segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Carneiro, Eduardo de Araújo. Não foi revolução nem acreana. /Eduardo de Araújo Carneiro. Rio Branco: EAC Editor, 2021, 191 p.: il.

 


INTRODUÇÃO

 

            Essa obra é parte do relatório de pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) entre agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, a saber: teria sido a anexação das terras banhadas pelo rio Acre uma dádiva dos heróis acreanos?  

Os livros que lia sobre o assunto me diziam que sim, a publicidade governamental divulgada nas datas comemorativas e os discursos que anualmente ouvia nas paradas cívicas também. Porém, suspeitava de que havia algo de “podre no reino da Dinamarca”, como diria Hamlet, no livro de Shakespeare.

          Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na historiografia acreana e sim a ausência de algumas personalidades que eu, inocentemente, também considerava dignos de mesma honra.

Obviamente que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes acontecimentos”. Sei que os “homens” e os “acontecimentos” não são “grandes” nem “pequenos” em si mesmos. A valoração ou depreciação deles depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que sempre tem suas narrativas documentais preservadas.

  Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por interesses econômicos, como foi o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar os fatos e avaliar quais deles realmente foram decisivos para a nacionalização da região do Acre ao Brasil. E foi isso que fiz em meus livros anteriores e é o que continuo fazendo neste.

O livro foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de “revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política na Questão do Acre. No segundo capítulo, mostro a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre, pré-requisito fundamental da anexação.

No terceiro, explico que os embates militares contra os bolivianos em fins do século XIX se deu em território administrado, embora ilegalmente, pelo Estado do Amazonas. E que o termo “Acre”, na época, significava tão somente um rio que fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense de Floriano Peixoto. Portanto, a suposta “revolução” foi adjetivada como acreana por ter os seus principais eventos ocorridos às margens do rio Acre que, naquela ocasião, fazia parte da jurisdição do Estado do Amazonas.

Esse livro faz parte de um projeto revisionista que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consiste em atitudes relativamente simples, por exemplo, no caso do processo de nacionalização das terras que vieram a se chamar Acre, em descentralizar a figura de Plácido de Castro da narrativa. Dando ao mesmo uma posição mais realista, portanto, secundária.

Afinal, ele não era o mentor intelectual da dita “revolução”, apenas foi inserido pelos amazonenses em um projeto de resistência à soberania boliviana já em andamento. A vitória em Puerto Alonso em janeiro de 1903, não anexou um palmo de terras sequer ao Brasil, no máximo, tornou-o independente. Sem dizer que não foi definitiva, já que mais soldados bolivianos se dirigiam ao local para a desforra e a região já estava “arrendada” para o Bolivian Syndicate, consórcio internacional diante do qual Plácido de Castro não significava nada.





Outra coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução ocorrida na parte sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os mesmos sentidos que têm hoje. Eles gozavam de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos atualmente têm.


Para tentar reconstituir o passado com maior fidelidade, procurei compreender as fontes documentais da época a partir das suas condições históricas de produção. Procurando entender as palavras inseridas nos documentos a partir do imaginário da época. Fiz isso por suspeitar de que as palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” não eram as mesmas de hoje, pois podia se tratar de palavras homônimas - aquelas que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos particulares, constituem-se em signos distintos.

Isso acontece porque o sentido de um vocábulo não lhe é imanente e sim convencional. A depender da situação comunicacional e dos interactantes, o sentido das palavras podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra já não é mais a mesma, ela se fez outra, embora com a mesma grafia.

Foi, por isso que fiz, às fontes documentais produzidas em fins do século XIX, a seguinte pergunta: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” naquele contexto histórico amazônico? Teria a palavra “revolução” sido empregada na época da chamada Questão do Acre com a mesma força conceitual daquela aplicada na França em 1789? Por que optaram pelo termo revolução e não subversão, rebelião ou revolta?

Eu defendo que o conflito armado entre brasileiros e bolivianos foi mal “etiquetado”. O fato de o evento às margens do rio Acre ter sido qualificado como revolução não é suficiente para transformá-lo em uma revolução.

As etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se diz “História Moderna”, cria a falsa ideia de que todos os fatos ocorridos na Europa, durante os séculos XV e XVIII, tenham sido “avançados”. Acontece que não dá para aceitar como obra do progresso, fenômenos como o colonialismo, o poder absolutista, o tráfico de seres humanos, as guerras religiosas, etc.

Sendo assim, a opção pelo adjetivo “moderno”, só se torna compreensível, se considerada a inserção dele em um projeto etnocêntrico da História. É o mesmo caso das chamadas “Grandes Navegações”, etiqueta criada para nos induzir a acreditar que as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV foram as primeiras do mundo. A verdade é que os chineses já dominavam os mares antes dos europeus e isso com tecnologias bem mais avançadas.

E os fatos políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Até que ponto não é mero “preciosismo” chamá-lo “Revolução”? Acaso a utilização da etiqueta “Revolução de 1930” não foi uma decisão política de dissimular o Golpe de Estado? Ou uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia?

.

Será esse o mesmo caso da dita “revolução acreana”? A utilização do termo não estaria inserida em um projeto de comoção pública nacional em favor da causa? Além disso, por que eu deveria acreditar cegamente no que estão dizendo? Não seria melhor analisar os documentos primários à luz das relações de poder daquele contexto histórico?

Se alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que, pelo Código Penal em vigor, demonstrou ser um criminoso, por que eu tenho que render-lhe tributos? Não seria mais sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu?

Acaso a fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja como herói e não como um assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não fora um mero fetiche usado para encobrir os verdadeiros interesses em jogo?


Infelizmente, essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de “penduricados” ideológicos e “etiquetas” classificatórias. Então, a história consumida como verdade na escola é apenas uma visão cômoda, romântica e apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania consciente e a atuação política crítica no tempo presente.

A história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela, até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.

Há, porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que se torna muito difícil mudar-lhe os enfeites. Isso porque eles agradam a “gregos e troianos”, pois é útil politicamente, independentemente da classe dominante vigente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Não é em vão que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece até hoje “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.


Independente do grupo político que governa o Acre, no dia 6 de agosto, feriado estadual em que se comemora o início da chamada Revolução Acreana, os políticos da sempre exaltarão o feito e manifestar o orgulho de ser acreano. Nas paradas cívicas, redes sociais ou tribunas, os políticos, independente de partidos, farão questão de dizer que os acreanos foram os únicos a lutarem para ser brasileiros. Diante de um passado original supostamente tão grandioso, persuadem os acreanos a serem otimistas no tempo presente, confiando em seus líderes, que aparecem como candidatos a novos heróis.

Como historiador, já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano, com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico, patriótica, cordial e ecológico. Entretanto, quando a verossimilhança é ensinada como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.  

Os fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a suposta grandeza do povo acreano, porém, o resultado já não é mais a História, e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada” ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático, festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.

Sob o efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.



Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos devido ao consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate. Afinal, o consentimento da sociedade em torno de uma memória não é capaz de transformar essa memória em história, muito menos em verdade. A memória, assim como as tradições em torno dela, pode ter sido inventada. A aceitação coletiva pode gerar um consenso em torno de um passado que nunca tenha existido de fato.

 

 Boa leitura!

Rio Branco, 18 de dezembro de 2020.