domingo, 5 de agosto de 2012

O saudosismo em questão: uma representação não autorizada da formação da sociedade acreana.

O saudosismo em questão: uma representação não autorizada da formação da sociedade acreana.

Eduardo de Araújo Carneiro 

Diz-se que o saudosismo é a valorização demasiada do passado. Esse sentimento faz com que a pessoa ou uma comunidade se lembre de acontecimentos com alegria e apreço. A representação autorizada da formação da sociedade acreana significou todo o momento fundador como “glorioso”, digno de suscitar orgulho em gerações futuras. Os primeiros acreanos são tratados como “heróis” por terem um patriotismo aguçado em favor do Brasil e, por conta disso, terem se unido e heroicamente protagonizado uma “revolução” contra a Bolívia em prol da anexação de territórios incontestavelmente não brasileiros, de acordo com a legislação da época em vigor.
O que se verá no decorrer dessas linhas será justamente o contrário, ou seja, que o abrasileiramento das Tierras Non Descobiertas bolivianas e consequentemente a formação da sociedade acreana aconteceram por meio de abundante violência, corrupção e desunião. A primeira hipótese aqui levantada é a de que a visão epopeica do passado inaugural acreano foi construída para simular o estado de incivilidade da sociedade gomífera. A segunda é a de que parte dessa “incivilidade” foi estimulada pela inserção da região na cadeia mercantil da Economia-Mundo Capitalista.
A representação autorizada da formação da sociedade acreana além de subliminarmente legitimar o ingresso do capital internacional e do capitalismo de modo geral na região, ainda torna dignos de comemoração acontecimentos que são uma afronta aos direitos humanos como, por exemplo: o genocídio indígena, a invasão de territórios, a resolução de conflitos por meio da violência armada, a corrupção econômica do chamado “sistema de aviamento”, o autoritarismo político das primeiras organizações administrativas do Acre, o “coronelismo” nos seringais, a exploração “sanguinária” do seringueiro, a ação predatória dos acreanos contra a natureza, a prática da zoofilia, o tráfico de prostitutas, dentre outros.
A representação “não-oficial” analisa o processo de ocupação do Aquiry por brasileiros e a consequente anexação dele ao Brasil a partir da história da expansão da Economia-Mundo Capitalista. A valorização da borracha como matéria-prima industrial no mercado mundial na segunda metade do século XIX estimulou o ingresso do capital internacional na Amazônia, que financiou todo o sistema de aviamento que possibilitou a migração de inúmeros nordestinos para as regiões banhadas pelos rios Juruá e Purus, reservatórios naturais de seringueiras. Sem a dita valorização da borracha e sem o referido ingresso de capitais estrangeiros não teria acontecido a migração, consequentemente, o Acre nunca teria existido.
 O conceito de Economia-Mundo Capitalista do sociólogo Wallerstein (2001) será útil na análise feita aqui, pois faz menção de um capitalismo histórico surgido primeiramente na Europa que praticamente foi aos poucos globalizado por meio de infinitas cadeias mercantis estabelecidas pela corrida insaciável do capital por oportunidades de inversão lucrativa. A Región de la Goma foi alvo do capital internacional tornando-a parte da rede comercial capitalista. O Acre surge, então, como um subcapítulo da acumulação de capitais de outros países, como mais uma “veia aberta da América Latina” (GALEANO, 1994).
E os agentes históricos utilizados pelo capital internacional para integrar o “Aquiry” indígena, o Madidi peruano ou as “Tierras Non Descobiertas” bolivianas à economia-mundo capitalista foram os nordestinos brasileiros. Eles foram as “mãos” e os “pés” utilizados para saquearem a região, de modo que o grosso da riqueza era exportado em formato de pélas de borracha. Os primeiros acreanos, portanto, deixam de ser percebidos como “heróis” para assumirem a posição de cooperadores do “império do mau” (PERRAULT, 1999, p. 12), responsáveis pela inclusão do Acre numa posição periférica na teia de relações comerciais mundiais e, consequentemente, pelo início da história de dependência econômica que vigora até hoje.
É aceito como fato pelos cientistas sociais críticos do capitalismo que as sociedades que são formadas pelo capital inevitavelmente ficam marcadas pela desigualdade social, violência, concentração de renda, degradação do meio ambiente, dentre outros. A sociedade acreana não escapou ilesa das “doenças econômicas e sociais” (BUZÚIEV, 1987, p. 4) do sistema. Se levada em consideração a representação não autorizada da formação do Acre aqui exporta, verificar-se-á a impossibilidade de qualquer saudosismo com relação ao passado fundador do Acre. Pois o mesmo está apinhado de “patologias sociais” (KEPPE, 2002), alguma das quais serão vistas a seguir.
Uma das marcas mais cruéis da incivilidade dos “heróis” acreanos é sem dúvida o crime hediondo do genocídio cometido por eles em decorrência da abertura de seringais. A genealogia da sociedade acreana começa quando a história de inúmeros povos termina. A patologia do “etnocentrismo” materializada no genocídio não combina com qualquer ideia de passado “glorioso”.
Hoje os inúmeros geoglifos encontrados em território acreano são provas incontestáveis da presença milenar do homem na região. Os migrantes nordestinos não são os primeiros a colonizar as bacias do Juruá e do Purus. Antes de o Acre ser Acre o ser humano já habitava nesse espaço. Como afirma Calixto (1984, p. 15), “a extensão territorial que forma atualmente o Estado do Acre foi um dos maiores redutos de povos indígenas da Amazônia”.
É duro reconhecer que a sociedade acreana foi fundada a partir do extermínio de vários povos. O ativista Albert Memmi (2007, p. 22) já dizia que “se a colonização destrói o colonizado, ela apodrece o colonizador”. O próprio escritor amazonense Márcio Souza (1977, p.113) chegou a afirmar que “a sociedade gomífera era doente”, e que as melhores virtudes dela eram “estúpidas”.
Em favor do lucro das grandes potências mundiais, os “iludidos do capital”, ou seja, os nordestinos que vieram para a região com a intenção de ficarem ricos e voltarem para as suas terras de origem, praticaram o assassinato em massa de nativos em expedições organizadas e financiadas por empresas extrativas da borracha. Com a cobiça despertada e tendo em mãos um winchester norte-americano calibre 44, os nordestinos-acreanos fizeram do território um “sepulcro aberto” que exala odores fúnebres até os dias de hoje.

A fome da borracha levou os seringalistas, donos dos seringais, e os seringueiros a procurar as maiores concentrações de seringueiras. Mais uma vez esbarraram com os grupos indígenas [...] Os seringueiros adotaram a prática das correrias, que significava simplesmente botar os índios para correr a tiros de espingarda. Os que não corriam bastante rápido eram massacrados. Foi mais um capítulo da morte das culturas indígenas da região. (LESSA, 1991, p. 28).
A economia gomífera era uma verdadeira “engrenagem de triturar gentes” em que as primeiras vítimas foram os nativos. Depois os bolivianos, assassinados por reivindicarem as terras do Acre. Depois os próprios seringueiros, muitos mortos por nativos, bolivianos e patrões, por doenças, fome, inaptidão ao “inferno”, ataques de animais, exaustão de trabalho. E por último, muitos seringalistas, com a crise do chamado primeiro ciclo da borracha.
Mas não apenas isso, a formação econômico-social do Acre também teve o roubo e a corrupção como práticas constituintes. Das casas aviadoras contra os seringalistas, dos seringalistas contra os seringueiros, dos seringueiros contra os seringalistas por meio do comércio com os regatões, dentre outras. O estágio inicial da sociedade acreana foi um espetáculo do descalabro humano. Um estado de anomia incontestável onde prevalecia – o assassinato e a corrupção.
Não podia ser diferente, pois o Acre, como já se falou, foi gerado no “ventre” do sistema de aviamento, uma criação histórica do capitalismo imperialista. Do seringal às casas exportadoras, tudo exibia sinais da “irracionalidade” do capital. A unidade produtiva e social da economia da borracha apresentava uma “estrutura aberrante” (SOUZA, 1978, p. 100) onde “grandes monstruosidades” aconteciam. Ali era abrigada “a mais criminosa organização do trabalho que ainda engenhou o mais desaçamado egoísmo” (CUNHA, 2000, p. 127), “uma das formas mais odiosas de exploração do trabalho” (TEIXEIRA, 2009, p. 40). Resumindo: um espaço onde “o regime de vida econômica era dolorosamente destrutivo” (BENCHIMOL, 1977, p. 197).
O acrescimento de mão-de-obra era fundamental para o aumento da produção. Para prender os “iludidos do capital” ao seringal até a completa invalidez, foram empregados “abusivos mecanismos de extorsão e manipulação de preços dos produtos de consumo” (TEIXEIRA, 2009, p. 55), além de “castigos corporais [...] e inusitada violência” (TEIXEIRA, 2009, p. 110). Ali eles “trabalhavam para se escravizar” (CUNHA, 2000, p. 152), tornando-se uma espécie de “escravo econômico e moral do patrão” (SOUZA, 1978, p. 100). O endividamento “antes de ser uma real categoria econômica, funciona muito mais como um instrumento destinado a preservar vínculos de sujeição” (TEIXEIRA, 2009, p. 154).
O seringueiro, por sua vez, também enganava o patrão. Ele misturava o látex com outros produtos, inseria metais e outros objetos no interior das pélas de borracha a fim de que a tornasse mais pesada. Além do mais, ainda negociava clandestinamente com o regatão, desviando parte da produção. Como podemos observar, a fraude – crime de obtenção de lucro injusto por meio do logro ou da ilusão do outrem – está tão associada à história do Acre que é difícil estudá-la sem o estigma da corrupção.
Com a primeira organização política-administrativa do Território do Acre em 1904, a corrupção política tornou-se uma constante nos três departamentos criados (Alto-Juruá, Alto-Purus e Alto-Acre). Os prefeitos vinham para garantir ao Governo Federal o envio dos 23% de impostos cobrados sobre a exportação da borracha, em troca, se aposentavam com soldo dobrado. O povo nem se quer sabia quando os mandatários entravam e saiam do cargo. Para garantirem-se no cargo, logo se aliavam aos “coronéis de barranco” – grandes seringalistas - perpetuando, com isso, os vícios da “República Velha” brasileira: a oligarquia, o mandonismo, a corrupção, o nepotismo, a impunidade, os desmandos e o peculato.
As questões judiciais acreanas eram resolvidas, como afirma Craveiro Costa (2005, p.309), na base do “rifle”. Nos seringais, o patrão era o juiz de tudo, ele decidia “ao seu livre-arbítrio, o que era justo ou não” (TEIXEIRA, 2009, p. 128). Fora dos seringais, “a magistratura acreana aboletou-se comodamente na vitalidade de seus empregos, para fazer a politicagem da terra” (COSTA, 2005, p. 310). Havia um atrelamento dos Poderes Judicial e Policial aos interesses do Poder Executivo, basta lembrar que o Cel. Plácido de Castro, o “herói” dos acreanos, foi assassinado pelo subdelegado de polícia do Departamento do Alto-Acre a mando do então prefeito  Gabino Besouro. 

Pelo critério de alguns prefeitos, os juízes lhes eram inteiramente subordinados. E se juntarmos a tudo isso as ausências constantes e prolongadas dos juízes preparadores e promotores público, a incompetência dos substitutos leitos, a corrupção a que raros magistrados escapavam, teremos no quadro as verdadeiras cores. A justiça dada ao Território do Acre era uma completa burla: falha nos seus salutares efeitos, quando não era meio de juízes inescrupulosos amatularem-se com a parte mais dinheirosa [...] a administração era o arbítrio dos prefeitos, a prepotência, o despotismo, ao lado do mais lastimável esquecimento das necessidades locais [...] A justiça era uma vergonha e uma pomposa inutilidade. (COSTA, 2005, p. 244).
 Outra patologia dessa econômico-social pode ser vista na relação que os homens desenvolveram com a natureza, ela se mostrou tão brutal quanto àquelas em que eles desenvolveram entre si. Ninguém veio para o Acre pensando em ficar nele. O território figurava como um “purgatório” em que deviam se submeter todos aqueles iludidos pela obtenção de riqueza fácil. Não mantinham vínculo com o espaço. Quando as terras tornavam-se impróprias para a extração do látex ela era abandonada sem o menor apego em prol de outra onde a densidade de seringueiras exploráveis era maior. Por isso, desencadeou-se uma ocupação destrutiva da região, por meio de “métodos predatórios de exploração dos seringais” (SANTOS, 1980, p. 69).

Os machados dos seringueiros amazônicos faziam aqui obra vandálica de destruição dilacerando as seringueiras que degeneravam e envelheciam-nas [...] É que no Amazonas continuava a campear a obra degradadora da economia destrutiva, em consequência da qual o homem procurava prover a sua vida à custa da vida da seringueira. (LIMA, 1975, p. 78).
A ânsia de aumentar a produtividade levava-o, às vezes, a processos destrutivos de extração, como o chamado arrocho, pelo qual a árvore era amarrada por cipós, bem próximo ao chão, e golpeada várias vezes, a fim de que o leite se derramasse em profusão na vasilha receptora. (MIRANDA NETO, 1986, p. 36).

A banalização da prostituição feminina e o trato dela como mera mercadoria era outra doença social dessa sociedade. Os migrantes nordestinos eram formados quase que exclusivamente por homens[1]. Toda a virilidade masculina era utilizada em prol da produção da borracha. Dessa forma, a vida sexual dos acreanos foi marcada pela prática da zoofilia (TOCANTINS, 2001, p. 199), do homossexualismo (BENCHIMOL, 1977, p. 189), do estupro de mulheres indígenas e da compra de meretrizes trazidas dos bordéis de Manaus e Belém.

A presença feminina no seringal era rara e quase sempre em sua mais lamentável versão [...] chegava sob a forma degradante da prostituição [...] o seringueiro resvalava para o onanismo, para a bestialidade e práticas homossexuais. Esta penosa contradição legou uma mentalidade utilitarista em relação à mulher [...] a sociedade do látex tornar-se-ia uma sociedade falocrata que daria à mulher uma utilização tão aberrante quanto a forma de explorar a força de trabalho do seringueiro [...] não admitiam uma mulher como pessoa. (SOUZA, 1978, p. 99).

Para finalizar, será abordada a mais empolgante das narrativas da historiografia Acreana: a da chamada Revolução Acreana. A historiografia oficial local atribuiu um status privilegiado a esse fenômeno: a de ser o episódio inaugural da identidade acreana. Contam que foi nesse momento que os nordestinos, movidos por patriotismo, resolveram se desvencilhar de todas as forças desagregadoras que os cercavam e se uniram em defesa heroica do território que consideravam ser brasileiro. Eles estariam dando forma a um pretenso sentimento de solidariedade e de pertencimento que se constituiria a base imaterial da nascente comunidade acreana.
Obviamente toda essa argumentação nobre de civismo foi uma forma encontrada para esconder os reais motivos da “revolução”. O seringueiro na empunhou armas e assassinou inúmeros bolivianos não em defesa da pátria, mas dos interesses econômicos dos seringalistas, das Casas Aviadoras e dos governos do Amazonas e Pará, que estavam em risco desde o momento em que a Bolívia passou a exigir a soberania nas terras do Acre. Os seringalistas temiam que o governo boliviano invalidasse os títulos fundiários expedidos pelo governo amazonense; as Casas Aviadoras e os governos do Amazonas e Pará temiam um abusivo aumento dos impostos.

Atingidas em seus interesses, as classes dominantes amazonenses insuflaram, por toda parte, a ideia de uma sublevação contra a missão boliviana. Nos jornais, nos seringais, no parlamento e até nos bares procurava-se incutir a ideia de que a pátria havia sido lesada pela adoção da medida de permitir a posse da Bolívia no Alto-Acre. Não se dizia, porém, que, subjacente a isso, estavam os interesses econômicos profundamente afetados [...] a campanha objetivara sacudir a opinião pública. (CALIXTO, 1985, p. 111). [grifos nossos].   

É duro afirmar, mas a Revolução Acreana tanto enaltecida pela história e literatura oficiais não passou de uma revolta armada em defesa da propriedade privada dos seringalistas e do monopólio da cobrança de impostos sobre a produção da borracha pelo Governo do Amazonas. Mas esses motivos não poderiam ficar expostos à opinião pública como justificativas para o descumprimento de acordos internacionais. Foi preciso beatificar a causa com argumentações nobres, daí o uso abusivo da palavra “pátria” e do “patriotismo” nos discursos e documentos dos líderes da Revolução Acreana.
A nacionalização das terras implicava a continuidade dos dividendos econômicos que os magnatas da borracha brasileiros obtinham com a extração da goma. Por isso que não houve nada de revolucionário propriamente dito na Revolução Acreana, pelo contrário, os objetivos eram reacionários. Não se pretendia mudar nada, o alvo era justamente manter a ordem e impedir qualquer alteração das peças do tabuleiro socioeconômico naquela região por parte do governo boliviano.
O que importava não era a nacionalização das terras em si, mas as vantagens pecuniárias advindas dela. Pois caso a Bolívia exercesse a soberania na região, os seringueiros e seringalistas continuariam brasileiros, tão somente ficariam na condição de estrangeiros. O conflito armado foi, na verdade, uma disputa entre elites comerciais de diferentes nacionalidades latino-americanas para saber com quem ficaria as migalhas pecuniárias do caudaloso “rio de dinheiro” que escorria para os EUA e para a Europa. Pois, para o capital internacional pouco importava a nacionalidade do Acre, sendo ele boliviano ou brasileiro as Casas Exportadoras continuariam agindo no local como “bomba de sucção” da matéria-prima. “Um hino e uma bandeira nunca foram verdadeiros obstáculos ao controle econômico externo”, como bem afirma Luiz Lopez (2000, p. 50).
Dessa forma, a dita Revolução Acreana não foi um ato de resistência contra o imperialismo como afirma Cláudio Lima (1998), pois os seringalistas e as casas aviadoras contribuíam com a reprodução ampliada do capital internacional naquelas paragens por meio da exploração do trabalho semiescravo do seringueiro e da manutenção do sistema de aviamento.
A oligarquia acreana aprendeu desde o início o caminho da subserviência ao capital internacional. O patriotismo que diziam ter não ultrapassava o limite do egoísmo, do querer se dar bem, do se deixar cooptar a fim de manter a “engrenagem do horror” funcionando, ou seja, jorrando riqueza em forma de pélas de borracha para o exterior e derramando sangue de compatriotas no interior. O economista Roberto Santos (1980, p. 158) chegou a afirmar que todas as lideranças mercantis locais eram aliadas aos interesses do mercado externo.
Mesmo oficialmente brasileiras, as terras do Acre continuaram sendo palco de disputas entre grupos de seringalistas, agora “pela hegemonia econômica [...] contradição típica do capitalismo” (CALIXTO, 1985, p. 129). Os “heróis” se matavam uns aos outros: 1) Seringalista contra seringalista para saber quem abocanharia a maior parte dos “farelos” deixados pelo capital internacional e quem ocupariam ou influenciariam os cargos públicos do recém-criado Território do Acre; 2) E seringueiro contra seringalista e vice-versa - os primeiros a fim de se livrarem da eterna divida com o barracão; e o segundo, por meio do trabalho exaustivo dos primeiros, para ficarem mais rico.
Não se pode esquecer que as guerras, revoluções, motins e revoltas no mundo capitalista são manifestações militares de conflitos de interesses econômicos não resolvidos na esfera diplomática. A economia de mercado não é capaz de gerar uma situação de paz por muito tempo. As disputas pela dominação e controle de mercados e territórios são os motivos mais comuns das guerras capitalistas. Como afirma Hanson (2004, p. 43) “os ocidentais há muito tempo viram a guerra como um método para fazer o que a política não conseguia e, por isso, estão dispostos a destruir quem quer que esteja no seu caminho”.  

Dada a natureza anárquica e competitiva das rivalidades entre as nações, a história das questões internacionais nos últimos cinco séculos tem, com demasiada frequência, sido uma história de guerras ou pelo menos de preparação para a guerra [...] a maioria dos estudos históricos supõe que ‘guerra’ e ‘sistema de grandes potências’ andam de mãos dadas. (KENEDY, 1991, p. 510).

A Revolução Acreana foi apenas mais um conflito armado dentre inúmeros provados pela expansão do capital. E é bom que se diga que a utilização da arma de fogo com o fim de resolver conflitos sociais deverá ser denunciada, sem qualquer manifestação de apreço. Pois ela é a manifestação “nua e crua” do corrosivo egoísmo humano, da violência coletiva premeditada. Os fenômenos vinculados a ele “queimam com o calor do fogo do inferno”, como afirma Keegan (1996, p. 22). Não há justificativas para que o ato de tirar intencionalmente a vida de outrem seja comemorado.
Consequentemente, a história da Revolução Acreana não é a história do heroísmo do povo acreano como afirma Francisco Martins (1978, p. 55). A bravura deve estar nos gestos de tolerância e não nos de eliminação do outro; no amor e não no ódio; na vida e não na morte; no altruísmo e não na xenofobia; na paz e não na guerra; na diplomacia e não na violência. Numa guerra não há vencedores, pois nela todos se tornam estúpidos, pois não há maior elogio à desrazão do que a prática da guerra. É nela em que os instintos mais animalescos e os mais mesquinhos apetites humanos são expostos à consagração da história.
Esse artigo mostrou a genealogia acreana está associada ao capital internacional, ao roubo de terras bolivianas, à semiescravidão, ao genocídio indígena, ao autoritarismo político, à mercantilização feminina, à utilização da arma de fogo na resolução de conflitos de interesse e tantas outras patologias sociais. Além de tudo isso foi justamente nesse período em que se estabeleceram as bases da produção extrativista e da economia dependente que conduziram o Acre à pobreza a que se encontram hoje. Não há motivos para aplaudir conflitos armados impulsionados por interesses econômicos de oligarquias locais, nem as patologias sociais que já apontamos aqui. Qualquer tipo de saudosismo ou comemoração se torna uma apologia aos feitos aqui narrados.

Referências
BENCHIMOL, Samuel.  Amazônia: um pouco-antes e além-depois. Manaus: Editora Umberto Calderato, 1977.
BUZÚIEV, A. O que é Capitalismo? URSS: Edições Progresso, 1987.
CALIXTO, Valdir de Oliveira. Aquiri (1898-1909): Os patrões e a construção da ordem. São Paulo: USP, 1993. (tese de doutorado).
CALIXTO, Valdir. FERNANDES, Josué. SOUZA, José. Acre: uma história em construção. Rio Branco: Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Acre, 1985.
COSTA, Craveiro. A conquista do deserto ocidental: subsídios para a história do território do Acre. Rio Branco: Fundação Cultual do Acre, 2005.
CUNHA, Euclides. Um Paraíso Perdido: reunião de ensaios amazônicos. Brasília: Senado Federal, 2000. (Coleção Brasil 500 anos).

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1994.
HANSON, Vitor Davis. Por que o Ocidente Venceu: massacre e cultura (da Grécia Antiga ao Vietnã). Rio de Janeiro: Ediouro, 2004.
LESSA, Ricardo. Amazônia: as raízes da destruição. São Paulo: Atual, 1991.
LIMA, Araújo. Amazônia: a terra e o homem. São Paulo: Editora Nacional, 1975.
LIMA, Cláudio de Araújo. Plácido de Castro: um caudilho contra o imperialismo. Rio Branco: FEM, 1998.
LOPES, Luiz Roberto. MARQUES, Adhemar. Imperialismo: a expansão do capitalismo. Belo Horizonte: Editora Lê, 2000.
KENNEDY, Paul. Ascensão e Queda das Grandes Potências: transformações econômicas e conflito militar de 1500 a 2000. Rio de Janeiro: Campus, 1991.
KEPPE, Norberto. Sociopatologia: estudo sobre a patologia social. São Paulo: Proton Editora, 2002.
MARTINS, Francisco. Território de Bravos: uma epopeia na Amazônia. São Paulo: Melhoramentos, 1954.
MEMMI, Albert. Retrato do Colonizado precedido do Retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
MIRANDA NETO, Manoel José. O dilema da Amazônia. Belém: CEJUP, 1986.
PERRAULT, Gilles. O Livro Negro do Capitalismo. São Paulo: Editora Record, 1999.
SOUZA, Márcio. A Expressão Amazonense: do colonialismo ao neocolonialismo. São Paulo: Alfa-Omega, 1978.
SANTOS, Roberto. História Econômica da Amazônia (1800/1920).                                                                                                 São Paulo: T.A. Queiroz, 1980.
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão humana na selva: o aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer, 2009.
TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. Brasília: Senado Federal, 2001, Vol. I. 
WALLERSTEIN, Immanuel. Capitalismo Histórico & Civilização Capitalista. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.



[1] Os homens não traziam suas esposas, pois a ideia era ficar rico e voltar. Além do mais, os agenciadores priorizavam a mão-de-obra masculina, cuja missão deveria estar voltada 100% para a extração do látex.