
Por Marcos Vinícius
AutonomiaNeste domingo em que o Acre completa 46 anos de autonomia política esta coluna não poderia deixar de tratar de alguns dos aspectos que caracterizaram esta luta. Um processo de conquista de direitos tão importante quanto a Revolução Acreana.
Depois da assinatura do Tratado de Petrópolis, que anexou definitivamente o Acre ao Brasil, o governo do Amazonas esperava que as ricas terras acreanas lhe fossem concedidas. Afinal de contas, o Amazonas havia investido muito dinheiro na Revolução Acreana em suas diferentes etapas. Mas os acreanos haviam arriscado não só terras e fortunas, como suas próprias vidas nas trincheiras e varadouros da guerra contra os bolivianos.
Era justo então esperar que o Acre se tornasse o mais novo estado da federação brasileira e seus cidadãos pudessem usufruir dos mesmos direitos políticos de qualquer brasileiro.Entretanto, contra todas as expectativas, o governo federal decidiu não atender a ninguém, senão a seus próprios interesses. Assim, no principio de 1904, o Acre se tornou o primeiro Território Federal da história brasileira.
Um sistema político-administrativo, não previsto na Constituição, que estabelecia que o Acre deveria ser administrado diretamente pela Presidência da Republica, a quem caberia nomear seus governantes e arrecadar impostos. Para justificar sua atitude o governo federal alegou que precisaria recuperar o capital pago ao Bolivian Syndicate (110 mil libras esterlinas) e as indenizações à Bolívia previstas no Tratado: dois milhões de libras esterlinas e construção da ferrovia Madeira-Mamoré. Por isso, toda a estupenda arrecadação de impostos sobre a borracha acreana teria que ser canalizada para os cofres da União.
O resultado imediato da surpreendente medida do governo brasileiro foi que a sociedade acreana passou a uma condição de tutela e dependência do poder executivo federal. Uma situação sem precedentes na história brasileira. Como Território, o Acre não tinha direito a uma Constituição própria como os outros estados federados, não podia arrecadar impostos - sendo mantido pelos repasses orçamentários do governo federal, que eram sempre infinitamente inferiores às necessidades de uma região onde tudo estava por fazer – e sua população não poderia votar para a ocupação dos cargos executivos ou legislativos na região.
Portanto, os acreanos que haviam conquistado pelas armas o direito de serem brasileiros, ao alcançar a vitória foram condenados a serem cidadãos de segunda categoria em seu próprio país. Enquanto isso o Presidente da Republica - de seu gabinete no Rio de Janeiro a mais de quatro mil quilômetros de distancia dos problemas acreanos - nomeava sucessivamente militares, magistrados ou políticos derrotados para governar o Território Federal do Acre.
Começava assim uma nova etapa de lutas da sociedade acreana. Pois logo se perceberia que das fabulosas somas arrecadadas na exportação de borracha e na importação de mercadorias para abastecer os seringais, o governo federal mandava apenas uma pequena parte para a administração do Território, onde não havia escolas, hospitais ou quaisquer outras estruturas públicas.
Além disso, os governantes nomeados para o Acre não possuíam o menor compromisso com a região, aproveitando as verbas públicas em proveito próprio e afastando os acreanos do exercício dos cargos políticos ou administrativos. Situação ainda mais agravada pela distancia e isolamento das cidades acreanas e pela ineficiência do poder judiciário.A autonomia política do Acre tornava-se então a nova e necessária bandeira de luta do povo acreano.
Na verdade, era uma aspiração muito simples: a transformação imediata do Território Federal do Acre em Estado autônomo da federação brasileira. E para lutar por essa causa começaram a ser fundados clubes políticos e organizações de proprietários e/ou de trabalhadores em diversas cidades como Xapuri, Rio Branco e Cruzeiro do Sul. Além disso, em poucos anos, a situação social acreana se agravaria muito pela crise da borracha e pelos desmandos cometidos pelos governantes nomeados para o Acre, obrigando a sociedade a reagir.
A radicalização dos conflitos logo produziria novas cicatrizes no tecido social acreano. Plácido de Castro, um dos líderes da oposição ao governo federal, foi assassinado (ainda em 1908) numa emboscada que todos sabiam de antemão que iria ocorrer. Em Cruzeiro do Sul, em 1910, a primeira revolta autonomista depôs o Prefeito Departamental do Alto Juruá e proclamou criado o Estado do Acre. Cem dias depois, tropas federais atacaram os revoltosos e restabeleceram a “ordem” e a tutela. Sena Madureira em 1912 e Rio Branco em 1918 também conheceram revoltas autonomistas que foram igualmente sufocadas à força pelo governo brasileiro.
A sociedade acreana viveu então um dos períodos mais difíceis da sua história. Os anos 20 e 30 foram marcados pela completa decadência econômica provocada pela queda dos preços internacionais da borracha em função da produção, infinitamente mais barata, dos seringais de cultivo asiáticos. Os seringais acreanos entraram em falência, uma boa parte dos seringueiros começou a voltar para suas regiões de origem e a desesperança geral transformou o Acre num “igapó de almas” segundo a descrição de Océlio de Medeiros no livro “A Represa”.
Toda a imensa riqueza acumulada durante os anos áureos da borracha amazônica havia sido drenada para os cofres federais relegando o Acre ao completo abandono oficial.Era tempo de se buscar novas formas de organização social e de encontrar novos produtos que pudessem substituir a borracha no comércio internacional. Os seringais se transformaram em unidades produtivas mais complexas.
Teve início a pratica de uma agricultura de subsistência que diminuía a dependência de produtos importados, uma intensificação da colheita e exportação da castanha e o crescimento do comércio de “peles de fantasia”, como era chamado então o couro de animais silvestres da fauna amazônica. Começavam assim, impulsionadas pela necessidade, as primeiras experiências de manejo dos recursos florestais acreanos.
Além disso, a escassez da mão de obra nordestina levou ao emprego crescente das comunidades indígenas remanescentes nos seringais e os comerciantes sírio-libaneses substituíram as casas aviadoras de Belém e Manaus na função de abastecer os barracões e manter ativos os seringais acreanos. Entretanto, a situação de tutela política sobre a sociedade acreana se mantinha inalterada.
Nem mesmo o novo período de prosperidade da borracha, provocado pela Segunda Guerra Mundial, foi capaz de modificar esse quadro. Durante três anos (1942-1945) a “Batalha da Borracha” trouxe milhares de famílias nordestinas para o Acre, repovoando e enriquecendo novamente os seringais.
Essa melhoria do contexto econômico fez com que os anseios autonomistas ganhassem nova força. Mas os acreanos ainda teriam que esperar quase vinte anos para ver sua antiga aspiração de autonomia política ser realizada. Só em 1962, os acreanos conseguiram através de uma longa batalha legislativa transformar o Território em Estado.
O Acre, que havia sido o primeiro Território Federal da história do Brasil, foi também o primeiro território a ser “elevado” à categoria de estado. Foram necessários 58 anos de lutas, entre 1904 e 1962, para que os movimentos autonomistas conquistassem para os acreanos os mesmos direitos básicos e essenciais de qualquer cidadão brasileiro. E com a aprovação da Lei 4.070 no Congresso Nacional, pela primeira vez na sua história, os acreanos poderiam exercer plenamente sua cidadania e o fizeram.
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