segunda-feira, 4 de outubro de 2021

Carneiro, Eduardo de Araújo. Não foi revolução nem acreana. /Eduardo de Araújo Carneiro. Rio Branco: EAC Editor, 2021, 191 p.: il.

 


INTRODUÇÃO

 

            Essa obra é parte do relatório de pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) entre agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, a saber: teria sido a anexação das terras banhadas pelo rio Acre uma dádiva dos heróis acreanos?  

Os livros que lia sobre o assunto me diziam que sim, a publicidade governamental divulgada nas datas comemorativas e os discursos que anualmente ouvia nas paradas cívicas também. Porém, suspeitava de que havia algo de “podre no reino da Dinamarca”, como diria Hamlet, no livro de Shakespeare.

          Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na historiografia acreana e sim a ausência de algumas personalidades que eu, inocentemente, também considerava dignos de mesma honra.

Obviamente que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes acontecimentos”. Sei que os “homens” e os “acontecimentos” não são “grandes” nem “pequenos” em si mesmos. A valoração ou depreciação deles depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que sempre tem suas narrativas documentais preservadas.

  Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por interesses econômicos, como foi o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar os fatos e avaliar quais deles realmente foram decisivos para a nacionalização da região do Acre ao Brasil. E foi isso que fiz em meus livros anteriores e é o que continuo fazendo neste.

O livro foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de “revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política na Questão do Acre. No segundo capítulo, mostro a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre, pré-requisito fundamental da anexação.

No terceiro, explico que os embates militares contra os bolivianos em fins do século XIX se deu em território administrado, embora ilegalmente, pelo Estado do Amazonas. E que o termo “Acre”, na época, significava tão somente um rio que fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense de Floriano Peixoto. Portanto, a suposta “revolução” foi adjetivada como acreana por ter os seus principais eventos ocorridos às margens do rio Acre que, naquela ocasião, fazia parte da jurisdição do Estado do Amazonas.

Esse livro faz parte de um projeto revisionista que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consiste em atitudes relativamente simples, por exemplo, no caso do processo de nacionalização das terras que vieram a se chamar Acre, em descentralizar a figura de Plácido de Castro da narrativa. Dando ao mesmo uma posição mais realista, portanto, secundária.

Afinal, ele não era o mentor intelectual da dita “revolução”, apenas foi inserido pelos amazonenses em um projeto de resistência à soberania boliviana já em andamento. A vitória em Puerto Alonso em janeiro de 1903, não anexou um palmo de terras sequer ao Brasil, no máximo, tornou-o independente. Sem dizer que não foi definitiva, já que mais soldados bolivianos se dirigiam ao local para a desforra e a região já estava “arrendada” para o Bolivian Syndicate, consórcio internacional diante do qual Plácido de Castro não significava nada.





Outra coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução ocorrida na parte sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os mesmos sentidos que têm hoje. Eles gozavam de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos atualmente têm.


Para tentar reconstituir o passado com maior fidelidade, procurei compreender as fontes documentais da época a partir das suas condições históricas de produção. Procurando entender as palavras inseridas nos documentos a partir do imaginário da época. Fiz isso por suspeitar de que as palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” não eram as mesmas de hoje, pois podia se tratar de palavras homônimas - aquelas que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos particulares, constituem-se em signos distintos.

Isso acontece porque o sentido de um vocábulo não lhe é imanente e sim convencional. A depender da situação comunicacional e dos interactantes, o sentido das palavras podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra já não é mais a mesma, ela se fez outra, embora com a mesma grafia.

Foi, por isso que fiz, às fontes documentais produzidas em fins do século XIX, a seguinte pergunta: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” naquele contexto histórico amazônico? Teria a palavra “revolução” sido empregada na época da chamada Questão do Acre com a mesma força conceitual daquela aplicada na França em 1789? Por que optaram pelo termo revolução e não subversão, rebelião ou revolta?

Eu defendo que o conflito armado entre brasileiros e bolivianos foi mal “etiquetado”. O fato de o evento às margens do rio Acre ter sido qualificado como revolução não é suficiente para transformá-lo em uma revolução.

As etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se diz “História Moderna”, cria a falsa ideia de que todos os fatos ocorridos na Europa, durante os séculos XV e XVIII, tenham sido “avançados”. Acontece que não dá para aceitar como obra do progresso, fenômenos como o colonialismo, o poder absolutista, o tráfico de seres humanos, as guerras religiosas, etc.

Sendo assim, a opção pelo adjetivo “moderno”, só se torna compreensível, se considerada a inserção dele em um projeto etnocêntrico da História. É o mesmo caso das chamadas “Grandes Navegações”, etiqueta criada para nos induzir a acreditar que as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV foram as primeiras do mundo. A verdade é que os chineses já dominavam os mares antes dos europeus e isso com tecnologias bem mais avançadas.

E os fatos políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Até que ponto não é mero “preciosismo” chamá-lo “Revolução”? Acaso a utilização da etiqueta “Revolução de 1930” não foi uma decisão política de dissimular o Golpe de Estado? Ou uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia?

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Será esse o mesmo caso da dita “revolução acreana”? A utilização do termo não estaria inserida em um projeto de comoção pública nacional em favor da causa? Além disso, por que eu deveria acreditar cegamente no que estão dizendo? Não seria melhor analisar os documentos primários à luz das relações de poder daquele contexto histórico?

Se alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que, pelo Código Penal em vigor, demonstrou ser um criminoso, por que eu tenho que render-lhe tributos? Não seria mais sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu?

Acaso a fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja como herói e não como um assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não fora um mero fetiche usado para encobrir os verdadeiros interesses em jogo?


Infelizmente, essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de “penduricados” ideológicos e “etiquetas” classificatórias. Então, a história consumida como verdade na escola é apenas uma visão cômoda, romântica e apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania consciente e a atuação política crítica no tempo presente.

A história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela, até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.

Há, porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que se torna muito difícil mudar-lhe os enfeites. Isso porque eles agradam a “gregos e troianos”, pois é útil politicamente, independentemente da classe dominante vigente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Não é em vão que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece até hoje “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.


Independente do grupo político que governa o Acre, no dia 6 de agosto, feriado estadual em que se comemora o início da chamada Revolução Acreana, os políticos da sempre exaltarão o feito e manifestar o orgulho de ser acreano. Nas paradas cívicas, redes sociais ou tribunas, os políticos, independente de partidos, farão questão de dizer que os acreanos foram os únicos a lutarem para ser brasileiros. Diante de um passado original supostamente tão grandioso, persuadem os acreanos a serem otimistas no tempo presente, confiando em seus líderes, que aparecem como candidatos a novos heróis.

Como historiador, já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano, com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico, patriótica, cordial e ecológico. Entretanto, quando a verossimilhança é ensinada como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.  

Os fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a suposta grandeza do povo acreano, porém, o resultado já não é mais a História, e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada” ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático, festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.

Sob o efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.



Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos devido ao consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate. Afinal, o consentimento da sociedade em torno de uma memória não é capaz de transformar essa memória em história, muito menos em verdade. A memória, assim como as tradições em torno dela, pode ter sido inventada. A aceitação coletiva pode gerar um consenso em torno de um passado que nunca tenha existido de fato.

 

 Boa leitura!

Rio Branco, 18 de dezembro de 2020.

 

domingo, 4 de abril de 2021

Professor Eduardo Carneiro da UFAC publica mais um livro sobre história do Acre - Não foi Revolução nem Acreana


 

INTRODUÇÃO

 

            Essa obra é parte do relatório de pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas (UFAM) durante o período de agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação da UFAM teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, desde a graduação em História, a saber: teria sido a anexação do Acre uma dádiva dos heróis acreanos?  Os livros que li sobre o assunto dizem que sim, os discursos que anualmente ouvi nas paradas cívicas também. Porém, assim como o príncipe Hamlet, no livro de Shakespeare, eu também suspeitava de que “havia algo de podre no reino da Dinamarca”.

          Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na historiografia acreana e sim a ausência de alguns que considerava dignos de mesma áurea, como o Barão do Rio Branco e os governadores do Amazonas Ramalho Júnior e Constantino Nery. Obviamente que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes feitos”. Sei que os “homens” e “feitos” não são “grandes” ou “pequenos” em si mesmos e que a valoração ou depreciação deles depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que escreveram as narrativas documentais preservadas.

 


 

  Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por interesses econômicos como é o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar os fatos e avaliar quais deles foram realmente decisivos para a nacionalização da região do Acre ao Brasil. E foi isso que eu fiz em meus livros anteriores e é o que continuo fazendo neste. Em outras oportunidades (CARNEIRO, 2017) eu já havia explicado a importância da atuação diplomática do Itamarati na nacionalização do Acre e como o Movimento Autonomista Acreano foi minando a figura do Barão do Rio Branco como herói regional.

No presente livro mostro a participação do Estado do Amazonas para o sucesso da anexação do Acre. Em 1861, o governo do Amazonas contratou o amazonense Manoel Urbano da Encarnação para mais uma expedição de reconhecimento, que subiu o rio Purus e alcançou o atual rio Acre e também o Xapuri. Ele é considerado, por muitos, como o “descobridor do Acre”, pois de acordo com a hipótese defendida por Castelo intelectuais amazonenses o Branco (1950), ele teria sido o primeiro a identificar seringueiras nessa região do Purus[1].

Essa foi a forma que encontrei para pôr em prática o meu projeto revisionista, aquele que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consistiu em atitudes simples, como a de descentralizar a figura de Plácido de Castro na Questão do Acre, bem com a dos próprios moradores do rio Acre que resistiram a soberania boliviana na região em fins do século XIX e início do XX.

Outra coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução, na parte sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os sentidos que têm hoje. Eles gozavam de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos têm atualmente.

Para tentar reconstituir o passado com maior fidelidade, eu procurei compreender as fontes documentais da época a partir das condições históricas de emergência de delas. Afinal, é bom lembrar que o sentido de um vocábulo não lhe é imanente; é mera convenção. Sendo assim, a depender da situação comunicacional e dos interactantes, os sentidos podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra também se torna outra, embora a mesma grafia seja preservada. As palavras homônimas são todas aquelas que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos particulares, constituem-se em signos distintos.

 


Tendo em vista isso, perguntei às fontes documentais que estudava: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução” no contexto histórico amazônico em fins do século XIX? O que se queria realmente dizer com o emprego delas? Teria o narrador dos fatos ou o enunciador do discurso plena clareza terminológica ao empregar o conceito de “revolução” para caracterizar a resistência armada feita pelos brasileiros contra os bolivianos? O fato de o acontecimento ter sido qualificado pelos protagonistas do evento como revolução, é suficiente para o feito se tornar revolução? Qual o sentido de revolução que se tinha? Por que revolução e não subversão, rebelião ou revolta?

O livro foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de “revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política no caso do Acre.  No segundo capítulo, evidencio a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre. No último capítulo, exponho as razões pelas quais acredito que a resistência à soberania boliviana na região do rio Acre não tenha sido acreana. 

 


 

          Se eu estiver com a razão, temos mais um fenômeno histórico mal “etiquetado”. As etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se diz História Moderna, somos levados a crer que fatos ocorridos na Europa durante os séculos XV e XVIII, como o colonialismo e o tráfico de seres humanos, foram práticas sociais “avançadas”. O adjetivo “moderno” é uma etiqueta que faz parte de um projeto etnocêntrico de História. Quando se estuda as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV com a etiqueta “Grandes Navegações”, somos induzidos a pensar que eles foram os primeiros a se aventurarem nos mares. A verdade é que os chineses, antes dos europeus, já dominavam os oceanos, com tecnologias bem mais avançadas.

Até que ponto não é “preciosismo” chamar de “Revolução” os fatos políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Seria a etiqueta “Revolução de 1930” uma dissimulação ao Golpe de Estado que de fato aconteceu? Uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia? Será esse o mesmo caso da dita “revolução” “acreana”?

Por que tenho eu que acreditar acriticamente no que estão dizendo? Não seria melhor recorrer aos documentos primários e analisá-los à luz das relações de poder emaranhadas do contexto histórico? Se um dia alguém chamou de moderno o Estado Absolutista europeu do século XV, por tenho que dar credibilidade? Se alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que foi assassino, e tal fama chegou até mim, por que tenho que aceitar sem pesquisar? Não seria mais sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu? Acaso a fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja como herói e não como assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não foi mero fetiche a encobrir a verdade? Até que ponto o patriotismo ou o nacionalismo pode justificar atos criminosos como o de tirar a vida de outrem?

Infelizmente, essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de “penduricados” ideológicos e “etiquetas” interpretativas. Então, a história é consumida como verdade, porém, é apenas uma visão cômoda, romântica e apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania consciente e a atuação política crítica no tempo presente.

A história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela, até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.

Há, porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que se torna muito difícil mudar-lhes os enfeites. É que o formato agrada a “gregos e troianos”, independentemente da classe dominante, ele é usado politicamente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Lembro que o abuso da história sempre foi um instrumento de poder bastante usado por governantes com tendências autoritárias ou populistas. É assim que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.

 


 

Independente do grupo político que esteja governado o Acre, no dia 6 de agosto, feriado estadual em que se comemora o início da chamada Revolução Acreana, os políticos da hora sempre irão exaltar o feito e manifestar o orgulho de ser acreano. Nas paradas cívicas, redes sociais ou tribunas, os políticos vão fazer questão de dizer que os acreanos foram os únicos a lutarem para ser brasileiros. Diante de um passado original supostamente tão grandioso, persuadem os acreanos a serem otimistas no tempo presente, confiando em seus líderes, que aparecem como os novos candidatos a heróis.

Como historiador, já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano, com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico, patriótica, cordial e ecológico. Quando a verossimilhança é ensinada como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.  

 


 

Quando os fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a suposta grandeza do povo acreano, quando conseguem, já não se temos mais a História e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada” ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático, festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.

Sob o efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.

Se, ao terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente, já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos por causa do consumo abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado oferece gratuitamente sem qualquer debate.

 

Boa leitura!



[1] Apesar da importância de Manoel Urbano, quem de fato ficou consagrado como “fundador do Acre” foi o cearense João Gabriel de Carvalho e Melo. Segundo a tradição, em 1857, foi ele quem primeiro colonizou uma parte do território que hoje pertence ao Estado do Acre, a saber, a região próxima da foz do rio Purus. Anos depois, expandiria a iniciativa rio acima.

domingo, 21 de março de 2021

Eduardo de Araújo Carneiro. O conceito de revolução e a “Revolução Acreana”

 

 O conceito de revolução e a “Revolução Acreana”

 

“Aqueles que foram convocados para a luta armada contra os movimentos de contestação ligados aos mais diversos motivos no Brasil do século XIX, se referiam a essas sedições como revoltas, motins ou revoluções”.

 (DANTAS, 2011, p.7).

 

          Os documentos que temos sobre a “Revolução Acreana” são aqueles escritos pelos líderes dela, os mesmos que se nomearam “revolucionários” e qualificaram o evento como “revolução”. Porém, que significado tem essa palavra para um seringueiro que lutou ao lado de Plácido de Castro contra os bolivianos e depois da nacionalização do Acre, continuou trabalhando como um semiescravo no seringal, continuou endividado, subnutrido pela fome, analfabeto e isolado de todos em varadouros “mata adentro”? Qual o sentido de “revolução” para os nativos mortos, estuprados, escravizados e órfãos pelas mãos do “único povo que lutou para ser brasileiro”?

          Acaso os membros da Junta Revolucionária Acreana que orquestravam os ataques contra às autoridades bolivianas tinham em mente alguma mudança na estrutura daquela sociedade movida pela borracha? Algum projeto político-social que derrubasse o carcomido sistema de aviamento[1]? Será que esses revolucionários defendiam reforma agrária em favor dos seringueiros? Porque se diziam “revolucionários”? Será que pensavam que bastava confrontar a soberania boliviana na região para que eles ingressassem no “hall da fama” dos revolucionários”? Será que eram inocentes ao ponto de acharem que bastava invocar o patriotismo como motivação de um levante armado para transformá-lo em uma revolução? Ou consideravam que qualquer movimento separatista já era em si uma “revolução”?

          É sabido que a escolha da data da proclamação do Estado Independente do Acre[2] para o dia 14 de julho de 1899 sofreu influência da Revolução Francesa, que convencionalmente também teve início em 14 de julho. Entretanto, essa relação de simpatia ou até de idolatria expressa na decisão pela data não autoriza Luis Galvez a descrever seu governo como uma “revolução”. Será que o fato de um evento ser concebido como revolução faz dele uma revolução? Porque não chamou de “rebelião acreana”, “insurreição acreana”, “resistência acreana”, “levante acreano” ou “revolta acreana”? Afinal, todos esses outros conceitos pertenciam ao vocabulário da época.

          Revolução, rebelião, revolta[3] e insurreição são manifestações sociais contestatórias da ordem social e, por isso, têm a semelhança de constituírem-se de atos de desobediência ligados à violência. A revolução, diferente das outras três, é contrária à ordem social como um todo, já as outras são contrárias apenas pontualmente[4]. Alem disso, a revolução é caracterizada pelos seus resultados[5], diferente das outras três que podem ser sufocadas e nada conseguirem, ou no máximo, conseguirem reformas. Enquanto as outras três procuram melhorar aspectos da sociedade dentro da ordem jurídica-institucional; a revolução procura melhorar a sociedade como um todo, destruindo a ordem vigente e construindo outra superior, ou seja, há uma mudança ilegal das condições de legalidade, o que exige ação planejada, contrário de boa parte das agitações sociais que são improvisadas. 

Só se pode falar de Revolução, quando a mudança se verifica com vistas a um novo início, quando se faz uso da violência para constituir uma forma de Governo absolutamente nova e para tornar real a formação de um novo ordenamento político, e quando a libertação da opressão visa pelo menos à instauração da liberdade. (ARENDT, 1963, p. 28).

          A revolta, do ponto de vista militar, era um motim armado, ou seja, uma ação coletiva ou individual de desobediência à autoridade constituída com perigo de letalidade. Do ponto de vista civil e popular, era toda manifestação coletiva de indignação ou insatisfação contra uma afronta sofrida, uma autoridade ou uma decisão tomada por ela considerada injusta ou imoral. Essa palavra tem raiz etimológica muito próxima da revolução, pois guarda o sentido de “dar voltas”, consequentemente, não ficar parado, remexer, agitar, botar para trás. Diferente da insurreição, ela pode ser direcionada a uma instituição ou agente que não seja o Estado.

          A insurreição era a forma como antigamente designava as revoltas lideradas por escravos. Geralmente ocasional, sem organização ou planejamento quanto aos resultados. Depois passou a significar uma espécie de antessala da revolução ou até mesmo usado para se referir àqueles projetos revolucionários que não foram bem-sucedidos. Etimologicamente a palavra insurreição vem do latim insurrectĭo e significa “movimento de baixo para cima”, sublevar, “levantar-se contra”. Já a palavra “rebelião” deriva do latin rebellare, que significa “fazer guerra contra” ou “contra-atacar”. A insurreição pretende derrubar a autoridade ou destruir um estado de coisas que considera ilegítimo. Já a rebelião é desobediência a uma autoridade constituída legalmente ou por tradição.

Todas essas palavras faziam parte do vocabulário da época em que se deu o conflito armado entre brasileiros e bolivianos no Acre (rio) em 1899 a 1903. Tanto é que foram empregados em matérias de jornais indistintamente para se referir ao evento, o que, por si, já demonstra a celeuma conceitual existente no imaginário da época. Entretanto, a palavra escolhida pelos líderes “acreano-amazonenses” foi o da “revolução” e, por coincidência ou não, este foi o que sobreviveu, este foi o que se monumentalizou sobre os demais.

No sistema de busca da hemeroteca digital da biblioteca nacional encontramos: “revolta acreana”, “insurreição acreana”, “guerra no Acre”, “levante no Acre”, “rebelião acreana”, “resistência acreana”, além, é claro, da expressão “revolução acreana”, dentre outros. Para o período de 1890-1899, foi encontrado 13 ocorrências para “revolução do Acre”; 01 ocorrência para “rebelião do Acre”; 02 ocorrências para “guerra do Acre”. A expressão “do Acre” adjetivando o substantivo em vez do gentílico “acreana”, mostra que a questão identitária só veio a se consolidar a partir da derrocada da República de Galvez, nos anos 1900.

 Como é possível de observar na imagem acima, para o período de 1900 a 1909, encontramos 25 ocorrências para “guerra do Acre” e 08 ocorrências para “guerra acreana”. Para a expressão “revolta do Acre”, encontramos 30 ocorrências; já para “revolta acreana” 14.  Para “rebelião acreana” tivemos 05 casos e 02 para “rebelião do Acre”. “Insurreição acreana” tivemos 20 casos. “Levante acreano”, 02. “Levante no Acre”, 03. “Revolução Acreana”, 170 ocorrências. “Revolução do Acre”, 187. 

Em sua famosa Exposição de Motivos, o próprio Barão do Rio Branco diz: “A nossa intervenção não visava reprimir a insurreição, mas sim proteger os nossos compatriotas” (ITAMARATI, 2012, p. 44, grifo nosso). Em outro momento fala de “insurgentes brasileiros” (idem, 54). Também diz: “as revoltas desses brasileiros contra a dominação boliviana” (idem, p. 53). Menciona que durante o processo arbitral, os acreanos continuariam “em conspirações e revoltas contra a autoridade boliviana”, depois diz “a agitação política [...] espetáculo da constante revolta desses brasileiros (idem, p. 63, grifo nosso). Até o eminente ministro tem dificuldades de enquadrar o evento em um só conceito, entretanto, há de se notar, que não menciona o conceito de “revolução”.

Diante de tão rica opção vocabular, porque a opção pela “revolução”? Já dissemos que esse conceito invoca uma carga emocional inconsciente de otimismo quanto ao futuro, por se tratar de uma profunda transformação em favor do progresso e da modernidade. O exemplo maior seguido por todos os que a empregavam e os que a recepcionavam era o da Revolução Francesa. Essa carga simbólica positiva era benéfica à causa, pois as pessoas se sentiam honradas com a reputação de “revolucionário”.

       Diferentemente dos casos de insurreição, rebelião e revolta que permeavam o imaginário social como tipos criminais. Havia uma diferença muito grande em termos de “brio social” entre ser um rebelde e um revolucionário ou entre esse último e um revoltado. O adjetivo “rebelde” era difamatório e estigmatizante, socialmente mal-visto. Há de convir que na história contata sob a ótica do vencedor não caberia outra ótica que não fosse a do acreano como herói. Abaixo, alguns trechos de Códigos Penais da época.

 

Resistência: Art. 124. Opor-se alguém, com violência ou ameaças, a execução de ordens legais emanadas de autoridade competente, quer a oposição seja feita diretamente contra a autoridade, quer contra seus agentes ou subalternos. Prisão de 1 a 3 anos. (Código Penal Brasileiro de 1890). 

Conspiração: Art. 115. É crime de conspiração concertarem-se vinte ou mais pessoas para: § 3º Tentar, diretamente e por fatos, a separação de algum Estado da União Federal[6]. Pena - de reclusão por um a seis anos. (Código Penal Brasileiro de 1890). 

Rebelion: Artículo 175°. Es rebelion el levantamiento o insurreccion de una porcion mas o menos numerosa de subditos de la República, que se alzan contra la Patria, o contra el Gobierno Supromo lejítimo de la Nacion, negándole la obediencia debida, o procurando sustraerse de ella, o haciéndole la guerra con las armas. (Código Penal Boliviano de 1834. Em vigor na época). 

Rebelião. Art. 110. Julgar-se-á cometido este crime, reunindo-se uma, ou mais povoações, que compreendam todas mais de vinte mil pessoas, para se perpetrar algum, ou alguns dos crimes mencionados nos Artigos 68 (destruir a independência do Brasil), 69 (provocar uma nação estrangeira a declarar guerra ao Brasil), 85 (destruir a forma de governo)  86 (mudar a Constituição), 87 (destronar o imperador), 88 (impossibilitar o imperador de exercer o cargo), 89 (impedir o trabalho da Regência), 91 (impedir que decretos imperiais de convocação da Assembleia Geral sejam executados) e 92 (tentar impedir a realização da Assembleia Geral). Penas - Aos cabeças - de prisão perpetua com trabalho no grau máximo. (Código Penal Brasileiro de 1830).

Insurreição. Art. 113. Julgar-se-á cometido este crime, retinindo-se vinte ou mais escravos para haverem a liberdade por meio da força [... ] Art. 114. Se os cabeças da insurreição forem pessoas livres, incorrerão nas mesmas penas impostas. Penas - Aos cabeças - de morte no grau máximo. (Código Penal Brasileiro de 1830).

Revolta, Motim e Insubordinação. Art. 93. Serão considerados em estado de revolta, ou motim, [os militares] ... reunidos em número de quatro, pelo menos, e armados: 1º Recusarem, a primeira intimação recebida, obedecer a ordem de seu superior; 2º Praticarem violência, fazendo ou não uso das armas. (Código Penal da Armada e do Exército Nacional 1891 e 1899).

Os bolivianos não reconheceram o episódio como uma revolução. É preciso deixar bem claro que “revolução” é a versão dada pelos protagonistas brasileiros. “Los historiadores bolivianos prefieren la expresíon Campaña del Acre” (SÁNCHEZ-ALBORNOZ, 2001, p. 176, grifo nosso). Azcui (1925, p. 21, p.45, grifo nosso) fala de “una insurrección filibustera” e “una conflagración separatista”. Vera (2009, p. 112), fala de “rebeliones” que “recibieron el nombre de Revolución Acreana”. Ainda diz que ela é conhecida como “Guerra del Caucho para los observadores externos al conflicto”. Cusicanqui (1978, p. 306, grifo nosso) fala em “rebelión encabezada, esta vez, por Plácido de Castro, en agosto de 1902”. Zambrana (1904, p. 26) informa que Puerto Alonso estava sendo bloqueada por “piratas y aventureros”. E o cônsul-geral dos EUA Eugene Seeger ajuizou ser “um ato de pirataria moderna” (apud BANDEIRA, 1978, p. 161).

Acontece que a expressão “Revolução Acriana” foi a que prevaleceu e é utilizada para se referir à resistência armada efetivada pelos brasileiros contra as autoridades bolivianas que propuseram estender a soberania andina até o rio Acre entre os anos de 1899 a 1903. Goycochêa (2007, P. 50) e Magalhães (1941) afirmam ter acontecido “quatro revoluções acreanas” no período.  Sotomayor (2013) enumera cinco revoluções.

O escritor Ferreira Reis (1937) enumera apenas uma “Revolução” e dia que esta reuniu um conjunto de ofensivas à soberania boliviana. A primeira foi aquela liderada por José Carvalho; a segunda, a liderada por Luiz Galvez; a terceira, a liderada por Orlando Lopes e Rodrigo de Carvalho; e por último, aquela liderada por Plácido, também qualificada como a “Grande Revolução”.

O escritor Bastos (1969, p. 64, grifo nosso) diz que “a revolução da borracha passou por três etapas bem definidas: a deposição das autoridades bolivianas por José Carvalho; a proclamação da República do Acre por Luis Galvez, e a retomada da ação com a vitória de Plácido de Castro sobre as tropas bolivianas”. Já Calixto (1985) afirma que hão houve revolução alguma no Acre.


Não importa aqui saber se foram uma, três ou cinco revoluções, o que queremos é que o leitor compreenda que uma coisa é o acontecimento empírico em si mesmo outra são as “etiquetas” conceituais postas sobre ele e as “fases” originadas em sistematizações subjetivas. O que de fato aconteceu? Brasileiros pegaram em armas contra as autoridades bolivianas na região do Acre. Como os protagonistas do acontecimento o descreveram? Como uma “revolução”. Então, a etiqueta “revolução” se sobrepõe ao evento, de modo que concebemos o evento por meio do “adesivo” que foi colado artificialmente nele.

Cientificamente, o que se espera é que o conceito seja criteriosamente escolhido, de modo que reflita com o máximo de fidelidade possível o acontecimento. Todavia, por questões políticas, por má formação acadêmica, por imperícia no manuseio dos conceitos ou por falsificação proposital da realidade os “rótulos” são mal colocados. No caso do Acre, o sentido moderno de revolução foi “torturado” a fim de que coubesse no conflito armado contra os bolivianos. Isso provocou um deslizamento de sentido que deu origem a um signo homônimo metamorfizado – simulacro.

 

1792 – França (Europa)

1889 – Acre (América do Sul)

REVOLUÇÃO

REVOLUÇÃO

Conteúdo semântico:

Desobediência às autoridades tidas como ilegais.

 

Derrubar governo estrangeiro considerado ilegítimo.

 

Lutar em armas contra o estrangeiro em defesa do solo.

 

Separatismo.

Conteúdo semântico:

Guerra Civil contra o governo nacional com o fim de tomar o Estado e promover uma transformação radical da sociedade.

 

 

Derrubar uma ordem social e construir outra mais justa e superior no lugar dela.

 

 

 

            Destaco três apontamentos para melhor identificarmos a natureza da dita “Revolução Acreana”: a) a região do Acre foi ocupada como brasileira; b) a região, depois de ocupada, foi dada à soberania boliviana; c) a “revolução” foi feita para garantir novamente a soberania brasileira na região. Sendo assim, foi um movimento social restaurativo da ordem, melhor dizendo, um movimento reacionário cujo o objetivo era garantir que nada fosse mudado.

          Além do mais, no caso do Acre, não havia um “Antigo Regime” a ser superado por estar travando o progresso da região, também não havia uma utopia de se construir uma sociedade melhor[7]. O ideal perseguido pelos franceses era a “modernidade”[8]; já o dos acreanos, ao menos retoricamente, era o “ser brasileiro”. Sem dizer que o status quo da sociedade gomífera, as relações sociais, os valores, os costumes e instituições não mudaram em nada, a “revolução” não os alcançou. Seria “revolução” um movimento que tem por finalidade apenas a conservação da nacionalidade? E as outras dimensões da vida social, ficariam na mesma?[9]


Na época da Revolução Acreana, o sentido moderno de Revolução já prevalecia. O pensamento liberal já havia se espalhado pelo Brasil. Não é cabível a hipótese de que a palavra tenha sido usada com o sentido geométrico de “movimento circular de regresso” como era no século XVI e XVII. Apesar de a “Revolução Acreana” ter sido um movimento restaurativo - de retorno a uma situação anterior, era o sentido liberal de revolução que vigorava. Caso contrário, não existiria motivos para que os membros da Junta Revolucionária, alguns dos quais ligados à maçonaria, escolhessem o 14 de julho como data para a proclamação da República do Acre.

Por que empregaram a palavra “revolução” para se referirem ao levante armado contra os bolivianos? Qual a necessidade de empregar o referido termo se o objetivo era tão somente garantir a nacionalidade do território[10] banhado pelo rio Acre? Se não tinham um plano de transformação social para a sociedade gomífera porque se diziam “revolucionários”? Acaso não estamos diante de mais um caso de uso político do conceito de “revolução”? De mais um exemplo de manipulação da memória histórica?

Quando os “revolucionários” do Acre torturaram o conceito liberal de revolução com o fim de fazê-lo nomear o evento que protagonizavam, inconscientemente operaram um fenômeno linguístico de refundação semântica. O significante é o mesmo do da Revolução Francesa, porém o significado é um simulacro. O significante é graficamente homônimo, contudo o sentido do último é a carnavalização do primeiro. Carnavalizar é fazer uma imitação antípoda, que provoca risos por estar “às avessas”. Provavelmente um jacobino francês riria da expressão “Revolução Acreana” e acharia grotesco o emprego da palavra revolução nesse caso.

Certamente que há uma relação dialógica entre “Revolução Acreana” e o de Revolução Francesa, entretanto, o fato de o primeiro forçar a aproximação com o segundo, não quer dizer que o segundo legitima o primeiro. O discurso que instaurou o primeiro remete ao segundo, porém o segundo não é fiador do primeiro. O que quero dizer é que a “Revolução Acreana” quer vangloriar-se com o status de “revolução”, se inscrevendo na memória coletiva como tal, porém, sem guardar qualquer semelhança com a matriz francesa, a não ser a data “14 de julho”. É como se a primeira almejasse herdar as “pompas” e “magnificência” da segunda, mesmo sem guardar laços de parentesco com ela. 


Por tudo que falamos, deixamos claro que a semântica da palavra “revolução” que nomeou a Revolução Francesa não serve para descrever os acontecimentos decorridos no Acre contra a Bolívia. Entretanto, o uso político do termo aconteceu e hoje, por tradição, ele já está tão amalgamado aos fatos que, se tornou o “nome de fantasia” dele. O que fazer então?

 

Proposta 1: promover o uso de outro conceito que seja mais adequado para descrever o acontecimento, como é o caso da “insurreição” ou “revolta separatista”[11].

 

Proposta 2: sempre usar o termo Revolução Acreana entre “aspas” e explicar o motivo.

 

Proposta 3: Usar a expressão Revolução Acreana sem aspas, porém, historicizando o significado que a palavra tinha para os enunciadores da época, deixando claro que o conteúdo semântico da palavra era diferente daquele da palavra homônima empregada na França em 1789.

 

 

 

 

 




[1] Era a principal engrenagem de exploração econômica na região. Era benéfico a uma pequena elite brasileira, entretanto, quem mais lucrava, de fato, eram os ingleses das casas exportadoras.

[2] É bom que se diga que a proclamação da independência do Acre não fez dele um país autônomo. Para isso, era preciso o reconhecimento internacional, coisa que nunca aconteceu. O que isso implica? Implica dizer que o Acre nunca foi formalmente tido como um ente soberano - uma sociedade politicamente organizada, independente e livre. Historicamente o que se pode dizer é que houve uma tentativa de tornar o Acre um país, entretanto, foi uma tentativa fracassada.

[3] Magnoli (1997, p. 183) defende que tudo não passou de uma “revolta” contra as autoridades bolivianas.

[4] É contra o Estado e não contra algum poder do Estado.

[5] O conceito de revolução guarda em si um sentido de mudança. Não basta destruir o “velho”, o “novo” tem que ser construído qualitativamente em um nível superior. Nesse sentido, não cabe expressões do tipo “revolução abortada” para designar o movimento que tinha a pretensão de mudar, porém, devido a obstáculos, não conseguiu. A designação mais apropriada seria “tentativa de revolução”.

[6] Na hipótese de o Acre ser de fato brasileiro, ao promover a independência do Acre, os “conspiradores” acreanos praticavam crime.

[7] No caso do Acre era o passado que se sobrepunha sobre o futuro. Queriam “voltar” a ser do Brasil, desejo que os bolivianos impediam. Revolução não é a morte ou a derrota do oponente. É a realização de algo distinto do passado – é uma nova era.

[8] Sinteticamente representada nas palavras “liberdade, igualdade e fraternidade”. Entretanto, compreender a emergência da hegemonia da sociedade liberal capitalista sobre a do Antigo Regime.

[9] E o que dizer do fato de que uma “revolução” se faz internamente e não contra o estrangeiro? A “Revolução Acreana” não foi um levante da sociedade civil contra o Estado em busca de liberdade, igualdade e justiça social. Dizem-nos que a revolução foi feita por amor ao Brasil. Entretanto, é sabido que a questão da nacionalidade não passava de retórica, pois o que de fato estava em jogo eram questões fundiárias e tributárias.

[10] A nacionalidade deles já estava garantida no registro de nascimento dos mesmos. O máximo que podia acontecer é se tornarem estrangeiros (brasileiros) em território boliviano. O que estava em risco era a nacionalidade do território, consequentemente, a legitimidade do Estado do Amazonas (Brasil) cobrar impostos sobre a comercialização da borracha.

[11] Não adianta os documentos dizerem que o conflito ocorreu para nacionalizar o Acre ao Brasil, empiricamente falando o movimento armado redundou em separatismo. O Acre foi proclamado independente várias vezes – isso é fato, isso é história.