Economia
O que leva o novo ministro da
Fazenda grego a fazer críticas duríssimas ao professor francês, autor de 'O
Capital no Século XXI'. Por Antonio Luiz M. C. Costa
por Antonio Luiz M. C. Costa — publicado 11/02/2015
19:44, última modificação 11/02/2015 20:33
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Piketty
quer um Estado federal unificado para a Europa. Varoufakis rejeita essa
proposta
É raro economistas de esquerda serem ouvidos pela mídia, quanto
mais levados a sério, mas dois deles conseguiram essa façanha nos últimos
meses: o francês Thomas Piketty, autor de O Capital no Século XXI e
o grego Yanis Varoufakis, novo ministro da Fazenda de seu país. Ambos estão
conquistando fã-clubes que não se resumem a colegas de profissão e despertam o
interesse de políticos e militantes de esquerda em todo o mundo. Seria de se
esperar que suas ideias fossem semelhantes ou complementares. Mas não os
convide para a mesma mesa: o ministro grego é um crítico duríssimo do professor
francês. Em artigo publicado na Real-World Economics Review, chega a chamá-lo
de “O último
inimigo do igualitarismo”.
Que as esquerdas não precisam de
muitos motivos para se dividir é um clichê fácil, mas as razões da divergência
são importantes e interessantes. Não há dúvidas sobre a importância da pesquisa
inédita de Piketty sobre mais de duzentos anos de história da concentração de
renda e riqueza e da importância das heranças no capitalismo. Nem sobre a
“curva em U” que estas variáveis desenharam ao longo do século XX, de maneira a
chegar a um mínimo depois da II Guerra Mundial e retornar hoje a um nível quase
igual ao do século XIX – ou pior ainda, no caso dos Estados Unidos. O problema
está em como o francês analisa teoricamente seus achados, propõe modelos e
chega a conclusões sobre recomendações políticas.
A primeira dificuldade é que Piketty, embora reivindique com o
título e a introdução de sua obra certa pretensão de atualizar e corrigir Karl
Marx, sua conceituação está na prática muito mais próxima de A Riqueza
das Nações, de Adam Smith, pois não distingue riqueza de capital e
exclui apenas os bens móveis de consumo (tais como automóveis e
eletrodomésticos). Moradias, obras de arte e barras de ouro não fazem diferença
para o processo de produção, mas ele os trata da mesma maneira que tratores e
robôs. Isso torna duvidosa qualquer tentativa de estudar e prever o crescimento
e o desempenho da economia a partir dessa massa de “pseudocapital” da qual
cerca da metade nada tem a ver com produção. Dificuldade análoga é tratar como
“salários” os ganhos astronômicos de altos executivos, parte nada desprezível
da renda nacional em países como os EUA, mesmo se são explicitamente vinculados
ao lucro e constituídos de bonificações e opções de compra de ações.
Valores de mercado são governados
por expectativas e pela taxa de remuneração do capital, mas Piketty considera
essa taxa e o montante do “capital” como variáveis independentes, o que é
inconsistente e conduz a um círculo vicioso. Ainda mais problemático do ponto
de vista político é tratar a participação do trabalho e do capital na renda
como resultado mecânico das suas leis da acumulação e do efeito de impactos
externos, principalmente as guerras mundiais do século XX.
O modelo de Piketty supõe que
toda poupança se transforma em riqueza (logo capital, em sua definição) e não
há formação de riqueza se não for por meio da poupança. Isso tem pouco a ver
com o mundo real, como mostra a formação da bolha imobiliária, durante a qual o
valor de ativos cresceu aos trilhões com poupanças líquidas nulas ou negativas,
ou a situação atual na Europa, onde altas taxas de poupança se combinam com
falências e destruição ou desvalorização dos ativos. Implicitamente, Piketty
adere à “mão invisível” de Adam Smith e à desacreditada lei de Say, segundo a
qual a oferta cria a demanda sem que haja desperdício, desemprego ou
superprodução e a poupança se torna investimento sem ser absorvida por
entesouramento improdutivo.
No essencial, seus dados
sobre o processo de concentração de renda nos países ricos são sólidos e
irrefutáveis, mas as “leis” propostas para explicá-lo são frágeis. Isso torna
igualmente questionável sua conclusão por teorema matemático, de que a
tendência ao aumento da desigualdade é “natural” ao capitalismo, embora nessa
conclusão ele esteja mais próximo de Marx do que de Smith.
Varoufakis argumenta que se
renunciarmos às simplificações arbitrárias de Piketty e aplicarmos modelos
realistas da economia, a participação do capital na renda e sua distribuição
são fundamentalmente indeterminadas. Para o grego, não há nada de natural ou
determinístico na concentração de renda e riqueza no capitalismo. A melhora
temporária da distribuição de renda e propriedade durante o século XX não foi
nem uma anomalia, nem um resultado inevitável das guerras, mas o resultado de
uma intervenção política consciente para evitar a depressão econômica e salvar
o capitalismo. E a volta do processo de concentração nos anos 1970 também não
foi o resultado de leis mecânicas, mas de outra política consciente dos EUA
para atrair capitais e manter sua hegemonia quando sua competitividade ante
Europa e Japão se reduziu e deixou de acumular superávits no comércio
internacional.
Essa discordância teórica implica
em grandes divergências práticas sobre o que fazer. Como Piketty considera a
tendência à concentração de renda inerente ao processo de acumulação do
capitalismo, propõe apenas soluções redistributivas, principalmente aumento das
alíquotas progressivas de imposto de renda para até 80% e um imposto mundial
sobre o capital/riqueza.
Varoufakis argumenta que um
imposto sobre a riqueza, mesmo que seja factível, seria contraproducente e
agravaria as dificuldades da economia. Considere-se uma família de
desempregados que conserva sua residência, ou uma indústria sufocada por falta
de demanda e crédito: uns e outros, mesmo sem dispor de renda, seriam obrigados
a pagar um imposto elevado, o que apenas serviria para levá-los mais
rapidamente à falência total. Para o grego, um combate eficaz à desigualdade
deve atuar na formação de salários e demanda (por políticas keynesianas, por
exemplo).
Ambos também divergem drasticamente quanto às propostas para a
Zona do Euro. Piketty quer um Estado federal unificado para a Europa, cujas
autoridades centrais tenham poderes suficientes para controlar e regulamentar o
capitalismo financeiro. Varoufakis, em artigo escrito em parceria com o estadunidense James Galbraith,
rejeita essa proposta que a seu ver apenas reforçaria e congelaria as atuais
políticas e aprisionaria os países membros em uma “jaula de ferro” de
desigualdade, dominação e austeridade perpétuas que impediria a evolução de uma
verdadeira democracia europeia. Defende, em vez disso, um misto de títulos do
BCE, resolução caso-a-caso dos problemas bancários, um programa de
investimentos e um fundo de solidariedade que conservariam as soberanias
nacionais e a flexibilidade das políticas econômicas e poderiam ser aplicados
de imediato e sem necessidade de alterar os tratados existentes. Em resumo, as
opiniões são parecidas quanto ao diagnóstico, mas quase opostas quanto ao
tratamento.
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