quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

A praça da revolução




POR: Luiz Manfredini, Jornalista.
FONTE:http://www.vermelho.org.br

Revolução? A última vez que me deparei com algo tão intrigante foi no longínquo 1980, no interior de Santa Catarina, quando era repórter do Jornal do Brasil. Passando pela rodovia que leva ao Sul do Estado, rumo à Criciúma, avistei um boteco de beira de estrada e, atônito, li: “Bar e restaurante terrorista”. Pedi ao fotógrafo que registrasse o inusitado e até hoje penso como aquilo pôde ter acontecido. Estávamos, afinal, em pleno regime militar!

Mas os tempos são outros e, ali defronte o tapume no centro de Rio Branco, pensei que o PT e o PCdoB, que dirigem o Estado desde 1999, com o Governador Jorge Viana à frente, talvez estivessem adiantando alguma perpectiva. Nada disso. A revolução a que a placa se referia era outra, pretérita, cujo 104o aniversário será comemorado no próximo 6 de agosto. Uma revolução que muito orgulha os acreanos e cujo significado vem sendo destacado pelo Governo do Estado em sua estratégia de firmar, com base na grande luta, um dos eixos da identidade dos acreanos, a acreanidade. Não sem razão fala-se muito por aqui que o Acre foi o único Estado da federação que pegou em armas para pertencer ao Brasil.

A fronteira Brasil-Bolívia foi estabelecida pelo Tratato de Ayacucho, em 1867. Trinta anos depois o governo boliviano resolveu tomar posse da região limítrofe, rica em látex e àquela altura quase totalmente ocupada por brasileiros, sobretudo pelos bravos cearenses que fugiam da seca e da miséria. A expedição militar para lá enviada, composta por 30 praças, não permaneceu mais que dois meses na vila de Xapuri. Foi expulsa pelos brasileiros. Em janeiro de 1899, chegou ao Acre, vindo de Manaus - e com a concordância do governo brasileiro - o ministro plenipotenciário boliviano, Dom Jose Paravicini, que instalou uma aduana e um povoado (Puerto Alonso) nas terras do seringal Caquetá. O boliviano foi duro em sua autoridade e, entre os numerosos decretos que baixou, havia os que determinavam a arrecadação de pesados impostos sobre a borracha e a imediata demarcação dos seringais, até então registrados no Amazonas.

Cinco meses depois, seringalistas e seringueiros brasileiros decidiram expulsar o sucessor de Paravicini, o delegado Moisés Santivanez. Um manifesto assinado por mais de 60 proprietários de seringais e outros profissionais da região anunciava a formação de uma Junta Central Revolucionária.

Por essa época, em Belém, o jornalista espanhol Luis Galvez descobriu e denunciou a existência de um acordo secreto entre a Bolívia e os Estados Unidos, segundo o qual, em caso de uma guerra pelo domínio do Acre, os norte-americanos apoiariam a Bolívia. A denúncia chocou a opinião pública nacional. Patrocinado pelo governo do Amazonas, Galvez viajou ao Acre e, de seu contato com os membros da Junta Central Revolucionária, surgiu a idéia de se fundar o Estado Independente do Acre, já que o governo brasileiro continuava a reconhecer direitos bolivianos sobre a região. E assim aconteceu, sendo o novo Estado criado em 14 de julho de 1899, com capital na Cidade do Acre (como Puerto Alonso passou a se chamar). Galvez foi aclamado presidente do novo país. Mas em 15 de março de 1900 foi destituído por uma força-tarefa da marinha brasileira.

Interessado em anexar o Acre ao seu território, o governo do Amazonas financiou uma expedição armada. Oficialmente conhecida como a Expedição Floriano Peixoto, e popularmente como a Expedição dos Poetas, por ser composta por boêmios e outros profissionais sem qualquer experiência militar, a tropa de notívagos amazonenses foi derrotada em 29 de dezembro de 1900, em seu primeiro embate com os bolivianos.

Em 11 de julho do ano seguinte, a Bolívia firmou um contrato de arrendamento do Acre com um sindicato formado por capitalistas ingleses e norte-americanos, o Bolivian Syndicate, que deveria se instalar em abril de 1902. Novamente os seringalistas brasileiros articularam-se para a revolta. E outra vez o governo do Amazonas financiou a empreitada, agora entregando seu comando ao experiente Plácido de Castro. A luta começou em 6 de agosto de 1902, em Xapuri. Vitoriosos em 24 de janeiro de 1903, quando tomaram Puerto Alonso e a transformaram em Porto Acre, os revolucionários recriaram o Estado Independente do Acre, embora seu objetivo final continuasse a ser a anexação ao Brasil. Consumado o fato, o governo do Presidente Rodrigues Alves entregou ao seu ministro das Relações Exteriores, o Barão do Rio Branco, a incumbência de negociar com a Bolívia. Em 17 de novembro de 1903 foi estabelecido o Tratado de Petrópolis. O Acre passou a fazer parte do Brasil. A revolução acreana estava, por fim, vitoriosa. Seis anos mais tarde, com o Tratado do Rio de Janeiro, foi resolvida outra pendência de limites, desta vez com o Peru.

Mas o Acre foi incorporado ao Brasil como território e isso ofendeu a honra dos que haviam guerreado pela anexação na condição de estado federativo autônomo. Assim, a luta continuou. Surgiram os movimentos autonomistas. Pipocaram revoltas. Na região do Juruá, em 1910, a população revoltou-se contra um prefeito indicado pelo governo central, pegou em armas e tomou o poder por 100 dias. Em 1913, algo semelhante ocorreria no vale do Purus. Em 1918, a luta autonomista chegaria ao vale do rio Acre, alcançando Rio Branco. A partir de 1934, quando o Estado conquista o direito de eleger dois deputados federais, os autonomistas passaram a lutar institucionalmente. Em 1957 forma-se o Comitê Pró-Autonomia Acreana. Em 1962, o então Presidente João Goulart assina a lei de autonomia do Acre.

Bem, agora dá para entender por que o Prefeito Raimundo Angelin, de Rio Branco, entrou em acordo com o Governo do Estado para reconstruir a antiga praça Plácido de Castro, dando-lhe nova denominação: praça da Revolução Plácido de Castro. Em seus quase 11 mil metros quadrados, a praça receberá mais de 40 novas espécies de árvores e 17 palmeiras imperiais, 114 bancos de madeira, dois espelhos d’água com esguicho e iluminação sub-aquática (um em torno de uma estátua de Plácido de Castro; outro em torno do monumento ao Herói Anônimo, uma escultura de 12 metros de altura em aço carbono em homenagem aos combatentes que ajudaram a tornar o Acre brasileiro).

A luta do povo acreano inclui-se na tradição revolucionária do povo brasileiro que as elites hegemônicas e seus patrões estrangeiros sempre tentaram escamotear. Escamotear para fazer crer que não somos de nada. Visitei a Gameleira, nas margens do rio Acre. Ali árvores centenárias ainda mostram marcas das balas da revolução. Revolução que, orgulhosamente, segue viva na alma desse povo amável e solidário, desses brasileiros de fibra e talento.

A Pré-história Acreana IV(O caso dos sítios geométricos)

Por: Marcos Vinícius.
Fonte: Jornal Pg20, 24 de fevereiro de 2008.
Esta semana retomamos a série de artigos sobre os sítios arqueológicos com estruturas de terra que caracterizam uma importante parte da pré-história acreana e podem revelar a trajetória e os contatos de povos da floresta que habitaram uma grande área do Acre há milhares de anos.
Até aqui a história do Acre tem sido contada olhando apenas para o norte e para o leste. Para o Brasil, portanto. Ainda está por ser conhecida a longa história de um Acre que também olha para o sul e para o oeste, ou seja, para a Bolívia e para o Peru. Especialmente se pretendemos compreender algo dos milhares de anos que antecederam o último século e meio, já que esse é todo o tempo da história do Acre brasileiro que nos esmeramos tanto em cultivar e aprofundar.
Portanto, antes mesmo de começarmos a discutir uma possível pré-história acreana, precisamos redesenhar o mapa do Acre que temos em nossas mentes e descobrirmos outra territorialidade, que pode parecer muito estranha e complicada à primeira vista, mas que é a única capaz de explicar as características desse outro Acre mais antigo e profundo.
Tendo em vista que o nome Acre, ou “Aquiri” em língua Apurinã, diz respeito apenas ao nome de um dos muitos rios da região sul-ocidental da Amazônia, que nem ao menos é um dos maiores ou mais importantes dessa área, mas que foi definido a partir de uma construção histórica. Acho que é adequado utilizarmos também este nome para a grande região que começamos a visualizar. Assim podemos nos manter atentos aos vínculos que essa história possui com o Acre que conhecemos hoje.
Mas como se trata de uma área muito maior do que aquela que custou ao Brasil alguns milhões de libras esterlinas, em 1903, podemos chamá-la então de o “Grande Aquiri”, assim manteremos também uma clara referência ao passado indígena que nomeou esse rio e que, à semelhança da história mais recente, permanece sendo o centro de nossa pré-história de 3.000 anos.
Pequeno sítio circular também localizado à margem da BR-317 Seguindo essa lógica, portanto, o “Grande Aquiri”, além de ser constituído pelos vales dos rios Purus e Juruá, inclui também os vales dos rios afluentes do rio Madeira ao norte da Bolívia: Abunã, Madre de Dios, Orton e Beni; bem como o vale do rio Ucayale, no Peru. Uma grande região constituída principalmente por um extenso divisor de águas que separa os rios Ucayale, Juruá, Purus e Madeira, e forma uma grande fronteira natural, geográfica e cultural que, por uma estranha coincidência (mas nem tanto), corresponde exatamente à fronteira atual entre o Brasil, a Bolívia e o Peru.
Com isso podemos dizer que o “Grande Aquiri”, enquanto território definido, não deve ser considerado apenas pela lógica que até hoje norteou a história amazônica. Ou seja, uma região não somente determinada pelo traçado de seus principais rios, com suas praias, barrancos e várzeas, mas pela extensa área de terra firme que existe entre os grandes e pequenos rios e igarapés dessa floresta imensa.
Exatamente a área que possui a floresta mais densa, os locais mais inacessíveis, os lugares que até hoje se constituem em refugio de culturas indígenas isoladas. Uma área que o pessoal do século XIX chamava de “o fundo dos seringais”, as mais distantes e isoladas “colocações de centro”, a “terra firme” cortada apenas por uma ou outra varação de difícil travessia. Terras que poderiam, talvez, ser definidas pelo nome de um dos muitos seringais acreano-brasileiros: o “Oco do Mundo”.
Este outro Acre, ou “Grande Aquiri”, portanto, não é só diferente do que nos acostumamos a conhecer, ele é, na verdade, em muitos aspectos, contraditório. Por isso é preciso muita atenção ao tentar compreende-lo. Assim poderemos começar a descobrir uma outra história que ainda jaz oculta nas entrelinhas dos livros e das pesquisas até aqui realizadas.
A partir do advento do Google Earth, que disponibiliza imagens gratuitas a quem quer que esteja navegando na Internet, se multiplicaram as descobertas de sítios arqueológicos que formam com suas originais estruturas de terra grandes formas geométricas.
Enquanto a pesquisa arqueológica tradicional conseguiu mapear pouco mais de duas dezenas desses sítios em território acreano e a pesquisa aérea convencional, localizou outras duas dezenas, as observações em imagens de satélite, levou o numero de sítios localizados a mais de uma centena na vasta região que se estende do norte da Bolívia, passando por Rondônia e Acre, até o sul do Amazonas, apenas considerando as áreas desmatadas e cobertas com imagens mais detalhadas de satélite. Não foi pesquisada ainda, portanto, a maior parte dessa mesma região e muito menos seus arredores.
O que abre perspectivas muito animadoras para as futuras pesquisas. Ainda mais se considerarmos que a localização dos sítios geométricos a partir de imagens de satélites está apenas começando e tem sido feita por um grande numero curiosos e pesquisadores de diferentes instituições.
Ou seja, até onde sabemos, os sítios geométricos de terra (também conhecidos pela marca de fantasia “geoglífos”) estão espalhados no que podemos considerar a região oriental do “Grande Aquiri”, constituída pelos vales do Purus e do Beni-Madeira. Não havendo até o momento registro deste tipo de sítio arqueológico nos vales do Juruá e do Ucayale. Pelo menos até agora.
E como já registrei em artigo publicado nesta coluna há alguns meses atrás, é possível reconhecer uma grande variação na forma e características dos diversos sítios já descobertos que parece obedecer a uma certa configuração territorial.
De acordo com as informações disponíveis até aqui podemos observar hipoteticamente que os sítios localizados entre Riberalta, na Bolívia, e Rio Branco são círculos simples, mas de grandes dimensões (entre 100 e 350 metros de diâmetro).
Já entre Rio Branco e Boca do Acre temos formas muito mais complexas e variadas. Nesta ultima área os sítios arqueológicos tanto podem ser círculos simples, como quadrados, octógonos, sítios irregulares, ou mesmo formas compostas por círculos e quadrados concêntricos ou interligados por muretas de terra que lembram “estradas”.
Fora desse “eixo central” de ocorrência de sítios geométricos, temos também em Sena Madureira a presença de pequenos círculos (entre 50 e 70 metros de diâmetro) associados a cemitérios com urnas funerárias de grandes dimensões e, em pelo menos um caso, com manchas de “terra preta”. E do outro lado do “eixo central”, próximo aos rios Abunã e Madeira podemos identificar a ocorrência de círculos e quadrados simples, não interligados, mas próximos entre si, apesar desta área ter sido a menos pesquisada até aqui.
Cabe ressaltar que esta possível configuração territorial de pelo menos quatro áreas de ocorrências distintas pode se referir a diferenças culturais entre vários subgrupos do povo pré-histórico que construiu os sítios com estruturas de terra. Assim como também pode remeter a diferentes períodos cronológicos, mas essa é uma questão que analisaremos com detalhe mais adiante.
Cabe ressaltar finalmente que apesar de toda a variação de formas e configurações dos sítios geométricos pelo menos uma característica parece ser comum a todas essas ocorrências: estes sítios arqueológicos nunca estão próximos às margens dos rios, mas estão sempre localizados nos divisores de águas, nos interfluvios, ou para utilizar um termo local, nas terras firmes que separam os principais rios da região.
Ou seja, bem de acordo com o padrão a que nos referimos acima como a outra “lógica” territorial, característica do “Grande Aquiri”. Mas esse é um assunto que, por sua complexidade e importantes implicações, deverá ser tratado com mais profundidade no artigo da semana que vem.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

RESUMO DE LIVRO

ORLANDI, Eni Puccinelli (org.) Discurso Fundador: A formação do país e a construção da identidade nacional. São Paulo: Pontes, 1993. “O discurso fundador, tal como o tratamos nessa reflexão conjunta, não se apresenta como já definido, mas antes como uma categoria do analista a ser delimitada pelo próprio exercício da análise dos fatos que o constituem...” (p. 7) “... os discursos fundadores são discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo desse país. E a nossa tarefa é então mostrar como é que eles se estabilizam como referência na construção da memória nacional” (p.7) “... os sentidos não têm origem, não pertencendo, de direito, a lugar nenhum... há uma história de constituição dos sentidos... O fato é que na constituição dos sentidos eles podem sofrer um deslizamento, um processo de transferência que faz com que apareçam como deslocados”. “A organização dos sentidos é trabalho ideológico” (p. 7) “... as práticas sócio-históricas são regidas pelo imaginário, que é político” (p. 7) -As forças desorganizadoras também fazem parte do processo de instituição dos sentidos. Desmontar as certezas... as relações de forças são silenciadas “... é esse o trabalho que procuramos trazer para a reflexão sobre o discurso fundador. Sem defini-lo categoricamente, procuramos pensá-lo como a fala que transfigura o sem-sentido em sentido” (p. 8). Os textos apresentados neste livro servem para “refletir sobre a questão da formação dos sentidos” (p. 9.). - Conhecermos o “modo pelo qual idéias que lhe parecem naturais são formadas em um processo com um percurso às vezes mais, às vezes menos longo, mas sempre repleto de particularidades que desaparecem freqüentemente no efeito de evidência produzido na relação dos sujeitos com seus discursos. É essa naturalidade, e essa sensação de evidência que procuramos deslocar em nossa reflexão” (p. 9). VÃO SURGINDO SENTIDOS (Eni P. Orlandi, p. 11) “Como do sem-sentido se faz sentido e irrompe o sentido novo? Como, diante de um mundo novo, com coisas, seres e paisagens ainda não nomeados vai surgindo um sentido, vão surgindo nomes?” (p. 11). - No livro de 90, dedicou-se aos processos de apagamento dos sentidos diferentes. “Como, de um lado, a partir da certeza do já-dito, e, de outro, do nunca experimentado, sentidos chegam e se transformam em outros, abrindo um lugar para a especificidade de uma história particular, na sua forma plural: as histórias do Brasil” (p. 11). “O sem-sentido é considerado perigoso e irresponsável” Pêcheux. “Como significar o sem-sentido? Como significam os novos sentidos tanto para o europeu como para os habitantes do Novo Mundo?” (p. 11). “Nesse livro estaremos assim explorando a dimensão do discurso que é mais difícil de apreender: a de seu acontecimento. É nessa dimensão que melhor se pode observar a relação com o sem-sentido, já que, embora no discurso, estrutura e acontecimento se entrelacem inextricavelmente, na dimensão estruturante o sem-sentido se deixa construir com a aparência do sentido estável, coerente e homogêneo”. (p.11). Construção do significar Apagamento por uma memória já estabelecida dos sentidos (o já-dito) Resistência ao apagamento e a conseqüente produção de outros sentidos O retorno do recalque (do que foi excluído pelo apagamento) - O desaparecimento rápido de nossa memória nacional pede um inventário dos lugares em que ela se encarnou eletivamente e que, pela vontade dos homens ou o trabalho dos séculos ficaram como seus mais claros símbolos: festas, emblemas, monumentos e comemorações, ma também louvações, arquivos, dicionários e museus (Pierre Nora). “... enunciados, como os dos discursos fundadores, aqueles que vão nos inventando um passado inequívoco e empurrando um futuro pela frente e que nos dão a sensação de estarmos dentro de uma história de um mundo conhecido... são enunciados que ecoam e reverberam efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia, em nossa reconstrução cotidiana de nossos laços sociais, em nossa identidade histórica” (p. 12). “Ainda que nem sejam exatamente os que repetimos em nosso discurso social, diferentes, já do que encontramos nos documentos históricos. Não são os enunciados empíricos, são suas imagens enunciativas que funcionam. O que vale é a versão que ficou”. P. 12. “São espaços da identidade histórica (lugares de memória): é memória temporalizada, que se apresenta como institucional, legítima” (p. 13). - São nesses lugares de memória que o sem-sentido passa a ter sentido. “Não estamos pensando a história dos fatos, e sim o processo simbólico, no qual, em grande medida, nem sempre é a razão que conta: inconsciente e ideologia aí significam” (p. 13). Não falamos de história factual, mas das relações com a linguagem e com os sentidos... Aquela que ao significar, nos significamos... “nos constroem um imaginário social que nos permite fazer parte de um país, de um Estado, de uma história e de uma formação social determinada” (p.13). “Mas também se fundam sentidos onde outros sentidos já se instalaram” (p. 13) - É possível a ruptura, pois como diz Pêcheux, “não há ritual sem falha” (1991). É possível instaurar-se uma nova ordem de sentidos. “O que o caracteriza como fundador – em qualquer caso, mas precisamente neste – é que ele cria uma nova tradição, ele re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra” (p. 13). “O sentido anterior é desautorizado. Instala-se outra tradição de sentidos que produz os outros sentidos nesse lugar. Instala-se uma nova filiação. Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua memória. Esse processo é a instalação do discurso fundador, irrompe pelo fato de que não há ritual sem falhas, e ele aproveita fragmentos do ritual já instalado – da ideologia já significante – apoiando-se em retalhos dele para instalar o novo”. (p. 13). “Essa é também uma das características do discurso fundador: a sua relação particular com a filiação. Cria tradições de sentidos projetando-se para frente e para trás, trazendo o novo para o efeito do permanente... É talvez esse efeito que o identifica como fundador: a eficácia em produzir o efeito do novo que se arraiga, no entanto, na memória permanente (sem limite). Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode ser assim”. (p. 14.) “Em se plantando tudo dá... Aí já se produziu um discurso sobre o Brasil, a partir de um enunciado fundador. Nesses percursos e ressonâncias, isso vai dar no traço ideológico da fala sobre a preguiça inerente à raça...”p. 14 (Ideologia do ser brasileiro – reverbera sentidos). - Os fatos reclamam sentidos, daí sua historicidade. “... há outros objetos simbólicos que constituem igualmente discursos fundadores” p. 14. - OS SENTIDOS NÃO PARAM NO LUGAR. - FILME: Aguirre, cólera dos deuses. Os espanhóis constroem um “nós” que não é o índio, mas já não é o lugar do espanhol. Realiza um deslocamento de sentidos, pois a epopéia que na essência é busca do El Dorado, é mostrada como a busca de poder e fama. - A prática simbólica deles realiza esse deslocamento, já que o El Dorado é inatingível, “Instituem um outro lugar de sentidos estabelecendo uma outra região para o repetível (a memória do dizer), aquela que a partir de então vai organizar outros e outros sentidos, a dos latino-americanos. É a isso que chamamos discurso fundador” p. 15. - Era preciso dar nomes, tornar visível, esclarecer e domesticar o acontecimento que era esse encontro com o desconhecido, o Novo Mundo. Tornar familiar uma realidade hostil. “Todo o percurso em busca do Eldorado é uma relação com a loucura com a conquista, com os sentidos do sem-sentido. Romper com o Velho Mundo e instalar o Novo a partir daquilo que encontravam. Nomes eram dados arbitrariamente, assim como eram arbitrários os limites que impunham ao acaso para ter um país configurado... Dar sentidos é construir limites, é desenvolver domínios, é descobrir sítios de significância, é tornar possíveis gestos de interpretação”. P. 15 “Constroem-se os domínios e se instituem, ao mesmo tempo, os lugares legítimos para os domínios sejam respeitados” p. 15 “Nesse cenário procuramos compreender apenas um instante fátuo e de importância crucial: os gestos fundadores, aqueles que assentam a turbulência do desconhecido e do sem-sentido no provisório descanso do que faz sentido, daquilo que acalma a relação do homem com o símbolo” p. 16. - Houve uma ruptura no mundo dos migrantes, em meio ao sem-sentido, não se reconheceram no caminho. “Daí a necessidade constante de dar sentidos ao novo, num movimento de identificação, que retorna sobre si” p. 16. “O fundador busca a notoriedade e a possibilidade de criar um lugar na história, um lugar particular. Lugar que rompe no fio da história para reorganizar os gestos de interpretação” p. 16. “...existem lendas que constituem a identidade mas não são discursos fundadores. A do Saci, a do lobisomem não são. A das Amazonas é. E o que faz dela uma lenda que é um discurso fundador?... ela faz parte da origem do país, ou melhor, ela é constitutiva da delimitação do país. O Brasil é o país das Amazonas’ p. 16. “Um fato real... era re-criado até tornar-se fantástico... Que terreno fértil esse que confunde a realidade, a imaginação (a ficção, a literatura) e o imaginário (ideologia, o efeito de evidência construído pela memória do velho mundo)” p. 17. “Nasce de um fato real, passa para o maravilhoso, se enriquece de detalhes concretos de origens diversas da experiência dos conquistadores e se tece uma trama coerente que dá verossimilhança à lenda, produzindo evidência sobre a história do país, que não pode se confundir com as lendas que se contam sobre ele... Aí se processa o mecanismo ideológico de construção imaginária da realidade com seus efeitos de evidência” p. 17. “E aí está a marca – discursiva, não conteudística – do discurso fundador: a construção do imaginário necessário para dar uma cara a um país em formação; para constituí-lo em sua especificidade como um objeto simbólico” p. 18. “O que nos importa é observar esse movimento entre o real da descoberta (sem-sentido), a fantasia (imaginação), e a ideologia (imaginário), produzindo a realidade dessa história que se está fazendo. E que produz o efeito de que a ideologia sempre está fora da história (oficial). Por seu lado, essa história aproveita, do discurso fundador, o fato de que nele há ainda uma indistinção entre imaginação, imaginário e realidade” p. 18. “A noção de discurso fundador, como podemos observar, é capaz, em si, de muitos sentidos. Um deles, que ainda não mencionamos aqui, é o que liga a formação do país à formação de uma ordem de discurso que lhe dá uma identidade” p. 18. “Em um sentido geral, assujeitar é civilizar o gentil para não exterminá-lo” p. 20. - Região de sentidos: estão os dizeres que constroem o ser brasileiro. “Preguiça, mentira, ócio, confiança desmesurada no futuro, e maus costumes, eis as qualidades que são atribuídas como naturais ao brasileiro... E que resultam na derrota do emprenho dos colonizadores” p. 21 “... o que sabe línguas, apaga a língua indígena em função do português, o que forja o ferro, o faz para os conquistadores... Não exercem suas profissões a partir das necessidades do país... Sua produção não se integra no fazer do país, mas para fazer um país. Esta é a ambigüidade dos habitantes nascentes, esta é a clivagem do discurso fundador: fazer um país (brasileiro?) para os portugueses. Divididos, diante do desconhecido e do sem-sentido, entre o que já tem uma história (uma memória) e o que resiste a um sentido que lhe vem de fora”. p. 22. “A metáfora aí é um modo de ir para o mesmo, mas produz ruptura. Isso porque no discurso fundador o opositor não existe: a história é no agora” p. 22. - O “mesmo” abriga um “outro”, um “diferente” que o constitui na aparência da mesmice. - Sítio de significância – estabelece uma nova paisagem enunciativa – a de um novo país. - Historicidade do processo discursivo: O nascimento do Acre passou por uma instauração de significado. “Pela reflexão que vimos desenvolvendo já se pode ver que o discurso fundador pode ser observado em materiais discursivos de diferentes naturezas e dimensão: enunciados, mitos, lendas, ordens de discurso, mecanismos de funcionamento discursivo etc. Fica assim em aberto a possibilidade de se explorarem materiais de qualquer natureza e dimensão. O que define o discurso fundador, a nosso ver, não são esses materiais, mas a historicidade tal como a enunciamos anteriormente...” p. 23. “...a ruptura que cria uma filiação de memória, com uma tradição de sentidos e estabelece um novo sítio de significância. O discurso fundador se faz em uma relação de conflito com o processo de produção dominante de sentidos, aí produzindo uma ruptura, um deslocamento. Não se trata pois, quando falamos em discurso fundador, de pensar em fundação de sentidos como se eles pudesse ter uma origem punctural... sentido e sujeito se constituem ao mesmo tempo e não têm uma origem circunscrita referível. O que estamos dizendo do discurso fundador contempla a instância da produção dos sentidos... A noção que se relaciona ao que estamos dizendo do discurso fundador é, na instância do sujeito, a da função do autor. O eu do autor remete a um indivíduo sem equivalente que, em um tempo e lugar determinados, cumpriu um certo trabalho, Ele se define em relação a uma obra. Mas se a função autor pode ser assim concebida (cf. Foucault, 1983) como instituindo um quadro restrito e privilegiado de produtores originais de linguagem, preferimos de nosso lado de-sacralizar essa noção e estendermos a função autoria para o cotidiano, toda vez que o produtor de linguagem se coloca na origem, produzindo um texto com unidade, coerência, não-contradição e fim... o autor é um sujeito responsável pelo que diz... Freud, Marx e Saussure são fundadores de discurso, e não apenas autores (Orlandi, 1990; 1992) ” p. 24. “... embora a noção de discurso fundador possa corresponder, no dia-a-dia, a discursos que produzem rupturas localizadas e que são função da atividade discursiva que é em si estrutura e acontecimento, portanto capaz do novo, do deslocamento na filiação da memória – preferimos guardar o nome de discurso fundador para o que se chama, em Foucault instauração de discursividade: quando os autores não são apenas autores de suas obras, mas quando produzem alguma coisa a mais: a possibilidade e a regra de formação de outros textos” p. 24. “No caso presente, analisamos justamente esse fato de linguagem: a formação de um discurso, ou seja, a situação específica do discurso fundador, que aqui estudamos não na ordem da ciência, mas no da história da formação de um país. E concluímos que é discurso fundador o que instala as condições de formação de outros, filiando-se à sua própria possibilidade, instituindo em seu conjunto um complexo de formações discursivas, uma região de sentidos, um sítio de significância que configura um processo de identificação para uma cultura, uma raça, uma nacionalidade” p. 24. “E são vários os caminhos a serem percorridos no entendimento do que seja o discurso fundador, quando se trata de pensarmos a formação de um país” p. 25. INDEPENDÊNCIA E MORTE (Eduardo Guimarães) - Aborda o enunciado “INDEPENDÊNCIA ou MORTE!” Para apreende os seus efeitos de sentido que aí se dão. “... o enunciado em questão é posto como o enunciado que inaugura a nação brasileira”p. 28 - Semântica da enunciação: considera o sentido como função da situação, onde o sujeito, como locutor, é o parâmetro organizador, sendo ao mesmo tempo, fonte, origem do sentido. “Para nós, a enunciação é histórica, portanto não se reduz a um evento em uma situação, e não se reduz tampouco a um ato do sujeito, ou de falar com alguém, ou de apropriar-se da língua... A enunciação é, então, um acontecimento de linguagem, perpassado pelo interdiscurso, que se dá como espaço de memória no acontecimento. É um acontecimento que se dá porque a língua funciona ao ser afetada pelo interdiscurso” p. 28. - A autora questiona o fato de enunciado significar em fez do acontecimento que antecedeu o 7 de setembro que foi a convocação da Assembléia Constituinte (junho de 1822). Mais significativo para a instauração da nação é a constituição, mas a frase é que marcou a história. “Esta enunciação é vista no imaginário brasileiro como inaugural da nação brasileira” p. 29. -Qual o lugar da enunciação? “A perspectiva desta enunciação é a dos proprietários portugueses e brasileiros radicados no Brasil” p. 29. O que entrou na história foi a força do imperador e não a da Constituinte ou a do povo. De quem é a independência de que se fala; de quem é a morte? Independência para os proprietários radicados no Brasil ou a morte dos mesmos. É um compromisso que D. Pedro firma com os proprietários, a declaração de independência não é uma declaração de guerra, mas a afirmação da sobrevivência, não necessariamente física, mas como classe social. “Ou seja, a enunciação inaugural da nação brasileira é uma enunciação sobre a sobrevivência dos proprietários de terras... comemorar a enunciação deste enunciado é comemorar a sobrevivência dos proprietários brasileiros e portugueses radicados no Brasil, relativamente a Portugal” p. 30 “Então, o imaginário sobre nossa independência interpreta como universal para todos os brasileiros o que era específico para uma classe social” p. 30. OS PRIMÓRDIOS DA IMPRENSA NO BRASIL (ou: de como o discurso jornalístico constrói memória) Bethania Mariani “Ao invés de propiciar a inscrição do Brasil na modernidade do século XIX, o surgimento oficial de uma imprensa brasileira reinstalou, reforçou as diferenças entre a Corte e a Colônia, entre o Velho e o /Novo Mundo, uma vez que não deu vol e vez aos brasileiros” p. 32. “Este falar sobre o Brasil a partir de jornais passa a integrar, e ao mesmo tempo divulgar, o conjunto de discursos (literários, etnológicos, políticos, religiosos, etc) que desde o século XVI vem produzindo sentidos, instaurando memória... reflexão sobe a participação da imprensa na constituição histórica da memória oficial do Brasil”. Divulgar discursos que produzem sentidos instauradores da memória nacional.- Analisar os processos discursivos que vão provendo o brasileiro de uma definição que, por sua vez, é parte do funcionamento imaginário da sociedade brasileira” p. 32. JORNAIS Capta, transforma e divulga acontecimentos, opiniões e idéias. - O jornal lê o presente e organiza o futuro. Legitima o passado a virar memória, pois regra os fatos do presente, no futuro. “... o discurso jornalístico toma parte no processo histórico de seleção dos acontecimentos que serão recordados no futuro... uma vez que ao selecionar está engendrando e fixando sentido pára estes acontecimentos, a imprensa acaba por constituir no discurso um modo de recordação do passado... o discurso jornalístico tanto se comporta como uma prática social produtora de sentidos como também, direta ou indiretamente, veicula as várias vozes constitutivas daquele imaginário.” p. 33. “O brasileiro não fala nestes jornais (Correio Braziliense e Gazeta do Rio de Janeiro), ele é falado pelo europeu” p. 33. “Em sua gênese, portanto, a Gazeta do Rio de Janeiro traz a marca de censura prévia”p. 33 – o governo nomeou por decreto censores. “Nos jornais, a auto-censura passa a ser praticada como uma forma de defesa do dizer, um dizer que se restringe à idéia de informação” p. 35. - informar é fruto de dupla censura: a) externa: a do Estado e do sistema jurídico; b) interno: a da própria atividade jornalística. Havia o efeito de transparência produzido pelo apagamento do sujeito. O JORNAL CORREIO BRAZILIENSE p. 36.; A GAZETA DO RIO DE JANEIRO (p. 39). “O tema da construção da memória histórica representa com certeza uma questão que vem sendo cada vez mais desenvolvida sistematicamente pela Análise do Discurso, sobretudo quando analisado do pondo de vista de como a história se faz materialmente presente, enquanto memória, no discurso... os processos discursivos que atuam na perpetuação e cristalização de determinados sentidos em detrimento de outros, ou seja, processos discursivos que tecem e homogeneízam a memória de uma época. O papel da memória história seria, então, o de fixar um sentido sobre os demais (também possível) em uma dada conjuntura... considerar que ocorre um silenciamento temporário dos sentidos excluídos” p. 41. “A memória é constituída por faltas, lacunas que são repletas de historicidade” p. 41. - Se a memória fosse homogênea, repetiríamos de modo infindável sentidos imutáveis. O apagamento produzido pelo discurso jornalístico “apresenta fissuras, espaços de resistência onde outros sentidos podem emergir” p. 42. MANIFESTOS MODERNISTAS: A IDENTIDADE NACIONAL NO DISCURSO E NA LÍNGUA (José Horta Nunes) - Serão analisados dois manifestos: a) Manifesto de Gilberto Freyre (1926) – é um movimento nacional pelo regionalismo; privilegia os elementos naturais; fala das curiosidades e das singularidades do Brasil a partir da perspectiva do europeu. Trata do olhar europeu que busca as coisas que mais lhe agradam. Recusa a imitação, prefere enfatizar a originalidade. O que é característico e o que lhe é pitoresco ou curioso? É o discurso sobre as curiosidades do Brasil, que, por sua vez, formam a nacionalidade. O discurso sobre a paisagem acentua o aspecto natural e substitui o que é estrangeiro. O brasileiro não é identificado com o índio. “... o Brsil é isto: combinação, fusão, mistura”. b) Manifesto de Oswald de Andrade (1928) – a antropofagia, o referencial é a cultura indígena. “... observamos o modo como se diz ‘nós’, brasileiros, no discurso, ou seja, o modo como se sustentam as posições enunciativas ao se falar quem somos, quem fomos, como nos caracterizamos etc., diante das formações discursivas em jogo quando se rala sobre o brasileiro” p. 43. A BOA NOVA DA MEMÓRIA ANUNCIADA: O DISCURSO FUNDADOR DA AFIRMAÇÃO DO NEGRO Pedro de Souza - Duais posições: a) o escravo como um instrumento passivo diante do domínio dos senhores brancos. b) o negro como um agente ativo que se rebela contra o escravismo. “Destruir, portanto, a perspectiva histórica de que os escravos não lutaram contra o cativeiro é o mote fundamental deste discurso de reação. Neste plano, a estratégia é transformar em mito a passividade do negro e estabelecer a resistência e o ativismo dos escravos como a verdade histórica” p. 59. - O autor trabalha com a questão da instituição da verdade, a elaboração da subjetividade para os indivíduos da raça negra. DISCURSO – conjunto regular de fatos lingüísticos. DISCURSO como acontecimento – “... como processo de produção de sentidos provenientes do confronto de forças analisáveis segundo coordenadas históricas de tempo, espaço e posições de poder... o que interessa observar é o processo que o instaura como discurso fundador de uma forma-sujeito num campo social preciso em que a afirmação subjetiva de um grupo do socialmente excluídos está em questão” p. 60. - Identificarmos o efeito fundador do manifesto. “Trata-se de observar, na forma lingüística e na estrutura enunciativa, o interdiscurso ou efeito do pré-construído que dá existência a um modo de subjetividade para o negro” p. 61. - Produzir no anteriormente-dito o efeito do novo.Produção do novo a partir do já-dito. “No caso do discurso fundador da afirmação do negro, é o pressuposto do conceito de verdade histórica que constitui o imaginário sustentador das referidas reconstruções parafrásicas da memória discursivas pertinente à esfera do saber historiográfico... antes de ser um fato, Palmares é uma narrativa que, conforme as condições de produção, adota a feição de uma lenda ou de uma testemunho alçado ao valor de verdade histórica” p. 65. - “Nós” é uma referência dêitica. Subjetividade negra – o eu negro. A ANTIÉTICA DA VANTAGEM E DI JEITINHO NA TERRA EM QUE DEUS É BRASILEIRO (o funcionamento discursivo do clichê no processo de constituição da brasilidade) Maria Cristina Leandro Ferreira “Assimilamos os sentidos assim produzidos pelas muitas vozes que nos definem e os incorporamos ao funcionamento imaginário da sociedade” p. 69. - Há um discurso submerso no discurso oficial – o silêncio fazendo sentido. Analisar a constituição da discursividade da brasilidade. - O estereótipo é a impressão que fica, é inalterável, o típico, o peculiar. Impregnação dos sentidos. O efeito do repetível atua na significação do estereótipo. Deslizamento de sentido – a polissemia. Não há fossilização perfeita do sentido. Patriotismo – sentidos que circulam no imaginário de uma nação. Sentir-se brasileiro, ou seja, cidadão. É uma atitude frente ao país: amá-lo. - O enunciado pode ter seu surgimento historicamente localizado. SER BRASILEIRO HOJE Luiz Francisco Dias - Analisa os processos discursivos que configuram o ser brasileiro. Como os traços de memória, enquanto materialidade discursiva, exterior e anterior à existência de uma seqüência dada, intervêm para constituí-la. “A enunciação de uma seqüência lingüística se constitui em discursividade segundo as condições históricas e obedecendo às condições formais de ordem lingüística”. P. 82-83. - A constituição do discurso é regulada pelo interdiscurso (Coutrine). - A unicidade do sujeito e da linguagem é um efeito ideológico elementar à constituição do discurso. - RAREFAÇÃO DA BRASILIDADE, impõem à linguagem a fixação de um sentido específico no lugar de memorial. - O discurso oficial é uma cristalização fixadora de uma memória de nação. A FUNDAÇÃO DE UM DESTINO PARA A PÁTRIA ARGENTINA Maria Teresa Celada - O discurso que se aponta como fundador não garante os efeitos de fundação que pretende. São vontades fundacionais. - O objetivo é acenar as modalidades de sedimentação de determinados sentidos num ponto determinado do interdiscurso.A produção de sentido é regulada. - A falta de sentido gera inquietação. Há um esforço por instaurar e legitimar uma ordem de coisas. Territorialização de práticas em função de seu relacionamento com a verdade (eficácia do dizer). - Discurso Fundador: opera como metáfora inicial de empreendimentos posteriores. “...a produção dos efeitos que atribuímos a nossa fundador é muito mais do que um reconhecimento de significações que se repetem, O discurso não seria fundador por dizer alguma coisa pela primeira vez; nem por que se possa determiná-lo a parte de evocações anafóricas que repetem ou retomam co-referencialmente aquela mesma cosia” p. 109. - O SENTIDO é uma errância, é uma dispersão sem a origem. “No discurso, por sua própria constituição, não há fundação num sentido absoluto ou num grau zero. Por isso, não se trata da procura de um limiar ou de uma origem, mas de uma interrupção de praticada nos pontos de concentração em que a constituição ou sedimentação dos sentidos pode ser reconhecida” p. 109-110. RESSONÂNCIAS FUNDADORAS E IMAGINÁRIAS DE LÍNGUA Silvana M. Serrani - O presente trabalho trata da paráfrase na análise do discurso. “... propus conceber a paráfrase enquanto ressonância interdiscursiva de significação. Aqui procurei mostrar que as ressonâncias interdiscursivas constituem mecanismos essenciais e lugar privilegiado para estudar o discurso fundador de um imaginário social...” p. 113. - O discurso fundador não é um fato datado, que se daria em uma certa época, em uma certa região. “... analisar esse discurso fundador de entendido, entendido como aquele que cria um outro lugar do qual falar” p. 116. “... uma análise do discurso fundador na perspectiva propugnada aqui, seja o enfoque da análise desse corpus... A analise , então, em vez de estar destinada a estabelecer quais presença ou ausências de signos distinguem tipos de discurso entre si, tenciona mostrar como o funcionamento discursivo de uma determinada operação lingüística permite a um conjunto de seqüências discursivas, consideradas as condições de produção, integrar (contraditoriamente) elementos de seu exterior heterogêneo”. “Como se sabe, a noção de interdiscurso remete ao exterior específico de uma Formação Discursiva (FD),[1] concebida como constitutivamente composta por elementos que provêm de fora – isto é, de outras FD – e esses elementos fornecem-lhe suas evidências discursivas fundamentais. A linearidade, a dimensão horizontal do discurso, ou seja, a cadeia do discurso, é estudada mediante a noção de intradiscurso. O que nos interessa destacar aqui é que justamente a análise dominante da dimensão interdiscursiva é que evidenciará elementos e o modo de constituição de um discurso fundador de sentidos” p. 117. “... uma das principais condições de possibilidade da Análise do Discurso é a repetição e um dos modos exemplares de realização desta é a paráfrase” p. 119 - Ressonância é uma paráfrase, ou seja, o efeito de vibração semântica em que é produzida a significação. São efeitos de sentido de determinadas construções sintático-enunciatvas, na estruturação dominante de um discurso. Metodologicamente é preciso montar uma cadeia de repetibilidade. É preciso estudar essas “...ressonâncias interdiscursivas que funcionam como marcas fundadoras da construção das representações dominantes de um determinado imaginário” p. 125. SONHANDO A PÁTRIA Os fundamentos de repetidas fundações (Mônica Graciela Zoppi Fontana) - Por que na Argentina tudo dá errado? “Como conseguir que passado, presente e futuro se alinhem ordenadamente como continuidade, como racionalidade causal?” p. 128. - Perpetuamos discursivamente o momento da fundação. - O discurso político perpetua o ato fundacional das mais diversas formas. O discurso fundador político constrói-se como o lugar do novo positivo. “... que fecharia definitivamente um passado trágico e que permitiria, então prever um futuro promissor. Assim, o discurso alfonsinista não só perfila-se como promessa de mudança, mas ocupa o lugar de garantia dessa mudança, isto é, de condição necessária para que ela ocorra” p. 131. - O dizer-se fundacional do discurso vianista é uma reformulação repetida ao longo dos anos: “Se abre uma nova etapa da história desse estado”. O passar do tempo não afeta o autoconferido caráter fundador deste discurso. É um fundar constante. “A vertigem de fundações renovadas aprisiona o devir histórico numa sucessão acelerada, na qual o passado imediato some na fugacidade de um presente de emergência projetado para um futuro iminente” p. 132. “... o grande paradoxo de um discurso que se diz fundacional é que ele se inscreve na história, negando-ª Dito de outra maneira, o caráter fundacional de um discurso não é mais do que o efeito de sentido produzido pela transmutação de dimensão temporal do acontecer histórico em mera representação do tempo, sob a forma de um relato ou narração histórica. Desta maneira, o tempo histórico torna-se uma imagem do tempo, que configura um lugar de narrador situado imaginariamente fora dele... um discurso que se pretende fundacional precisa produzir, como efeito do seu funcionamento enunciativo, uma ilusão de corte ou ruptura com os processos de sentido sedimentados como memória discursiva ” p. 133. - As fundações vianistas clausuram o passado mediato pelo fato de se construírem sobre ele, ora negando-o (esquecimento narrativo), ora fechando-o no espaço cristalizado dos rituais comemorativos. Cria a ilusão da homogeneidade e da não-contradição. - O Gesto Fundacional é aquele que permite montar uma narração histórica sustentada em certos esquecimentos estratégicos do passado, evidenciando-se como resolução imaginária do dilema fazer representável as contradições de devir históricos. - Os cortes temporais[2] constituem as fundações. O discurso vianista produz um efeito de sentido de ruptura. É uma enunciação épica do presente. “... os processos pelos quais se desenha uma imagem do passado originário, isto é, analisando a representação que se faz no/pelo discursivo, da cena originária (e mítica) das primeiras fundações” p. 135. - A DÊIXIS FUNDADORA[3] serve de sustentação discursiva para o atual gesto fundacional. O tom épico é adquirido em conseqüência de certas práticas discursivas ritualizadas de tipo comemorativo. - O vianismo opera o apagamento do passado recente, mas recupera o passado originário[4]. O vianismo legitima sua enunciação, apresenta-se como continuador e herdeiro daqueles homens visionários.Com essa inscrição no interdiscurso o gesto fundacional do discurso vianista funciona discursivamente como um re-funda. O discurso vianista mobiliza uma DÊIXIS FUNDADORA que lhe permite não só reforçar a ilusão fundacional, mas legitimar essa fundação, inscrevendo-a num processo fundador mais vasto, cuja origem coincide com as origens da nação. A revolução foi um processo não-concluso, foi retomado pelo governo pt. A ilusão da continuidade é necessária para construir a representação imaginária de uma história linear e homogênea. - Rituais discursivos da continuidade (Courtine, 1986) cuja presença produz um efeito de memória que funciona como gel histórico. Ilusão de uma história imóvel, o passado se presentifica. “... o político fica capturado nas malhas atemporais do mítico” p. 137. Congelamento imaginário do tempo histórico. O presente funciona como o lugar imaginário onde o tempo pode ser apreendido discursivamente na sua totalidade. Presente épico – grávido da presença do passado – saturado de agoras, imobilizado no tempo pelos efeitos de memória. O tempo atual é definido como decisivo, pura obra de titãs, o momento requer agir heróico. Basta observar os rituais comemorativos instaurados como prática freqüente durante o mandato do PT. - A luta pelo sentido estabelece laços com o passado ou impõe rupturas. Tudo é construído pelo discurso. “...o discurso da organização nacional, funcionando como memória discursiva, constitui-se como o discurso fundador dos processos de significação que sustentam os efeitos de sentido produzidos no discurso alfonsinista” p. 147. SENTIDO, SUJEITO E ORIGEM PAUL HENRY “Meu propósito aqui é medir as conseqüências do fato de que não é possível dar ao problema do sentido e da significação, tal como ele coloca aos lingüistas, uma respostada definitiva. Vou sustentar que essa questão só pode permanecer aberta” p. 151. - não há um código genético na palavra. “A análise do discurso que tenta produzir, como resultado da análise, certas relações de paráfrase ou de equivalência semântica, de metáfora ou de metonímia, ao invés de tomá-los só como dados, ao invés de, por exemplo, opor a priori um sentido próprio e sentidos derivados... a categoria de discurso implica uma des-individualização do sentido e da significação” p.162. BIBLIOGRAFIA BENJAMIN, Walther. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultural. São Paulo: Brasiliense, 1987. GOLDMAN, N. O discurso como objeto da história. MAINGUENEAU, D. Gênese do discurso. [1] Formação Discursiva é o espaço de reformulação-paráfrase, onde é determinado o que pode e deve3 ser dito em uma situação dada, de uma conjuntura histórica determinada. [2] A partir dos quais se pode começar tudo de novo. [3] Conceito definido por Maingueneau como “As situações de enunciação anteriores que a dêixis atual utiliza para repetição e da qual retira boa parte de sua legitimidade”. [4] É produzido pela deixis fundadora a partir do mecanismo de presentificação.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

O nascimento do sentido: uma fundação sem origem certa

Por: Eduardo Carneiro. A essa aspiração tão comum, a instituição responde de modo irônico; pois que torna os começos solenes, cerca-os de um círculo de atenção e de silêncio, e lhe impõe formas ritualizadas, como para sinalizá-los à distância (FOUCAULT, 2007) O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem – é a discórdia entre as coisas, é o disparate (FOUCAULT, 2001).
Uma das grandes diferenças entre a Análise do Discurso e a lingüística tradicional é o fato dela não defender a imanência do sentido, ou seja, um significado primeiro, original, imaculado e fixo capaz de ser localizado no interior do significante. Pêcheux já dizia que “o sentido de uma palavra, expressão, proposição não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que elas são produzidas” (apud BRANDÃO, 1993, p. 62). O que implica na inexistência de uma originalidade semântica no âmago de um signo.
A Análise do Discurso acredita na multiplicidade de sentidos, para ela todo signo é polissêmico. Tanto é que um único significante pode passar por inúmeros processos de significação. E, como afirma Barthes (1993, p. 136-141), o próprio signo pode transformar-se em simples significante de outro signo, em uma dada situação, e, igualmente, um mesmo significado pode ser encontrado em vários significantes. Portanto, o sentido possui um caráter movente. A respeito disso Gregolin (2001, p.10) afirma: Inserido na história e na memória, cada texto nasce de um permanente diálogo com outros textos; por isso, não havendo como encontrar a palavra fundadora, a origem, a fonte, os sujeitos só podem enxergar os sentidos no seu pleno vôo. A identidade do signo é uma aparência facilmente desmascarada. Por trás do significado dicionarizado há uma rede de discursos e de poderes que promoveu a construção da monossemia, que é histórica e ideologicamente naturalizada. Mas as margens que limitam o significado são porosas, o que permite o deslizamento, o fazer-se outro, o estar sempre incompleto. O que se quer dizer com tudo isso é que é impossível encontrar a origem pontual do sentido, bem como sua essência constituinte, pois ambas não existem. E mesmo que existissem, não seria possível vislumbrá-las tanto devido à opacidade da linguagem, que impede a visualização lúcida de seu interior, quanto ao olhar do sujeito observador, que é constitutivamente oblíquo por conta da ideologia.
É por isso que a Análise do Discurso fala em efeito de sentido. O próprio discurso é considerado como um efeito de sentido entre interlocutores. Assim, é inútil procurar a origem do sentido ou do discurso, pois ir ao encontro de uma suposta genealogia deles é o mesmo que ir ao encontro da matriz discursiva que a fundou. Foucault (2001, p. 17-18) explica que: A pesquisa, nesse sentido, se esforça para recolher nela (a origem) a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo o que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é tentar reencontrar o que lhe era imediatamente [...] é querer tirar todas as máscaras para desvelar, enfim, uma identidade primeira [...] De fato, ela é apenas uma invenção das classes dominantes. O que se encontra no começo histórico das coisas não é a identidade ainda preservada da origem - é a discórdia entre as coisas, é o disparate. A história ensina também a rir das solenidades da origem. A alta origem é o exagero metafísico que reaparece na concepção de que no começo de todas as coisas se encontra o que há de mais precioso e de mais essencial [...] gosta-se de acreditar que as coisas em seu início se encontravam em estado de perfeição; que elas saíram brilhantes das mãos do criador, ou na luz sem sombra da primeira manhã. A origem está sempre antes da queda, antes do corpo, antes do mundo e do tempo; ela está do lado dos deuses, e para narrá-la se canta sempre uma teogonia. Foucault foi contra a busca da origem, seja em qualquer área do conhecimento. Segundo ele, era preciso ser um metafísico para “procurar uma alma na identidade longínqua da origem” (2001, p. 20). Devido à polissemia do signo, a sua história é descontínua, portanto, sem referência ou coordenada originária, uma verdadeira “miríade de acontecimentos perdidos” (idem, p. 29).
Então, em que consiste o trabalho do analista do discurso nessa discussão da origem do sentido/discurso? O analista desmascara o mito da origem. Ele vai ao encontro do que dizem ser o arché do sentido ou do discurso, para revelar a maneira como foi construído, as condições que possibilitaram a sua emergência no universo discursivo. É fazer desaparecer e reaparecer as contradições, é esfumaçar o núcleo constituinte que dizem ser o portador da verdade semântica. As condições de emergência: pistas em um labirinto sem fim
O discurso é sempre relacionado às suas condições de produção (ROBIN, 1977)
A busca da origem é um tema vencido para a Análise do Discurso. Como já foi visto, é impossível chegar ao momento fundador do discurso. A heterogeneidade constitutiva do discurso remete a origem para o infinito sem fim das relações interdiscursivas.
Apesar da impossibilidade de encontrar o grau zero do discurso, o analista pode descrever as condições que possibilitaram o aparecimento da lei discursiva que o regrou, uma vez que, o “discurso é geralmente definido como um enunciado emitido sob condições ou produção definidas(COURTINE, 2006, p. 65)”. E essa é a grande tarefa da Análise do Discurso, pois Paveau (2006, p. 202) a define como “a disciplina que estuda as produções verbais no interior de suas condições sociais de produção” [grifo nosso].
Portanto, é possível compreender uma fundação através das condições de sua emergência. E tais condições, segundo Orlandi (2005, p.30), compreendem “fundamentalmente os sujeitos e a situação. Também a memória faz parte da produção do discurso”.
Encontrar as regras que geram o aparecimento de um discurso é determinar as condições sócio-históricas que permitiram que tal discurso fosse pronunciado, circulado e arquivado. O arquivo representa a lei que regra o que pode e deve ser dito num dado lugar, numa dada época, ou seja, o “jogo de regras que, numa cultura, determinam o aparecimento e o desaparecimento de enunciados, sua permanência e seu apagamento, sua existência paradoxal de acontecimentos e de coisas” (FOUCAULT, 2005, p.147). O tipo de unidade discursiva procurada não é nem formal nem retorça; não residindo nem nas coisas, nem nas palavras, nem na forma e na retórica; esse tipo também não reside no recorte do universo científico ou pseudocientífico em disciplinas, tampouco na figura do tema ou na do autor. Esse objeto não é constituído pelo discurso, mas pelas condições de possibilidade dos discursos, o campo problemático que lhes assinala um certo modo de existência e que faz com que, em determinada época, em determinado lugar, não se diga, não se diga absolutamente qualquer coisa (ROBIN, 1977, p. 93). O arquivo dá aos textos dispersos uma pseudo-unidade-identidade. Cabe ao analista descrever a regularidade que atravessa esses textos dispersos. Essa regularidade é que sustenta a fugaz estabilização do sentido e quem fornece as pistas para explicar os motivos da pobreza ou raridade enunciativa. Como explica Machado (1981, p. 162): Assim, será preciso definir, na análise dos discursos, um campo de possibilidades temáticas, a regra de formação dos temas possíveis. Os discursos, portanto, não têm princípios de unidade. E daí surge a idéia de analisá-los como uma pura dispersão. A dita unidade de um discurso, com uma ciência, por exemplo, unidade essa procurada ao nível do objeto, do tipo de enunciação, dos conceitos básicos e dos temas, é na realidade uma dispersão de elementos. É por isso que o discurso deve ser analisado enquanto prática do elemento do arquivo, pois, quando é produzido, automaticamente já se filia a uma rede tecida por outros discursos com semelhantes escolhas e exclusões: Uma rede, e pensemos numa rede mais simples, como a de pesca, é composta de fios, de nós e de furos. Os fios que se encontram e se sustentam nos nós são tão relevantes para o processo de fazer sentido, como os furos, por onde a falta, a falha se deixam escolar. Se não houvesse furos, estaríamos confrontados com a completude do dizer, não havendo espaço para novos e outros sentidos se formarem. A rede, como um sistema, é um todo organizado, mas não fechado, por que tem os furos, e não estável, por que os sentidos podem passar e chegar por essas brechas a cada momento. Diríamos que o discurso seria uma rede e como tal representaria o todo; só que esse todo comporta em si o não-todo, esse sistema abre lugar para o não sistêmico, o não representável (FERREIRA. In: INDURSKY, 2005, p. 20). O aparecimento do discurso é regulado porque há conscientemente ou não o desejo de apresentar à posteridade uma imagem positiva de si. E isso acontece através da repetição do sentido por meio de uma rede parafrástica, que indica qual a ordem do discurso vigente. A repetição forja uma identidade ao discurso, porém a unidade não passa de um efeito de sentido tecido pelo próprio discurso: Foucault (1969) concebe os discursos como uma dispersão, isto é, como sendo formados por elementos que não estão ligados por nenhum princípio de unidade. Cabe à análise do discurso descrever essa dispersão, buscando o estabelecimento de regras capazes de reger a formação dos discursos. Tais regras, chamadas por Foucault de regras de formação, possibilitam a determinação dos elementos que compõem o discurso, a saber: os objetos que aparecem, coexistem e se transformam num espaço comum discursivo; os diferentes tipos de enunciação que podem permear o discurso; os conceitos em suas formas de aparecimento e transformação em um campo discursivo, relacionados em um sistema comum (BRANDÃO, 1993, p. 28). E a grande pergunta que se faz é: por que apareceu nessa situação esse discurso e não outro em seu lugar? A resposta mostra o vínculo que o discurso mantém com o desejo e com o poder, pois em todas as sociedades, como supõe Foucault (2007, p. 9): “a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certos números de procedimentos que tem por função conjurar seus poderes e perigos”. Por esse motivo, esse filósofo propõe como deve ocorrer a análise do campo discursivo: Trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. Não se busca, sob o que está manifesto, a conversa semi-silenciosa de um outro discurso: deve-se mostrar por que não poderia ser outro, como exclui qualquer outro, como ocupa, no meio dos outros e relacionados a ele, um lugar que nenhum outro poderia ocupar (FOUCAULT, 2005, p. 31) [grifos nossos].

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

“TUDO FOI FEITO POR AMOR À PÁTRIA”.


A burguesia enganava o povo, ocultando os verdadeiros fins da guerra, seu caráter imperialista, de anexação. Todos os governos imperialistas declararam que faziam a guerra em defesa da pátria (Lênin)
Pátria serve como pretexto para a guerra (José Arbex)
O patriotismo é um instinto egoísta (Spencer)


Voltemos àquele enunciado do capítulo anterior: “A Revolução Acreana foi muito mais que uma guerra [...] foi, na verdade, um momento singular onde foram estabelecidos os signos que ainda hoje trazemos em nossa identidade mais essencial [...] antes da Revolução não havia acreanos” (VIANA, Jorge. In: CALIXTO, 2003).

Uma pergunta ficou solta no “ar”: quais são esses “signos” que os acreanos trazem até hoje em sua “identidade mais essencial”? Várias respostas seriam possíveis, destacamos duas: o heroísmo e o patriotismo.


Ambos são tratados aqui como acontecimentos discursivos que se realizam nas malhas da história, formando arquivos, ou seja, uma ordem do discurso desejada. “A verdade não existe fora do poder”, já dizia Foucault (2001, p. 12). Tanto um como o outro formam uma positividade dentro do discurso fundador do Acre, uma unidade discursiva ou uma continuidade temática preservada através do tempo. Comecemos a análise arqueológica pelo patriotismo.



Quem primeiro mobilizou os seringalistas a apoiarem um movimento contrário ao governo boliviano na região foi José Carvalho, secretário do superintendente do município amazonense de Floriano Peixoto, região banhadas pelos rios Acre, Iaco e Alto Purus.



Em fins de abril de 1899, à revelia do governo amazonense que preferia não envolver funcionários públicos na questão, pois temia represálias vindas do Governo Federal, José Carvalho, em nome do povo da região, confronta oficialmente a administração boliviana nas “tierras de la goma”, intimando-os a saírem do Acre imediatamente.



A decisão não foi um ato impensado. Na casa do seringalista Joaquim Victor, no local “onde nasceu a idéia de expulsar o delegado boliviano e a respectiva delegacia” (CABRAL, 1986, p. 33), “reuniam-se de preferência os conspiradores para combinar um plano seguro de rebelião” (COSTA, 2005, p.115). Nesse local,

pesavam-se ainda os prós e os contras da atitude a assumir, não só de rebelião contra a Bolívia, também contra o governo federal. Esse aspecto da questão apresentava-se como o mais sério. E uma pergunta surgia: como o governo brasileiro receberia a atitude dos acreanos, de hostilidade à Bolívia, ele que os abandonara reconhecendo os direitos bolivianos sobre o território? (Idem, p. 116) [grifo nosso].

Era preciso encontrar uma justificativa que tornasse o descumprimento dos acordos internacionais aceitável perante a opinião pública nacional, que nunca os apoiaria caso a ordem do discurso fixasse como motivação maior daquela atitude a defesa da propriedade e dos impostos. Uma justificativa mais nobre foi encontrada: o “amor à pátria” serviu perfeitamente àquela ocasião.



José Carvalho era advogado formado em Pernambuco, Estado considerado um dos principais pólos insurrecionais do país. Além do mais, vinha de família tradicional, ele foi “bisneto de Bárbara Alencar, a heroína da revolução pernambucana de 1817” (TOCANTINS, 2002, p. 239). Obviamente, Carvalho tinha uma base filosófica liberal, pois os iluministas eram estudados nos cursos de Direito.



A Era das Revoluções (1789 -1848) espalhou a ilustração para a maioria das academias ocidentais. Durante as revoluções liberais, o discurso patriótico foi uma retórica privilegiada das elites urbanas.



Era na cidade que o liberalismo tomava “forma de conspirações militares” (RÉMOND, 2002, p.35), pois ali, as guerras eram planejadas em defesa dos interesses econômicos dos homens de posse. O individualismo foi reinante no período liberal, no entanto, o altruísmo patriótico foi quem justificou as mais bárbaras atrocidades feitas em nome do capital.



No período liberal, o patriotismo ainda estava ligado exclusivamente ao país ou ao lugar/região onde se nascia. Somente no século XX o patriotismo se identificaria à nação, expandindo o alvo da fidelidade para os costumes e tradições da comunidade, ou seja, para a identidade coletiva.
Quando o discurso liberal emprega vocábulos como “nós” e “povo”, não significa que haja uma identificação coletiva ou uma comunidade formada. São efeitos de sentido que simulam ser de “todos” o que era apenas de uma minoria. Um exemplo clássico disso foi a primeira constituição norte-americana. Ela inicia com a frase: “Nós, o povo dos Estados Unidos”. Que povo era aquele? Os índios? Os negros? Os imigrantes? Certamente que não.



José Carvalho fez uso dos signos da filosofia iluminista. Essa interdiscursividade marcou a gênese do Acre. Patriotismo, heroísmo, vontade soberana do povo, por exemplo, são categorias que contribuíram na nomeação dessa comunidade.



Mas que “povo” era esse? Todos sabem que a sociedade gomífera foi rigidamente verticalizada, o seringueiro não fazia nada sem a permissão do patrão. Que patriotismo era esse? Tal sentimento se desenvolve melhor em cidades fortemente politizadas e não em meio à floresta com indivíduos analfabetos. Que vontade soberana do povo era essa? A região abrigava uma das mais desumanas empresas econômicas até então vista no Brasil, que isolava e semi-escravizava o seringueiro.



Mas foi exatamente essa idéia de “povo do Acre” (CARVALHO, J. apud AGUIAR, 2000, p. 27) e de “patriotismo” (idem, 2002, p. 24) que instaurou a discursividade da comunidade acreana. Carvalho dizia: “nós aqui defendemos a honra da pátria arrancando do domínio estrangeiro o Acre que é nosso, que nos pertence, custe, embora, o sacrifício de nossa vida!” (idem, p. 34).
Outro personagem que fez uso de signos liberais para fundar a comunidade acreana foi Luiz Galvez. Nesse caso, a situação era mais cômica, pois se tratava de um espanhol defendendo uma pátria estrangeira, para onde havia imigrado há pouco tempo. Tão hilariante foi a chegada dele em Antimari que Leandro Tocantins diz que “a população tomou Galvez por boliviano” (TOCANTINS, 2001, p. 324).



Galvez mais assimilou o discurso liberal dos iluministas bem mais que José Carvalho, pois foi estudante de Direito na conceituada Universidade de Madrid e falava fluentemente cinco idiomas, conforme afirma Osório Figueiredo (2007, p. 30). Devido a isso, teve a oportunidade de se tornar diplomata e respirar os “ares” republicanos de vários países. Não foi à toa que Galvez escolheu o diz 14 de julho para proclamar o Estado Independente do Acre. “A data fora escolhida de propósito, em comemoração à queda da bastilha, acontecida há 110 anos” (FIGUEIREDO, 2007, p. 31). Abaixo está o Brasão de Armas do Estado Independente:
Figura 11 – Fonte: AGUIAR, 2000, p.41.

Chamado por Barros (1993, p. 38) de “demagogo e figurante, escolhido a dedo”, Galvez não só se aventurou em entrar na ordem do discurso patriótico como também foi um dos principais interlocutores dela entre os acreanos. “Sua participação, embora alguns o tenha como quixotesca, despertou o sentimento patriótico de toda aquela gente, gerando o espírito de civismo acreano” (FIGUEIREDO, 2007, p.30). Logo abaixo, um trecho do discurso feito por Galvez no momento da proclamação do Estado Independente do Acre em 1899:

Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecemos, passivamente todos os julgamentos de alta e baixa justiça praticados pelo Delegado nacional da Bolívia, na esperança que nossa idolatrada Pátria e gloriosa e humanitária Nação brasileira acudisse em nosso socorro e atendesse nossos justíssimos pedidos. O governo do Brasil não respondeu aos nossos patrióticos alarmes; a Pátria, a nossa estremecida mãe personificada em grupo de valentes [...] os habitantes destas regiões pertencem à livre e grande Pátria brasileira! É justo, pois que cidadãos livres, conhecedores dos seus direitos civis e políticos, não se conformem com estigma de párias criado pelo governo de sua pátria, nem podem, de forma alguma, continuar sendo escravos de uma outra nação – a Bolívia. Impõe-se a independência destes territórios [...] é necessário levantar nossa honra pela Bolívia depreciada [...] se não aceitais a independência continuaremos a sofrer humilhações que nos impõem uma nação estrangeira. (apud AGUIAR, 2000, p.54, 55) [grifos nossos].

Ouvir o “dom-juan” (BARROS, 1993, p. 33) expressar sentimentos de amor ao Brasil realmente era patético. Mas esse discurso foi “uma demagogia necessária para o gênero do papel que estava desempenhando” (TOCANTINS, 2001, p. 326). Afinal, “era o melhor caminho para exaltar o amor cívico, assim como persistir no estilo derramado de patriotismo [...] tinha em mira comover os brios regionais dos que escutavam a oração” (idem, p. 327).

Bizarra aquela República? Sem dúvida, mas os proprietários mais abastados e esclarecidos sabiam que, sem a Ordem, sem que aquela vasta região, com seus milhares de habitantes fosse política e juridicamente organizada, mais difícil se tornaria a acumulação e circulação de capital. Desde que Galvez organizasse o recém criado Estado, de modo a não obstar o fluir da riqueza advinda da exploração da força de trabalho nos seringais, eles, os patrões, também poderiam tolerar as bizarrices humanitárias de seu presidente [...] Convivendo no reino do caos, grande número de patrões sabiam o quanto o estado de anomia representava um entrave à acumulação, uma acumulação pseudofáustica diríamos nós. (CALIXTO, 2003, p. 158) [grifo nosso].

Até o próprio coronel Plácido de Castro entrou nessa ordem arriscada do discurso, afirmando que lutava “pela integridade da pátria” (apud CASTRO, 2002, p.136. cf.: p.137). Como já foi falado, pátria para todos os chefes revolucionários era o mesmo que país. Plácido de Castro, por exemplo, se dizia respeitador de “todas as disposições do Governo de nossa Pátria” (idem, p.139. cf.: p.140).



Se José Carvalho falava em “povo do Acre”, Plácido de Castro já se referia ao “povo acreano” (CASTRO, 2002, p.179). Fez essa menção em seu relatório sobre as ações de seu governo à frente da prefeitura do Alto Acre (1906-1907) entregue ao Ministro da Justiça.
Essa mudança é significativa. Não se referia mais ao povo brasileiro que habitava no Acre, mas a um conjunto populacional específico, com identidade própria. Dessa forma, o discurso fundador da comunidade acreana se consolida de vez, pois afirma ser real o que era apenas uma comunidade imaginada.



Mas o fato de ele ter dito não lhe faz autor de nada. Pois o discurso já nasceu sob as malhas do interdiscurso. Havia uma memória discursiva com a qual dialogava. O próprio Manifesto dos Chefes da Revolução Acreana, escrito em 1900, já falava em “levantamento patriótico do povo acreano” (BRAGA, 2002, p. 11) [grifo nosso]. Além do mais, o poema escrito por Francisco Mangabeira, em 1903, já nomeava de “acreano” os habitantes daquela região.

No ano de 1903, surge o primeiro poema, cujo tema é a Revolução Acreana. Por ter sido escrito no Acre, voltando-se para o público local, pode ser considerado a primeira tentativa de representação literária para dizer o que pode ser o Território e seu povo (SILVA, 1996, p.90).

Na época, nem todos concordavam com o malogro do discurso patriótico dos chefes da revolução. Achavam que o idealismo não era o melhor traço que caracterizava aqueles aventureiros. No entanto, muitas vozes foram sufocadas para que o arquivo do patriotismo fosse montado. Vejamos o que diz o jornal Pátria, do dia 6 de julho de 1899:

O fundo desse quadro triste em que os traidores da pátria transformaram a esplendorosa região do Acre [...] julgaram encontrar asada ocasião para, patrioticamente, roubarem o suor do incauto habitante do Acre [...] essa rebelião [...] não subsistirá jamais porque ali o que impera é a ambição desordenada, porque dali fugiu os sentimentos generosos, porque ali o mal tem guarida e a traição subsiste! [...] empregara a chantagem e a chantagem reuniu adeptos; mentiram e a mentira congregou entorno de uma bandeira despedaçada os que deixaram se amasiar pelo canto da sereia, belo mais traidor, harmonioso, mas desgraçado [...] Para roubar, vestiram mendaz capa de patriotismo, cobriram os rostos com a máscara de fingido amor à pátria. (n° 205, p.1) [grifos nossos].

A lei discursiva do patriotismo regra até hoje a historiografia acreana. Para o Senador Tião Viana (PT-Ac), “ambos, líder e liderados, embalados pelo ritmo das vazantes e das cheias, viram crescer em seus corações o orgulho de ser brasileiro” (In: CASTRO, 2002 p. 6) [grifo nosso]. Araújo Lima (1998, p. 19) referiu-se à existência de um “patriotismo incandescente dos guerrilheiros acreanos”. Para Craveiro (2005, p. 190), a chamada revolução acreana foi “a maior e mais patriótica em que já se envolveram brasileiros”. E até autores da envergadura de Arthur Cezar Ferreira Reis (1953, p. 114) fez circular esse discurso:

Profundamente amante da pátria, nas campanhas pela integração do Acre ao Brasil foi uma vontade e uma energia cívica constantes a serviço dos objetivos da revolução que Plácido de Castro chefiou, no ciclo final, daquela peleja cívica.

Em suma, segundo os chefes da revolução acreana o “desejo de ser brasileiro” foi o motivo da “luta patriótica dos seringueiros” (CRAVEIRO, 2005, p. 179). Esse “signo” é, até hoje, um distintivo da comunidade acreana. Como afirma o ex-governador do Acre: “O Estado do Acre é uma das partes mais legítimas do território brasileiro. É feito por um povo que se orgulha de ser brasileiro, porque lutou para isso” (VIANA, Jorge. apud Jornal Página 20, em 06 de agosto de 2005).