segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Sobre O ATLAS ETNOLINGÜÍSTICO DO ACRE - ALAC (Por Luísa Galvão Lessa)


Profª Drª. Luísa Galvão Lessa (UFAC)

Inicialmente, nesta conferência, agradeço o convite formulado pelo Prof. Dr. José Pereira, para ocupar este nobre horário e, assim, devo dizer que é uma honra estar entre os senhores para noticiar os estudos da dialectologia amazônica, particularmente do Atlas Etnolingüístico do Acre - ALAC. 

É um projeto de vida longa e dele me ocupo enquanto docente na Universidade Federal do Acre e como pesquisadora do CNPq. Mas, antes de tudo, para se chegar à definição do ramo da ciência da linguagem - a dialectologia social, objeto dessa exposição, como parte do meu fazer científico - é necessário retomar, um pouco, os conceitos de língua e dialeto. Uma língua é um sistema de sinais acústico-orais, que funciona na intercomunicação de uma coletividade. É resultado de um processo histórico, evolutivo. 

Fala-se, portanto, de uma língua histórica portuguesa, espanhola, francesa, etc., ou seja, existe em cada uma delas uma estrutura fônica, gramatical e lexical definida e distinta das demais. Cada uma dessas estruturas é resultado da diversificação de uma língua anterior, o latim, que teve a sua própria organização estrutural modificada no tempo e no espaço. 

Falar de língua portuguesa ou de qualquer outra é operar uma abstração e uma generalização consideráveis, uma vez que sob essa denominação de língua há uma gama de variações, conseqüência direta da diversidade dos usuários. Não existe uma língua unificada, porque não existe um monobloco lingüístico. 

Em uma língua histórica, existem três tipos fundamentais de diferenças internas: 

1. diferenças de espaço geográfico ou diferenças diatópicas; (exemplo: aipim = mandioca, macaxeira; abóbora = jerimum; canjica = mucunzá; mixirica = tangerina; pé-de-moleque = cocada; pé-de-moleque = bolo de mandioca); muyé = mulher; fyo = filho; munta gente = muita gente; mutá = escada; piá = menino. 

2. diferenças entre os distintos estratos socioculturais de uma mesma comunidade idiomática, ou diferenças diastráticas (fazer a corte, namorar, paquerar, ficar; garota de programa, mulher devida fácil, prostituta, puta); ficar ajuntado ou amancebado ou amigado. 

3. diferenças entre os tipos de modalidade expressiva, de estilos distintos, segundo as circunstâncias em que se realizam os atos da fala ou diferenças diafásicas: nós vamos, a gente vai, eu vou; faça-me o favor, faça o favor; assistir ao jogo, assistir o jogo etc).

A esses três tipos acrescentam-se as diferenças etárias, geracionais. (acender e ligar; apagar e desligar; apagar e deletar; namorar e ficar etc). 

As diferenças diatópicas, diastráticas e diafásicas, correspondem três tipos de subsistemas que possuem internamente relativa homogeneidade garantida pela soma dos traços lingüísticos coincidentes. Assim, a partir dessas coincidências pode-se dizer que existem: 

a) as unidades diatópicas, que são identificadas mais comumente como dialetos: o dialeto nordestino, o dialeto de Fortaleza, dos Açores, de Portugal, do Acre, etc.;
b) as unidades sinstráticas, as de estratos sociais - a linguagem culta, a linguagem da classe média, a linguagem popular, etc.;
c) as unidades sinfásicas, ou de estilo de língua - a linguagem formal, a familiar, a literária etc.
Observe-se, porém, que em cada unidade sintópica, por exemplo, em um dialeto de determinada região, pode haver ou há diferenças diastráticas (socioculturais) ou diafásicas (de estilo); em cada unidade diastrática, por exemplo, a linguagem culta, a linguagem popular, há diferenças diatópicas (regionais) e diafásicas (de estilo); e em cada unidade sinstrática, por exemplo, na linguagem familiar, há diferenças diatópicas e diastráticas. 

Compreende-se, então, porque os falantes de uma mesma língua, mas de regiões distintas, tenham características lingüísticas diversificadas e se pertencerem a uma mesma região também não falam da mesma maneira, tendo em vista os diferentes estratos sociais e as circunstâncias diversas da comunicação. Tudo isso deixa evidente a complexidade de um sistema lingüístico e de toda a variação nele contida. Desse modo, chegar-se-á mais perto do conceito de dialeto, subsistema inserido nesse sistema abstrato que é a própria língua. 

Para tornar mais claro o entendimento de dialeto, a sua relação, distribuição e relação com a língua histórica, do qual é parte integrante, é oportuno rever o conceito de isoglossa como uma linha virtual que marca o limite, também virtual, de formas e expressões lingüísticas. As isoglossas podem delinear contrastes e, conseqüentemente, apontar semelhanças em espaços geográficos (isoglossas diatópicas. Ex.: para a constelação: Cruzeiro do Sul (em quase todo o Acre), Santo Cruzeiro (na fronteira do Acre com o Peru; pé-de-moleque e beléu); podem mostrar contrastes e mostrar semelhanças lingüísticas socioculturais (cedo da noite, boquinha da noite, de tardinha, à noitinha) isoglossas diastráticas) ou ainda podem configurar diferenças de estilo (isoglossas diafásicas - ao anoitecer, ao cair da tarde, ao final do dia, na boca da noite). 

Quanto à natureza dos fatos lingüísticos analisados, uma isoglossa pode ser lexical ou seja, isoléxica; pode ser fônica, isófona; pode ser morfológica, isomorfa e pode ser sintática. 

Partindo do entendimento de isoglossa, define-se dialeto como um feixe de isoglossas, ou seja, um conjunto de isoglossas que se somam e que, portanto, têm uma relativa homogeneidade dentro de uma mesma comunidade lingüística em confronto com outras. Essa relativa homogeneidade, demonstrada pelo conjunto de isoglossas, leva ao entendimento de que não existem limites rígidos entre as línguas, uma vez que toda língua histórica é constituída por um conjunto de dialetos. 

Se se entende, como se disse antes, que há isoglossas diatópicas, diastráticas, diafásicas, poder-se-á concluir que a denominação de dialeto não é só pertinente às variações diatópicas, logo também há dialetos sociais e, por analogia, dialetos estilísticos. 

Ressalte-se que a equação: dialectologia = lingüística diatópica; sociolingüística = lingüística diastrática não é pacífica. Lope Blanche, sobre o tema, assim se manifestou: 

Se a dialectologia tem como finalidade geral o estudo das falas, deverá tratar tanto das suas variedades regionais como das sociais, tanto no eixo horizontal como do vertical. 

Diz ainda Lope Blanche (1978:40) que o fato de a dialectologia" haver dedicado o melhor do seu esforço ao estudo das falas regionais, especialmente rurais, isso não pode ser interpretado como um fato definidor, mas uma circunstância transitória". Daí depreende-se que a dialectologia interessa não apenas a variedade rural mas também a urbana, podendo então falar em uma dialectologia rural e de uma dialectologia urbana. 

Fez-se, inicialmente, no Acre, uma dialectologia urbana, coletando-se um corpus de 10 horas de gravação, com informantes de nível superior completo, profissões diversas, níveis sociais também, faixas etárias e variação de sexo, isso em 1988, tomando o modelo idealizado por Lope Blanche. 

Paralelamente, faz-se, desde 1991 dialectologia rural, seguindo o modelo preconizado por Nascentes e aplicado, com sucesso, por pesquisadores brasileiros. O resultado desse esforço está refletido nos 23 CADERNOS sobre a Linguagem Falada do Vale do Acre, Vale do Juruá e Vale do Purus. Neles estão presentes os traços diferenciadores por força do conservantismo ou da absorção do novo: 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO ACRE - Materiais para estudo, vol. I,II,II; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO JURUÁ - Materiais para estudo, vol. I, II, II; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO PURUS - Materiais para estudo, vol. I,II,III: 

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE CRUZEIRO DO SUL - Materiais para estudo, vol. I;

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE TARAUACÁ - Materiais para estudo, vol., II; 

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE FEIJÓ - Materiais para estudo, vol. III;

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE RIO BRANCO - Materiais para estudo, vol. IV; 

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE XAPURI - Materiais para estudo, vol. V; 

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE PLÁCIDO DE CASTRO - Materiais para estudo - vol. VI; 

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE SENA MADUREIRA - Materiais para estudo, vol. VII;

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE ASSIS BRASIL - Materiais para estudo, vol. VIII; 

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA DE MANOEL URBANO - Materiais para estudo, vol. IX; 

A LINGUAGEM NA ZONA DE RIO BRANCO: FORMA E FREQÜÊNCIA - Materiais para estudo, vol. I; 

LINGUAGEM NA ZONA DE PLÁCIDO DE CASTRO: FORMA E FREQÜÊNCIA - Materiais para estudo, vol. II;

A LINGUAGEM FALADA NA ZONA XAPURI: FORMA E FREQÜÊNCIA - Materiais para estudo, vol. III. 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO PURUS - FORMA E FREQÜENCIA, Zona de Manoel Urbano - Materiais para estudo, vol. I; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO PURUS, Zona de Assis Brasil - FORMA E FREQÜENCIA - Materiais para estudo, vol. II; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO PURUS, Zona de Sena Madureira - FORMA E FREQÜENCIA - Materiais para estudo, vol. III; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO JURUÁ, Zona de Cruzeiro do Sul - FORMA E FREQÜENCIA - Materiais para estudo, vol. I; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO JURUÁ, Zona de Tarauacá - FORMA E FREQÜENCIA - Materiais para estudo, vol. II; 

A LINGUAGEM FALADA NO VALE DO JURUÁ, Zona de Feijó - FORMA E FREQÜENCIA - Materiais para estudo, vol. III. 

Do corpus ALAC, acima especificado, 70% está armazenado em microcomputador. 

Pretende-se, com essa pesquisa dialetal na região do Acre, deixar um legado a várias ciências, pois a dialectologia é uma disciplina com larga tradição, com uma metodologia bem estabelecida e uma rica e valiosa literatura. É indiscutível, pois, que a dialectologia trouxe e traz contribuições de importância à sociolingüística e à lingüística geral. É como diz Silva-Corvalán (1988:8): 

Sociolingüística e dialectologia se têm considerado até certo ponto sinônimas, uma vez que ambas estudam a língua falada, o uso lingüístico e estabelecem as relações que existem entre certos traços lingüísticos e certos grupos de indivíduos. Assim como a sociolingüística, a dialectologia desde cedo percebeu a coexistência da heterogeneidade lingüística. 

O corpora do ALAC está armazenado no Centro de Estudos Dialectológicos do Acre - CEDAC. E a contribuição que o CEDAC dá à dialectologia acreana é infinita, sobretudo com o Atlas Etnolingüístico do Acre - ALAC. Na realidade, a publicação do Atlas, ainda que com resultados parciais, como já se está dando ao Brasil, significa o final de um estágio e o início de uma obra aberta aos estudos dialetais, os mais distintos; é documento irrefutável de uma realidade da língua, diversificada nos seus vários níveis. Diversidade essa que não anula a unidade, apenas lhe dá a verdadeira dimensão, tornando-a menos esplêndida ou menos notável como, inadvertidamente, alguns a defendiam ou ainda defendem. Unidade e diversidade não se defende, constata-se. 

Em toda pesquisa dialetal existe um antes, um durante e um depois. Tem-se, pois, a fase da preparação, da execução e da análise. É preciso definir o antes, ter coragem para o durante, paciência e gosto para o depois, como dizem Carlota Ferreira e Suzana Cardoso. 

Essas etapas me foram ditadas pela experiência da prática da pesquisa de campo. A dialectologia não é uma ciência de gabinete, por isso o durante, às vezes, pode ser até penoso, mas sem dúvida, é o trabalho de campo o melhor livro de dialectologia que se conhece; só quem esteve lá, e pode ser difícil chegar lá, é capaz de lhe dar a sua real dimensão. Com o homem rural se aprende não apenas os fatos lingüísticos, porém muito mais, aprende-se sobre uma vida que nunca lhe foi ensinada, mas aprendida de dentro da própria vida. 

O Estado do Acre, embora ocupe destacada e significativa posição no contexto amazônico, continua, ainda, a constituir vasto campo aberto à pesquisa, não só no âmbito das ciências naturais, mas também em áreas como a História, a Antropologia e a Lingüística. 

Só agora se está percebendo ser necessário conhecê-lo em profundidade, no intuito de descobrir-lhes as peculiaridades e - o mais urgente - no sentido de registrar e preservar os traços culturais de pequenos segmentos da sociedade, ameaçados de descaracterização pela força de normas lingüísticas comportamentais veiculadas pelos modernos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão. 

Em pleno século XX, e não muito longe da capital acreana, encontram-se pequenas comunidades mantidas à margem do desenvolvimento, devido a fatores históricos e geográficos que as compeliram ao isolamento e à estagnação. 

Surpreende e, por vezes, revolta o flagrante descaso de que têm sido vítimas alguns grupos ao longo dos séculos que nos distanciam dos primórdios da colonização. É o que ocorre em muitas localidades do Acre, caso especial dos pontos de inquérito da Pesquisa ALAC, como é um exemplo a Vila Muju, pequeno aglomerado humano cuja população vive não só na mais absoluta pobreza, mas, sobretudo, parada no tempo, quase como sem destino. Esse é só um dos casos, existem inúmeros que os nativos do Acre, conhecedores da realidade, encontram sem grande esforço de memória. 

O que espanta, de tudo isso, é que até hoje o governo brasileiro não tenha dedicado estudo especial para o homem da região amazônica, especificamente para a atividade econômica a que - por determinismo geográfico - o acreano está destinado ao confinamento, aprisionado pela floresta que não tem limite enquanto território verde, mas que dá finitude ao homem quando o isola dos demais. 

O homem interiorano do Acre - por viver em povoados alijados do processo de desenvolvimento; por desempenhar atividades econômicas de forma artesanal; por possuir uma história de luta e de resistência para a preservação da sua identidade e de seu habitat; por apresentar índice nulo ou quase nulo de escolaridade - constitui objeto, por excelência, de pesquisa dialectológica. 

Se não bastassem esses motivos para que se privilegiassem, nos estudos dialectológicos, a descrição da linguagem e das atividades econômicas artesanais aqui praticadas, poder-se-ia aduzir o crescente interesse que a Amazônia vem despertando para o mundo. 

Os seringueiros não são o único grupo esquecido pelo Poder e pela História. A seu lado encontra-se um enorme contingente de acreanos que, no labor diário da agricultura, da pesca, da extração da madeira etc., e nos singelos atos de intercomunicação, sem que disso se dêem conta, escrevem nossa história, delineiam nossa cultura, matizam nossa língua, forjando nossa identidade nacional. 

Tropeiros solitários; seringueiros confinados na imensidão da floresta amazônica; feitores de roçados; plantadores de mandioca, de milho e de feijão, em humildes choças; fazedores de farinha; pescadores do acaso; madeireiros do destino; pombeiros em seu comércio pela floresta - todos presos às suas pequenas, porém únicas tradições, repetem, encantoados na região acreana, as vozes que desde a infância se acostumaram a ouvir. 

Detentores de costumes portugueses aqui reelaborados pelo contato com outra terra e outras gentes ou, já em acelerado processo de mestiçagem étnica e lingüística, esquecidos da origem, esses homens guardam, na sua forma de expressão oral, a resposta a muitas indagações e a diversas hipóteses. 

O espantoso no Brasil é que a conquista de nossa unidade lingüística não é obra da educação, mas do esforço do povo, sem nenhuma ajuda oficial. 

Conhecer, portanto, a cultura desses homens escondidos e esquecidos em núcleos que, embora, por vezes, próximos, vivem vidas próprias, equivale a reconstituir parte de nossa história e da história da língua que serviu para conformá-la, contá-la no decurso do tempo. 

E, como sempre ressaltaram dois de nossos mais notáveis filólogos - Serafim da Silva Neto e Celso Ferreira da Cunha - e perceberam alguns poucos de nossos historiadores - como Sérgio Buarque de Holanda e José Honório Rodrigues - os estudos históricos devem subsidiar as pesquisas lingüísticas, mormente aquelas que tenham por escopo a língua oral. 

Assim, do que se disse, que outra síntese se poderia fazer da situação lingüística do Acre? A diglossia que caracteriza a variante acreana - esse tecido emaranhado que se procura deslindar, na tarefa do Atlas, é, sem dúvida, resultado: do processo histórico que tornou o Acre brasileiro; da descoberta do ouro negro na região amazônica; da chegada dos nordestinos no Acre; do convívio nem sempre harmônico entre os povos da fronteira (Peru e Bolívia). Assim, o dialeto acreano é peculiar no Norte do Brasil. No baixo amazonas, por exemplo, se diz “canua e cuco” e no Acre “canoa e côco”. 

Pergunta-se, então, o que existe, ainda, nessas comunidades, num grupo já por si minoritário e diferenciado, do que há pouco se comentou? 

Que terão os seringueiros, os agricultores, os pescadores, os madeireiros, os pecuaristas a transmitir - por meio da sua linguagem e da cultura - sobre a história e a fala de seus grupos e, por extensão, sobre a história e a fala do Estado do Acre? 

Certamente, coisas que não se supunham e que, se não fossem logo recolhidas, se perderiam a reboque da indiferença: 

Não é possível, porém, cruzar os braços. Pelo contrário, a exploração dos falares é tarefa urgente e inadiável, porque, com o rolo compressor do progresso, o uniforme sobrepõe-se ao diferenciado, o comum ao típico, o banal ao pitoresco. Assim se vai operando uma nivelação que destrói em boa parte as tradições recebidas dos antepassados. 

A pesquisa do Atlas Etnolingüístico do Acre - ALAC objetiva, portanto, proceder ao levantamento e à análise das peculiaridades lingüísticas e etnográficas de cinco atividades econômicas do Estado, acima já enumeradas, para auxiliar não só no conhecimento de uma variante do português do Brasil e do Acre, mas, também, para a elaboração do Atlas Etnolingüístico do Estado do Acre, em fase bastante avançada. 

Para dar uma feição científica à coleta da oralidade acreana, tiveram-se de criar ou adaptar métodos, sempre com base nas lições extraídas das obras de lingüistas atuais e nas contribuições dos primeiros estudos dialectológicos, numa fusão de modernidade e tradição, que tem presente a lúcida observação de Manoel Alvar: 

deixando de lado as metáforas, pensa-se que o surgimento de novos métodos significa que outros - mais ou menos tradicionais - já se tornaram absoletos: colocação parcial da questão. Porque a missão de um método não acaba com o surgimento de outro, mas pode coexistir com ele e ainda reelaborar-se segundo seus próprios condicionamentos (... ) os métodos tradicionais, adaptados às exigências de nosso tempo, não estão esgotados: muitos dialetos românicos estão por inventariar e conhecer, e sem a posse desses dados imediatos careceria de sustento qualquer tipo de especulação ulterior.

Estudar a dialectologia acreana é descrever a língua do povo do Acre. E a descrição da língua de um povo fornece seu vocabulário e o vocabulário é uma bíblia bastante fiel de todos os conhecimentos desse povo; apenas a comparação do vocabulário de uma nação, em diferentes tempos, é suficiente para se formar uma idéia do seu progresso. 

Este trabalho é, também, um apelo aos educadores, de modo geral, para que se interessem pela região acreana e pelos homens que lá (aqui) vivem (onde me incluo, com a permissão dos senhores), contribuindo, assim, não só para a solução dos problemas econômicos, mas, também, para que sejam respeitados os valores, a cultura e, conseqüentemente, a linguagem da região. 

CONCLUINDO 

Dos estudos que realizei; daqueles que vou realizar; das pessoas que conduzi às trilhas da pesquisa; das derrotas sofridas na busca de profissionais talhados para este feito; do espaço espremido dentro da academia; dos ensinamentos e dos exemplos que tento passar aos jovens pesquisadores do CEDAC; das dificuldades para, no Acre, fazer pesquisa científica, há um quadro que ilumina os meus dias e que retirei na pesquisa de campo.

Ele é assim: Lembro lugares e neles vejo homens, mulheres, crianças. Diversos como os cenários em que se situam, contam-me histórias, diversas também. Ao fim de duas ou três visitas sento-me, por vezes, verdadeira amiga, quase irmã. E eu não tenho podido dar-lhes senão um pouco de atenção, de simpatia. Eles me têm dado uma lição magnífica, decisiva para o meu modo de sentir e de pensar a vida partir daquele momento da visita. 

Por trás dos fatores que vim buscar, estudar, há toda uma humanidade humilde, porém digna, vivendo intensamente os sentimentos simples, lutando corajosamente pela sobrevivência, com que a dialectologia me pôs em contato. Se mais nada, no vasto terreno da linguagem, conservasse um dia interesse para mim, creio que esta experiência, por si só, seria suficiente para me obrigar a reconhecer e afirmar que vale a pena o ramo dos estudos dialectológicos para o qual a vida me conduziu.

ACRE: telúrico e emblemático

JORNALEGO

ANO III - Nº 82, em 10 de Setembro de 2004.

Notas de uma palestra

ACRE: TELÚRICO E EMBLEMÁTICO

Introdução

Este texto é o registro de uma palestra proferida para um Clube de Leitura feminino, de Vitória (ES), cujo objetivo foi contextualizar o livro “Galvez, Imperador do Acre”, de Márcio Souza, na história daquele Estado. Aqui, não existe a pretensão de fazer história. Simplesmente a de contar, em linhas bem gerais, uma história que aprendi por lá e na leitura de alguns poucos livros. Trata-se de uma colagem que, podendo conter alguns equívocos, tenta passar os contornos da saga acreana.

O Tratado de Tordesilhas

Após o descobrimento da América e do Brasil, a Espanha e Portugal ajustaram as suas desavenças territoriais no Novo Mundo, com a unção papal, com a linha Norte-Sul do Tratado de Tordesilhas. Por este tratado, como se sabe, o Brasil era constituído de menos da metade das terras que hoje possui. A região do Acre estava completamente fora das terras então dominadas pelos portugueses.

Foi graças às incursões dos bandeirantes à procura de metais e pedras preciosas e à captura de índios que os brasileiros empurraram a fronteira estabelecida para oeste. Os bandeirantes do sudeste são decantados em prosa e verso pela suas proezas.

Fenômeno idêntico também se passou ao norte do país. Também foi a migração interna brasileira que ao povoar as terras não descobertas do extremo oeste marcou a presença do Brasil naquelas regiões. Este deslocamento de brasileiros não despertou a mesma consideração dada aos bandeirantes pela nação brasileira.

A Amazônia não despertava grande interesse por parte da Espanha. Os primitivos habitantes do Acre foram os índios (amoaca, arara, canamari e ipuriná).

Território Boliviano

O estabelecimento dos limites entre as terras de Portugal e Espanha, com a expansão da fronteira para além da linha vertical do Tratado de Tordesilhas, passou a ser estabelecido pelos Tratados de Madrid (1750) e de Santo Ildefonso (1777).

Até 1850, a região do Acre era considerada pela Espanha como “Tierras no Discubiertas”. A partir de 1860 expedições exploratórias descobriram o potencial da borracha, viabilizada por força da Revolução Industrial, em curso na Europa.

Em 1867, o Tratado de Ayacucho passou a estabelecer os limites entre o Brasil e a Bolívia, com desconhecimento da geografia local. Foi um tratado feito às cegas. As terras entre os rios Madeira e o Javari pertenceriam à Bolívia. Portanto, o Acre era território boliviano.

Povoamento

O nome Acre foi originário da palavra indígena AQUIRI. Existem algumas versões sobre o seu significado. Uma delas considera “rio de jacarés”. Acre seria uma corruptela de Aquiri, atribuída a um imigrante nordestino de sucesso no aviamento das encomendas dos seringueiros. Seu nome: Manoel Urbano da Encarnação (!).

A grande seca nordestina de 1877/8 é que provocou a grande migração nordestina, especialmente do Ceará, para o Acre.

Como se sabe os rios cruzam o território acreano de oeste para leste formando a bacia hidrográfica amazônica. Assim, viajar longas distâncias rio-acima nessa planície era uma tarefa hercúlea a ser realizada com barcos leves, movidos a remo. A navegação a vela é marítima (oceânica ou costeira) e não se adapta à hinterlândia fluvial de poucos ventos. Com os barcos a vapor é que foi possível a maior inserção do povo brasileiro por aquelas regiões. O Visconde de Mauá chegou a criar uma empresa de navegação fluvial com motores a vapor que parece existir até hoje. Essa empresa chegou a ser associada à Petrobras. No século passado, o Estado do Amazonas estendia sua jurisdição às terras ocupadas por brasileiros no território acreano.

A Questão do Acre

Em 1895, uma Comissão Demarcatória chefiada pelo Cel. Thaumaturgo de Azevedo mostrou quanto o Tratado de Ayacucho era desinteressante para o Brasil. Rechaçado pelo Governo Brasileiro criou-se a polêmica na imprensa. O Governo Brasileiro nomeia então o capitão-tenente Cunha Gomes que, no entanto, reconheceu os limites estabelecidos pelo Tratado. O traçado demarcatório que separa, ainda hoje, o Acre do Amazonas é conhecido como a linha Cunha Gomes.

Já estávamos vivendo sob a égide da República.

A Bolívia, para marcar sua presença, criou uma Delegação Nacional em Xapuri, cidade perto da fronteira, combatida pelos brasileiros.

Cem dias de Paravicini (início: 02.01.1899)

A Bolívia, por sua vez, reage à ação dos brasileiros e manda para a região um ministro plenipotenciário, Dom José Paravicini, que criou a cidade de Puerto Alonso. Paravicini decretou a abertura dos rios amazônicos à navegação internacional e começou a arrecadar impostos que antes iam para o Estado do Amazonas.

Insurreição Acreana (a partir de 01.05.1899)

Sessenta seringalistas da região se rebelaram contra as decisões do governo constituído pelos bolivianos e expulsaram seus representantes, pondo fim assim à gestão Paravicini.

A República Independente do Acre (PRIMEIRA REVOLUÇÃO)

A partir daqui, dá-se início à fase efetivamente revolucionária do Acre, após os esporádicos embates entre os interesses bolivianos e brasileiros. Para efeito deste texto, divide-se a história recente – final do século XIX e no século XX – em quatro grandes revoluções, como se observará a seguir.

Destaca-se, nesta quadra da história, o grande personagem do livro já mencionado, o espanhol Luiz Galvez Rodrigues de Aria.

Galvez estudou direito e serviu nas embaixadas da Espanha em Roma e Buenos Aires. Tinha vasta cultura, talento militar e administrativo. Tinha fama de mulherengo, envolvendo-se em grandes confusões por este motivo. Esteve em Buenos Aires e no Rio de Janeiro antes de sua ida para a Amazônia.

O Galvez do livro de Márcio Souza é um personagem de romance. O autor o associa a D. Quixote, teatralizando sua atuação. O personagem tem tratamento debochado, passando por figura burlesca e picaresca. Alguns traços de sua personalidade e pelo fato de se fazer acompanhar, em sua incursão para oeste, por uma trupe teatral, possivelmente concorreram para esta caracterização.

Galvez foi repórter jornalístico em Manaus e Belém. Paradoxalmente foi também funcionário do consulado da Bolívia nesta última cidade.

Por exercer essas funções, em Junho de 1899 ele descobre e denuncia a trama: A Bolívia receberia o auxílio dos Estados Unidos para incorporar o território do Acre ao dela. Em caso de guerra os EUA apoiariam militarmente a Bolívia.

A canhoneira americana Wilmington chegou mesmo a ser enviada para região, em missão de boa-vizinhança, sendo muito bem recebida pelas autoridades e populações locais. Na realidade fez o seu périplo rio-acima para mostrar força e as segundas intenções da Grande Nação do Norte.

A denúncia de Galvez aborta a transação. Os jornais do Rio de Janeiro alardeiam a notícia que chocou a opinião pública brasileira. A Bolívia e os EUA negam as denúncias.

Galvez, em associação com o Governo da Província do Amazonas, que financia a expedição com cinqüenta mil libras esterlinas, organiza uma expedição para tomar conta das terras em disputa. O fato de ser espanhol e aparentemente desvinculado do Governo do Amazonas foi fundamental, pois o governo federal não aprovava a empreitada. Assim o governo da província, envolvido totalmente no projeto, não se indispôs com o Governo Federal.

Campos Sales era o então Presidente do Brasil (1898/1902).

A expedição ao Acre, chefiada por Galvez, era composta de 20 homens, 202 volumes (com 20 rifles), embarcados no vapor Cidade do Pará (uma gaiola).

O Acre era então explorado pela Bolívia e abandonado pelas autoridades brasileiras, o que permitiu a Galvez concluir: “Os habitantes do Acre não pertencem à livre e grande pátria Brasileira”.

Foi assim que proclamou a República Independente do Acre (nos território dos rios Acre, Purus e Iaco) em 14.07.1899. Galvez passou a ocupar o cargo de Presidente e não de Imperador, como o romance relata. Sua capital passou a se chamar Cidade do Acre (novo nome de Puerto Alonzo).

A assim chamada República do Acre teve mais sucesso no papel do que na realidade. Planejava-se com detalhes sobre saúde, educação, forças armadas e até tinha planos para instalação de telefones. Foi escrita uma Constituição e foram convocadas eleições. Enviaram-se cartas diplomáticas às nações amigas, inclusive à República do Brasil, solicitando reconhecimento do novo país. Tanto o Brasil como os EUA negaram tal reconhecimento. O autor deste texto não tem conhecimento se alguma nação o tenha feito.

O novo país começou sofrendo hostilidades de todas as partes: da Bolívia, de Manaus e Belém e do Rio de Janeiro. Como já disse, o Governador do Amazonas (Ramalho Jr.) na realidade estava em conluio com o Galvez: visavam criar uma situação de fato para anexar o território ao Brasil e ao Estado do Amazonas. A partir das leituras realizadas admite-se que o real interesse de Galvez era esse. A criação de uma República Independente foi um expediente estratégico para se chegar ao fim colimado. A história mostra o sucesso dessa trajetória. O que se pode discutir é se, de fato, isso estava nos planos do Galvez.

A estratégia de reação da Bolívia para manter o território era invadir Mato Grosso ou contar com a intervenção dos EUA.

Galvez interrompe o fluxo de mercadorias e da borracha. Em vista da situação difícil criada por esse embargo, em 28.12.99 o seringalista Antônio Souza Braga destitui Galvez.

Souza Braga, contudo, visava outro fim, claro no seu pronunciamento: “Se o Brasil mandar um só homem fardado eu entregarei tudo isto. Aos bolivianos, porém, não”. Souza Braga renuncia diante das dificuldades e da inapetência do governo brasileiro. Galvez reassume em 30.01.1900.

O Governo Federal manda força-tarefa da marinha brasileira para destituir Galvez e devolver o Acre ao domínio boliviano (15.03.1900). Não contou com resistência por parte dos revolucionários. Foi o fim da República Independente.

Galvez não era nem D. Quixote tampouco Antônio Conselheiro. Sabia o que queria. O que, aliás, todos os brasileiros queriam. Somente o governo federal, dirigido pelo Sr. Campos Salles, era contrário a esses interesses.

Anotações do livro GALVEZ, O IMPERADOR DO ACRE

O livro começa em 1897, portanto nos primeiros anos da República, proclamada em 1889. Galvez morreu em 1946, com 87 anos.

O narrador compra as memórias de Galvez num sebo de Paris, em 1973. O historiador Leandro Tocantins diz que as encontrou no Instituto Arqueológico de Pernambuco.

“A bacia amazônica é a maior bacia hidrográfica do mundo e a única que não legou nenhuma civilização importante para a história do homem”.

“Poucos brasileiros sabiam onde ficava o Acre em 1899”. Tampouco hoje, acrescenta o autor destas linhas.

Expedição dos Poetas

No embate entre as forças do Governo boliviano e do Governo do Amazonas, a história conta a formação de uma expedição armada, que levou o nome de Floriano Peixoto, mais conhecida como a expedição dos poetas. Composta de boêmios, profissionais liberais e intelectuais de Manaus, sem nenhuma experiência militar, fracassou em combate em 29.12.1900 em Puerto Alonzo.

O Bolivian Syndicate

Um expediente boliviano foi usar os interesses estrangeiros para conter a invasão brasileira à região. Foi assinado em 11.07.1901 entre bolivianos, americanos e ingleses para vigorar a partir de 02.04.1902, o famoso Bolivian Syndicate, com poderes ilimitados sobre a região para a exploração da borracha. Tratava-se de uma ameaça inconteste à soberania brasileira e boliviana. Mas a esses era o recurso que lhes restava.

A Revolução Acreana (SEGUNDA REVOLUÇÃO)

A grande figura desse período é o militar gaúcho Plácido de Castro. Financiado também pelo governo do Amazonas, formou um exército de seringueiros e de oficiais seringalistas. Seringueiro é o trabalhador que extrai a borracha. Seringalista o proprietário que explora a exploração.

A luta começou em 06.08.1902 - data nacional da Bolívia. Durou até 24.01.1903, quando foi tomado Puerto Alonzo, transformada em Porto Acre.

Mais uma vez foi declarado o Estado Independente do Acre, com o objetivo agora explícito de sua anexação ao Brasil.

Era tempo do Governo do Presidente Rodrigues Alves (1902/1906), no qual o Barão do Rio Branco exercia as funções de seu ministro do exterior.

Após as manobras militares vitoriosas, as discussões diplomáticas se seguiram. Em 17.11.1903 foi assinado o Tratado de Petrópolis que rezava a posse definitiva da região pelo Brasil em troca de áreas no Mato Grosso, pagamento de dois milhões de libras esterlinas à Bolívia, cento e poucas mil libras ao Bolivian Syndicate e o comprometimento da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré. Outro livro de Márcio Souza (Mad Maria) romanceia este último acontecimento.

A seguir, o Tratado do Rio de Janeiro (08.09.1909) põe fim à questão dos limites com o Peru.

Nessas discussões foi invocada a figura jurídica do Utis Possidetis (posse produtiva do território). Os brasileiros de fato já dominavam a região. O autor acredita que esta mesma figura foi utilizada na Província Cisplatina, território anteriormente pertencente ao Brasil, que passou a constituir a República Oriental do Uruguai.

Entre as reações contrárias à assinatura dos tratados com a Bolívia e Peru, destacou-se a atuação de Rui Barbosa, secundado por outros menos reconhecidos.

A região foi transformada em Território Federal do Acre.

A “Revolução” Autonomista (TERCEIRA REVOLUÇÃO)

Este período é marcado pela liderança do Senador Guiomard (José Guiomard dos Santos), militar mineiro que foi governador nomeado pelo Governo Federal para administração do Território.

Como território, o Acre viveu de 1904 a 1962. Nesse período foram inúmeros os movimentos autonomistas, a saber, a revolta do Juruá (1910) e outras mais brandas: 1913, 1918, 1934, 1957, etc.

Em 1962, no governo João Goulart, se deu a criação do Estado do Acre. A partir daí a população pôde eleger sua bancada na Câmara Federal e no Senado Federal como qualquer outra unidade da Federação. Antes tinha poucos representantes. Como território, o Acre não se constituía uma unidade confederada da República. Não tinha autonomia. Seus mandatários eram designados pelo Governo Central, na maioria dos casos, sem mostrar maior interesse pela região, uma vez que cessado o período de seus mandatos voltavam para a região originária. Não foi o caso do Senador Guiomard. Os orçamentos regionais constituíam parte integrante do orçamento da União, o que implicava em dependência econômica e financeira.

Algumas particularidades do novo Estado: seu território é maior do que o do Espírito Santo e o do Rio de Janeiros juntos. Só em 1990 o Acre foi ligado por rodovias ao resto do Brasil: BR-Rio Branco-Porto Velho. Se não é o único trata-se de um dos poucos estados brasileiros em que todos os governadores eleitos foram e são naturais do próprio estado.

A “Revolução” Ecológica (QUARTA REVOLUÇÃO)

O grande personagem desta quadra é indubitavelmente Chico Mendes. É tempo da revolução ambiental, da defesa do trabalhador e da Amazônia brasileira.

Chico Mendes, seringueiro, organizador de sindicatos de trabalhadores locais, líder dos empates com os seringalistas, reconhecido internacionalmente antes de o ser nacionalmente, pregava o desenvolvimento sustentado da região. Não necessariamente a reforma agrária. Não dividir a terra, a floresta é que não pode ser privatizada. A luta da terra foi dando lugar à luta pelo meio ambiente.

Aqueles empates – confronto entre os seringueiros e seringalistas – se deu mais acentuadamente durante os governos militares. A política de ocupação do território levou a inúmeros proprietários do sul-sudeste a se estabelecer na região, acabando com as matas, para começar atividades pecuárias. Esses novos proprietários são ainda conhecidos no Estado pela denominação de paulistas.

Sua expressão e liderança cresceu com o seu assassinato anunciado. Chico avisou por escrito à Polícia Federal, ao Juiz de Direito, às autoridades constituídas da trama para a sua morte. Virou mártir.

Graças à atuação da população local o Acre só foi devastado em suas matas numa extensão de 5% do seu território. Rondônia, Estado vizinho, tem mais de 70% de suas matas destruídas.

A Revolução ainda não acabou. Existe o compromisso de transformar não só o Acre, mas toda a Amazônia em uma terra onde todos, sem exceção – índios, negros, brancos, seringueiros e ribeirinhos – possam viver em harmonia com o meio-ambiente, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento humano e econômico sustentável e com justiça social.

A Senadora Marina da Silva, companheira política de Chico Mendes e sua substituta na liderança do movimento, hoje é Ministra do Meio Ambiente do Governo Federal.

Conclusão

Ao chamar o Acre de Telúrico e Emblemático no título deste artigo o autor considera que da história desta região a nação brasileira pode se espelhar e colher valiosos exemplos para a tão necessária defesa da Amazônia e da Nacionalidade Brasileira.

A cobiça internacional atualmente se volta para a magnífica biodiversidade amazônica, para sua gigantesca reserva de água doce e para as fabulosas jazidas minerais que lá se encontram.

A nova revolução brasileira passa hoje pela defesa de nossas terras, mares, empresas, trabalho, idioma, história, tradições, tecnologia etc. O desenvolvimento sustentável da humanidade passa pela sociodiversidade, biodiversidade e a distribuição da água do planeta, itens que o Brasil, por suas características naturais e históricas, tem que exercer o seu importante papel.

Um alerta final: a militância ecológica internacional pode estar mais interessada em defender os interesses do Primeiro Mundo do que os do Acre ou do Brasil.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

YAWA - O Paraíso reencontrado

Depois de mais de cem anos do contato que massacrou, humilhou e escravizou o povo yawanawá, ele agora resgata sua identidade

Juracy Xangai Lança de malva (mushu tsakanati). Guerreiros defendem esposa na batalha. Se forem atingidos estão simbolicamente mortos e “perdem” a mulher

Juracy Xangai (Yawá Shawã Mashkuru)

No começo tudo era lindo. A floresta, os rios, as festas, o amor e até as guerras inspiravam o orgulho de ser yawanawá. Foi assim até apareceram os brancos com suas doenças, matanças e a escravidão. Os sobreviventes foram humilhados, submetidos pela servidão aos senhores dos seringais, para os quais só as pélas de borracha banhadas em sangue de índios e arigós tinham valor.

O látex transformado em ouro negro gerava lucro aos exploradores e conforto à burguesia crescente de um brutal Primeiro Mundo que só conseguiu desenvolver seu sistema mercantilista roubando o ouro das Américas. Agora, em nome do progresso e do conforto que roda sobre pneus macios, lançava trevas e horrores aos índios, que, sem nada daquilo, viviam seu paraíso.

Os sobreviventes invejavam os mortos, que foram festejar nas matas celestes à espera dos que continuaram penando no purgatório dos seringais. Ali, sua língua e costumes eram tema de piadas; a nudez motivo de abusos; rituais e cultos considerados obra do demônio.

Assim, a identidade de ser uma nação tornou-se um fardo pesado demais e, em nome da sobrevivência, muitos renunciaram ao que tinham de mais valor em si mesmos e tiveram vergonha de ser índios.

Mas nem tudo isso foi suficiente para apagar do coração e do pensamento dos mais velhos seus conhecimentos, seus costumes, suas cantorias, seus rituais continuados às escondidas até serem resgatados no alvorecer deste novo milênio que promete humanizar a humanidade respeitando raças, usos, costumes e crenças.

O sorriso escancarado das crianças saboreando wutã, a beleza das jovens e mulheres com os rostos artisticamente desenhados deixam à mostra seios virgens de maldade. Guerreiros exibindo cocares coloridos trazem às costas, no peito e no rosto pinturas exuberantes em vermelho e preto garantindo proteção contra as doenças e males do corpo e da alma, enquanto os pajés cantam a história da criação divina, das guerras, dos amores, das curas.

As brincadeiras sensuais do Festival Yawá (Festa da Queixada) fortalecem a cultura mostrando a exuberância, o orgulho e a glória de ser Yawanawá.

Roda de cantoria e dança

Celebração da natureza e do amor

O mundo se curva a Yawá

O orgulho yawanawá só aumenta com o reconhecimento mundial de empresas como a indústria de cosméticos norte-americana Aveda, que compra toda a produção de urucum da aldeia e paga pelo uso da imagem desse povo em suas embalagens e propagandas.

Transformado em produto, o potencial de sua cultura dá lucro, atraindo turistas de todo o Brasil e de locais tão remotos quanto a Finlândia, Egito e Costa do Marfim, presentes à festa de cinco dias realizada entre 25 e 30 de agosto na Aldeia Esperança, aonde só é possível chegar percorrendo de carro os 60 quilômetros de Tarauacá ao rio Gregório e por ele subindo 12 horas de barco por entre paus, bancos de areia e uma floresta simplesmente encantadora.

Grife Yawanawá

A empresária Íris Tavares, que há dois anos rendeu-se à beleza dos kãnês (desenhos rituais) da grife Yawanawá impressas nas roupas que comercializa em suas lojas dentro da proposta de valorização ética das “gentes” acreanas, só agora teve a oportunidade de participar do festival. “Desde que conheci Joaquim Yawanawá, senti a energia poderosa desse povo e queria muito vir aqui, mas o dia-a-dia dos negócios não permitia. Então dei um tempo a mim mesma e estou simplesmente encantada com o que vi”, afirmou. E, como não podia deixar de ser, fechou novos negócios. Uma nova visão

Presidindo a mais tradicional indústria de alimentos do Acre, a fábrica de Biscoitos Miragina, José Luiz Felício esclareceu: “Vim a convite do senador Tião Viana, porque já tinha ouvido falar sobre a festa, mas não imaginava que fosse assim tão encantadora. Vejo uma cultura de pessoas bonitas, com valores e uma noção de tempo diferentes da nossa. Percebi que não precisamos de tanta coisa para ser felizes. Vejo no rosto de cada um a expressão de alegria que não via na cidade. Quando a gente conhece a gente respeita e pretendo repetir a viagem”.

Mil dias de camelo

Da terra dos faraós veio Ali Zeitoun, liderando comitiva composta pela família Marwan Azzounit e a representante do Ministério da Cultura do Egito, Hala Barakat, viajando 24 horas de avião só para chegar até Rio Branco. “Se fizéssemos essa viagem de camelo, gastaríamos mil dias. Estamos muito felizes por estar aqui, especialmente encantados pela organização desse povo e o fortalecimento de sua cultura pura e maravilhosa”, comentou, bem humorado.

Exemplo a ser seguido

Anchieta, líder do povo arara de Marechal Thaumaturgo, participou da festa e declarou: “Este festival mostra a importância e a beleza da cultura indígena. Isso nos dá força e ânimo para que também nós, orientados pelos mais velhos, possamos resgatar nossa cultura, usos e costumes. Aproveito para convidar todos para o terceiro Festival Arara, em janeiro do ano que vem”.

Cultura pura

Denise e Ronam vieram de Curitiba (PR) com os filhos para participar da festa. “Aqui vejo a verdadeira expressão da cultura humana entre pessoas que se respeitam, honram e tratam a todos com bom coração”, disseram.

Sonho de milhões

Eduardo Marques, assessor do senador Tião Viana, vive há 26 anos em Brasília, mas recorda com saudades a infância passada ao lado pai, desembargador Lourival Marques, com quem conheceu comunidades seringueiras e a pessoa do mestre Irineu Serra. “Milhões de pessoas no mundo gostariam de estar no meu lugar neste momento vendo esta festa maravilhosa que me deixou emocionado e motivado a apoiar mais os projetos que favorecem as comunidades indígenas”, declarou.

Um milagre suado

O ressurgimento pleno de uma identidade cultural após cem anos de dominação soa como um milagre que teve de ser buscado à custa de muito suor e trabalho por parte das novas lideranças, com o apoio dos mais antigos e demais integrantes desse povo.

Biraci Brasil, o Nixi Waká, que já teve 12 esposas, das quais nove lhe renderam 22 filhos, chefe político e um dos principais líderes espirituais da comunidade, é um dos cinco rapazes enviados para a cidade no início dos anos 70 pelo tio Raimundo, com a missão de estudar e conseguir ajuda numa época em que o governo do Acre dizia nem existirem mais índios no Estado.

Conheceram Antônio Macedo e Terry Aquino, que os puseram em contato com indigenistas, estudiosos e autoridades, buscaram o chefe Raimundo, que nunca tinha saído da aldeia, e o levaram para Brasília, que em 1975 reconheceu a existência de índios no Acre, o povo Yawanawá.

Em 1984 houve o reconhecimento da terra e em 1986, a demarcação de 92.850 hectares, agora ampliados para 193 mil hectares, que cobrem toda a bacia desde as nascentes do rio Gregório e afluentes. Nessa Terra Indígena do Rio Gregório vivem mais de 630 índios yawanawás e katuquinas. Só na aldeia Nova Esperança, 430 yawanawás, além das aldeias Mutum, Matrinchã, Amparo, Tibúrcio, Escondido e Sete Estrelas, esta última com dominância katuquina. Os dois povos tradicionalmente convivem e casam entre si, mas apresentam diferenças marcantes nos costumes e rituais.

Reencontrando-se

Depois de viver quase 20 anos militando no movimento indígena, inclusive como assessor nacional e representante regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), Biraci tomou uma nova consciência sobre si e seu papel junto à comunidade, voltando à aldeia no ano 2000 com o propósito de restaurar a comunidade que ainda sofria as conseqüências negativas dos anos de servidão e do abandono total com a falência dos seringais.

Além do poder político e espiritual herdado do avô Antônio Luiz, o Iva Sttiho, afastou-se das quatro esposas para penetrar no caminho da espiritualidade necessário à liderança. “Estamos voltando para casa com uma bagagem de conhecimento, e o maior desafio está em conciliar as duas culturas aproveitando o que a tecnologia pode nos oferecer sem abrir mão da nossa identidade”, destacou.

Nessa época também retorna à aldeia Joaquim Taskan, que estava vivendo há quatro anos nos Estados Unidos, onde militava junto à organização voltada à defesa dos direitos dos povos indígenas. Ele lidera a Organização dos Agricultores e Extrativitas Yawanawá (Oyaerg), encarregada dos negócios da aldeia.

“Reunimos a comunidade, que estava fragmentada, para reanimar o espírito do povo focados em três pontos que eram como vivíamos antes do contato, o que mudou com o contato e que havia sobrado depois de tanto tempo de servidão. Os antigos disseram que nada havia sido perdido porque haviam guardado tudo no coração e que poderiam ensinar isso aos jovens. Pensamos em fazer uma grande festa onde mostrássemos nossos cantos, nossa música, rituais e a expressão de nossa cultura e assim aconteceu o primeiro Festival Yawa em 2001”.

Nisso foi decisivo o apoio do amigo canadense Josh Sage que conseguiu de Hurt Phenix, mãe de Joaquim Phenix a doação de três câmeras, com as quais, foi preparado o documentário Yawa. Através dele o mundo passou a conhecer e apoiar material, moral e financeiramente a recuperação deste povo.

“Eu mesmo que nasci e me criei na aldeia, só com 30 anos de idade pude conhecer a festa de meu povo. A presença do governador Jorge Viana no segundo festival valorizou ainda mais o evento que agora também recebe apoio pessoal do senador Tião Viana, políticos e empresários do Acre”.

Taskan confessa: “Chorei quando meu pai, disse que já poderia morrer satisfeito por saber que tinha feito sua parte ao garantir que nossa cultura sobreviva para sempre nas nossas crianças agora tem orgulho em falar nossa língua, cantar nossas musicas e ouvir nossa história dividida em tempo das malocas, tempo da servidão, conquista da terra e o resgate de nossa cultura étnica”.

Senador Tião Viana prestigiou a festa e ofereceu seu apoio ao trabalho do resgate cultural do povo yawanawá; Pajé Rusharro abençoa Marluce Viana

Canto de agradecimento

Acompanhando o esposo senador Tião Viana, a arquiteta Marluce esclareceu: “É minha segunda visita a este festival, que, além de celebrar a natureza, a paz e o amor no dia-a-dia, resgata a história de um povo que encontra sua força na sabedoria dos antepassados”.

Após receber uma bênção da pajé Rusharro, Marluce declarou: “Este é um ritual no qual a pessoa que faz se doa força e energia a quem recebe com fé. Dar de si é a mais bela expressão de amor ao próximo, por isso recebo esta bênção com humildade e respeito”.

Logo na chegada à aldeia, Marluce manifestou seu agradecimento à acolhida do povo yawanawá convidando os presentes a entoar com ela o canto que diz: “Fica sempre um pouco de perfume nas que oferecem rosas, nas mãos que são generosas”.

A pajé Rusharro respondeu: “Vocês demonstram respeito e carinho por nós ao vir de longe numa dura viagem, e tudo que podemos oferecer é apenas a nossa hospitalidade, o nosso amor, carinho e dedicação na esperança de que ajudem a consolidar nossos sonhos conforme nossos costumes”.

Famílias que se encontram

Antônia Calazans de Medeiros Apurinã, ou simplesmente Capía (nambu-preta), conheceu Roque Yawanawá durante um dos primeiros encontros de

povos indígenas realizados em Rio Branco ainda na década de 80.

“Fiquei sabendo que ele pertencia a um povo guerreiro e que vivia muito distante. Era estudante e militava no movimento indígena e eu vivia na aldeia Camapã, na estrada de Boca do Acre. Gostamos um do outro e estamos juntos há 17 e esta é a primeira vez que venho à aldeia trazer meus filhosYawá Narenê, Tatá, Yanaranê Shitã e Yawa Rawan para conhecer a festa do nosso povo”.

A participacão e a emoção de Capía em todas as danças e rituais eram constantes, e ela explica o motivo. “Nossa aldeia Apuriná fica no quilômetro 124 da estrada de Rio Branco para Boca do Acre, à beira da estrada e entre fazendas que causaram um grande impacto sobre nossa gente, tanto que a maioria dos jovens deixou de falar a língua, rituais e costumes de nossos ancestrais. Em 280 pessoas, só meu tio Mariá e meu pai Ariúca falam a língua perfeitamente. Alguns têm até vergonha de dizer que são índios”.

Estimulados pelos festivais Yawanawá e de outros povos do Juruá, os apurinãs já começam a resgatar sua cultura.

Casamento à moda Yawanawá

A névoa da manhã vai cedendo à luz do sol que desponta no horizonte e de longe já se pode ouvir o som das machadadas com que Macu Mawá Yusmá parte a lenha para abastecer a cozinha da futura sogra.

Aos 20 anos, ele demonstra força no preparo do roçado, valentia como caçador e pescador experiente, sabe como construir uma casa, então está pronto para casar, mas, apesar de seus pais concordarem e da aprovação da sogra e do sogro, ele está ansioso à espera de três dos cinco cunhados para pedir também a eles, como é de costume na aldeia nos acertos de casamento.

O Festival Yawa, assim como os Mariris (festas) de antigamente, tem, além da função de agradecer pelas dádivas da natureza e celebrar a vida, a oportunidade para que rapazes e moças conheçam primos e outros jovens para futuros relacionamentos que darão continuidade ao povo. Quando ele se casa deve obediência ao sogro pelo resto da vida, ajudando nas derrubadas, caçadas e outros serviços.

FONTE: http://www2.uol.com.br/pagina20/16092007/especial.htm

domingo, 16 de setembro de 2007

O lugar da guerra

Por: Marcos Vinícius
Esta semana, excepcionalmente, não iremos tratar da arqueologia acreana. Isso se deve ao fato de que no próximo dia 18 de setembro estaremos completando 105 anos desde que os brasileiros do Acre começaram a luta pelo domínio de “Empreza” (atual Rio Branco). Uma luta que se estenderia até o dia 15 de outubro, compondo os episódios conhecidos como os “combates da Volta da Empreza”. E para marcar esta importante data, traremos alguns trechos da narrativa deixada pelo próprio Cel. Plácido de Castro, porque nunca é demais lembrar que a conquista do Acre foi feita à custa de muitos sacrifícios de todos os que escolheram essas terras como seu lugar no mundo. Barracão do Seringal Empreza que serviu como hospital de sangue durante o segundo combate da Volta da Empreza Puerto Alonso, a atual cidade de Porto Acre, surgiu de forma diferente de todas as outras cidades acreanas. Enquanto Empreza e Xapuri haviam se formado espontaneamente a partir da atividade de seus povoadores, Puerto Alonso foi fundada pelos bolivianos em 1899 para servir como alfândega e praça forte da dominação sobre a região que lhe pertencia por direito pelos tratados internacionais assinados entre o Brasil e a Bolívia. Por isso, durante os primeiros momentos da revolução dos brasileiros contra a dominação boliviana do Acre o principal palco dos acontecimentos esteve situado no baixo Acre, entre os seringais Bom Destino e Caquetá, onde havia sido erguida a cidadela militar estrangeira. Ainda assim Empreza durante os episódios da Primeira Insurreição Acreana, do Estado Independente do Acre presidido por Luiz Galvez e da Expedição dos Poetas se destacou por sua posição contrária à luta armada contra as autoridades bolivianas. Tanto assim que Galvez, durante seu governo mandou prender Neutel Maia, como forma de atemorizar outros proprietários que, como ele, se colocavam contra o Estado Independente do Acre. Porém a situação mudou sensivelmente quando Plácido de Castro assumiu o comando revolucionário. Apesar de ter iniciado o movimento armado por Xapuri, onde havia um destacamento militar boliviano, Plácido de Castro sabia que o ponto estratégico a ser ocupado era a Empreza. Era para lá que afluíam todos os varadouros que serviam para o transporte de gado desde a Bolívia para os campos naturais do Capatará, das Missões, dos Gaviões e de Empreza onde eram engordados para depois abastecer os seringais acreanos. Logo depois de iniciada a guerra, em 06 de agosto de 1902, o Cel. Plácido andava em trabalho de recrutamento e formação de tropas até que teve a informação da chegada de novas tropas bolivianas. Como ele mesmo registrou no mês de setembro. “Na noite de 17 para 18 recebi um aviso do pi­quete, dizendo-me que o inimigo se achava em “Mis­são”, em grande numero e guiado por Antonio Por­tuguez, a quem em má hora eu havia soltado. Tinha apenas commigo 63 homens, mas com elles marchei á meia noite na esperança de compensar a differença de numero com uma emboscada que lhes pretendia fazer, a uma hora de viagem da “Empreza” onde chegamos ás 5 1/2 horas da manhã. Contra a supposição de todos, inclusive a minha, os bolivianos, apesar de estarem em terreno completa­mente desconhecido, haviam marchado toda a noite, guiádos por Antonio Portuguez, de forma que, ao romper do dia, se emboscaram no campo da “Volta da Empreza”, onde nós, ao entrarmos, recebemos em cheio a primeira descarga em pleno campo. Apezar de serem todos recrutas, a confusão não se estabeleceu entre nós. Com difficuldade, mas com alguma presteza, con­sequi estender linha, que difficilmente consegui man­ter devido á falta de pratica dos meus soldados, que a cada passo se agrupavam. Cada soldado dos nossos tinha sómente 50 tiros, munição bastante para um revolucionário previdente, insignificante, porém, para elles, que atiravam a torto e a direito, parecendo querer matar o inimigo com os estampidos. Ainda assim o inimigo foi contido durante uma hora e cinco minutos, segundo observação dos visi­nhos. Extincta a munição, a derrota pronunciou-se por nós, a despeito do esforço que fiz para evitar o desastre. Vinte e dous mortos deixamos no campo, dez feridos recolhemos e uns seis fugiram. Esta foi a es­tréa. Seguimos para a Empreza a reunir alguns compa­nheiros dispersos. O inimigo, apesar de se achar a tiro de fuzil, não nos perseguio, pois também teve as suas arranhaduras — 10 mortos, inclusive um capitão, e 8 feridos.(...) A noticia da nossa derrota correu célere, apavo­rando os seringueiros e tornando a minha posição por demais difficil, pois por tudo se me responsabilizava. (...) Regressei a “Panorama” e no dia 5 de outubro atacávamos a “Volta da Empreza”, simultaneamente pelo lado de ci­ma e pela retaguarda. Estando marcado o combate para as 10 horas da manhã, no momento em que o inimigo deveria estar descansando da formatura, tal não aconteceu, porque o Coronel Alencar mandou ás 9 1/2 atirar em uma sen­tinella inimiga, o que muito alterou o resultado, pois não, poude o inimigo ser colhido de surpresa. Empenhou-se o combate, sendo em pouco tempo tomadas duas trincheiras inimigas. Á tarde a nossa posição de sitiantes já era bem definida, mas o inimigo estava bem defendido, pois, além das vallas, ainda tinha por fora uma cerca de arame farpado, que impedia qualquer assalto. Por nossa parte estava em franca operação o tra­balho de sapa, mas só depois de 11 dias de lutas pude­mos, por meio de vallas abertas em curvas reversas contra os aramados, chegar junto das trincheiras ini­migas e obrigar o Coronel Rojas a entregar-se com seus commandados, que seriam apenas 150. Os outros, em numero de 30, haviam morrido.” (*) Todos estes confrontos ocorreram defronte à Gameleira, em plena Volta da Empreza. Dizem até que nos galhos principais da arvore que serviu como marco de fundação do povoado que daria origem a Rio Branco balançaram os corpos de diversos bolivianos capturados durante os combates. Porém, isso nunca foi registrado oficialmente por ninguém. O certo é que existem informações que durante a construção do Colégio Imaculada Conceição no Segundo Distrito de Rio Branco, já na década de 50, foram encontrados restos dos corpos dos combatentes do início do século que ali haviam sido enterrados. E a história da capital acreana ficou marcada para sempre como um dos locais onde ocorreram alguns dos principais acontecimentos que resultaram na transformação do Acre em território brasileiro. (*) Transcrito do livro Excerptos Históricos de Genesco de Castro (1930), que recentemente foi reeditado pela editora Valer e Governo do Amazonas com o título “Apontamentos sobre a Revolução Acreana” e que tive o enorme prazer de ganhar de um amigo que estimo muito.