ela mesma condenou o próprio livro.[4] No entanto, sobre a terceira história, há muitos aspectos relevantes a serem discutidos. Artur, ao contrário da maioria de nordestinos que vieram trabalhar nos seringais, sabia ler e escrever: “Artur escreveu para seus pais e para Rosinha, a primeira carta depois que chegara ao seringal” (LOPES, 2003: 92). Também, os registros da fala de Artur são baseados na norma culta. Entretanto, a característica mais importante do livro de Francisca Trindade Lopes é a criação de uma personagem indígena. Os personagens índios são raros nos romances do e sobre o Acre, de inscrição masculina. O primeiro romance amazônico, Simá, publicado em 1857, de Lourenço da Silva Araújo Amazonas, embora seja declaradamente indianista, retrata um drama que se limita a um destino de submissão à colonização portuguesa. A importância do livro reside em ser a primeira tentativa de registrar a condição de vida na Amazônia, em definir as relações entre índios e brancos, recriando a atmosfera da região ainda em confronto aberto com os conquistadores: A relação entre brancos e indígenas, a força do clero, as disputas políticas estão colocadas como pano de fundo atrelado a uma intensa descrição da paisagem e à preocupação com a construção do perfil do homem amazônida, fruto da miscigenação. A natureza é caracterizada como uma dádiva divina, metáfora do Éden. Como motivo principal da narrativa, temos a trajetória da heroína, Simá, sua vida, amizades, amores, destino, tragédia. Uma heroína romântica da Amazônia, com fim trágico. (FIDELIS, 1998: 40) O Brasil não tem uma tradição de literatura indianista muito forte, mas Simá comparece como um romance precursor dos escritos de José de Alencar. Todavia, tal como o escritor cearense, Lourenço Araújo propõe uma visão otimista do encontro entre as duas culturas, a branca e a indígena, ainda que antevendo os pesadelos internos. Também como Iracema (1965), a heroína indígena Simá morre de forma trágica ao final da história, numa alusão de impossibilidade da cultura aborígine sobreviver à colonização portuguesa.[5] No entanto, é bastante significativo que a primeira personagem de ficção da Amazônia seja uma jovem índia e não um elemento branco. Um dos primeiros romances sobre o Acre também valoriza e descreve a cultura autóctone: Ressuscitados, de Raimundo Morais, publicado na década de trinta. Seguindo em linha contrária a ideologia dos livros de José de Alencar e Lourenço Araújo, Raimundo Morais descreve uma jovem índia ipurinã,[6] Corina, que não morre ao final da narrativa, mas mata a sangue frio seu ex-marido branco, porque ele matou seu amante índio. Após o sinistro, ela vai embora para o coração da floresta viva e vitoriosa. Os miolos escorreram. A cara se lhe transformou numa posta sangrenta. Corina vibrou-lhe ainda outro golpe, pisou-lhe o rosto, cuspiu-lhe, apostrofou-o, estava horrivelmente sinistra. Era agora uma das próprias Fúrias, uma das Gorgonas, tentando talvez metamorfosear em pedra a carne daquele maldito que lhe matara o amante. Delirava em torno dos despojos de José Alves. Ia e vinha olhando-o furiosa, à espera sem dúvida que lhe acudisse à lembrança algum suplício que fizesse urrar de dor o morto. Dando, todavia, com o Cauré estendido no chão, foi outra vez para ele, mudando-se de novo na imagem duma soros Pudibunda. Suas mãos piedosas acariciavam a cabeça ensangüentada do amante. Nisto chamou Japiim, tal se lhe houvesse ocorrido alguma idéia. Convidou o irmão a carregar o corpo, e, como se levasse ali o seu grande tesouro, os seus anelos e a própria alma, desapareceu na floresta. Nunca mais ninguém soube dela. (MORAIS, s/d: 318) A narrativa transcorre nos tempos em que o Acre ainda pertencia à Bolívia, em fins do século XIX, no local onde hoje se localiza a cidade de Sena Madureira. José Alves Ferreira, cearense, rude e de pouca instrução, só havia cursado o primário, tinha trinta anos quando os índios canamarí deixaram Corina em seu seringal e ela foi “adotada” por ele: O capitão Ferreira desceu curioso até junto das embarcações. De uma delas, embrulhada em trapos e metida num panaçu, o tucháua tirou a criança. Mal abria os olhos de recém-nascida. Trazia dois dedinhos da boca, José Alves pegou a criança e chamou, gritando, pela mãe Genoveva, que recebeu e levou no colo a cunhantain (MORAIS: 13). José Alves faz da indiazinha ipurinã sua protegida e quando ela alcança a idade de oito anos, envia a menina para ser educada em colégio de freiras, em Belém: “Educou-se com as freiras. Sabe de um tudo. Borda, pinta, fala inglês, francês, espanhol, italiano, latim. Ela entra com a sabedoria e ele com o dinheiro. Bonita pra doer” (MORAIS: 150). Após a passagem de mais oito anos, José Alves vai buscá-la, mas como nunca teve olhos de pai com a protegida, pretende casar-se com ela. Sua viagem até Belém é descrita em vários capítulos, mostrando as extravagâncias e gastos do seringalista em Manaus e a visita ao famoso bordel de francesas, a Pensão Florou. Dono de oito mil contos de réis, José Alves compra diamantes, peles e roupas finas para presentear Corina. Márcio Souza assinala as discrepâncias nas atitudes de um coronel da borracha: ele era o cavalheiro urbano em Manaus e o patriarca feudal nos seringais. O outro lado, o lado terrível, do isolamento e do regime de semi-escravidão dos seringueiros, das estradas secretas, ficava bem protegido, escondido no infinito emaranhado de rios, longe das capitais. Ele ainda ressalva a importância de se tomar conhecimento dos exageros de consumo dos "coronéis de barranco", que bebiam do melhor uísque importado da Europa, sendo que algumas famílias tinham a extravagância de mandar a lavar a roupa em Lisboa. Contudo, essa opulência teve seus dias contados (cf. SOUZA, 1977: 100-105). O romance descreve a parvoíce e ignorância dos seringalistas enriquecidos pela borracha, que são explorados nas grandes cidades por comerciantes inescrupulosos. O termo “Ressuscitados” nomeia aqueles que ficaram enterrados durante anos no trabalho extrativista e, é como se renascessem para o mundo, quando reaparecem nas cidades de Manaus ou Belém, ricos e atrapalhados, sem saber como se comportar na civilização, sem nenhum traquejo para a vida em sociedade. José Alves, no caso, está saindo do Seringal Santa Clara, para buscar Corina, depois de 36 anos internado na floresta: No mesmo dia em que José Alves Ferreira Chegava a Belém, espalhara-se a noticia, através, aliás, de cem versões, algumas fabulosas, outras reais, todas, porém, como sentido justo duma existência que se afundara na planície, já lá iam 36 anos, pobre e desvalida, para ressurgir rica e prestigiada. A imprensa toda, depois, explorando o caso, aludia ao seringueiro. Certo matutino – A Província do Pará – sob o título de Um Ressuscitado, comentava a vida de José Alvez, vida rude na mata (MORAIS: 143). A índia Iracema, de Alencar e Simá, de Lourenço Araújo sucumbem diante da dominação portuguesa, contudo, Corina personifica a resistência da raça. Do mesmo modo, a personagem Iana, do romance Ô de Casa, de Francisca Trindade Lopes. Iana é uma índia de cerca de dezessete anos, sobrevivente ao massacre de sua tribo: Quando ela chegou aqui, fugia muito e ficava de três dias sem aparecer. Achávamos que ia procurar sua gente. Como não encontrava nem vestígio deles, uma vez que, com sacrifício até de vidas, conseguimos expulsa-los para bem longe, ela retornava, mas só aparecia à noite para roubar comida, quando era pega e castigada para não fugir mais (LOPES: 88). Iana trabalha como babá do filho do patrão, dono do seringal. Quando Artur chega do Ceará, aos 23 anos, para trabalhar no corte de seringa, ela é designada para ser companheira dele: “Seu ajuntamento com Iana aconteceu arranjado pelo patrão e quando ficou sabendo que uma mulher índia ia ser sua companheira, quis recusar” (LOPES: 135). De início, Artur demonstra preconceito em seu relacionamento com Iana. Ele deixou os pais e uma namorada, Rosinha, esperando por ele, no Ceará. Ele decide ficar com a índia somente por uns dois anos, para preencher a solidão na selva e depois voltar para sua terra. Mas logo, Iana tem um filho de Artur. Durante a gestação, os companheiros de luta festejaram: “Eh, brabo! Adeus, Ceará. Você vai mesmo é ficar por aqui...” (LOPES: 119). Os preconceitos de Artur vão desaparecendo paulatinamente e ele começa a ver vantagens da união com a índia que não aconteceria com uma esposa branca. Sua namorada, Rosinha, no Ceará, não permitia nada além de rápidos e leves beijos, enquanto na floresta, a índia está sempre disponível para o sexo. Ter uma mulher índia como companheira foi a melhor coisa que aconteceu comigo depois que saí de casa. Ela sabe viver e trabalhar na mata! E se não fosse ela, estava, como a maioria dos companheiros, trabalhando sozinho, enfrentando, além dos perigos de viver no meio do mato, uma grande solidão, o que não estava acontecendo com ele graças à índia. E o que era melhor, Iana era uma mulher que não se fazia de rogada. Fosse nos caminhos das estradas de seringa, fosse na beira do igarapé ou mesmo noutro lugar, estava sempre disposta para uma sem-vergonhice. Mas isso ele não ia contar aos pais; estava longe, mas não estava doido. Imagina contar essas coisas para o velho, nem que o padim pade Ciço pedisse” (LOPES: 135). No mundo dos índios não existe os interditos e vetos que a sociedade ocidental impôs sobre as mulheres desde os tempos da Modernidade. A índia desfrutava de um comportamento mais livre que uma mulher da cidade jamais teria naqueles tempos. Em seguida, Artur é convocado pelo patrão, com mais meia dúzia de seringueiros, para lutar sob o comando de Plácido de Castro, na Revolução Acreana, em que os brasileiros tomaram o Acre da Bolívia. Meses depois, ao retornar da batalha, Iana já tinha tido outro filho e também aprendera a ler e escrever e já dominava um vocabulário maior do que tinha antes. Por ter participado da guerra, Artur teve sua dívida com o patrão perdoada[7] e no final do ano de 1905, já com três filhos, foi ao Ceará rever os pais e irmãos. Mas ao final do romance, Artur se estabelece de vez no Acre, sempre com Iana com a qual teve um total de oito filhos. De forma semelhante à Corina, a índia Iana sobrevive e se encaixa na sociedade dos brancos, porque assimila e aceita a cultura do Outro. No romance O empate, Florentina Esteves discute a polêmica questão das queimadas e do desmatamento na região do Acre, os conflitos entre fazendeiros e seringueiros. O termo "empate" tem origem no verbo "empatar" e foi empregado na região acreana com o sentido de impedir alguém de realizar ato danoso contra a natureza ou um determinado grupo. Para enfrentar a força desagregadora dos criadores de gado, que tentavam desarticular o antigo extrativismo vegetal da borracha e da castanha, tradicional na região, implantando fazendas nas terras de seringais, os seringueiros se utilizavam do “empate”. Homens, mulheres e crianças se posicionavam de mãos dadas, na frente das armas, de motosserras e dos peões que trabalhavam para os fazendeiros e madeireiros para impedir a invasão de suas terras e a derrubada da floresta. Se necessário, ficavam horas na mesma posição ou até o dia inteiro. Esta atitude de resistência foi chamada de "empate". Os primeiros empates foram organizados pelos seringueiros como forma de se contrapor aos fazendeiros, que queriam expulsá-los de suas Colocações de Seringa, ou para impedir que derrubassem as florestas para formar pastos para os bois. [...] Em um empate, a polícia sempre se apresentava ao local para proteger os patrimônios dos grandes proprietários e para fazer cumprir as ordens judiciais. Os seringueiros enfrentaram, em seus empates, ordens judiciais e violências policiais. (SOUZA, 2002: 55-56) O herói da narrativa é Severino Sobral, que mora com o filho, Firmino. Pai e filho vivem no tempo da liderança de Chico Mendes, no Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri, com o mercado da borracha decadente e a chegada de homens e máquinas de São Paulo e outros estados do sul, para desmatar a floresta para feitura de pastos para a criação de gado. Esse tempo de transição de uma economia para outra é bem registrado no romance com os empates feitos pelos últimos seringueiros, liderados por Firmino. Na primeira parte do livro, a narrativa se detém na solidão de Severino, vivendo isolado na mata, no corte da seringa, com visitas esporádicas do amigo Celestino. O amigo, que era casado, dizia-lhe sempre para arranjar uma mulher, pois a cachorra Lindalva, que lhe servia de companhia, de mulher só tinha o nome. - Pois então me diga onde é que tem mulher.- Ter, não tem nem bagulho. Você já viu a Chiquinha do finado Idroaldo? Aquilo é que é ser canhão: vesga, manca, corcunda, e, além de tudo, preta que nem tição. Pois ainda no velório, Simplício e seu Zé-dos-Bodes armaram tal fuzuê que um foi pra casa sangrando, e o outro levou a mulher, antes mesmo do defunto feder. Mas se tu tem coragem, faz como o finado Cosme: um dia que Gumercindo viajou a Xapuri, ele foi no seu barraco, agarrou a mulher, levou à força. E inda deixou recado: se vier buscar, leva bala. Só que ele não contava cruzar com Gumercindo, no meio do caminho. Foi bala, seu Severino. E do pobre do Cosme as piranhas deixaram só o esqueleto (ESTEVES, 1993: 07). Aqui a manifestação de relações de raça e de gênero está em questão. A mulher disputada pelos seringueiros no velório é negra. A presença do elemento negro é ainda mais rara que a do indígena no romance acreano. Além de praticamente não existir escritores negros, os representados nas narrativas são personagens sempre subalternas, a serviço de um seringalista rico e explorador. É o caso do capataz e comboieiro negro Tomaz, que trabalhava para o Coronel Tonico Monteiro, em Terra Caída, de Jose Potyguara. Outra personagem negra é a mãe Genoveva, cozinheira de José Alves, dono do seringal Santa Clara, em Ressuscitados, de Raimundo Morais. Ela é uma nordestina responsável pela criação e educação de Corina até os oito anos de idade, quando então lhe contava histórias do imaginário popular nortista e ensinava as cantigas e os mitos locais. Ao final da narrativa, quando José Alves está se preparando para atacar a aldeia de Corina, com um regimento de seringueiros armados, mãe Genoveva pede as contas e volta para Belém, alegando ao patrão que prefere ir embora para não ter que ver a morte de “sua rica e bela menina”. Severino, após beber em excesso no baile, fica bem doente e viaja com Celestino para tomar os remédios da índia Jandira. Nessa ocasião, Severino conhece Mani e, no mesmo dia, volta com ela para sua barraca para ser sua companheira: “Severino sentiu que Mani era parte de seu ser, de que também faziam parte a terra, rio, árvores, pássaros e o ar que respirava” (ESTEVES: 16). No decorrer da narrativa, sobressai aos olhos do leitor a história de amor do seringueiro Severino Sobral e sua companheira Mani, índia da tribo dos Ianomâmis, uma vez que a mulher branca contava em quantidade insuficiente para todos os seringueiros. Ele e Mani (homem branco e índia) formam um casal de amantes perfeitos, vinculados entre si e com a mata. O trecho abaixo demonstra a força da ligação entre Severino e Mani, que, após o nascimento de cada filho, plantavam uma árvore em homenagem à criança: Mandaram logo recado a Jandira. Mas como a índia não chegou a tempo, ele mesmo serviu de parteira. Serviu de parteira também quando nasceu Iraci, depois Jaci, Conceição, Maria Rita, Antônia, Agaildo, Aquino. Jandira só precisou vir na vez do temporão: Firmino. Aí ele levou-a ao terreiro, ‘vem ver os irmãos dos meninos’. Enfileirados, mostrou-lhe que depois da sapupema vinha a ingazeira, o cedro, copaíba, pau-d’arco, mulateiro, o sapoti e a tamarineira. Pouco adiante, atravessando a trepadeira do portão do barraco, estava o pé de cumaru-ferro: este é o irmão de Firmino (ESTEVES: 20). Quando nasceu Nino, o primeiro, plantaram uma Sapupema. Jandira, mãe de Mani, era parteira e ajudava nos partos, pois, na floresta, os médicos aparecem esporadicamente. O próprio marido passa a fazer os partos de sua esposa, voltando a pedir ajuda da sogra no último e nono filho. Assim, o quintal floresce farto de árvores, cada uma plantada de acordo com o desejo que Mani teve na gravidez e com a característica que seria marcante no filho que nascia. Todos esses elementos servem para revelar ao leitor como seria difícil, impossível para um homem como Severino deixar suas terras, plantações e moradia para viver na cidade, só porque a terra agora pertencia a fazendeiros. Mani adoece e acaba por falecer depois que os filhos estão adultos. Ela começa a entristecer com a morte de Agaildo, o filho que decide ajudar nos empates depois de se casar e constituir família. Ele morre durante um dos empates de emboscada, esfaqueado por um peão, deixando a esposa grávida do primeiro filho. Mais tarde, Nonato, o marido de Toinha, filha de Severino e Mani, mata um peão que mexera com sua esposa. Nonato foge e desaparece depois do crime. Severino leva Toinha e os netos para sua casa (barraco). Quando ela resolve voltar para sua colocação, toma conhecimento que os “paulistas” queimaram tudo e já se apropriaram das terras. Ela deixa as filhas menores com os avós e decide morar na cidade com o filho mais velho. Certa ocasião, em que Severino vai visitá-la, descobre desgostoso que a filha vive na prostituição. Após tais acontecimentos, a saúde de Mani piora levando-a a morte. Ela não teria como sobreviver, mesmo sendo a representação da natureza dentro da narrativa. Ela, mulher indígena conhecia todos os remédios feitos com as ervas da floresta, conhecimento ancestral que foi passado de mãe para a filha. Ela que conhecia os mistérios e os segredos da mata, morre, uma alegoria de que os criadores quando destruiam e queimavam as árvores indiscriminadamente para a criação de pastos, matavam também as tradições, a sabedoria do povo da floresta, seus costumes e meios de vida. O massacre ambiental equivaleria a um massacre cultural. Mary Louise Pratt, em seus estudos sobre o amor transracial, em relatos de viajantes ingleses, de 1750 a 1800, observa que os enredos desse tipo de amor articulam o ideal de harmonia cultural através do relacionamento amoroso. O que faz deste ideal um ideal é, mais de uma vez, a mística da reciprocidade. “Enquanto ideologia, o amor romântico, como o comércio capitalista, se vê como recíproco. Reciprocidade, o amor retribuído entre indivíduos igualmente valiosos um para o outro, é seu estado ideal” (PRATT, 1999: 174). O drama ou escândalo acontece quando fracassa a reciprocidade ou a equivalência entre as partes. A crítica assinala também que por mais que os amantes desafiem as hierarquias coloniais, no final eles obedecem a elas. A reciprocidade se torna irrelevante. Assim, seja ou não correspondido o amor, seja o amante colonizado homem ou mulher, o resultado parece ser aproximadamente o mesmo: os amantes são separados, o europeu é reabsorvido pela Europa e o não-europeu morre prematuramente (cf. op. cit.: 175). Pratt se refere em suas análises ao amor transracial entre negros (na maioria das vezes crioulos, mestiços) e brancos, entre o colonizado e o colonizador, entre o europeu e o não-europeu, como, por exemplo, na Narrativa de uma expedição de cinco anos contra os negros revoltosos de Suriname, de John Stedman, a qual conquistou imaginações por toda a Europa durante trinta anos, após sua publicação em 1796. Ainda assim, é possível aplicar suas palavras a romances como Iracema, de Alencar e Simá, de Lourenço Araújo, nos quais os amantes são separados no final e o elemento europeu é “reabsorvido pela Europa e o não-europeu morre prematuramente”. Se as índias Iracema e Simá morrem nas narrativas românticas do século XIX, ainda refletindo a ideologia de relatos como os de Stedman, o mesmo não acontece em relação à produção ficcional da Amazônia, tematizando o amor transracial, principalmente, nas narrativas de autoria feminina do Acre. As diferenças estão nas relações que agora são entre homens e mulheres do Brasil, mas de raças diferentes: indígena e branca. Os amantes ainda pertencem a espaços geográficos distantes e diferentes: o homem é sempre nordestino, que veio de fora para viver no Acre, as mulheres são indígenas. É necessário apontar também que o amor transracial se realiza e tem permanência porque um dos amantes se fixa no espaço do outro. Aqui são os homens que permaneceram na Amazônia. Em Ô de Casa, de Francisca Lopes, inicialmente Artur tem planos de voltar para o Ceará e se casar com Rosinha, depois que juntar dinheiro suficiente produzindo borracha. Porém, após o nascimento de seu primeiro filho com Iana, ele começa a mudar de atitude. O amor entre eles floresce e tem longa duração porque ele resolve se fixar no Acre. Quando ele visita seus pais, no Ceará, depois de lutar na Revolução Acreana, deve-se notar que ele não leva Iana com ele, apenas o filho mais velho. Nas palavras de Pratt, “os vínculos amorosos se desenrolam em algum espaço marginal ou privilegiado onde as relações de trabalho e propriedade estão suspensas” (PRATT: 178). Da mesma forma, acontece entre Severino e Mani. O idílio é perfeito porque o casal vive nas entranhas da floresta, no ambiente dela. O elemento indígena sobrevive ao branco segundo duas condições: aniquilar o branco ou assimilar e aceitar sua cultura, sufocando a sua própria. No caso do romance Ressuscitado, Corina mata José Alves porque na verdade ela nunca teve nenhum amor por ele, senão talvez filial. Também ela era uma moça fina e culta, que dominava a cultura ocidental muito melhor do que ele. Ela recebeu uma educação formal completa, ele mal fizera o curso primário. Já no amor de Artur e Iana, ela aceita a transculturação, ela assimila o mundo do branco. Mani também é brilhante e atuante porque nunca é retirada de seu mundo da floresta, o qual ela domina totalmente. Quando esse mundo é ameaçado pelas máquinas dos “paulistas”, pelo desmatamento e desapropriação, ela morre de desgosto. Referências Bibliográficas: CUNHA, Euclides da. (2000). O paraíso perdido. Seleção e coordenação de Hildon Rocha. Brasília: Senado Federal. ESTEVES, Florentina. (1993). O empate. Rio de Janeiro: Oficina do Livro. FIDELIS, Ana C e Silva. (1998). Entre orientes, viagens e memória: a narrativa Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoun. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP. LOPES, Francisca Trindade. (2003) Ô de casa! Rio Branco: Printac. MORAIS, Raimundo. [s.d]. Ressuscitados: romance do Purus. São Paulo: Melhoramentos. POTYGUARA, José. (1998). Terra caída. 3.ed. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre. (1ª edição de 1961). PRATT, Mary Louise (1999). Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru, EDUSC. SAID, Edward. (1990). Orientalismo: o oriente como invenção do ocidente. São Paulo: CIA das Letras. SOUZA, Carlos Alberto Alves de. (2002). História do Acre: novos temas, nova abordagem. Rio Branco: Editor Carlos Alberto A. de Souza. SOUZA, Márcio. (1977). A expressão amazonense do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa-Ômega. SOUZA, Márcio. (1994). Breve história da Amazônia. São Paulo: Marco Zero. [1] LEITE, José Chalub. Tão Acre: o humor acreano de todos os tempos. Rio Branco: Editora Preview, 2000, p. 112. [2] Nasceu em 1939, no seringal Estirão, em Tarauacá. Posteriormente, a família mudou-se para o seringal Ariópolis, também em Tarauacá. Foi registrada na antiga comarca de Feijó. É a sétima de um total de dez filhos de Francisco Lopes de Lima e Raimunda Trindade Lima. Formada em História, pela UFAC, em 1984, atualmente está aposentada de suas funções como funcionária da Companhia de Luz, no Acre (Eletroacre). Solteira, sem filhos, mora em um apartamento no bairro Bosque, em Rio Branco. [3] LOPES, Francisca. Entrevista [09 de fevereiro de 2004] Rio Branco. Realizada por Alzenir Rabelo Mendes. [4] ALMEIDA, Fátima. Entrevista. [08 de fevereiro de 2004]. Rio Branco. Realizada por Margarete Prado Lopes. [5] Quando as caravelas de Cabral aportaram na costa brasileira, cinco milhões de índios habitavam o Brasil. Nos últimos 500 anos, porém, mais de mil línguas indígenas desapareceram junto com seus povos. Segundo estimativas da Funai, as 220 etnias que sobreviveram ao genocídio do homem branco somam hoje uma população de apenas 350 mil índios. No Acre sobrevivem 12 nações indígenas. Ver Revista Outras Palavras. Rio Branco: Fundação Elias Mansour, junho de 2000, nº05, p.20. [6] As nações indígenas que ainda sobrevivem no Acre são: Jaminawa, Manchineri, Kaxinawá, Kulina, Ashaninka, Shanenawa, Katukina, Yawanawá, Jaminawa-Arara, Nukini, Arara e poyanawa. Piauí e Rio Grande do norte são os únicos estados brasileiros onde não povos indígenas. Cerca de 60% da população atual vive no Centro Oeste e Norte do País e cerca de 12% do território nacional está reservado para uso dos povos indígenas. Outras Palavras, junho de 2000, p.23. [7] No Sistema de Aviamento, que vigorava no extrativismo, o seringueiro já chegava aos seringais acreanos endividado, pois teria que pagar ao seringalista, produzindo borracha, as passagens do Nordeste até o Acre, além das roupas, mantimentos e instrumentos recebidos para cortar seringa. Os conceitos emitidos em artigos e resenhas assinados são de absoluta e exclusiva responsabilidade de seus autores. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta revista poderá ser reproduzida ou transmitida sem permissão por escrito da Comissão Executiva e dos autores dos artigos e/ou resenhas, exceptuando-se os usos para citação acadêmica devidamente referenciados.

sábado, 1 de março de 2008

Acre - história super resumida

FONTE: www.revan.com.br/catalogo/0216a.htm O termo acre (ou a'quiri) designa, inicialmente, um rio da região acreana e parece derivar do vocábulo tupi a'kir ü, isto é, rio verde. Ele surge grafado pela primeira vez, ao que tudo indica, em uma correspondência enviada da foz do rio Purus pelo viajante João Gabriel Carvalho de Melo, em 1878. E foi justamente por essa época que o Acre começaria a despertar o interesse dos brasileiros. Com efeito, a não ser por uma ou outra incursão realizada no século XVIII, notadamente após a fundação da capitania do Mato Grosso, em 1751, a cobiça pela região só se verificou realmente no século XIX. A história registra que as primeiras correntes migratórias se dirigem para os vales do Purus e do Tamauacá, no rastro da descoberta da borracha. Da descoberta pelos europeus, pois os índios já conheciam a borracha desde tempos imemorais. Como observou o naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, na sua memória sobre os índios campeba, estes ensinaram "às demais nações e igualmente às do Pará a fabricar a célebre goma, ou resina elástica, chamada vulgarmente leite de seringa..." Não por acaso, alguém definiu a borracha como "ouro negro e vida da Amazônia" por essa época. A presença de sertanistas brasileiros na região - que, conforme estipulavam os tratados de Madri (1750) e Santo Ildefonso (1777), integrava a Bolívia atual - implicou a elaboração de um outro acordo, entre o Brasil e a Bolívia, desta feita, em 1867. Pelo Tratado de Ayacucho, a fronteira entre os dois países seria fixada pela confluência dos rios Beni-Mamoré, no rumo do Leste - uma linha de demarcação ainda pouco definida. Diga-se de passagem, os únicos habitantes conhecidos da área, até então, eram os índios yananadí, katukína, kaxináwa e ipurinã. Quase que simultaneamente, ocorre a grande seca de 1877/79 no Nordeste, o que provoca a fuga sucessiva de nordestinos, principalmente cearenses, para o Acre, em busca de terras para plantar. "A seca expulsa-os e congrega-os", como notou o pesquisador Rui Facó. Já em 1890, por exemplo, logo após a nova seca de 1888-1889, portanto, extensas faixas do território acreano são ocupadas por imigrantes brasileiros, numa burla flagrante das normas fronteiriças estabelecidas pelo Tratado de Ayacucho. "A incorporação do Acre começou pela conquista mansa dos seringueiros", sentenciou certa vez o historiador Ernâni Silva Bruno. O grande alvo das disputas seria, indubitavelmente, as seringueiras: o beneficiamento do látex recolhido nas florestas amazônicas tem um papel fundamental na marcha da industrialização mundial no alvorecer do século XX. Em função disso, a Bolívia firma uma série de posições em defesa de sua soberania. As quais incluem, de uma parte, a criação, em 1898, de uma sede para arrecadação de impostos: Puerto Alonso. De outra - e esse parece ter sido o grande equívoco boliviano - a cessão da área do Acre atual a um grupo norte-americano, encarregado de sua colonização e da própria exploração da borracha, em troca de auxílio militar e econômico ao país. Era o chamado Bolivian Syndicate of New York, formado em 1901, e que representava, na realidade, uma forma de protesto contra a criação do Estado Independente do Acre, proclamado em 1899 pelo aventureiro espanhol Luiz Galvez, um ex-funcionário do consulado boliviano em Belém do Pará, financiado por grupo de seringalistas e pelo próprio governo do Amazonas (e inspirador do romance Galvez, o imperador do Acre do escritor amazonense Márcio Souza). Mas o conflito não se limita ao questionamento, pela Bolívia, da aventura amazônica de Galvez, ou de qualquer outro (como o atesta as manobras impetradas, em 1899, pelo advogado José de Carvalho). Também o Brasil, na função de Estado, envolve-se diretamente na disputa, questionando abertamente a presença estrangeira na região. No plano estritamente político, o Congresso brasileiro propõe a ruptura de relações comerciais com a Bolívia, ocorrendo a suspensão das navegações entre os dois países. No plano militar, o gaúcho José Plácido de Castro (1873-1908), um agrimensor estabelecido há alguns anos na região, arregimenta, já em 1902, alguns grupos de seringueiros decididos e toma Xapuri. Em 1903, esses grupos, com apoio logístico do Estado brasileiro, ocupam Puerto Alonso e proclamam, uma vez mais, o Estado Independente do Acre, obrigando as forças bolivianas à capitulação. Só que agora o conflito é mais sério, já que o controle da situação pertence ao Estado brasileiro e não a um aventureiro qualquer. Na avaliação de um abalizado economista, "o regime de ocupação oficial boliviano, pelo maior rigor na tributação e por atos administrativos que importavam em negar legitimidade à propriedade dos seringais preexistentes" esteve na base do levante de Plácido de Castro. Seja como for, o governo brasileiro toma duas decisões. A primeira delas implica a abertura de um canal de negociação com o Bolivian Syndicate (que de boliviano não tem sequer o nome), oferecendo a essa organização de financistas norte-americanos e ingleses uma indenização de 110 mil libras esterlinas pela anulação do contrato com a Bolívia. Uma vez aceita essa proposta, o Brasil elabora a segunda etapa de seu plano, isto é, resolve estabelecer relações com o governo boliviano com base no Tratado de Petrópolis, firmado em 1903 entre as duas partes. Por esse texto, o Brasil adquire a região de exatos 142.800 quilômetros quadrados por dois milhões de libras, comprometendo-se ainda a edificar a estrada de ferro Madeira-Mamoré (o que possibilitaria escoar os artigos bolivianos pelo Atlântico), além de ceder terras no Mato Grosso e no Amazonas à Bolívia. O Brasil ficou com a posse definitiva da área, muito embora tenha havido alguma resistência na Bolívia à assinatura do Tratado. "Efetuamos a nossa primeira aquisição territorial desde que somos nação independente" - exultaria depois Rio Branco, Ministro das Relações Exteriores e negociador brasileiro. Pouco tempo depois, o Brasil contornaria o descontentamento peruano com os rumos dados à questão acreana, através do estabelecimento de um tratado em 1909. O Peru deixava de lado uma antiga reivindicação de soberania sobre o Acre e partes do Estado do Amazonas. A questão fronteiriça brasileira ficava assim definitivamente equacionada, bem ou mal. Segundo a antropóloga Berta Ribeiro, os índios do vale do rio Acre "foram compulsoriamente engajados na extração do caucho e da seringa e os que se recusavam ao trabalho escravo eram massacrados". Afinal, eram eles os detentores das técnicas de obtenção de caucho - e isso lhes custaria caro. De toda forma, desde 1907, pelo menos, a borracha, centro da crise com a Bolívia entre o final do século XIX e o início do século XX, permanece como o principal produto de exportação do Acre, que se tornara o primeiro Território Federal do Brasil três anos antes. A atividade extrativa na região - e aí se inclui igualmente a castanha do Brasil, mais conhecida como castanha-do-pará - encontra-se, entretanto, em franco declínio: os baixos preços obtidos pela borracha e o próprio esgotamento de um grande número de seringais levam muitos empresários locais à bancarrota. Ao baixo nível técnico da produção (existem apenas cinco beneficiadoras de borracha na região no final da década de 1890), vem-se acrescentar ainda a falta de incentivos fiscais aos pequenos e médios produtores. A crise é aguçada, também, pela substituição dos seringais nativos pelas pastagens, substituição essa promovida por empresários de outras partes do país, notadamente do Sul. Somente a produção de frutos locais vem conhecendo algum desenvolvimento. A estrutura agrária, caracterizada pela crescente concentração da terra, foi a principal responsável pela marginalização do homem do campo e pelos numerosos conflitos que sacodem a região. O assassinato do seringalista Chico Mendes, em 1988, exprime justamente esse estado de coisas. Há verdadeiras aberrações na região: conforme dados do Incra, uma única pessoa possuía no início da década de 1990, dois milhões de hectares no Acre, o equivalente a 13% de sua superfície. Este, sim, um verdadeiro estado independente. Ora, isso só se torna possível devido à ausência quase total do aparelho do Estado em grande parte do território acreano, o que facilita a grilagem de áreas públicas e a falsificação de títulos de propriedade. Como o Acre possui um dos solos mais férteis do país, fica a impressão de que os conflitos não têm mais fim. De positivo, no tocante à questão fundiária, o Acre tem a registrar uma das áreas menos depredadas pela ação do homem (menos de 7% de sua área total foi alterada pelo homem, contra uma média nacional de mais de 33%). Mas a ecologia humana deixa a desejar: às vésperas do novo milênio, o Acre ainda mantém cerca de 80% de sua população sem acesso a redes de esgoto e 70% não dispõem sequer de água encanada em seus lares. Constituem sérios entraves ao crescimento econômico do Acre os problemas de comunicação, o reduzido potencial energético e a falta de unidade econômica e administrativa - reflexos da precariedade dos transportes terrestres. Talvez por isso, a grande prioridade administrativa do Estado do Acre no limiar do século XXI seja justamente a conclusão da BR-317, ligando Rio Branco ao Peru e de uma outra rodovia, intermunicipal, a BR-364, entrelaçando Rio Branco e Cruzeiro do Sul. Parece haver hoje um consenso no estado a respeito da premência dessas obras. LOCALIZAÇÃO GEOGRÁFICA - O Acre possui 153.697 quilômetros quadrados de superfície. Localizado na região Norte, o estado limita-se com o Amazonas (ao norte), com Rondônia (a leste), Bolívia (leste e sul) e Peru (sul e oeste). Principais municípios: Rio Branco (capital), Cruzeiro do Sul e Tarauaca. ACERVO CULTURAL: Museu da Borracha, Av. Ceará, 1.177, Rio Branco; Universidade Federal do Acre, Av. Presidente Getúlio Vargas, 654, Rio Branco. BIBLIOGRAFIA BASTOS, Abguar. A conquista acreana (ensaio socioeconômico da fixação do nordestino no vale acreano). Rio de Janeiro, 1960. CALIXTO, Valdir de Oliveira. Acre: uma história em construção. Rio Branco, 1985. CASSIANO, Ricardo. O Tratado de Petrópolis. Rio de Janeiro, 1954. COSTA, João Craveiro. A conquista do deserto ocidental; subsídios para a história do Acre. São Paulo, CEN, 1940. LIMA, C. de A. Plácido de Castro. Rio de Janeiro, Civ. Brasileira, 1960. TOCANTINS, Leandro de. Formação histórica do Acre. Rio de Janeiro, Conquista, 1961. . Estado do Acre: geografia, história e sociedade. Rio de Janeiro, Philobiblion; Rio Branco, Assessoria de Comunicação, 1984, ilus.

CRONOLOGIA BÁSICA: história do Acre

1752 - Surge Vila Bela, às margens do rio Guaporé. 1850 - Várias expedições percorrem por essa fase o atual território acreano, alcançando os rios Purus, Acre e Tarauacá. 1867 - Assinatura do Tratado de Ayacucho com a Bolívia. 1873 - Nasce em São Gabriel, Rio Grande do Sul, José Plácido de Castro, assassinado por desafetos políticos, em Benfica, Acre, em 1908. 1873/1874 - Devido aos seringais, a população da bacia do Purus aumenta de mil para quatro mil habitantes no espaço de apenas um ano. 1878 - Primeira referência direta ao vocábulo Acre ou Aquiri, em correspondência enviada do rio Purus pelo colonizador João Gabriel de Carvalho Melo. 1890 - Há notícias de mais de 300 seringais ocupados por brasileiros somente na bacia do Juruá. 1899 - Início das ações armadas por parte de brasileiros no atual Estado do Acre, então sob domínio boliviano (abril). 1900 - Campos Sales extingue a efêmera República Acreana do aventureiro Luiz Galvez (março). 1902 - Tropas de Plácido de Castro ocupam a vila do Xapuri (agosto). 1903 - O Brasil indeniza o Bolivan Syndicate em 110 mil libras esterlinas, que assume o compromisso de desistir de qualquer pretensão territorial sobre o Acre (fevereiro). 1904 - Plácido de Castro é nomeado governador do Acre Meridional (21/4). 1907 - O território do Acre iguala-se aos Estados do Pará e Amazonas na extração de borracha. 1909 - Assinatura de um Tratado com o Peru completa a integração do Acre ao território brasileiro. 1913 - Início do declínio da extração da borracha brasileira, cujos preços caem no mercado internacional. 1920 - Unificação do Acre, até então um território dividido em três departamentos. 1934 - O Acre adquire o direito de eleger representantes junto ao Congresso Nacional. 1962 - O Acre é elevado à condição de estado (15/6). 1988 - Assassinato, em Xapuri, do líder seringueiro Chico Mendes. 1996 - Recaptura de Darci Alves Pereira, assassino de Chico Mendes.