INTRODUÇÃO
Essa obra é parte do relatório de
pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) durante o período de agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve
início em 2019, porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já
haviam sido coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação da UFAM
teve a ver com dúvidas que nutria desde o ensino médio, desde a graduação em
História, a saber: teria sido a anexação do Acre uma dádiva dos heróis acreanos?
Os livros que li sobre o assunto dizem
que sim, os discursos que anualmente ouvi nas paradas cívicas também. Porém,
assim como o príncipe Hamlet, no livro de Shakespeare, eu também suspeitava de
que “havia algo de podre no reino da Dinamarca”.
Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a
história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas
extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na
historiografia acreana e sim a ausência de alguns que considerava dignos de
mesma áurea, como o Barão do Rio Branco e os governadores do Amazonas Ramalho Júnior
e Constantino Nery. Obviamente que hoje sei que a história não é feita por
“grandes homens” e nem por “grandes feitos”. Sei que os “homens” e “feitos” não
são “grandes” ou “pequenos” em si mesmos e que a valoração ou depreciação deles
depende da forma como foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que
escreveram as narrativas documentais preservadas.
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No
presente livro mostro a participação do Estado do Amazonas para o sucesso da
anexação do Acre. Em 1861, o governo do
Amazonas contratou o amazonense Manoel Urbano da Encarnação para mais uma
expedição de reconhecimento, que subiu o rio Purus e alcançou o atual rio Acre
e também o Xapuri. Ele é considerado, por muitos, como o “descobridor do Acre”,
pois de acordo com a hipótese defendida por Castelo intelectuais amazonenses o Branco (1950), ele teria sido o primeiro a identificar seringueiras
nessa região do Purus[1].
Essa foi
a forma que encontrei para pôr em prática o meu projeto revisionista, aquele
que propõe reescrever a história do Acre de uma maneira mais sincera. A revisão
consistiu em atitudes simples, como a de descentralizar a figura de Plácido de
Castro na Questão do Acre, bem com a dos próprios moradores do rio Acre que resistiram
a soberania boliviana na região em fins do século XIX e início do XX.
Outra
coisa que fiz foi utilizar a metodologia dos estudos discursivos para mostrar
que os significantes “Acre”, “acreano” e “revolução” assumem diferentes
significados no decorrer dos tempos e que, na época da dita Revolução, na parte
sul ocidental da Amazônia, eles não tinham os sentidos que têm hoje. Eles gozavam
de outra identidade enunciativa. Por isso, constituí-se em erro de anacronismo
tentar traduzir o passado com os filtros semânticos que os vocábulos têm
atualmente.
Para tentar
reconstituir o passado com maior fidelidade, eu procurei compreender as fontes
documentais da época a partir das condições históricas de emergência de delas.
Afinal, é bom lembrar que o sentido de um vocábulo não lhe é imanente; é mera
convenção. Sendo assim, a depender da situação comunicacional e dos
interactantes, os sentidos podem deslizar, produzindo o que a linguística chama
de polissemia. Se o sentido modifica, então, a palavra também se torna outra,
embora a mesma grafia seja preservada. As palavras homônimas são todas aquelas
que têm a mesma imagem acústica, porém, por terem conteúdos semânticos
particulares, constituem-se em signos distintos.
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O livro
foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de
“revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política
no caso do Acre. No segundo capítulo,
evidencio a atuação do Estado do Amazonas no processo de colonização das terras
banhadas pelo rio Acre. No último capítulo, exponho as razões pelas quais
acredito que a resistência à soberania boliviana na região do rio Acre não
tenha sido acreana.
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Até que
ponto não é “preciosismo” chamar de “Revolução” os fatos políticos ocorridos no
Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Seria a etiqueta
“Revolução de 1930” uma dissimulação ao Golpe de Estado que de fato aconteceu? Uma
forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento? Quando a
narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história
política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de
direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia?
Será esse o mesmo caso da dita “revolução” “acreana”?
Por que
tenho eu que acreditar acriticamente no que estão dizendo? Não seria melhor recorrer
aos documentos primários e analisá-los à luz das relações de poder emaranhadas
do contexto histórico? Se um dia alguém chamou de moderno o Estado Absolutista
europeu do século XV, por tenho que dar credibilidade? Se alguém, um dia,
chamou de “herói” aquele que foi assassino, e tal fama chegou até mim, por que
tenho que aceitar sem pesquisar? Não seria mais sensato eu procurar me informar
do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu? Acaso a fama de “herói” que
o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que querem que eu o veja
como herói e não como assassino? Acaso o assassino que mata em defesa de alguma
ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela ideologia que dizem ter motivado
o herói a matar não foi mero fetiche a encobrir a verdade? Até que ponto o
patriotismo ou o nacionalismo pode justificar atos criminosos como o de tirar a
vida de outrem?
Infelizmente,
essa é a realidade educacional no Brasil: o ensino de História mais (de)forma
do que informa. O conteúdo histórico é inserido no livro didático cheio de
“penduricados” ideológicos e “etiquetas” interpretativas. Então, a história é
consumida como verdade, porém, é apenas uma visão cômoda, romântica e
apaziguadora do passado, que inibe o empoderamento, o exercício da cidadania
consciente e a atuação política crítica no tempo presente.
A
história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como
dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela,
até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento
deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe
uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.
Há,
porém, fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo
formato que se torna muito difícil mudar-lhes os enfeites. É que o formato agrada
a “gregos e troianos”, independentemente da classe dominante, ele é usado
politicamente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Lembro que
o abuso da história sempre foi um instrumento de poder bastante usado por
governantes com tendências autoritárias ou populistas. É assim que a narrativa da
“REVOLUÇÃO acreana” permanece “intocável”, mesmo após mudanças tão expressivas no
tabuleiro político regional.
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Como historiador,
já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história
do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já
dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado
não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano,
com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico,
patriótica, cordial e ecológico. Quando a verossimilhança é ensinada como
verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do passado
interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.
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Sob o
efeito do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos
que nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção
afetada, o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que
é história, passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que
embelezou a narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o
único a lutar para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém
empunhou armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma
historiográfico. Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade
identitária acreana e dissimular os reais interesses econômicos e políticos que
estavam em jogo.
Se, ao
terminar de ler esse livro, o leitor tenha se sentido mais sóbrio e consciente,
já valeu a pena tê-lo escrito. É sinal que o efeito da história “alucinada” já
está passando. É menos um a sofrer de delírios historiográficos por causa do consumo
abusivo de acreanismo nas histórias psicotrópicas que o Governo do Estado
oferece gratuitamente sem qualquer debate.
Boa
leitura!
[1] Apesar da importância de Manoel Urbano, quem
de fato ficou consagrado como “fundador do Acre” foi o cearense João Gabriel de
Carvalho e Melo. Segundo a tradição, em 1857, foi ele quem primeiro colonizou
uma parte do território que hoje pertence ao Estado do Acre, a saber, a região
próxima da foz do rio Purus. Anos depois, expandiria a iniciativa rio acima.
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