domingo, 27 de março de 2016

Bezerra, Maria José. Invenções do Acre: um olhar social sobre a história institucional da região acreana. Rio Branco: EAC Editor, 2016, 332 p.

SUMÁRIO



PREFÁCIO (Prof. Dr. Valdir Calixto)
07


INTRODUÇÃO
09


1. A INVENÇÃO DO ACRE ESTRANGEIRO
16


2. A INVENÇÃO DO ACRE BRASILEIRO
68
2.1 Os que mandavam
84
2.2 Autonomia já!
100


3. A INVENÇÃO DO ACRE EMANCIPADO
113
3.1 O Acre quer ser Estado
115
3.2 E mulheres foram à luta: as legionárias do Acre
148


4. OS PARTIDOS POLÍTICOS E A MEMÓRIA DOS MILITANTES ACREANOS

167
4.1 Os partidos políticos brasileiros em foco
168
4.2 A voz do passado: os militantes acreanos
183


5. A INVENÇÃO DO ACRE VIÁVEL
223
5.1 O grito da floresta
250
5.2 A floresta envergonhada e as novas representações da auto­nomia acreana

276


CONCLUSÃO
300


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
311





PREFÁCIO                                                                        

A escrita da história, a historiografia, emerge de uma relação intersubjetiva, no tempo entre quem escreve – neste caso o historiador – e seu objeto: o fato, em toda sua complexidade, pois que é construído pelo homem, interagindo com sua cultura ou culturas outras, com a natureza, com sua ou com outras polis. Compreende-se, pois, que, emergindo desta complexa intersubjetividade, resulte a escrita da história, a produção historiográfica propriamente dita. É este o caso da obra de Maria José Bezerra, Invenções do Acre – um olhar social sobre a história institucional da região acreana.
Com invejável maestria na análise e interpretação das fontes primárias; fundamentada teoricamente na leitura de uma rica bibliografia, onde se destacam obras de autores dotados de diferenciadas, mas combativas, visões humano-sociais de mundo, como Zygmunt Bauman, Cornelius Castoriadis, Michel Foucault, Ernesto Laclau, Marilena Chauí e Michael Lowy; dominando admiravelmente a técnica das entrevistas, com comentários pertinentes, muitas vezes próximos a uma narrativa poética, a historiadora Maria José tece com segurança seu tear de Clio.
Nada escapa à consciência histórica e arguta de Maria José. Ao longo dos memoráveis cinco capítulos, que conformam sua narrativa, expõe, com argumentação livre de qualquer submissão à ‘razão pura’, desde a intrincada e complexa dança das linhas (dos limites geográficos), que acabariam por desaguar na “revolução acreana”, até os momentos decisivos do igualmente intrincado jogo de interesses de partidos políticos, lastreando a transição do status quo ante, ou seja, a mudança de Aquiri - Território - para Estado federado.
Nada escapa, repetimos, à consciência arguta da historiadora! Memoráveis, também, são as páginas em que Maria José resgata a participação das mulheres no movimento pró-autonomia política do recém inventado Território.
Este belo livro, que ora o leitor tem em mãos, torna-se para sempre leitura obrigatória em todas as estantes públicas ou particulares brasileiras, não somente por sua notória contribuição à historiografia regional acreana, mas, sobretudo, por sua mensagem de esperança de que novos dias sobrevenham, sepultando, de vez, a barbárie civilizada de ontem e de hoje.

 Prof. Dr. Valdir de Oliveira Calixto, professor de história aposentado da Universidade Federal do Acre.



INTRODUÇÃO

Este livro torna público junto a um número mais extenso de leitores, os estudos e pesquisas desenvolvidos durante o doutorado em Ciências, na área de História Social, que realizamos através do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade de São Paulo, no período de 2003 a 2006. Ressaltamos que a problemática da pesquisa Invenções do Acre foi trabalhada sob o prisma do poder político institucionalizado, na perspectiva de demonstrar que o Acre é uma invenção do capital, em uma fase peculiar da expansão capitalista, para além das fronteiras da Europa, na virada do século XIX para o XX.
O fundamento teórico e político que embasa a pesquisa de doutoramento foi elaborado ao iniciarmos os estudos que culminaram com a produção da dissertação de Mestrado A invenção da cidade: a modernização de Rio Branco na gestão do governador Guiomard Santos (1946-50), quando explicitamos que a visão de modernização, instituída por este governante, estava alicerçada em uma concepção de civilidade, apoiada na racionalidade científica e cultural da tradição do pensamento iluminista, sob um viés católico-cristão.
Por sua vez, as invenções do Acre caracterizam os momentos decisivos da trajetória política e administrativa da região. O Acre estrangeiro, o Acre brasileiro, o Acre emancipado e o Acre viável instituem a escrita de uma história que, nos diálogos entre as fontes históricas oficiais e as memórias e oralidades dos atores sociais, presentes em cada momento inventivo, traz para o cenário da historiografia contemporânea do Acre e/ou sobre o Acre, de teor mais crítico que descritivo, o social, através das vozes, experiências, aventuras, desilusões, sonhos e projetos daqueles que, no contraponto das relações institucionais de poder, arcam com os ônus, em cada fase inventiva.
Este procedimento metodológico implicou na revisão bibliográfica que embasa os enquadramentos dos contextos inventivos. A historicidade reconstituída é fundamental à compreensão da intervenção do capital na região, ocorrida de forma articulada com os interesses de grupos políticos nacionais, aliados ou não, às forças políticas regionais.
Destacamos também que, no âmbito deste trabalho, o conceito de invenção tem o significado de construção teoricamente construída, aliás, instrumentalmente construída pelo poder político institucional. Portanto, se trata de uma história política que enfatiza as experiências dos sujeitos sociais subalternos. Uma história que traz o “outro” para a cena histórica, juntamente com suas representações. E, neste aspecto, nos colocamos na condição de parte integrante da história contada, devido ao nosso lugar social de origem e às trajetórias do ser mulher, negra e migrante nordestina, radicada no Estado do Acre há mais de trinta anos. Enxergamo-nos entre os “outros”, no tempo deles, e todos nós em uma viagem no tempo, em uma história que é diacrônica e sincrônica.
É relevante considerar que vários caminhos nos levaram ao tema. Assim, o fato de, durante seis anos, termos exercido a função de coordenadora do Centro de Documentação e Informação Histórica (CDIH), da Universidade Federal do Acre, nos possibilitou a oportunidade de organizar o acervo documental referente ao processo de elevação do Acre a Estado, tendo publicado, inclusive, um dossiê sobre o tema, constituído da coletânea de documentos de natureza diferenciada, datados de 1953 a 1962. Também desenvolvemos projetos de pesquisa, através do Pibic/CNPq, que contaram com a participação do Prof. Dr. Valdir de Oliveira Calixto e de alunos dos cursos de história da Ufac. Ademais, tivemos facilidade de acesso às fontes, pois, além de a Srª Lydia Hammes Guiomard Santos ter doado o acervo da biblioteca do ex-governador Guiomard Santos à Universidade, em 1987, de forma similar, estabelecemos uma relação de amizade pessoal com a mesma, entrevistando-a todas as vezes em que se encontrava na cidade de Rio Branco.
Outro aspecto a considerar é que, à época em que realizamos as pesquisas, inexistiam trabalhos acadêmicos específicos sobre a elevação do Acre à categoria de Estado. Este tema era tratado como apêndice em algumas dissertações, teses ou livros sobre a história do Acre, tendo em vista que a maioria dos historiadores, sociólogos e economistas priorizava temas situados a partir de 1970; ou, em outros casos, localizados no período compreendido entre as últimas décadas do século XIX e o final dos anos 40, do século XX.
Os aportes teóricos do texto ora construído se embasam nas reflexões que Antônio Gramsci fez sobre a “elite” e os “intelectuais orgânicos”. Essas categorias teóricas foram fundamentais no entendimento das relações de poder entre Guiomard Santos e os representantes dos “patrões” (seringalistas e comerciantes), sobre a instrumentalização e estratégias para a corporificação e aprovação do projeto de Estado, gestado pelos mesmos.
As reflexões de Michel Foucault, tanto sobre discurso, quanto aquelas relacionadas à microfísica do poder, bem como o caráter coercitivo do Estado, foram ferramentas úteis, especialmente no que tange ao conceito de representação, fragmentação do poder político e à instrumentalização das forças políticas locais.
A questão sobre o “poder” foi igualmente importante, uma vez que Foucault defende que o poder não está concentrado exclusivamente no Estado, sendo um mero aparelho de Estado da classe dominante. Tal entendimento nos possibilitou demonstrar que a luta pela elevação do Acre à condição de Estado, apesar das estratégias e alianças engendradas pelos representantes da classe produtora, não se sagrou vitoriosa no pleito eleitoral que escolheria o primeiro governador do Acre constitucional, pois quem se elegeu foi José Augusto de Araújo, um candidato que concorria com Guiomard Santos. Tudo isso nos leva a crer que aqueles que “fizeram” o Estado não receberam apoio popular para governá-lo.
No entanto, a luta pela autonomia política de Acre não ocorreu sem que houvesse resistências dentro da própria rede do poder, por conta da multiplicidade das relações de forças que a compunha, indicando a presença de uma relativa autonomia da periferia em relação ao centro.
Vale ainda considerar o universo ideológico e as práticas políticas de Guiomard Santos e Oscar Passos. Ambos pertenciam à oficialidade do Exército brasileiro e eram as principais lideranças políticas do Acre, que, pessoalmente ou via aliados, se alternavam no poder. Ressaltamos ademais que as contribuições de Caio Navarro de Toledo, especialmente sobre o Iseb e seu papel na formulação da ideologia nacional desenvolvimentista, nos foram relevantes para entender as conjunturas dos anos 40 e 50 no Brasil e o modo como estas se rebatiam nas práticas de Guiomard Santos e Oscar Passos.
Além disso, no contexto da trama histórica que envolve o tema em discussão, foi necessário ressaltar que o movimento autonomista se desenvolveu em um universo marcado pela luta do poder local, que, por sua vez, pretendia se afirmar ante o poder central. Nesse aspecto, as contribuições de Suely Robles, acerca dos “radicais da República”, e de Maria Isaura Pereira de Queiroz, sobre o “mandonismo local na vida política brasileira”, nos ajudaram a compreender as peculiaridades dos “coronéis” da região, conhecidos como “coronéis de barranco”. Sobre esse assunto também se mostraram essenciais algumas obras clássicas de literatura e de historiografia regionais.
Para o estudo do acreanismo, subjacente à questão autonomista, as ponderações de Eric Hobsbawn, sobre tradição e ainda as que se referem aos séculos XIX e XX, contribuíram, sobremaneira, para contextualizar o objeto de estudo, a partir do “olhar” institucional. Destarte, as invenções do Acre são apresentadas destacando rupturas e continuidades. No entanto, a visão do poder institucional, embora manifeste dissidências no seio das forças políticas hegemônicas em cada etapa inventiva, tem sido dominante.
Outros pontos que pusemos em destaque foi a memória política dos integrantes dos partidos políticos da época – PSD, PTB, UDN –, bem como a de alguns que se consideravam ou eram vistos como militantes ou simpatizantes do PCB, e ainda a memória social das mulheres legionárias da causa autonomista. Neste aspecto, os trabalhos de Ecléa Bosi, Maurice Halbwachs e Jacques Le Goff foram imprescindíveis no tocante às relações entre memória, história e identidade.
Todavia, paralelamente às invenções do Acre, sentimos a necessidade de acentuar outro olhar – o social –, que nos remete ao sonho, ao desejo, à utopia e às aspirações não realizadas, mormente no que se atém à construção do Acre que se almeja. Especialmente, atentamos para as expectativas dos segmentos sociais subalternos, que, em cada etapa inventiva, adentram o território da história, às vezes, de forma organizada e aguerrida, ainda que, mesmo assim, não tenham conseguido se tornar os protagonistas e nem conseguido “fazer acontecer” o sonho para adiante, no caso, para o presente. Entretanto, o princípio da espera dos sonhos diurnos está em processo. É o devir histórico...
A esse respeito, as obras de Michel Löwy, William Morres, E. P. Thompson e Raymond Willian nos ajudam a apreender o sonho de outro Acre, um que promova melhor qualidade de vida, economia dinâmica e diversificada, porém, respeitando a ambiência natural. A utopia a ser concretizada é a da construção de um modelo de desenvolvimento que conduza à cidadania plena, ao respeito às múltiplas identidades étnico-raciais e de gênero existentes no chão acreano. O que se espera de um Acre viável não pode sucumbir ante os desafios com que nos defrontamos, sob pena de comprometer um futuro melhor para todos os que vivem neste pedaço da Amazônia. Urge repensar a razão, a ciência, a cultura, a tecnologia e o desenvolvimento a partir de novas referências e de novos paradigmas.
No enredo construído, contrapomos o discurso governamental, jornalístico, literário, autonomista, àquele pertencente aos extrativistas, enquanto força de resistência, em uma determinada conjuntura: a dos militantes dos partidos políticos, de prefeitos e governadores, de mulheres legionárias e de tantos outros sujeitos políticos, que passaram a ter maior visibilidade através da produção acadêmica dos intelectuais da Ufac, notadamente de historiadores, sociólogos, economistas, antropólogos, cientistas políticos, literatos. Estes expuseram em seus trabalhos a heterogeneidade dos atores sociais, com suas vozes, contradições, projetos, perdas e vitórias.
Na escrita do presente estudo, assinalamos que o propósito da pesquisa realizada consistiu em re-ler algumas obras fundamentais, referentes à historicidade das invenções do Acre, especialmente as de Pedro Martinello, Pedro Vicente da Costa Sobrinho, Valdir de Oliveira Calixto e Elder Andrade de Paula, em um exercício de contrapor às mesmas novas fontes de pesquisas oficiais e relatos orais desconhecidos. Toda essa leitura colaborou com as argumentações construídas sobre as sucessivas invenções do Acre, inclusive a atual – a do Acre viável.
No primeiro capítulo, A invenção do Acre estrangeiro, a perspectiva foi demonstrar que, institucionalmente, o Acre não existia, pois as terras que atualmente integram o território do Acre pertenciam à Bolívia, conforme o que foi estabelecido pelo Tratado de Ayacucho (1867). No entanto, esse espaço estava sendo ocupado por brasileiros, que se dedicavam ao extrativismo da borracha, contando ainda com a presença dos caucheiros peruanos, no Juruá. Portanto, o litígio com a Bolívia referia-se às terras dos Altos Rios do Aquiri. Com relação aos embates militares que se realizaram, os mesmos envolveram o Alto Acre e o Purus. Porém, a solução definitiva para a “questão do Acre” se deu com a assinatura do Tratado de Petrópolis (1903). A partir da anexação das referidas terras ao Brasil, criou-se o Território Federal do Acre. Quanto à disputa pelas terras do Juruá, se demandou um novo Tratado, desta vez, com o Peru – o Tratado do Rio de Janeiro (1909).
No segundo capítulo, A invenção do Acre brasileiro, buscamos reconstituir as bases do poder local frente aos limites impostos pelo governo da União, bem como demonstrar que o Movimento Autonomista possibilitou a invenção de outro Acre – independente politicamente.
O terceiro capítulo, A invenção do Acre emancipado, está centrado no processo de elevação do Acre a Estado e no imaginário político das forças que inventaram esse Estado, destacando nesse processo a tramitação do projeto de Guiomard Santos no Congresso Nacional e a participação das mulheres na emancipação do Acre.
No quarto capítulo, realizamos um enquadramento histórico dos partidos políticos existentes no Brasil, no limite temporal das primeiras décadas do século XX até os anos 60, dando maior ênfase ao PSD e PTB, bem como às representações desses partidos, conservadas nas memórias dos velhos militantes políticos do Acre.  Consultamos a literatura existente sobre os partidos políticos no Brasil e as falas de lideranças desses partidos acerca tanto da questão da elevação do Acre a Estado, quanto da conjuntura política regional da época.
No quinto capítulo, A invenção do Acre viável, a finalidade é discutir as novas representações da autonomia acreana, tendo como elemento central o cultural, além de caracterizar o processo de invenção do Acre viável como algo em aberto, dinâmico e em permanente mutação, na medida em que acontece em uma fase peculiar da economia capitalista mundial.
Para finalizar, é importante destacarmos o pioneirismo da tese de doutorado a partir da qual esse livro foi escrito. Esse estudo buscava desconstruir o discurso político relativo à questão do Acre como revolução, discurso esse legitimado pela historiografia tradicional. É importante acrescentar que, à época, a tese trouxe aspectos da história do Acre ainda não contemplados pela produção acadêmica, tais como: o movimento autonomista, a participação das mulheres na causa emancipacionista acreana, o resgate das memórias dos militantes políticos do PSD, PTB, UDN e PCB, durante os anos de 1960 a 1970, bem como a discussão sobre a viabilidade do Acre.
Termino essas linhas agradecendo a todos que colaboraram direta e indiretamente na redação da minha tese e em sua adaptação para livro.
                                                                                                       Prof.ª Dr.ª Maria José Bezerra
Rio Branco – AC, dezembro de 2015.


quinta-feira, 17 de março de 2016

A REVOLUÇÃO ACRIANA E A GÊNESE DO POVO ACRIANO




“Não podemos nos esquecer que antes da Revolução não havia acreanos, mas tão somente brasileiros do Acre. E foi durante essa luta que surgiu nossa identidade como povo” (VIANA, Jorge. Apresentação. In: CALIXTO, 2003).

Esta identidade, bastante fraca, contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob uma máscara é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam(FOUCAULT, 2001, p. 34).

O Acre constituiu-se no final do século passado, como uma unidade de território, povo e Estado(VIANA, Jorge. Apresentação. In: Revista Galvez e a República do Acre, 1999).




A história oficial afirma que os brasileiros do Acre foram movidos pelo patriotismo quando resolveram se unir para “expulsar” os bolivianos daquelas terras. Então, nesse caso, o patriotismo foi o motivo e, a guerra, o acontecimento mobilizador da comunhão. Mas realmente houve um consenso entre os acreanos em relação à Revolução Acreana? Teria ela significado a mesma coisa para todos os que nela se envolveram?  É provável que não.
O discurso histórico fez da revolução o exemplo constituinte da unidade do povo acreano, no entanto, é inegável que durante todo período revolucionário, de José Carvalho a Plácido de Castro, sempre houve dissidentes - aqueles que apoiavam o governo boliviano; opositores – aqueles que desejavam esperar a intervenção direta do governo brasileiro na questão; indiferentes – aqueles que, mesmo sabendo da insurreição, preferiram não fazer parte dela; e desinformados, aqueles que nem ao menos tomaram conhecimento da revolução.
Em maio de 1899, José Carvalho (2003), o líder da chamada “primeira insurreição acreana", dispôs-se a colher o máximo de assinaturas possíveis num Manifesto a favor da expulsão do governo boliviano da região. Apesar de todo o esforço do revolucionário, não conseguiu nem sessenta rubricas. Por que o restante do “povo” não assinou? O motivo não pode ser explicado simplesmente pelo analfabetismo.
Com Galvez não foi diferente. O Estado Independente nunca foi consenso, até porque se tratou de um projeto “partejado” (cf.: BARROS, 1993, p. 39) com o apoio de alguns poucos seringalistas de expressão da região do baixo Acre. Desde os primeiros meses de seu governo, o espanhol teve que combater “energicamente todos os focos de agitação”, como afirma o historiador Leandro Tocantins (2001, p.349).
 Vários grupos se insurgiram: o liderado pelo coronel Neutel Maia, do seringal Empresa; o do Capitão Leite Barbosa, de Humaitá; e a da Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros; do Alto Acre. Isso sem dizer que “as pessoas de maior destaque [de Xapuri] não haviam aderido ao Estado Independente” (idem, p. 350). Sem citar que o Juruá, no geral, nem sequer tomou conhecimento dos decretos expedidos por Galvez.

De Xapuri, Galvez receberia ofício assinado por Manoel Odorico de Carvalho, auto-intitulado Prefeito de Segurança Pública pela vontade soberana do povo, comunicando que, no alto Acre, a população resolvia não aderir a essa revolução sem primeiro ouvir a decisão do governo brasileiro [...] Somava-se a este movimento dissidente do Alto Acre, um outro que, sob a denominação de Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros, procurava, de todas as formas, minar o governo provisório. No baixo Acre, para completar, havia, ainda, a propaganda anti-governo provisório, liderado por Neutel Maia do seringal Empresa e pelo Capitão Leite Barbosa, do seringal Humaitá, este último outrora ativo colaborador na administração Paravicini. (CALIXTO, 2003, p. 162) [grifo nosso].

A famosa Expedição dos Poetas é o exemplo clássico da desunião. Ela partiu de Manaus em fins de 1900 com o objetivo de expulsar os bolivianos que regressaram à região após a derrocada do governo de Galvez. “As divergências sempre surgiam, a toda hora, por falta de unidade de comando” (MEIRA, 1974, p. 57).
O próprio Plácido de Castro se queixou da dificuldade em arregimentar voluntários. E isso é mencionado por Azcui Benjamin (1925), como prova de que os acreanos eram de modo geral pacíficos em relação ao governo boliviano. É o próprio Plácido de Castro quem diz que “todos declaravam que empenhariam o melhor da vida, mas ninguém queria ser o primeiro” (CASTRO, 2002, p.55); “os proprietários tudo prometiam, mas em verdade mostravam-se receosos” (idem, p.57).

Al estalhar la conflagración separatista, el Acre contaba con más de treinta mil habitantes, mostrándose case la totalidad indiferente a lo que ocurría, de tal modo que los promotores de la revueta, para hacer consentir en su popularidad expedían despachos de coroneles a granel, sin que por ello lograsen el concurso de los agraciados, porque el ideal de los acreanos era el de continuar como hasta entonces, sin freno a sus desmanes ni autoridade que los gobernase, imperando entre ellos los de mayor fuerza física o institinos sanguinarios más deprazados (BENJAMIN, 1925, p. 45). [grifo nosso].

No tenían la suficiente preparación, ni combatían en defensa de un sagrado derecho, conscientes de la justicia que les asistiera; mercenarios recolectados en los antros del vicio y la miseria, trabajandores obligados por sus patrones a batirse y perder la vida pro una causa ignorada por ellos, lógicamente, debían perder la moral ante individuos patriotas que abandonaron las fruiciones del hogar por acudir en amparo de nuestra integridad territorial” (idem, p. 97) [grifos nossos].

É Plácido de Castro quem toma as providências para que todos os acontecimentos do dia 6 de agosto de 1902 fossem devidamente documentados. Uma ata da proclamação do Estado Independente do Acre foi redigida e 20 cópias dela foram enviadas “rio abaixo”. Castro acreditava que com essa medida “se alguém franqueasse, não pudesse recuar, visto se haver comprometido com a assinatura da ata” (CASTRO, 2002, p.58). Enfim, o coronel conhecia bem as “convicções revolucionárias e patrióticas” de seus comandados. Por isso, teve que liderá-los “pela espada e pelo revólver” (ibidem, p. 60).
A unidade dos acreanos em torno da Revolução Acreana foi tão grande que Plácido de Castro inicia sua campanha com apenas 33 seringueiros-soldados (cf.: idem, p. 56). E no auge da guerra esse número não ultrapassou o montante de 2.000 revolucionários (cf.: GOYCOCHÊA, 1973, p. 118). O argumento de que eles se uniram por causa de um ideal, a de darem “o melhor de suas vidas à causa de tornar o Acre parte do Brasil” (MARQUES, 2008, p. 71) é tão evidente que o próprio Cel. Plácido de Castro afirmou que “a autoridade do chefe teve de ser mantida pela espada e pelo revólver” (Apud BENCHIMOL, 1977, p. 389).
A população “branca” na região das margens do rio Acre foi estimada em: 15.000 habitantes, por Tocantins (2001, p. 191); em 25.000, pelos próprios chefes da Revolução (BRAGA, 2002, p.15. Cf.: CABRAL, 1986, p.35); em 50.000 por Hernán Messuti (RIBERA, 1997, p. 54) e em 100.000, por Craveiro Costa (2005, p.219).
Se for levado em consideração esse último número, significa dizer que menos de 2% da população local verdadeiramente empunharam armas contra os bolivianos. E isso sem levar em consideração a população da região do Juruá, que sofreu apenas “ecos” do movimento. Essa paupérrima porcentagem dispensa comentários.
Até hoje não se tem provas que confirmem o envolvimento da maioria da população do Acre na chamada Revolução Acreana. Tudo indica que essa  “espinhosa questão”, como dizia Rocha (1903, p.5), não tenha sido unanimidade entre a elite da sociedade gomífera. E é provável que aqueles que nela se envolveram, não tenham assim procedido pelos mesmos motivos. “Cada segmento se relaciona com a guerra por motivos e interesses bastante particulares”, já dizia Miceli  (1994, p. 78).
Sendo assim, não é errado dizer que os acontecimentos que ficaram etiquetados como  “Revolução Acreana” foram alvos de diversas representações. Uma coisa foi o “olhar” de quem participou da luta armada, outro foi de quem não participou. Dentre aqueles que participaram certamente a polifonia era reinante. As expectativas do seringueiro com relação aos resultados do conflito armado certamente não eram os mesmos do seringalista. “Waterloo não foi a mesma coisa para um soldado e um marechal” diria Veyne (1982, p. 12). Além do mais, alguns dos seringalistas que fizeram parte da idealização e execução do combate, no decorrer dele, mudaram de posição política.
Como podemos observar o passado fundador com o qual o acreano é ensinado desde o ensino fundamental a venerar, não passa de uma região tumultuada de discursos. A imagem compacta e homogênea que temos da Revolução Acreana não passa de uma construção discursiva politicamente sustentada. Quando se olha a representação da Revolução Acreana hoje, diria Foucault, está se olhando para um “monumento”, crivado de subjetividades e de silêncios.
A “questão acreana” foi sustentada por múltiplos interesses. O governo do Amazonas queria garantir a arrecadação dos impostos. Os seringalistas queriam garantir suas propriedades privadas e a manutenção do lucro gomífero. Os profissionais liberais sonhavam em assumir importantes cargos públicos. E os seringueiros pretendiam quitar suas dívidas e, quem sabe, ter saldo ou para comprar o seu próprio seringal ou para voltar à sua terra natal. Desnecessário dizer que os interesses aqui mencionados foram os parecem ter prevalecido em cada segmento social, o que não quer dizer que outros não tenham existido.
O Acre enquanto comunidade carecia de unidade, isso é um fato. O que existia em comum entre aqueles brasileiros do Acre para torná-los uma comunidade? Seria o território? Com certeza não, pois as fronteiras só foram plenamente consolidadas em 1909. Seria a língua? Não, naquela região existia de tudo: do espanhol aos dialetos indígenas. A cultura? Não, as mais diversas tradições estavam ali representadas pelos nordestinos, gaúchos, sírios, libaneses, franceses, bolivianos etc.

Apesar de todo esforço dos chefes da revolução, o que parece é que a unidade foi uma construção discursiva póstuma. Não havia nada forte o suficiente que ligassem aqueles migrantes, a não ser a ambição pelo “ouro negro”. Naquela realidade social era impossível qualquer sentimento de solidariedade e comunhão entre seringueiro e seringalista. A unidade ganhava forma e tornava-se “sólida” somente no e pelo discurso. 

segunda-feira, 7 de março de 2016

O SIGNO ACRE E SUAS SIGNIFICÂNCIAS



As escolhas lexicais e seu uso revelam a presença de ideologias que se opõem, revelando igualmente a presença de diferentes discursos, que, por sua vez, expressam a posição de grupos de sujeitos acerca de um mesmo tema” (FERNANDES, 2005, p. 21.)
A grafia ou a imagem acústica “Acre” pode expressar diversos significados, dando forma a vários signos linguísticos. De acordo com o dicionário Houaiss, temos: 1) sabor amargo, ácido, azedo; 2) cheiro ativo, forte, penetrante; 3) som agudo, pungente; 4) que provoca amargura; aflitivo, doloroso, tormentoso; 5) desagradável; áspero, mordaz, ríspido; 6) unidade de medida para superfícies agrárias.
Quando a grafia “Acre” está relacionada a uma região ou a um território amazônico “colonizado” por brasileiros no último quartel do século XIX, passa a assumir diversos outros sentidos. Cada sentido se refere a um signo linguístico, que deve ser compreendido como um acontecimento linguístico singular, pois cada um deles tem uma formação discursiva própria. Do ponto de vista semântico-discursivo e da descontinuidade histórica, um Acre não pode ser concebido como a evolução do outro, como se ambos fizessem parte da mesma história. Uma vez que a imagem que cada uma delas evoca na mente do interlocutor apresenta singularidades, além do que o contexto de emergência e de utilização de cada um deles são diferentes e os atores sociais que os mobilizaram também.
Segundo esse entendimento, o Acre, enquanto região banhada pelo rio Acre, é diferente do Acre proclamado como República por Luiz Galvez, pois, além desse rio, esse território abrangia o Purus e Iaco. O Acre, enquanto território estrangeiro, é diferente daquele visto como terra nacional. O processo de significação de cada um deles é diferente. Portanto, não há como montar uma genealogia entre o Acre Território e o Acre Estado, a não ser arbitrariamente, pois ambos representam entes políticos e jurídicos diferentes e, por isso, devem ser tratados como fenômenos singulares.

Mapa 01 – Acre imaginado por Plácido de Castro em 1907.
Fonte: Hemeroteca digital da Biblioteca Nacional.

O Acre contemporâneo e o Estado Independente do Acre, proclamado por Plácido de Castro, em 1903, não podem ser tratados como um mesmo signo linguístico, pois o primeiro é uma unidade federativa da República do Brasil e o segundo, um país autônomo. Quando uma liderança aborígine defende que as terras do Acre, ocupadas tradicionalmente por uma dada tribo indígena, sejam demarcadas, certamente esse Acre do discurso não é o mesmo daquele cuja autonomia era defendida por Guiomard Santos em fins dos anos 1950.
O Acre amazonense que aparece nos discursos de Rui Barbosa não pode ser considerado o mesmo Acre “ecologizado” que circulou nos discursos das lideranças da Frente Popular nas eleições estaduais de 2002. No campo semântico, esses fenômenos linguísticos devem ser tratados como diferentes. Dessa forma, quando se busca traçar um lastro de historicidade entre o Acre atual e o Acre colonizado por João Gabriel de Carvalho, em meados de 1877 e 1878, o Acre Estado não pode ser identificado como um “Acre em potencial” já existente naqueles primeiros núcleos de colonização que aconteceram às margens do rio Acre em fins dos anos 1970. Caso contrário, a história vira uma mera sequência cronológica de fatos teleologicamente marcados.

Mapa 02 – Acre Setentrional e Acre Meridional.
Fonte: Revista Nossa História, Ano 3, Nº 25,
Novembro de 2005, p. 21. [Adaptado pelo autor]

O Acre que aparece no discurso do historiador boliviano José Aguirre Achá (1902) não pode ser o mesmo daquele dos discursos do senador Jonathan Pedroza (1848-1922), autor do Projeto de Lei que visava a incorporação do Acre Setentrional ao Estado do Amazonas. Que relação teria a ideia de Acre vinculada ao Departamento do Alto Acre criado em 1904 com o Acre Meridional ou Acre Setentrional[1] inventados em 1903 com a chegada das tropas brasileiras lideradas pelo general Olímpio da Silveira em Puerto Alonso?

Mapa 03 - Território abrangido pelo Departamento do Acre
Fonte: ACRE, 2001, p. 19. [adaptado pelo autor]

O Estado Independente do Acre proclamado por Plácido de Castro, em janeiro de 1903, não foi o mesmo proclamado por Luiz Galvez em 1899, a representação geográfica de ambos eram diversas. O Acre Meridional, administrado por Plácido de Castro em abril de 1903, não pode ser o mesmo do Departamento do Alto Acre criado em 1903. Em resumo, o “Acre” pode representar a imagem acústica e gráfica de diferentes signos, uma vez que pode significar diferentes coisas. No caso específico de topônimos, a dissemelhança pode acontecer nas dimensões territoriais, no status jurídico e/ou na condição político-administrativa.
2.1.1 O “Acre” estrangeiro

“A análise destina-se a evidenciar os sentidos do discurso tendo em vista suas condições sócio-históricas e ideológicas de produção. As condições de produção compreendem fundamentalmente os sujeitos e a situação social” (FERNANDES, 2005, p. 23.)
Antes da chegada do homem branco civilizado de nacionalidade brasileira, o território que hoje pertence ao estado do Acre já havia sido nomeado com os mais diversos topônimos. As Repúblicas do Peru e da Bolívia já o tinham como parte de seus respectivos territórios. Sem dizer das diversas nações aborígines que mantinham relações identitárias com a região há centenas de anos.
Talvez o estado do Amazonas tenha sido o primeiro a inventar aquele território como brasileiro, mas não como Acre, e sim como parte do município de Floriano Peixoto. Castelo Branco (1958, p. 22) afirma que o pernambucano Serafim da Silva Salgado, pioneiro na exploração do rio Purus, apesar de não ter navegado pelo rio “Acre”, nomeou-o “Canaquiri”.
Todas essas representações de pertencimento foram sacrificadas em favor da emergência do topônimo “Acre”, que já surge enodoado de “violência simbólica”.
Neste tópico, veremos como os “não-brasileiros”, mais especificamente as pessoas das Repúblicas do Peru e da Bolívia, consideravam esse território. Infelizmente, pelo fato de as nações aborígines serem de cultura oral, não desfrutamos de fontes históricas suficientes para analisarmos o processo de nomeação e apoderamento simbólico deles sobre a região em questão. Mas tanto do ponto de vista indígena, quanto do peruano e boliviano, os brasileiros se comportaram como invasores, apoderando-se de território estrangeiro.
O topônimo “Acre” não existia no vocabulário dos falantes de língua espanhola, muito menos nos de línguas indígenas. Ele foi uma invenção brasileira, no entanto, por pura ironia, como para provocar a “teleologia” da história oficial acriana, resolvemos “brincar” com as palavras e utilizar termos como “Acre peruano”, “Acre boliviano”, “Acre espanhol”, dentre outros.
Por meio deles, queremos dizer que o território que hoje pertence ao estado do Acre foi apoderado simbolicamente com outros nomes por espanhóis, peruanos, bolivianos, nativos, etc. Portanto, a imagem cartográfica que o nome Acre evoca como brasileiro, não passa de uma operação arbitrária. O signo “Acre” é apenas o capítulo mais recente da história do processo de nomeação e identificação desse território (e um dos mais breves, por sinal).



Trecho do livro:


[1] O general Olímpio da Silveira assumiu o governo do Acre Setentrional no dia 3 de abril de 1903, e Plácido de Castro, o governo do Acre Meridional. Um mês e dez dias depois, o general invadiu também o Acre Meridional.

quinta-feira, 3 de março de 2016

O ACRE "AMAZONENSE": o que todo acriano deveria saber



“A parte da zona acreana, que se estende ao Norte do paralelo de 10º20’, já era indubitavelmente brasileira antes do Tratado de 1903; nem nunca foi senão brasileira; e, sendo brasileira, necessariamente se havia de achar no Estado do Amazonas”. (Ernesto Leme. Prefácio. In: BARBOSA, 1984, p. XXV).

“Cria no Rio Purus dezenove prefeituras. Destas a décima sexta bem como a décima nona se estendem até ao Acre, e a décima oitava compreende todo o Iaco, da foz às cabeceiras, com os seus afluentes”. (Governador da Província do Amazonas, Ato Nº 185,  23 de  agosto de 1892, grifo nosso. Apud, BARBOSA, 1984, p. 150).

“A comarca de Floriano Peixoto que se constituía de todo o rio, desde a foz até as últimas explorações, foi criada depois da República e tinha como sede a vila de Antimary, a qual no aludido ano, foi transferida para um planalto à margem esquerda do Purus, em gente a embocadura do Acre [...] A nomeação do coronel Francisco Monteiro, [...] foi muito bem aceita no Acre”. (CARVALHO, 2002, p. 18).
         
Antes mesmo que a Questão do Acre surgisse, parte das terras banhadas pelo rio Aquiri já era tratada como brasileira pelo estado do Amazonas. No nível simbólico, portanto, o abrasileiramento do “Acre” já havia sido iniciado antes mesmo de o Acre existir enquanto comunidade de acrianos. Na verdade, a Questão do Acre começou como uma causa amazonense, a iniciativa de contestar a soberania boliviana não partiu do “acriano” ou do “brasileiro do Acre”. Assim sendo, o “Acre” é fundado como brasileiro como um “não-Acre”, na medida em que a brasilidade dele estava baseada no fato de ele (ou parte dele) ser tratado como jurisdição do município amazonense Antimarí, que depois ficou conhecido como Floriano Peixoto.
          O Acre não foi simplesmente uma dádiva dos acrianos. O papel do governo do Amazonas foi fundamental até mesmo para a exploração do rio Purus, que foi a primeira etapa para a colonização do Acre. A partir dos anos 1950, aconteceram as primeiras expedições de reconhecimento por parte de “diretores ou encarregados de índios” nomeados pelo governo da Província do Amazonas.
Elas tinham como objetivo provável a “pacificação” dos índios, e a obtenção de informações sobre a quantidade de seringueiras, de índios e de bolivianos naquelas plagas, no entanto, a justificativa para tal foi a descoberta de uma passagem fluvial livre de cachoeira e menos extensa para a Bolívia[1]. Após confirmada a ausência de bolivianos e o potencial gomífero da região, operou-se um intenso processo de invasão[2] na década de 1870.
Os famosos exploradores João Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da Encarnação, por exemplo, eram “diretores de índio” em missão oficial designada pelo governo amazonense. O primeiro saiu de Manaus em direção ao sul amazônico em março de 1852 e se tornou o primeiro brasileiro a explorar o rio Purus. Nesse mesmo ano, o segundo foi contratado e até onde se sabe o mesmo explorou o rio Purus até 10º 25’ de latitude sul, ou seja, ultrapassou o paralelo que definiria a fronteira do Brasil com a Bolívia com o Tratado de Ayacucho (1867). Em 1861, foi a vez do terceiro “diretor de índio” subir o rio Purus, conta-se que atingiu o rio Acre chegando até Xapuri.
Depois de feito o “zoneamento ecológico-econômico” da região pelos primeiros “desbravadores” contratados pelo governo do Amazonas, foi a vez de a iniciativa privada financiar os “colonizadores” para explorarem economicamente a região e pagarem os devidos impostos à alfândega amazonense. Em 1871, quando o Coronel Pereira Labrea chegou às margens do rio Acre, conta-se que ali encontrou “o posto do seringueiro Manuel Joaquim, donde foi ter ao Sítio Flor de Oiro, de Geraldo Correia Lima” (BARBOSA, 1974, p. 39). Em 1877-8 (?), foi a vez de João Gabriel de Carvalho e Melo juntamente com inúmeros outros chegarem à confluência do rio Acre com o rio Purus.
Pelo que se sabe, eles foram os primeiros “invasores” que operaram a extração e comercialização clandestina de borracha naquele território até então estrangeiro. “Em poucos anos, o rio Acre estava todo ocupado, e assim também o Purus, até onde existia a seringueira, ou seja, até onde é a atual fronteira com a República do Peru” (MELO, 1968, p. 105). O Estado do Amazonas incentivava a exploração econômica da região porque lucrava com a arrecadação de impostos sobre a exportação da borracha. Abaixo segue um Ato Governamental Nº 248, assinado pelo Presidente da Província do Amazonas em 12 de agosto de 1878, que comprova que o rio Acre era tido como parte da jurisdição amazonense.

Divide em duas a agência ambulante de rendas provinciais no Rio Purus: uma até Iutanaã, derradeiro ponto de escala dos vapores subvencionados, outra deste ponto até o Rio Acre, nomeando logo o serventuário para a segunda. (Apud BARBOSA, 1984, p. 144).

Em 5 de setembro de 1850, a Comarca do Alto Amazonas que até então fazia parte da Capitania Grão-Pará é elevada à categoria de Província. “Desde esse tempo, como daqui a pouco se verá das certidões autênticas dos atos do seu próprio governo, entra a nova Província a exercer jurisdição administrativa em paragens do Acre Setentrional” (BARBOSA, 1974, p. 11, Vol. 37, Tomo 6).
Como já foi visto, a Província foi quem “preparou o terreno” para a colonização das proximidades do rio Acre. Inclusive era ela quem expedia títulos fundiários na região. Povoada quase que exclusivamente por brasileiros, garantia a brasilidade daquele território pelo uti possidetis e pela constituição geográfica, uma vez que os Andes dificultava o acesso dos bolivianos. O grande advogado Rui Barbosa entrevistou vários ex-presidentes da Província do Amazonas a fim de saber sobre a real administração da região do rio Acre.

Todos estes documentos, em número de cento e oito, são autos de demarcação de terras devoluas, vendidas pelo Governo do Amazonas, sob o antigo regime e durante o atual no território do Acre [...] Autos nº 18, 1898, À margem do Rio Acre, Município Floriano Peixoto, solo devoluto vendido pelo Governo do Amazonas. Demarcante, Antonio Leite Barbosa. Demarcador, Domingos José Moers. (BARBOSA, 1975, p. 154 e 155).

Trechos dos depoimentos foram publicados (BARBOSA, 1975, p. 124-132) e ambos são uníssonos em dizer que a população do rio Acre estava sujeita à jurisdição amazonense: “autoridade de espécie alguma ali houve, a não ser nomeada pelo Governo do Amazonas” (ibidem, p. 129), “sendo sempre administrada e policiada pela antiga Província” (ibidem, p. 130).
Vários documentos e cartas da época,  remetidos da região do rio Acre ou destinados a ele, tinham como endereço “Antimary”, “Floriano Peixoto” ou “Lábrea”. Isso porque, em 1890, o município de Lábrea foi dividido e deu origem ao município de Antimary, que em 1897 passa a se chamar “Floriano Peixoto”. Serzedello Correa (1899, p. 138, grifo nosso) confirma que o governo do Amazonas já administrava o “Acre”, tal como comprova o trecho abaixo:

Ora, o Estado do Amazonas exerce plena e inteira jurisdição em toda essa região. A 32ª divisão distrital ou circunscrição política do Amazonas na Comarca de Lábrea estende-se desde o foz do Rio Teuni, por ambas as margens, até a boca do Rio Acre, inclusive. A 34ª principia na foz do Iaco e termina nos limites com o Peru pelo mesmo rio. Assim, pois, segundo a organização dos Municípios no Amazonas as regiões do Acre estão sob a jurisdição do seu governo: a prefeitura de Lábrea rege-as desde o Rio Purus até o Rio Mari, ou desde o Ituxi até o Teuni.

Não havendo um acordo imediato do Brasil com a Bolívia, foi consenso entre os bolivianos que a ocupação do território banhado pelo rio Acre ocorresse prontamente. Para tanto, Juan Francisco Velarde, delegado nacional da Bolívia, chega a Manaus em 11 de julho de 1899, para viabilizar a criação de um posto aduaneiro no rio Acre. Tocantins (2001, p. 225) conta que foi o governador do Amazonas Ramalho Júnior que impediu a fundação do referido posto alfandegário.
Além do mais, quando uma expedição militar boliviana aportou em Xapuri em setembro de 1989,  foi o subprefeito do Alto Acre, coronel da Guarda Nacional Manoel Felício Maciel, nomeado pelo Governo do Amazonas, quem  primeiro resistiu à soberania boliviana na região do Acre, intimando os bolivianos a saírem da região a fim de que fosse evitada uma guerra. Portanto, não foram os acrianos os primeiros a enfrentarem os bolivianos, a Questão do Acre surgiu como uma causa amazonense, conforme comprova o documento a seguir:

Comandante Superior da Guarda Nacional do Distrito de Floriano Peixoto, 13 de Novembro de 1898.

Cidadão Major Benigno Gamarra.

Tendo chegado ao conhecimento desta comandancia a invasivo desta fronteira por uma força armada, debaixo do seu comando, para fundar nestes rios Acre e Purus uma nova delegação policial boliviana e tomar posse desta grande parte do Brasil, sem que tenha sido ratificada a linha divisória, sendo essas regiões exploradas e cultivadas por Brasileiros, há mais de 30 anos, de posse mansa e pacífica sem oposição de natureza alguma, trazendo esse fato o terror pânico mais alarmante a esta parte da nação brasileira, prejudicando sumamente o comércio que em alta escala se desenvolve nesta terra a vista e considerando a grande distância em que se acha esta povoação do Governo Federal e Estadual e vendo que os habitantes daqui estão sobressaltados e sem meios de defesa, esta comandância resolveu de acordo com a lei da Guarda Nacional das fronteiras do Brasil, mobilizar-se provisoriamente e ir em defesa desta grande porção de Brasileiros [...] Manoel Felício, Coronel Comandante Superior.

          Em janeiro de 1899, os bolivianos mais uma vez tentaram criar uma alfândega no rio Acre, mais precisamente em “Puerto Alonso”.  Foram necessários apenas vinte e dois dias do estabelecimento do Posto Aduaneiro boliviano para que uma Junta Revolucionária fosse organizada com o fim de derrubá-lo. Pois, “para todos os efeitos, os bolivianos estavam na comarca amazonense de Antimary” (CARVALHO, 2002, p. 25). Por conta disso, houve um levante amazonense contra a delegação boliviana. Primeiramente, o superintendente de Floriano Peixoto (antigo Antimary) Francisco Monteiro de Souza Júnior pede oficialmente em ofício datado em 29 de abril de 1899, que o Cônsul boliviano Moisés Santivanez evite o conflito armado saindo daquela região.
Logo em seguida, José Carvalho, secretário do superintendente, encabeça aquilo que ele próprio chamou de “primeira insurreição acreana”, que teve como resultado a expulsão dos bolivianos. O rio Acre, portanto, já havia sido inventado como brasileiro, isso não foi obra dos acrianos, e sim dos amazonenses. A Junta Revolucionária criada naquela ocasião não era “acreana” e sim “amazonense”. O objetivo do levante não era a “independência” do Acre, mas a salvaguarda do território considerado amazonense[3].
A causa somente deixou de ser amazonense e passou a ser acriana com a proclamação da República do Acre. E isso apenas para dissimular a opinião pública nacional, pois, na prática, é do conhecimento de todos que o próprio governador do Amazonas foi o "idealizador e sustentáculo da República do Acre" (TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 440). Para acompanhar Luiz Galvez, o governador do Amazonas também contratou "vinte homens, todos veteranos da guerra de Cuba" (DANTAS, 2012, p. 23). Portanto, "Luiz Galvez, com dinheiro e armas do governo do Amazonas, seguiu para o Acre" (REIS, 1937, p. 19). Como é do saber de todos, a República do Acre tem vida curta e chega ao final em março de 1900.
Em julho de 1900, o novo governador do Amazonas, Silvério Nery, toma posse. Em novembro de 1900, financiou uma expedição militar de libertação do Acre nominada “Floriano Peixoto”, que também ficou conhecida como "Expedição dos Poetas", pela quantidade de intelectuais - “voluntários da pátria” sedentos de recompensas. Mais uma vez, a iniciativa para “libertar o Acre” não parte dos acrianos e sim dos amazonenses. O insucesso aconteceu novamente, apesar de estarem bem equipados com uma canhoneira e inúmeras metralhadoras fornecidas pelo governo amazonense, foram derrotados em poucas horas.
A “Revolução” liderada por Plácido de Castro também não foi diferente, embora mais discreta, porém, também houve participação do governo do Amazonas. Entretanto, como as “revoluções” a partir de Galvez assumiram estrategicamente uma postura separatista, o caráter amazonense delas foi dissimulado com o discurso do “acreanismo”.
          Em uma carta de 18 de junho de 1902, portanto, antes do início da “Revolução” iniciada em 6 de agosto, Rodrigo de Carvalho diz: “baldeamos a carga da Maria Thereza, a bordo dela vem o Dr. Gentil com armamento e um capitão com vinte e tantos soldados, commissionados pelo governador para fazer a revolução” (Apud OURIQUE, 1907, p. 223, grifo nosso).
          Se levarmos em consideração que o próprio Plácido de Castro afirmou ter iniciado o combate contra os bolivianos em 6 de agosto de 1902 com apenas 33 homens (Cf. CASTRO, 2005, p. 56), fica fácil deduzirmos que o episódio inaugural da “Revolução Acriana” ou da “Grande Revolução” foi protagonizado por mercenários contratados pelo governo do Amazonas.
O escritor Jacques Ourique na obra O Amazonas e o Acre publicou várias cartas enviadas por Rodrigo de Carvalho, Gentil Norberto e Plácido de Castro[4] ao governador do Amazonas Silvério Nery; e tantas outras que este enviou àqueles. Os primeiros pediam armas, munições, lanchas, comidas, etc. O último certificava-se do andamento do conflito e mantinha “viva” a missão de incorporar o território ao Estado do Amazonas depois da vitória.
Em uma das cartas consta que o governador do Amazonas havia despachado armas e outros mantimentos para a “Revolução”, sob a responsabilidade de Gentil Norberto (Apud OURIQUE, 1907, p. 223). No entanto, o mesmo havia se recusado a encaminhá-las aos combatentes por conta de discussões com Rodrigo de Carvalho (idem, ibidem, 1907, p. 224). A exemplo do que aconteceu na Expedição Floriano Peixoto, os revolucionários queriam repartir os “despojos” antes da vitória. Leia:

Por mais agradável que queira ser V. Ex. não posso sê-lo, ao ponto que o Dr. Gentil me disse para procurar com que os acreanos o façam Presidente [...] antes da vitória não se tratará de Governo, ficará a Junta Revolucionária até que se vença; vencedores os coronéis Joaquim Victor e José Galdino, que disputem quem será o chefe, se Victor ou Gentil: eu deixo o campo livre, pois nunca ambicionei a chefia (Carta de Rodrigo de Carvalho ao Governador do Amazonas datada em 24 de julho de 1902. In: OURIQUE, 1907, p. 227).

 Em 19 de janeiro de 1903, quase às vésperas da rendição incondicional do exército boliviano, Rodrigo de Carvalho envia uma carta ao governador do Amazonas alertando-o que havia uma "grande quantidade de pretendentes a governador do Acre e a cousa acabaria em briga grossa" (ibidem, 1907, p. 416). Isso é um forte indício de que Plácido de Castro realmente não era o líder político da “Revolução” e sim um militar a serviço da causa acriana. Se dado estava que o “novato” fosse o “mentor” da “Revolução”, como explicar a disputa que se deu entre os “veteranos” pela governança do futuro Poder Executivo acriano?
Para os líderes bolivianos, Plácido de Castro nunca figurou como o líder da Revolução. Ele era tido como um mero coadjuvante, assim como os outros membros da Junta Revolucionária. O verdadeiro responsável pela “Revolução” era o poder executivo amazonense. Segundo Zambrana (1904, p. 163), cónsul boliviano no Pará, “Silverio Nery, Gobernador de Amazonas, autor responsable y sostenedor de la revolución del Acre [...] Plácido de Castro, Rodrigo de Carvalho, Gentil Norberto y demás coautores de la citada revolución”.
Antes mesmo da vitória contra os bolivianos, dois grupos de interesse disputavam o governo do Acre: o dos grandes seringalistas e o dos liberais. O governo do Amazonas apoiava a causa acriana, porém temia o fortalecimento político dos seringalistas locais. Eles podiam resistir à incorporação do Acre ao estado do Amazonas. É por isso que o governador preferia os liberais como Gentil Norberto e Rodrigo de Carvalho e com eles mantinha contato. Ambos mantinham vínculos com os comerciantes e políticos de Manaus, tanto é que faziam rotineiras viagens à Manaus.
É relevante lembrar que a própria aclamação de Plácido de Castro como governador do Estado Independente do Acre só aconteceu por causa da bem-sucedida articulação que Rodrigo de Carvalho fez entre os seringalistas locais e o governador do Amazonas. Experiente como era na política, Silvério Nery já havia desconfiado das pretensões políticas de Plácido de Castro, tanto é que teve que ser convencido por Rodrigo de Carvalho de que o “novato” não resistiria ao plano de incorporar o Acre ao Amazonas, vejamos:

Plácido é indiferente que isso (o território do Acre) seja do Amazonas. A mim (Rodrigo de Carvalho) ele (Plácido de Castro) diz sempre: isso (o Acre) não pode ser estado; há de ser do Amazonas; já vê Vossa Excelência (Nery) que ele é amigo [...] Combinei com os oficiais em aclamarmos o Plácido governador [...] por isso, no dia da tomada de Porto Acre o Dr. Pimenta em nome dos acreanos vai aclamá-lo. Só assim teremos o Acre do Brasil e com certeza do Amazonas. (Rodrigo de Carvalho ao governador do Amazonas, apud OURIQUE, 1907, p. 417, grifo nosso).

Esse documento é mais um forte indício de que Plácido de Castro não era o líder político da causa acriana, mas que o sucesso militar e a conveniência política o fizeram governador do Acre. O apoio político de Rodrigo de Carvalho não era gratuito, ele queria minar as pretensões que Gentil Norberto nutria de ser governador do Acre. Com Plácido de Castro no poder, Dr. Rodrigo julgava que conseguiria influenciar as decisões governamentais.
Mas tão logo alcançou prestígio nacional, Plácido de Castro recusou a tutela do veterano. Foi a partir de então que o último se tornou um desafeto do primeiro. Carvalho foi, inclusive, apontado como cúmplice do assassinato de Plácido de Castro ocorrido em 1908 (Cf. CASTRO, 2005). Abaixo algumas dentre muitas cartas que comprovam o envolvimento do governo do Amazonas na promoção da causa supostamente acriana.

Caquetá, 12 de novembro de 1901. Excelentíssimo Senhor Doutor Silvério José Nery [...] Se V. Ex. ainda pensa como quando daí vim, em junho vindouro limparei o Acre de bolivianos. Necessito que V. Ex., em abril, arranje uma lancha de confiança e me mande alimentação para 150 homens em 30 dias, 60 Mannlincher (rifles) com 15.000 tiros e 120 rifles de cano comprido com 30.000 tiros [...] com muita estima e consideração - Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 171, grifo nosso).

Caquetá, 18 de junho de 1902 - Exm. Sr. Dr. Silverio José Nery, respeitável amigo e senhor [...] basta-me 180 armas, 60 sem fumaça e 120 rifles com as competentes munições [...] Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 171).

Caquetá, 18 de julho de 1902 - Exm. Sr. Dr. Silverio José Nery, respeitável amigo e senhor [...] se pudermos obter 120 rifles e 40.000 tiros faremos o assalto [...] com muita estima e consideração - Rodrigo de Carvalho. (Apud OURIQUE, 1907, p. 217).
         
          Acreditamos que ficou claro que o governo do Amazonas já administrava, policiava e tributava parte do território que hoje compreende o atual estado do Acre. As terras que banhavam o rio Acre, conhecidas simplesmente como “Acre”, faziam parte do município Antimarí, que depois ficou conhecido como Floriano Peixoto. Acontece que do ponto de vista dos tratados internacionais, a interpretação hegemônica que se tinha até o final do século XIX era de que aquelas terras eram estrangeiras.
          Isso significava tantos os brasileiros que colonizaram o “Acre” quanto o governo do Amazonas que o administrava agiam de forma ilegal e criminosa. No entanto, a região acriana movimentava muito dinheiro e por não ser fiscalizada por alguém de direito, o oportunismo dos “bandeirantes” brasileiros acabou prevalecendo. A maioria dos jornais da época e o próprio Itamarati dizia que os nordestinos agiram de boa-fé, pois consideravam-na “terras sem dono”.
          No entanto, se a presunção da inocência é, em parte, cabível aos humildes nordestinos, para o governo do Amazonas e agenciadores de mão de obra, ela é mero discurso fiador do imperialismo brasileiro. O governo federal brasileiro fez vistas grossas ao que estava acontecendo, da mesma forma que Portugal havia feito com os bandeirantes que invadiam o território colonial espanhol na América do Sul no século XVII.
  As fronteiras entre o Brasil e a Bolívia já estavam delimitadas pelo Tratado de Ayacucho (1867) e ratificadas pelo Protocolo de 1895. A única coisa que faltava era realizar a demarcação, ou seja, definir os marcos físicos constituintes da linha de fronteira. Em 1895, Brasil e Bolívia indicam o boliviano Juan Manoel Pando e o brasileiro Gregório Thaumaturgo de Azevedo para fazerem parte da comissão demarcadora dos limites fronteiriços estabelecidos no Tratado de Ayacucho:

Deste rio [o Madeira] para oeste, seguirá a fronteira por uma paralela, tirada da sua margem esquerda na latitude sul de 10º 20' a encontrar o rio Javari. Se o Javari tiver as suas nascentes ao norte daquela linha leste-oeste, seguirá a fronteira desde a mesma latitude por uma reta a buscar a origem principal do dito Javari. (Disponível em: . Acesso em fev. 2013, grifo nosso).

          Então, a primeira missão da comissão era identificar a nascente do rio Javari. Constatada a coincidência entre a latitude da nascente do Rio Madeira com a da cabeceira do rio Javari, a linha divisória “leste-oeste” entre os dois países seria uma reta na paralela de 10º 20'. Neste caso, o território que compreende o atual Estado do Acre ficaria dividido em dois: o Acre setentrional, ao norte da linha, que seria brasileiro; e o Acre meridional, ao sul da linha, que seria boliviano.
Após os estudos, Thaumaturgo de Azevedo constatou que a cabeceira do rio Javari realmente ficava ao norte da paralela 10º 20'. Isso significava dizer que a divisão entre os dois países se daria por uma linha “oblíqua", ou seja, uma geodésica "leste-oeste”. No mapa a seguir a referida linha seria a hipotenusa do triângulo retângulo que representa o território até então incontestavelmente boliviano. 

Uma fronteira baseada na linha paralela "leste-oeste", traçada na latitude 10º 20', já daria grandes prejuízos aos brasileiros. Com a oblíqua, a situação chegava ao extremo, pois tornava bolivianos tanto o Acre meridional, quanto o setentrional. A fim de defender os interesses econômicos dos amazonenses, Thaumaturgo de Azevedo advogou que os cálculos sobre a nascente do rio Javari feitos pelo Barão de Tefé em 1874 deveriam ser alvos de uma revisão.
O Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Carlos Augusto de Carvalho, até que demonstrou simpatia pelas petições de Thaumaturgo de Azevedo. Mas fora substituído no início do mês de setembro de 1896 pelo militar Dionísio Cerqueira. O novo ministro se posicionou a favor da soberania boliviana na região acriana e Thaumaturgo de Azevedo passou a dizer que não realizaria demarcações contra o Brasil (Cf. AZEVEDO, 1901). Dizia que se a "linha oblíqua" do Protocolo "Carvalho-Medina" de 1895 prevalecesse, o Estado do Amazonas perderia até 69% de sua renda obtida com a produção e comercialização da borracha (Cf. TOCANTINS, 2001, Vol. I, p. 213). O resultado foi que Dionísio Cerqueira o exonerou do cargo no início de 1897.
Em 23 de setembro de 1898, um novo Protocolo foi assinado já com os dados geográficos atualizados. Não havendo mais como questionar a titularidade boliviana sobre a região, em fins do mês seguinte, o Itamarati autorizou a instalação de um posto alfandegário andino no rio Acre. Em 15 de novembro de 1898, Olinto de Magalhães substitui Dionísio Cerqueira no Ministério das Relações Exteriores. Pressionado pela opinião pública e pelos políticos de Manaus, o novo ministro assina um novo Protocolo com a Bolívia em 30 de outubro de 1899. Nele se previa uma nova expedição para constatar a nascente do rio Javari. Para frustração dos brasileiros, mais uma vez, o resultado não alterou por demais os cálculos anteriores.
Não havendo mais como questionar o fato de que a nascente do rio Javari se encontrava ao norte da paralela 10º 20', o governo do Amazonas mobilizou políticos, intelectuais e militantes para defenderem a sua causa. Foi então que o Deputado Federal Serzedello Corrêia, o senador Rui Barbosa e o ex-chefe da comissão demarcatória brasileira Thaumaturgo de Azevedo passaram a dizer que o Itamaraty dava interpretação errônea ao Tratado de Ayacucho. Diziam que independente do lugar onde estivesse a nascente do Javari, bastaria traçar um meridiano a partir dela até chegar a paralela 10º 20’. O ponto de encontro dessas duas retas perpendiculares, a chamada “linha quebrada”, serviria de marco final da linha divisória iniciada no rio Madeira.

Essa "nova" interpretação foi adotada pelo novo Ministro das Relações Exteriores, Barão do Rio Branco. Ele toma posse em 03 de dezembro de 1902, e passa a questionar a soberania boliviana ao norte da paralela 10º 20'. Adere à defesa da “linha quebrada” como divisória entre os dois países. Assim o fez para tornar o Acre Setentrional uma área litigiosa e justificar e legitimar a ocupação militar da região. A Bolívia não teve outra alternativa a não ser aceitar o modus vivendi proposto pelo Brasil e posteriormente desistir do Acre. Dizia o diplomata boliviano "ese funesto modus vivendi es el acto más deplorable que registran los anales de nuestra penosa historia diplomática"(ARAMAYO, 1903, p. 39).
Resumindo, somente a “Revolução Acriana” serve para explicar a anexação das terras que hoje compõem o estado do Acre. Quem de fato estava por trás de tudo, orquestrando o abrasileiramento do “Acre”, não eram os acrianos e sim o governo do Amazonas. Basta dizer que a Junta Revolucionária do Acre era composta por vários “testas de ferro” daquele Estado, dentre os quais Rodrigo de Carvalho e Gentil Norberto. Além do mais, até mesmo a “nova” interpretação do Tratado de Ayacucho, calçada nos interesses amazonenses, colaborou para a assinatura do Tratado de Petrópolis, já que, após a ocupação militar do Acre Setentrional pelas tropas do exército brasileiro em 3 de abril de 1903[5], foi um ultimato à Bolívia.
Apesar de todo esforço amazonense, a região anexada ingressou no corpo da pátria na condição de Território administrado diretamente pela União. Isso, além de ser inconstitucional, feria diretamente os interesses do Amazonas. Mas os políticos desse Estado não se conformaram, e decidiram disputar contra a União o direito sobre o Acre por meio de ações políticas e jurídicas.
A primeira tentativa oficial se deu em dezembro de 1905, quando o senador Jonatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei ao Congresso Nacional visando a anexação do Território do Acre ao estado do Amazonas. A segunda tentativa aconteceu, no mesmo mês, quando o Amazonas contratou o renomado jurista Rui Barbosa para atuar como advogado em uma Ação Civil Originária (Nº 9) aberta no Supremo Tribunal Federal contra a União. A defesa foi argumentada em duas grandes obras: A transação do Acre no Tratado de Petrópolis (1906) e O Direito do Amazonas ao Acre Setentrional (1910). Apesar de o parecerista ter dado ganho de causa ao estado do Amazonas, a Ação Civil nunca foi julgada pelo Supremo.
A Constituição de 1934, em suas Disposições Transitórias, mais precisamente em seu artigo 5º, afirmava que a União indenizaria o estado do Amazonas pelos prejuízos que teve pela perda do Acre. Subtende-se, com isso, que de fato o Acre havia assumido o formato de “Território” de maneira ilegal e que toda ou parte de sua extensão geográfica deveria pertencer ao estado do Amazonas, caso contrário, não haveria necessidade de indenização, que, ao que tudo indica, veio a ser paga em 1950.




[1] Dizia-se que queria chegar até a Bolívia para adquirir gado “para baratear a subsistência da população da capital amazonense”. (RIBEIRO, 2009, p. 19).
[2] Vários fatores favoreceram a invasão: a) o território era rico em seringueiras; b) os bolivianos não protegiam as suas fronteiras; c) os brasileiros tinham facilidades creditícias para expandir a produção gomífera para além das fronteiras; etc.
[3] Por conta da legislação da época, a intimação não poderia ser um ato oficial do governo do Amazonas, devido a isso, José Carvalho estrategicamente recolheu a assinatura de 57 seringalistas em um manifesto contra a delegação boliviana.
[4] As cartas trocadas entre Plácido de Castro e Silvério Nery foram poucas se comparadas com a intensa comunicação que Carvalho e Norberto mantinham com o governador. Essa situação reforça a suspeita de que Plácido de Castro tenha sido um “prestador de serviços” da estirpe de Galvez. É bom que se diga que a história de que Plácido de Castro somente aceitaria o comando militar da “revolução” caso o governo do Amazonas não interferisse nela, tem procedência duvidosa, uma vez que não aparece nos apontamentos do próprio Plácido de Castro. Provavelmente foi mais uma manipulação histórica, dentre as muitas inventadas por Lima (1998, p. 89).


[5] O Brasil já havia obtido a neutralidade norte-americana e a desistência do Bolivian Syndicate (Cf. CARNEIRO, 2015b). Nessa conjuntura, a Bolívia não tinha condições de resistir às imposições do Brasil.