quarta-feira, 23 de março de 2011

Vestibular e “vestibulinho”: um falso debate (Profº Dr. Gerson Albuquerque - UFAC)


Toda a encenação sobre o último concurso vestibular da Universidade
Federal do Acre (Ufac), especialmente, a que envolve um determinado
conjunto de parlamentares acreanos, coloca em evidência não apenas o
despreparo desses “representantes do povo”, mas, principalmente, a mais
completa incompreensão sobre o que significa uma instituição publica de
ensino superior.

A Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em seu artigo 56, preconiza que as “instituições públicas de educação superior obedecerão ao princípio da gestão democrática, assegurada a existência de órgãos colegiados deliberativos, de que participarão os segmentos da comunidade institucional, local e regional”. No espectro dessa “gestão democrática”, nenhum reitor ou pró-reitor pode decidir sobre os certames públicos, a criação ou extinção de cursos e programas de ensino, as ações de pesquisa e extensão ou quaisquer outras decisões que extrapolem os limites das instâncias administrativas e executivas.

O concurso vestibular, assim como os demais concursos públicos,
realizados no âmbito da Ufac, com suas regras, perfis, vagas e tudo que lhes seja pertinente, sob o manto do que reza a legislação em vigor, são alvo de discussão e deliberação pelos órgãos colegiados desta instituição e, principalmente, pelo Conselho Universitário, instância máxima de  deliberação no nível acadêmico e administrativo. Portanto, nada, absolutamente nada, poderia ou pode ser decidido ou alvo de acordo da administração da universidade com o Ministério Público Federal, deputados ou candidatos ao vestibular, sem ferir a gestão colegiada e, invariavelmente, à legislação.
 
Sob a vazia retórica da “defesa da sociedade” e visivelmente
desorientado, um conjunto de deputados estaduais tem feito ecoar a repetitiva
cantilena de que a “Ufac descumpriu o acordo feito com o MPF”, “a Ufac foi
desonesta”, “a Ufac traiu os deputados e o MPF”, “a Ufac fez molecagem”,
etecetera. Um desses parlamentares foi um pouco mais longe e disparou que o


“Conselho Universitário da Ufac é conservador, retrógrado e injusto. Ousa
desrespeitar a vontade do povo do Acre. Nos faz de palhaços depois de acordo
firmado” (sic).

Nessas intervenções palavrosas, residem alguns equívocos e muito
desconhecimento de causa. Creio que o principal deles é tratar a Ufac como se
fosse uma pessoa com vontade própria, desejos, sonhos, CPF, RG, e não uma
instituição pública. Daí as pérolas: “a Ufac traiu; descumpriu; desacordou;
mentiu; enganou”, entre outros termos que, pela frequência com que aparecem
na boca de “nossos representantes”, parecem muito naturais em seus afazeres
cotidianos. Por que não “dar nome aos bois”, como se diz no popular, e
apresentar à sociedade os termos do acordo e seus signatários? Quem usou o
nome da Ufac para fazer acordo? Quem fez, indevida e imoralmente, acordo
com a coisa pública?

Somente as mentes obtusas e incapazes de conviver na arena pública
concebem a verdade como coisa única, atávica, imutável. A filósofa Marilena
Chauí nos chama a atenção para a necessidade de aceitarmos os “conflitos
entre concepções que se propõem a dizer a verdade”, isso porque a verdade
não é um dado “natural” que brota da terra. A “verdade é um trabalho do
pensamento, um esforço de questionamento, uma maneira de interrogar o
mundo”, prossegue, convidando-nos a abrir os olhos e apreender o mundo
como algo infinitamente maior e inalcançável ao filtro de nossas certezas e
pretensões individuais.

Os equívocos e excessos cometidos pelos profissionais que elaboraram
e fizeram cumprir as regras estabelecidas para normatizar o certame vestibular
não podem ser utilizados como moeda de troca para que se acenda “uma vela
para Deus e outra para o diabo”, como defendem muitos dos que têm se
manifestado sobre a questão. Nesse sentido, é recomendável a leitura da
sentença exarada pelo Juiz Federal Jair Facundes que, frente a essa situação
complexa e polêmica, posiciona-se em busca do melhor meio de fazer valer a
força da justiça para a maioria e “em tempo socialmente aceitável”, sem
alimentar falsas ilusões para a minoria injustiçada, à qual sugere reparos
individuais, e sem propor pactos imorais com a res publica.

Penso que manter o resultado do vestibular, pelo qual todas as 2030
vagas ofertadas pela Ufac foram preenchidas e, ao mesmo tempo, fazer uma
“nova prova”, um “vestibulinho”, exclusivamente para aqueles candidatos que
foram impedidos de fazer as provas, como têm proposto determinados
parlamentares, não passa de palavras ocas de quem ou não compreende nada
da questão em que está se intrometendo, ou está decididamente tentando
ludibriar a boa fé da opinião pública em proveito próprio.

Qualquer um que tenha o mínimo conhecimento sobre os procedimentos
acadêmicos e o funcionamento interno da Ufac sabe que as únicas opções
colocadas eram, por um lado, manter o vestibular e fazer valer os direitos dos
aprovados por mérito e esforço próprios e de seus familiares; ou, por outro
lado, anular tal certame, levando em consideração as injustiças e erros
cometidos e realizar um novo concurso para todos os candidatos inscritos e
todos os demais que desejassem se inscrever.

Aí reside o problema central que a maioria dos deputados e outras
pessoas que têm discutido a questão não assumem, porque isso implica em
fazer escolhas e escolher significa, antes de tudo, assumir uma conduta ou um
caminho a seguir e deixar outros de fora; significa ter a coragem de “correr os
riscos” de se manifestar por uma das posições em debate; significa ter uma
postura ética e não ficar tentando “agradar a gregos e troianos”.

Fugir desse debate, sob o pretexto de “assegurar os direitos dos
aprovados” e, sem nenhuma reflexão quanto aos efeitos e desdobramentos de
tal proposta exigir que a “Ufac” cumpra um acordo - imoralmente proposto – de
“dar as vagas” ou fazer uma “nova prova” para pouco mais de duas centenas
de candidatos, é algo falacioso e inviável. Em primeiro lugar, porque as vagas
já foram totalmente preenchidas e não há nada que macule o mérito e o direito
dos candidatos aprovados; em segundo, porque nenhuma instituição federal de
ensino superior pode abrir um certame de admissão em seus cursos para um
público restrito, posto que fere a isonomia; em terceiro, porque, para abrir
novas vagas nos cursos existentes, faz-se necessária a realização de todo um
processo de discussão, reformulação e aprovação de novos Projetos Políticos
Pedagógicos pelos colegiados da instituição e isso nenhum grupo de
profissionais, minimamente responsáveis, de qualquer um dos cursos desta
Ifes faz da noite para o dia, especialmente, para atender propostas exógenas
ao funcionamento desta universidade.

A discussão sobre manter o vestibular e fazer um “vestibulinho”, nada
mais é que um falso debate. Se os deputados que estão envolvidos nessa
“desorientada causa” estivessem de fato interessados em discutir a
universidade e, principalmente, em assegurar o direito de todos em ter acesso
ao ensino superior, a primeira coisa a fazer seria lutar para fazer valer o que
estabelece o artigo 205 da Constituição Federal, que define a educação como
um “direito de todos e dever do Estado e da família” a ser “promovida e
incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno
desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua
qualificação para o trabalho.”

Nos marcos dos processos vestibulares, reside o desrespeito a esse
direito de todos. Isso se evidencia de forma caricatural quando nos damos
conta de que nem mesmo todos os aprovados têm as vagas asseguradas nos
cursos de suas escolhas. Isso porque, com o número limitado de vagas, a
maioria dos candidatos aprovados fica em listas de espera, aguardando
desistências que nunca atendem a todos os que estão nessa condição.

Não obstante, se os deputados (situacionistas e oposicionistas)
estivessem verdadeiramente interessados em defender os direitos dos
estudantes que desejam ter acesso à universidade pública, gratuita e de
qualidade, deveriam aproveitar este momento e exigir que o Governo do Acre,
ao invés de criar um Prouni estadual para jogar verbas públicas nas
universidades privadas, formulasse um amplo programa de universidade aberta
e, em parceria com a Ufac, ampliasse a capacidade desta instituição para
atender ao maior número possível de jovens interessados.

O acesso a esse programa de formação poderia, inclusive, proporcionar
uma oxigenação do debate sobre as formas de ingresso e permanência na
universidade, as condições de oferta, bem como o fortalecimento do tripé
ensino-pesquisa-extensão que é uma condição básica para o ensino e a
formação universitária.

Para finalizar, gostaria de ressaltar minha posição de defesa da Ufac,
num momento de estranha omissão e silêncio da maioria dos meus pares – e
ímpares. Não a defesa dos erros, violências, equívocos, incoerências e práticas
anti-acadêmicas que, muitas vezes, aqui se pratica; não a defesa de
programas e políticas de ensino impostas pelo Ministério da Educação e
aceitas acriticamente por várias unidades acadêmicas; não a relação de
subalternidade que tem se estabelecido nas “parcerias” com o Governo do
Estado e na montagem de palanques para certos deputados da bancada
federal, em troca de verbas das emendas parlamentares.

Mas a defesa de uma instituição que é maior que tudo isso. A defesa
dos enormes serviços prestados pela Universidade Federal do Acre, nos
últimos quarenta anos, principalmente, na formação de professores e outros
profissionais em diferentes áreas do conhecimento; na formação de gerações
de acreanos e de pessoas provenientes de inúmeros outros estados que
tiveram acesso à educação superior e, naturalmente, possibilidades de
melhorias em sua condição social por intermédio desta instituição pública e
gratuita de ensino.

A defesa de uma instituição que, para além das possibilidades
individuais, tem interferido diretamente na formação e/ou consolidação de
outras instituições sociais e do próprio poder público no Acre. Qualquer pessoa
que tenha vivido neste Estado, no último meio século, sabe do papel
desempenhado pela Ufac, em nível regional.

A construção desta instituição não tem sido tarefa fácil, posto que a
mesma é fruto do trabalho, esforço, limites e dedicação humanas. O que é feito
hoje na Ufac é dar prosseguimento ao colossal trabalho dos que vieram antes,
numa época em que se contava nos dedos aqueles que tinham formação
superior nesta parte da Amazônia. Dentre os milhares de profissionais
formados pela Ufac, muitos ganharam projeção local, nacional e internacional.
É preciso recordar isso todos os dias, principalmente, num momento como
esse, em que a crítica fácil e artificial graça nas bocas daqueles que tratam a
instituição como “traidora”, “desonesta”, “conservadora”, “retrógrada”, “injusta”,
numa redução completamente anacrônica e a-histórica.

Nos últimos 27 anos, tenho vivido na Ufac e nunca deixei de me
manifestar, interna ou externamente, quanto às omissões e erros cometidos em
seu interior Mas é preciso reconhecer que se os erros foram muitos, os acertos
também foram e o melhor juízo para avaliar qual dos dois tem maior peso deve
ser medido não pelas vontades e interesses circunstanciais, mas por
indicadores que atentem de forma concreta para a importância e o papel social
exercido por esta universidade, para todo o Acre.

Nessa condição, creio na necessidade de se fazer a defesa da
instituição e de sua gestão colegiada. Reconhecer, discutir e corrigir os erros
cometidos no âmbito desta Ifes não pode ser algo a ser feito sobre seus
escombros e cinzas. Para aqueles que foram formados pela Ufac e que sofrem
da estranha patologia de afirmar pelos quatro cantos que esta instituição “nada
faz”, só nos resta lamentar. Para os professores, estudantes e técnicoadministrativos
que compõem a comunidade universitária, a omissão e a
crença na lógica do “quanto pior melhor” é o caminho mais nefasto a ser
seguido.

Rio Branco, Acre, março de 2011

Gerson R. Albuquerque
Professor associado
Centro de Educação, Letras e Artes
Universidade Federal do Acre

sábado, 19 de março de 2011

História Nativa do Acre, por Marcos Vinícius Neves


Por Marcos Vinicius Neves
A Amazônia sul-ocidental é habitada há milhares de anos por diferentes povos nativos que fizeram da grande região dos altos rios acreanos o seu território de viver, sonhar e cultivar raízes. Muitos desses povos foram engolidos pela floresta imensa sem deixar vestígios de sua passagem pela terra. Outros enfrentaram inimigos poderosos mas resistiram o suficiente para ainda saber quem são. Porém, esses povos milenares permanecem ainda hoje, em grande parte, desconhecidos da maioria da sociedade acreana. É preciso perceber que nossa história guarda muitas das marcas que foram escritas precisamente por estes povos.
Os tempos da história indígena
Quando é preciso justificar o direito dos povos indígenas ao seu território tradicional se diz que essas terras já pertenciam a eles desde tempos imemoriais. Porém, esta idéia reforça o preconceito segundo o qual os povos indígenas não possuem história, porque não dominam a escrita e sua memória é baseada na tradição oral. Talvez fosse mais sincero admitir que somos nós, os não-índios, que temos dificuldade de compreender a história indígena.
A melhor prova disso é que do longo e consistente trabalho de educação diferenciada que a CPI-AC, e mais recentemente também o governo estadual, desenvolvem junto às comunidades indígenas acreanas e do sul do Amazonas, emergiu uma interessante forma de organizar a história nativa da região. E quando olhamos para essa temporalidade estabelecida a partir das referências indígenas percebemos que ela conta também a história da própria sociedade acreana.
Este texto é uma tentativa de reunir algumas informações sobre os povos nativos do Acre utilizando uma adaptação daquela temporalidade utilizada nas escolas indígenas. Aos tempos das malocas, das correrias, do cativeiro, dos direitos e do presente acrescentamos o tempo de antigamente para incluir as informações da pré-história. Com isso não pretendemos mais do que acrescentar profundidade a essa história de um povo que não desistiu nunca de lutar pelos seus direitos, um povo formado igualmente por brancos e índios.
Tempo de antigamente
A longa história do povoamento humano do Acre provavelmente começa entre 20.000 e 12.000 anos atrás, quando os primeiros grupos humanos provenientes da Ásia chegaram de sua longa migração até a América do Sul. Esses grupos humanos perseguiam as grandes manadas de animais gregários que durante a idade do gelo se espalhavam pelas vastas savanas do mundo. A Amazônia era então uma ampla extensão dessas savanas, com apenas algumas manchas de floresta ao longo dos rios que cortavam as terras baixas.
Era o tempo dos grandes animais como o mastodonte, a preguiça gigante (megatherium), o toxodonte e diversos outros exemplares de megafauna que serviam de base alimentar para aqueles bandos de caçadores nômades. Esses animais se extinguiram com o fim do pleistoceno, a ultima das grandes idades do gelo, e seus fósseis são localizados ainda hoje nos barrancos de muitos dos rios acreanos. Apesar de ainda não terem sido encontrados vestígios concretos da presença humana na região durante esse mesmo período, podemos imaginar que o homem aqui já estivesse, junto com os animais que caçava.
Com o passar do tempo, a partir de 12.000 anos atrás, o clima do planeta começou a esquentar. Isso ocasionou um aumento da umidade e expansão dos sistemas florestais. Enquanto os últimos remanescentes da megafauna desapareciam por causa da retração das áreas de pastagem, a floresta se expandia. Isso favoreceu a proliferação de uma fauna terrestre de pequeno porte e da fauna aquática através do crescimento dos cursos d’água que ficaram cada vez mais caudalosos.
Esse tempo de profundas mudanças climáticas e ambientais deu oportunidade para o surgimento de novas formas de organização social. Os grupos humanos pré-históricos da América passaram a contar com recursos alimentares mais diversificados, graças ao ambiente de florestas tropicais, e lentamente começaram a desenvolver as primeiras experiências de domesticação de plantas e animais. Enquanto na América Central e nos Andes teve inicio o cultivo do milho e de outras sementes, nas terras baixas da Amazônia ocorriam as primeiras experiências do plantio de raízes - especialmente da mandioca - que se tornariam a base alimentar desses grupos.
Isso marcou o surgimento, por volta de cinco mil anos atrás, do que os pesquisadores chamam de Cultura de Floresta Tropical, caracterizada por grupos que praticavam uma agricultura ainda insipiente, complementada pela caça, pesca e coleta de frutos e sementes da floresta. A partir dessa nova organização social os grupos pré-históricos amazônicos passaram também a fabricar cerâmica e a ocupar certos locais por períodos mais prolongados. Com isso deixaram grandes sítios arqueológicos que testemunham seu florescimento por toda a Amazônia.
No Acre, as pesquisas realizadas pelo Instituto de Arqueologia Brasileira nas décadas de 70 a 90 revelaram a presença de duas grandes tradições ceramistas no estado. A primeira foi identificada nos vales dos rios Purus e Acre e denominada “Tradição Quinari”, enquanto que a segunda está situada nos vales dos rios Juruá, Tarauacá e Muru e recebeu o nome de “Tradição Acuriá”.
A presença de duas distintas tradições ceramistas nos dois maiores vales acreanos parece indicar que a diferenciação histórica e cultural da população dos vales do Juruá e Purus é mais antiga do que se pensava. Entretanto, nem todos os sítios arqueológicos já localizados no Acre estão classificados numa dessas duas tradições ceramistas, podendo ser identificadas ainda outras tradições pré-históricas na região.
É o caso, por exemplo, dos misteriosos círculos de terra que aguçam a curiosidade dos que sobrevoam a área onde são mais comuns. Os geoglifos, como vêm sendo ultimamente chamados, são grandes sítios com formas geométricas - círculos, quadrados, hexágonos e diversas outras composições - que variam entre 350 e 150 metros de diâmetro.
Aparecem principalmente em duas áreas: no divisor de águas entre os rios Acre e Xipamanu e no divisor de águas entre os rios Acre e Iquiri. Essa localização revela que os povos que construíram essas misteriosas figuras com terra local, tinham preferência pela ocupação da terra firme em vez de habitarem ao longo das margens dos principais rios da região.
Quanto à razão que levava esses grupos pré-históricos a construir as grandes estruturas de terra - que tanto poderiam servir para defesa, como para a agricultura, ou mesmo para a realização de festas e ritos - ainda não se pode afirmar nada. Porém, uma coisa é certa: não se tratam de sinais deixados por extraterrestres no solo acreano, na linha do “eram os deuses astronautas”. Já que a maioria desses sítios apresenta cerâmica arqueológica, o que indica que foram construídos, utilizados e talvez habitados por grupos indígenas pré-históricos.
Apesar de ainda não possuirmos dados resultantes da análise do material arqueológico desses sítios, as primeiras informações mostram que os geoglifos parecem guardar algumas relações com ocorrências arqueológicas do Llano de Mojos, região alagável e muito fértil ao norte da Bolívia, onde foram construídos grandes aterros para agricultura durante a pré-história. O que reforça os indícios de contatos prolongados entre as civilizações andinas e os povos da Amazônia ocidental desde muito antes do que se imagina. Mas só a realização de novas pesquisas arqueológicas será capaz de responder essas e outras questões sobre nosso mais distante passado.

Tempo das Malocas
Em linhas gerais a ocupação indígena dos altos rios Purus e Juruá correspondia a uma divisão territorial entre dois grandes grupos lingüísticos que apresentavam significativas diferenças. No Purus havia o predomínio, mas não a exclusividade, de grupos falantes das línguas Aruan e Aruak, do mesmo tronco lingüístico. Já no vale do Juruá havia o predomínio, também não exclusivo, de grupos falantes da língua Pano. Essa divisão territorial por vales entre grupos lingüísticos dominantes parece ter sido semelhante àquela que os arqueólogos detectaram através das tradições Quinari e Acuriá. Mas o registro histórico e lingüístico apontou que além dessa divisão aparentemente simples, havia também grupos falantes da língua Katuquina nos afluentes situados entre o médio Purus e o médio Juruá, ao norte do atual estado do Acre, já em terras do Amazonas. Além disso, havia outros povos de línguas Pano e Takana, ambas do mesmo tronco lingüístico Pano, que se encontravam mais ao sul, no alto curso do rio Acre, no Abunã, no Xipamanu e no Madre de Dios até sua confluência com o rio Madeira.
Para facilitar a compreensão desse quadro, levando em consideração não somente os limites do atual estado do Acre, mas também as áreas imediatamente vizinhas que integram a grande região indígena da Amazônia sul-ocidental, podemos dizer que esses povos indígenas estavam distribuídos em cinco grandes grupos:
1 - No médio curso do rio Purus, hoje estado do Amazonas, habitavam povos de lingua Aruan, do tronco Aruak. Grupos pouco aguerridos eram comumente submetidos por outros grupos mais fortes ou se refugiavam na terra firme, espalhando-se por diversos afluentes de ambas as margens do médio Purus. Entre os diferentes grupos dessa região estavam os Jamamadi, os Kamadeni e muitos outros já desaparecidos. Recentes análises de lingüistas atribuem a essa família uma antigüidade de cerca de 2.000 anos.
2 - No alto curso do rio Purus e no baixo rio Acre estavam estabelecidas diversas tribos do tronco lingüístico Aruak. Subindo esses rios, do norte para o sul, habitavam os Apurinã, os Manchineri, os Kulina, os Canamari, os Piros, os Ashaninka e outros. Na verdade, estes grupos se espalhavam desde a confluência do Pauini com o Purus até a região das encostas orientais dos Andes, desde aproximadamente 5.000 anos atrás. E chama a atenção como puderam se manter por tanto tempo no domínio de uma região tão vasta e tão rica ecologicamente. A pré-história registra que muito antes de resistir ao avanço dos homens brancos sobre suas terras, os Aruak ou Antis, como eram chamados pelos Incas, já haviam resistido com sucesso à chegada dos falantes da língua Pano e a expansão das civilizações andinas.
3 - No alto curso do rio Acre, alto Iquiri, Abunã e outros afluentes do rio Madeira já em território boliviano, havia um enclave de grupos falantes de lingua Takana e Pano. Alguns bastante aguerridos, como os temidos Pacaguara, outros mais sociáveis como os Kaxarari que mantinham ativo contato com os Apurinã, apesar das diferenças lingüísticas e culturais entre os dois grupos. Mesmo pertencendo ao tronco lingüístico Pano, a língua Takana é de origem mais recente, tendo surgido entre 3.000 e 2.000 anos atrás.
4 - Na região intermediária entre o médio curso do Purus e o Juruá, ao norte do Acre, habitavam os falantes da língua Katukina, sobre os quais se tem pouca informação. Algumas características destes grupos apontam para um surgimento relativamente recente, há cerca de 2.000 anos. Esses grupos pouco numerosos ficavam apertados entre os povos Aruak ao leste e os Pano a oeste, restando a eles a exploração das terras firmes, menos ricas em suprimento alimentar que as margens dos grandes rios.
5 - Boa parte do médio e alto curso do rio Juruá, bem como a maior parte de seus afluentes - como o Tarauacá, o Muru, o Envira, o Moa e daí por diante - era dominado por diversos e numerosos grupos de falantes da língua Pano. Eram Kaxinawá, Jaminawá, Amahuaca, Arara, Rununawá, Xixinawá e muitas outras denominações tribais. Todos fazendo parte de um tronco lingüistico muito antigo, com cerca de 5.000 anos, mas que teria se originado em outra região, invadindo só mais recentemente as terras acreanas. Com seu caráter guerreiro, os Pano conquistaram seu território através da guerra contra tribos de outras línguas, mas também contra grupos do mesmo tronco. Isso explica, em parte, a grande fragmentação que as muitas tribos Pano apresentavam quando finalmente os brancos começaram a chegar na região.
É claro que a simples divisão lingüística dos grupos nativos do Acre nos últimos cinco mil anos esconde a grande variedade de culturas indígenas e a complexa territorialidade estabelecida a partir das alianças e rivalidades tribais. Como entre os Apurinã e os Manchineri, nos rios Purus e Iaco, onde foi estabelecido um amplo território despovoado que servia para evitar contatos e conflitos, já que esses dois grupos Aruak viviam em guerra. Por outro lado, existem registros do estabelecimento de aldeias conjuntas de grupos Aruak e Pano, para resistir ao avanço das ordens religiosas pelo vale do Ucayali a partir do século XVII.
Mesmo com tantas histórias de conflitos, durante os milhares de anos em que as aldeias foram compostas por grandes malocas coletivas, o povo vivia do que lhes dava a floresta e se podia fazer grandes festas por ocasião da colheita estabelecendo um sutil equilíbrio econômico, ecológico e social na região. Ao se iniciar o século XIX, cada grupo familiar ou tribal possuía territórios claramente definidos e os relacionamentos entre esses grupos obedeciam não só às semelhanças étnicas e culturais, mas também às alianças que foram sendo estabelecidas ao longo do tempo.
Algumas informações indicam que havia extensas redes de comércio e comunicação cortando os diversos vales acreanos e por elas chegavam notícias e produtos de áreas longínquas. Chandless, em sua viagem ao rio Aquiri, noticiou que os Apurinã comumente recebiam dos Kaxarari pedras trazidas dos rios Abunã e Madeira para fabricar lâminas de machado, enquanto que os Manchineri já possuíam diversos objetos de metal, provavelmente resultado de comércio feito com peruanos. Outros relatos contam que era possível sair do rio Javari e, utilizando a vasta rede indígena de caminhos e varações, chegar ao vale do rio Madeira depois de uns poucos dias de viagem, em passo de indio é claro!
Por isso, desde os grupos indígenas mais fortes e numerosos que ocupavam as várzeas dos rios até os menores grupos familiares que perambulavam pelas cabeceiras, todos possuíam liberdade e com ela a possibilidade de ser feliz.

Tempo das correrias
Quando, a partir de 1860, começaram a acontecer as primeiras viagens de exploração se constatou, não só a presença indígena, mas a grande riqueza natural dos rios acreanos, despertando a cobiça dos exploradores. Já em 1870 tinha início uma verdadeira corrida do ouro que fez com que em poucos anos os rios acreanos fossem tomados de assalto. Milhares de homens vindos de todas as partes do Brasil e do mundo passaram a subir os rios estabelecendo imensos seringais em suas margens. Era a febre provocada pelo ouro negro, a borracha extraída da seringueira que depois de defumada era exportada para abastecer as indústrias européias e norte-americanas, cada vez mais ávidas por esse produto.
Em 1878 a empresa seringalista alcançava a boca do rio Acre subjugando todo o médio Purus e já em 1880 ultrapassava a linha Cunha Gomes, limite terminal das fronteiras legais brasileiras. Ao mesmo tempo os caucheiros peruanos vindos do sudoeste cortavam a região das cabeceiras do Juruá e do Purus, enquanto que os primeiros seringalistas bolivianos começavam a se expandir pelo vale do Madre de Dios e invadiam as terras acreanas pelo sul. Em poucos anos, os povos nativos da região se viram cercados por brasileiros, peruanos e bolivianos, sem ter para onde fugir ou como resistir a enorme pressão que vinha do capitalismo internacional que dependia da borracha amazônica.
De senhores desta terra os povos nativos da Amazônia sul-ocidental passaram a ser vistos como obstáculos a exploração da borracha e do caucho na região. Foi quando surgiu a prática das correrias: expedições armadas feitas com o objetivo de matar as lideranças das aldeias, aprisionar homens para o trabalho escravo e obter mulheres que seriam vendidas aos seringueiros. Foi um tempo de terror. São muitos os relatos de correrias quando, depois de queimadas as malocas e mortos os principais guerreiros, os vencedores se divertiam jogando as crianças para cima e aparando-as com a ponta do punhal numa demonstração cruel de habilidade no manejo das armas.
Como se isso não bastasse, junto com os brancos chegaram também muitas doenças contra as quais os índios não possuíam resistência. O sarampo, a gripe, a tuberculose e outras doenças rapidamente se alastraram entre os grupos indígenas da região dizimando aldeias inteiras diante dos pajés que não sabiam como curar aquelas moléstias desconhecidas.
Ainda assim a reação dos diferentes grupos indígenas acreanos a chegada dos não-índios foi tão variada como eram diversificadas as culturas aqui presentes. Uma boa parte das tribos de lingua Aruan e Aruak, como os Jamamadi, Apurinã, Manchineri e Ashaninka decidiram colaborar em certa medida com os brancos. Muitos índios tornaram-se remadores, guias, mateiros, seringueiros. Algumas aldeias passaram a se relacionar com seringais negociando os produtos da caça ou de sua lavoura em troca de ferramentas, armas e objetos dos brancos.
Por outro lado, os grupos de lingua Pano, em linhas gerais, resistiram à invasão de seus territórios ancestrais, evitando contatos ou relações de qualquer espécie com os brancos. O resultado imediato foi a perseguição e o extermínio de todos os grupos que dificultavam a abertura dos seringais ou a extração do caucho. A perseguição promovida contra os índios foi intensa e certos grupos começaram a esconder sua identidade, como um pequeno grupo de Jaminawá que passou a se dizer Katukina para evitar a perseguição.
Essa dura realidade de confrontos perdurou pelos primeiros trinta anos da ocupação não-índia da região. Entre 1880 e 1910 o ritmo da exploração da região só aumentou levando ao extermínio de inúmeros grupos indígenas. Como os Canamari que desapareceram da grande floresta, ou os Takana que migraram para o sul até a Bolívia para nunca mais retornar ao território acreano, ou ainda os Apurinã que tiveram seus vastos domínios reduzidos a ponto de não possuírem hoje nenhuma terra indígena demarcada no estado do Acre, parte de seu território ancestral.

Tempo do cativeiro
As conseqüências da febre do ouro negro foram terríveis para os grupos indígenas da Amazônia. Nem o fim do primeiro ciclo da borracha, em 1913, diminuiu a pressão sofrida por esses grupos já tão enfraquecidos. Diante dessa nova realidade, com grandes e poderosos seringais espalhados por todos os principais rios, nunca mais seria possível retomar as antigas formas de organização social. Alguns pequenos grupos ainda conseguiram se refugiar nas cabeceiras mais isoladas, mas a grande maioria dos índios do Acre foi obrigada a se modificar para não desaparecer. Passaram a adotar então o modelo de casa cabocla que o branco utilizava, começaram a depender das ferramentas dos brancos, foram perdendo suas línguas maternas e aprendendo o português ou o espanhol.
Começava assim uma etapa da história dos povos nativos do Acre que se estendeu por um longo período, entre 1910 e 1980. A acentuada queda nos preços internacionais da borracha fez com que ficasse cada vez mais difícil trazer nordestinos para o corte da seringa. O gradativo esvaziamento dos seringais da região levou a necessidade cada vez maior do aproveitamento dos índios como mão de obra. Muitos foram os patrões que reuniram grupos dispersos de diversas etnias para trabalharem em seus seringais. Alguns desses patrões chegaram a ser reconhecidos como amigos dos índios, como Ângelo Ferreira, famoso amansador de índios, que reuniu muitos Kaxinawá, Jaminawá e Kulina, entre outros para trabalhar sob suas ordens. Mas a maioria dos patrões tratava os índios ainda pior do que os seringueiros. Afinal de contas, como não sabiam ler e pouco entendiam da língua dos brancos, os índios eram enganados no peso da borracha, no preço da mercadoria, na desvalorização de seus produtos, no pagamento da renda anual da estrada de seringa. Com isso os índios acumulavam enormes dívidas com os barracões dos seringais e acabavam se tornavam prisioneiros de seus patrões.
Quanto aos pequenos grupos indígenas que conseguiram se refugir no centro da mata ou nas cabeceiras, os índios “brabos” como ainda são tratados, foram caçados sistematicamente para serem “amansados” e assim poderem ser incorporados à nossa sociedade. Ainda assim, alguns destes grupos conseguiram escapar ao domínio dos não-índios e resistiram ao cerco cada vez mais apertado da nossa civilização, perambulando sempre, sem parar nunca, varando pela região das cabeceiras onde os rios e os brancos não chegam.

Tempo dos direitos
Durante sete décadas de cativeiro os povos nativos do Acre sofreram uma enorme degradação de suas culturas tradicionais. O peso dos preconceitos da sociedade não-índia, a expropriação de suas terras ancestrais, a falta de políticas de assistência, de educação ou de saúde, levou-os a uma grave condição econômica e social.
Essa situação só começou a mudar a partir de 1976 com a instalação da primeira Ajudância da Funai do Acre e sul do Amazonas. Começava assim uma longa luta pela demarcação das terras ancestrais dos povos nativos do Acre.
Boa parte dessa luta foi empreendida por diversas entidades indígenistas não-governamentais, como a CPI, o COMIN e o CIMI, mas principalmente pelas próprias lideranças indígenas que ao mesmo tempo em que adquiriam consciência de seus direitos passaram a buscar a organização de um movimento indígena politicamente articulado. Surgiram, então, em diversas aldeias as primeiras cooperativas que proporcionaram condições objetivas para que as comunidades se libertassem do domínio dos patrões.
Não se deve imaginar que esse processo se deu sem conflitos. Pelo contrário, os patrões que se achavam com direitos sobre as terras e gentes não estavam dispostos a abrir mão de nada disso. Para complicar ainda mais a situação, o processo de venda dos seringais acreanos para os “paulistas”, que havia sido iniciado no governo Dantas, trouxe para a região grandes empresas com interesses e projetos agropecuários que provocaram a expulsão dos seringueiros de suas terras. Isso resultou em muitas emboscadas, histórias de pistoleiros e jagunços, mortes anunciadas ou não. Mas foi graças ao acirramento dos graves conflitos sociais que se alastraram por toda a região que surgiu a Aliança dos Povos da Floresta - formada por índios, seringueiros e ribeirinhos - que mesmo às custas do sangue de muitos conseguiu barrar o avanço da exploração predatória das florestas acreanas.

Tempo Presente
Felizmente a história da Amazônia Ocidental pode registrar que essa luta, que hoje não é só dos povos nativos mas de boa parte da sociedade acreana, vem obtendo resultados positivos. Atualmente são vinte e oito terras indígenas já demarcadas e asseguradas para os povos nativos da região, mas ainda falta conseguir a regularização de outras quinze terras indígenas. É preciso ter pressa para obter as mínimas condições de sobrevivência para nossas populações ancestrais e a terra é uma dessas condições essenciais.
Grandes conquistas já foram obtidas. Hoje existe uma educação diferenciada para os povos indígenas que é fruto de um longo e maduro trabalho de muitos indígenas e indigenistas. Hoje existem diversos agentes de saúde indígenas que dão assistência permanente às suas comunidades. Hoje já começam a se colher os primeiros frutos do trabalho dos agentes agro-florestais indígenas que estão incorporando a parte boa da tecnologia a favor de seus parentes. Mas ainda há muito a se conquistar pois o tempo dos direitos esta só começando.
Não deixa de ser muito importante o fato de que no mesmo ano em que a sociedade não-índia comemora o centenário da Revolução Acreana e da criação de um lugar no mundo chamado Acre, aconteça também o III Encontro de Culturas Indígenas do Acre e Sul do Amazonas, quando todas as etnias dessa milenar região invadem a cidade de Rio Branco para cantar, dançar e anunciar seu direito à vida e à felicidade, tão indios quanto aqueles isolados que ainda perambulam pelas intocadas florestas das cabeceiras.
 

sábado, 12 de março de 2011

CULTO DE AÇÃO DE GRAÇAS NA UFAC PARA OS CALOUROS E TODA COMUNIDADE UNIVERSTÁRIA

ONDE: Anfiteatro Garibaldi Brasil.
QUANDO: Quinta-Feira, dia 17 de março.
HORAS:  a partir das 19h.
ALIANÇA BÍBLICA UNIVERSITÁRIA DO BRASIL
NÚCLEO RIO BRANCO

terça-feira, 8 de março de 2011

A espiritualidade do Carnaval

A espiritualidade do Carnaval

“Carnaval é uma grandiosa cosmovisão universalmente popular de milênios passados... é o mundo às avessas”. (Bakhtin, 1970)


O carnaval realizado no Brasil é a maior festa popular do mundo. Grande parte dos foliões brasileiros, no entanto, não conhecem as origens e as implicações dessa festa. Pensa-se que o carnaval é uma brincadeira típica do Brasil, mas várias cidades do mundo como Nice (França), Veneza (Itália), Nova Orleans (EUA), dentre outras, também a celebram anualmente.

O carnaval, para surpresa de muitos, é um fenômeno social anterior a era cristã. Assim como atualmente ela é uma tradição em vários países, na antiguidade, o carnaval também foi praticado por várias civilizações. No Egito, na Grécia e em Roma, pessoas de diversas classes sociais se reuniam em praça pública com máscaras e enfeites para desfilarem, beberem vinho, dançarem, cantarem e se entregarem as mais diversas libertinagens.

A diferença entre o carnaval da antiguidade para o de hoje é que, no primeiro, as pessoas participavam das festas mais conscientes de que estavam adorando aos deuses. O carnaval era uma prática religiosa ligada à fertilidade do solo. Era uma espécie de culto agrário em que os foliões comemoravam a boa colheita, o retorno da primavera e a benevolência dos deuses. No Egito, os rituais eram oferecidos ao deus Osíris, por ocasião do recuo das águas do rio Nilo. Na Grécia, Dionísio, deus do vinho e da loucura, era o centro de todas as homenagens, ao lado de Momo, deus da zombaria. Em Roma, várias entidades mitológicas eram adoradas, desde Júpiter, deus da urgia, até Saturno e Baco.

Na Roma antiga, o mais belo soldado era designado para representar o deus Momo no carnaval, ocasião em que era coroado rei. Durante os três dias da festividade, o soldado era tratado como a mais alta autoridade local, sendo o anfitrião de toda a orgia. Encerrada as comemorações, o “Rei Momo” era sacrificado no altar de Saturno. Posteriormente, passou-se a escolher o homem mais obeso da cidade, para servir de símbolo da fartura, do excesso e da extravagância.

Com a supremacia do cristianismo a partir do século IV de nossa era, várias tradições pagãs foram combatidas. No entanto, a adesão em massa de não-convertidos ao cristianismo, dificultou a repressão completa. A Igreja foi forçada a consentir com a prática de certos costumes pagãos, muitos dos quais, cristianizados para evitar maiores transtornos. O carnaval acabou sendo permitido, o que serviu como “válvula de escape” diante das exigências impostas aos medievos no período da Quaresma.

Na Quaresma, todos os cristãos eram convocados a penitências e à abstinência de carne por 40 dias, da quarta-feira de cinza até as vésperas da páscoa. Para compensar esse período de suplício, a Igreja fez “vistas grossas” às três noites de carnaval. Na ocasião, os medievos aproveitavam para se esbaldarem em comidas, festas, bebidas e prostituições, como na antiguidade.

Na Idade Média, o carnaval passou a ser chamado de “Festa dos Loucos”, pois o folião perdia completamente sua identidade cristã e se apegava aos costumes pagãos. Na “Festa dos Loucos”, tudo passava a ser permitido, todos os constrangimentos sociais e religiosos eram abolidos. Disfarçados com fantasias que preservavam o anonimato, os cristãos, os não-convertidos é claro, se entregavam a várias licenciosidades, que eram, geralmente, associadas à veneração aos deuses pagãos.

O carnaval na Idade Média foi objeto de estudo de um dos maiores pensadores do século XX, o marxista russo Bakhtin. Em seu livro Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Bakhtin observa que no carnaval medieval – “o mundo parecia ficar de cabeça para baixo”. Vivia-se uma vida ao contrário. Era um período em que a vida das pessoas tornava-se visivelmente ambígua, pois a vida oficial - religiosa, cristã, casta, disciplinada, reservada, etc. – amalgamava-se com a vida não-oficial – a pagã e carnal. O sagrado que regulamentava a vida das pessoas era profanado e as pessoas passavam a ver o mundo numa perspectiva carnavalesca, ou seja, liberada dos medos e da ética cristã.

Com a chegada da Idade Moderna, a “Festa dos Loucos” se espalhou pelo mundo a fora, chegando ao Brasil, ao que tudo indica, no início do século XVII. Trazido pelos portugueses, o ENTRUDO – nome dado ao carnaval no Brasil – se transformaria na maior manifestação popular do mundo, numa das maiores adorações aos deuses pagãos do planeta e, por tabela, na maior apologia à prostituição e ao homossexualismo apoiada pelo Estado. Você vai participar do CARNAval?

http://www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=892