sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Trajetórias e centenários na lembrança de veteranos combatentes

Por Gerson Albuquerque *
Quem lembra, lembra de algum lugar, sob dadas perspectivas e projetos. As coisas significativas de um tempo e espaço repletos de mobilidades e de experiências sociais: um bosque, um riacho, uma viagem, as festas de natal, os aniversários, os tombos e traumas, os desencontros amorosos, as derrotas e vitórias, o sorriso da namorada, os sonhos de infância... O olhar para o passado somente é possível sob a ótica de um momento presente. Visões de mundo, propostas, concepções políticas, condicionamentos sociais, preferências, gostos, vontades, entre outros, se manifestam no momento de trazer à tona representações acerca do vivido. Nesse processo, a memória vai selecionando as coisas visíveis e invisíveis, as dizíveis e indizíveis, as possíveis e impossíveis de serem ditas, como "fagulhas que relampejam no momento de um perigo", na bela acepção do filósofo alemão Walter Benjamin.
O passado, portanto, não pode ser apresentado como algo imóvel, estático, mitificador daquilo que deve ser lembrado e sacralizado pela lógica de um pensamento que se quer dominante a qualquer custo. É de matéria viva que ele fala, de coisas infinitas e diálogos em aberto, possibilitando muitas histórias, interpretações e sentidos múltiplos. Com amor, contrário a apegos e nostalgias falseadoras, temos condições de dialogar com o passado que, centrado nas coisas do presente, nos permite a reflexão no experienciar da vida.
É nesse sentido que um grupo de alunos do curso de História (diurno e noturno) da UFAC vem desenvolvendo pesquisas acerca da "Revolução Acreana", procurando, com isso, dialogar e problematizar com as omissões, os caminhos cortados, as vozes silenciadas e as trajetórias de mulheres, homens e crianças que, identificados como "obscuros" coletivos, tornaram-se "massa" moldável às conveniências dos discursos e intenções circunstanciais.
A partir de diferentes fontes, dentre as quais destacamos jornais que circularam no Acre, no início do século XX, e depoimentos de ex-combatentes, procuramos identificar as fissuras que ameaçam e põem a nu as enferrujadas engrenagens de uma história oficial da "revolução", cuja característica principal é o apego às lógicas formais de causa e efeito, despertadoras de "paixões" e visões redentoras acerca dos homens e das "acontecimentos" passados.
As lembranças de "velhos combatentes", nos permitem antever trajetórias de pessoas comuns, colocando na cena historiográfica pontos de vista e formas de encarar outras dinâmicas e sujeitos envoltos na "guerra pela borracha".
É o caso de Maria Antas Pereira, que residindo no Seringal Bom Destino, para onde fora deslocada em companhia de seus tios e, levada à margem, em conjunto com outras mulheres, onde ficaram "lavando roupas e servindo no serviço de rancho do Barracão que se transformou em Quartel. Durante toda a Revolução permanecemos naquele serviço".
As lembranças da paraibana Maria Antas, representação de um "real vivido", recolocam em debate o papel das mulheres no contexto das lutas pela "anexação do Acre ao Brasil", geralmente, relegadas ao esquecimento pelos historiadores amazonialistas ou representadas na figura de uma ou outra heroína tirada em nota de canto de página de um relato folclórico. Nessa mesma linha, é possível ressaltar a narrativa de José Júlio da Silveira, que tinha 13 anos, quando "rebentou a revolução" e, assim como outros garotos de sua idade, passariam a atuar dando assistência aos seus familiares, enquanto os pais estavam a "serviço da guerra". No trabalho de levar mercadorias (rancho) do barracão para suas colocações, essas crianças transitavam pelas perigosas "áreas proibidas": os varadouros, na proporção em que não tinham conhecimentos suficientes para fazer tal serviço pelo interior da floresta. Mantendo fidelidade aos tabus impostos por uma abordagem histórica de matriz positivista e europeizante, a memória celebrativa da "epopéia acreana", silenciou em relação às crianças, tratando-as como inexistentes. Nesse sentido, Os depoimentos dos "velhos combatentes" são referenciais importantes para reabrirmos o diálogo com esses personagens e, particularmente, com os papéis por eles desenvolvidos nos litígios acerca da região acreana.
A idade desses "revolucionários" não é o elemento mais importante e decisivo acerca da "revolução", mas, inevitavelmente, coloca o debate em outros termos, rompendo a dimensão dos "grandes homens" e da supremacia do acontecimento em detrimento dos fios e tramas que modelam o tecido vivo da experiência humana. Insistir nas comemorações de caráter triunfalista, sem levar em conta esses aspectos implica fazer com que histórias tão recentes continuem a ser encaradas como algo distante, abstrato e sem sentido para a grande maioria de nossa população.
Para encerrar quero lembrar, ainda, a trajetória de dois outros "veteranos" que, a exemplo de centenas de outros combatentes, tiveram suas lembranças tratadas como coisa "velha", "causos sem sentido" e, dessa forma, colocadas de lado ou, numa alusão figurativa ao que comumente acontece aos velhos em nossa sociedade: recolhidas ao fundo dos quintais, em pequenos quartos, separadas do mundo, encostadas como peças sem utilidade: José Joaquim Meireles, nascido em maio de 1888, no Rio Grande do Norte e Euclides Ferraz Viana, nascido em julho de 1883, na Paraíba.
O primeiro passou a atuar no exército revolucionário, através de recrutamento obrigatório. O Segundo, como os amigos Ezequiel Alves, Raimundo Silva e Pedro Chaves, fora recrutado para compor a tropa do coronel Joaquim Vítor, tendo como preocupação básica não desguarnecer o fabrico de borracha no interior do seringal.
Segundo seu relato, após receber as instruções "para guerrear contra os bolivianos sediados em 'Puerto Alonso' (hoje Porto Acre). Foi incorporado ao Batalhão de 'Franco Atirador', sob o comando do Cel Hypólito Moreira, pertencia ao contingente do major Daniel Ferreira de Lima, lutou em Porto Acre até dia 24 de janeiro de 1903, quando as tropas do Coronel Lino Romero capitularam ante o poderio da força Acreana."
As centenas de processos, como os que aqui foram destacados, colocam em evidencia desconhecidas histórias sobre a "revolução". Os únicos traços familiares são as localidades, os nomes dos comandantes dos batalhões e de algumas batalhas. No entanto, esses traços são carregados de sentidos que desafiam as "harmônicas" referências dos registros oficiais. Como esses relatos, constituídos através de processos produzidos por funcionários e/ou diretores do Instituto Histórico e Geográfico do Acre, bem como por "escribas" do serviço público federal, as narrativas de inúmeros descendentes dos "desconhecidos revolucionários", que podemos encontrar em qualquer "beira de rua" das cidades acreanas, possibilitam-nos produzir não respostas ou "conclusões" hermeticamente fechadas, mas indagações, perguntas e pistas acerca de nossa história.
O marco de 2002 singulariza não o centenário das memórias e histórias de sujeitos de origens, idades, nacionalidades, etnias, línguas, culturas múltiplas, mas a memória oficial sacralizada que insiste em cercear-lhes o direito ao passado. Os lançamentos de livros, as exposições, as inaugurações de monumentos de várias ordens sob os auspícios da pompa e do protocolo oficial, retratam não a história desse mosaico cultural, mas a apologia a um modelo civilizatório constituído pela barbárie.
Nesse ponto, recorro mais uma vez a Walter Benjamin, segundo o qual nem os mortos estarão em segurança enquanto o inimigo não parar de vencer. A beatificada exaltação aos heróis, o ritmo das marchas militares de nosso hino ameaçando o "audaz estrangeiro", dão conta de que, com o emudecimento de crianças e mulheres, pobres das cidades e da floresta, indígenas, bolivianos e peruanos, o inimigo (as classes dominantes) não tem cessado de vencer.
* Professor do Departamento de História e Diretor do Centro de Documentação e Informação Histórica da UFAC (Fonte: Jornal Página 20 - Edição de terça-feira 06/08/02)

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