sexta-feira, 21 de setembro de 2007

YAWA - O Paraíso reencontrado

Depois de mais de cem anos do contato que massacrou, humilhou e escravizou o povo yawanawá, ele agora resgata sua identidade

Juracy Xangai Lança de malva (mushu tsakanati). Guerreiros defendem esposa na batalha. Se forem atingidos estão simbolicamente mortos e “perdem” a mulher

Juracy Xangai (Yawá Shawã Mashkuru)

No começo tudo era lindo. A floresta, os rios, as festas, o amor e até as guerras inspiravam o orgulho de ser yawanawá. Foi assim até apareceram os brancos com suas doenças, matanças e a escravidão. Os sobreviventes foram humilhados, submetidos pela servidão aos senhores dos seringais, para os quais só as pélas de borracha banhadas em sangue de índios e arigós tinham valor.

O látex transformado em ouro negro gerava lucro aos exploradores e conforto à burguesia crescente de um brutal Primeiro Mundo que só conseguiu desenvolver seu sistema mercantilista roubando o ouro das Américas. Agora, em nome do progresso e do conforto que roda sobre pneus macios, lançava trevas e horrores aos índios, que, sem nada daquilo, viviam seu paraíso.

Os sobreviventes invejavam os mortos, que foram festejar nas matas celestes à espera dos que continuaram penando no purgatório dos seringais. Ali, sua língua e costumes eram tema de piadas; a nudez motivo de abusos; rituais e cultos considerados obra do demônio.

Assim, a identidade de ser uma nação tornou-se um fardo pesado demais e, em nome da sobrevivência, muitos renunciaram ao que tinham de mais valor em si mesmos e tiveram vergonha de ser índios.

Mas nem tudo isso foi suficiente para apagar do coração e do pensamento dos mais velhos seus conhecimentos, seus costumes, suas cantorias, seus rituais continuados às escondidas até serem resgatados no alvorecer deste novo milênio que promete humanizar a humanidade respeitando raças, usos, costumes e crenças.

O sorriso escancarado das crianças saboreando wutã, a beleza das jovens e mulheres com os rostos artisticamente desenhados deixam à mostra seios virgens de maldade. Guerreiros exibindo cocares coloridos trazem às costas, no peito e no rosto pinturas exuberantes em vermelho e preto garantindo proteção contra as doenças e males do corpo e da alma, enquanto os pajés cantam a história da criação divina, das guerras, dos amores, das curas.

As brincadeiras sensuais do Festival Yawá (Festa da Queixada) fortalecem a cultura mostrando a exuberância, o orgulho e a glória de ser Yawanawá.

Roda de cantoria e dança

Celebração da natureza e do amor

O mundo se curva a Yawá

O orgulho yawanawá só aumenta com o reconhecimento mundial de empresas como a indústria de cosméticos norte-americana Aveda, que compra toda a produção de urucum da aldeia e paga pelo uso da imagem desse povo em suas embalagens e propagandas.

Transformado em produto, o potencial de sua cultura dá lucro, atraindo turistas de todo o Brasil e de locais tão remotos quanto a Finlândia, Egito e Costa do Marfim, presentes à festa de cinco dias realizada entre 25 e 30 de agosto na Aldeia Esperança, aonde só é possível chegar percorrendo de carro os 60 quilômetros de Tarauacá ao rio Gregório e por ele subindo 12 horas de barco por entre paus, bancos de areia e uma floresta simplesmente encantadora.

Grife Yawanawá

A empresária Íris Tavares, que há dois anos rendeu-se à beleza dos kãnês (desenhos rituais) da grife Yawanawá impressas nas roupas que comercializa em suas lojas dentro da proposta de valorização ética das “gentes” acreanas, só agora teve a oportunidade de participar do festival. “Desde que conheci Joaquim Yawanawá, senti a energia poderosa desse povo e queria muito vir aqui, mas o dia-a-dia dos negócios não permitia. Então dei um tempo a mim mesma e estou simplesmente encantada com o que vi”, afirmou. E, como não podia deixar de ser, fechou novos negócios. Uma nova visão

Presidindo a mais tradicional indústria de alimentos do Acre, a fábrica de Biscoitos Miragina, José Luiz Felício esclareceu: “Vim a convite do senador Tião Viana, porque já tinha ouvido falar sobre a festa, mas não imaginava que fosse assim tão encantadora. Vejo uma cultura de pessoas bonitas, com valores e uma noção de tempo diferentes da nossa. Percebi que não precisamos de tanta coisa para ser felizes. Vejo no rosto de cada um a expressão de alegria que não via na cidade. Quando a gente conhece a gente respeita e pretendo repetir a viagem”.

Mil dias de camelo

Da terra dos faraós veio Ali Zeitoun, liderando comitiva composta pela família Marwan Azzounit e a representante do Ministério da Cultura do Egito, Hala Barakat, viajando 24 horas de avião só para chegar até Rio Branco. “Se fizéssemos essa viagem de camelo, gastaríamos mil dias. Estamos muito felizes por estar aqui, especialmente encantados pela organização desse povo e o fortalecimento de sua cultura pura e maravilhosa”, comentou, bem humorado.

Exemplo a ser seguido

Anchieta, líder do povo arara de Marechal Thaumaturgo, participou da festa e declarou: “Este festival mostra a importância e a beleza da cultura indígena. Isso nos dá força e ânimo para que também nós, orientados pelos mais velhos, possamos resgatar nossa cultura, usos e costumes. Aproveito para convidar todos para o terceiro Festival Arara, em janeiro do ano que vem”.

Cultura pura

Denise e Ronam vieram de Curitiba (PR) com os filhos para participar da festa. “Aqui vejo a verdadeira expressão da cultura humana entre pessoas que se respeitam, honram e tratam a todos com bom coração”, disseram.

Sonho de milhões

Eduardo Marques, assessor do senador Tião Viana, vive há 26 anos em Brasília, mas recorda com saudades a infância passada ao lado pai, desembargador Lourival Marques, com quem conheceu comunidades seringueiras e a pessoa do mestre Irineu Serra. “Milhões de pessoas no mundo gostariam de estar no meu lugar neste momento vendo esta festa maravilhosa que me deixou emocionado e motivado a apoiar mais os projetos que favorecem as comunidades indígenas”, declarou.

Um milagre suado

O ressurgimento pleno de uma identidade cultural após cem anos de dominação soa como um milagre que teve de ser buscado à custa de muito suor e trabalho por parte das novas lideranças, com o apoio dos mais antigos e demais integrantes desse povo.

Biraci Brasil, o Nixi Waká, que já teve 12 esposas, das quais nove lhe renderam 22 filhos, chefe político e um dos principais líderes espirituais da comunidade, é um dos cinco rapazes enviados para a cidade no início dos anos 70 pelo tio Raimundo, com a missão de estudar e conseguir ajuda numa época em que o governo do Acre dizia nem existirem mais índios no Estado.

Conheceram Antônio Macedo e Terry Aquino, que os puseram em contato com indigenistas, estudiosos e autoridades, buscaram o chefe Raimundo, que nunca tinha saído da aldeia, e o levaram para Brasília, que em 1975 reconheceu a existência de índios no Acre, o povo Yawanawá.

Em 1984 houve o reconhecimento da terra e em 1986, a demarcação de 92.850 hectares, agora ampliados para 193 mil hectares, que cobrem toda a bacia desde as nascentes do rio Gregório e afluentes. Nessa Terra Indígena do Rio Gregório vivem mais de 630 índios yawanawás e katuquinas. Só na aldeia Nova Esperança, 430 yawanawás, além das aldeias Mutum, Matrinchã, Amparo, Tibúrcio, Escondido e Sete Estrelas, esta última com dominância katuquina. Os dois povos tradicionalmente convivem e casam entre si, mas apresentam diferenças marcantes nos costumes e rituais.

Reencontrando-se

Depois de viver quase 20 anos militando no movimento indígena, inclusive como assessor nacional e representante regional da Fundação Nacional do Índio (Funai), Biraci tomou uma nova consciência sobre si e seu papel junto à comunidade, voltando à aldeia no ano 2000 com o propósito de restaurar a comunidade que ainda sofria as conseqüências negativas dos anos de servidão e do abandono total com a falência dos seringais.

Além do poder político e espiritual herdado do avô Antônio Luiz, o Iva Sttiho, afastou-se das quatro esposas para penetrar no caminho da espiritualidade necessário à liderança. “Estamos voltando para casa com uma bagagem de conhecimento, e o maior desafio está em conciliar as duas culturas aproveitando o que a tecnologia pode nos oferecer sem abrir mão da nossa identidade”, destacou.

Nessa época também retorna à aldeia Joaquim Taskan, que estava vivendo há quatro anos nos Estados Unidos, onde militava junto à organização voltada à defesa dos direitos dos povos indígenas. Ele lidera a Organização dos Agricultores e Extrativitas Yawanawá (Oyaerg), encarregada dos negócios da aldeia.

“Reunimos a comunidade, que estava fragmentada, para reanimar o espírito do povo focados em três pontos que eram como vivíamos antes do contato, o que mudou com o contato e que havia sobrado depois de tanto tempo de servidão. Os antigos disseram que nada havia sido perdido porque haviam guardado tudo no coração e que poderiam ensinar isso aos jovens. Pensamos em fazer uma grande festa onde mostrássemos nossos cantos, nossa música, rituais e a expressão de nossa cultura e assim aconteceu o primeiro Festival Yawa em 2001”.

Nisso foi decisivo o apoio do amigo canadense Josh Sage que conseguiu de Hurt Phenix, mãe de Joaquim Phenix a doação de três câmeras, com as quais, foi preparado o documentário Yawa. Através dele o mundo passou a conhecer e apoiar material, moral e financeiramente a recuperação deste povo.

“Eu mesmo que nasci e me criei na aldeia, só com 30 anos de idade pude conhecer a festa de meu povo. A presença do governador Jorge Viana no segundo festival valorizou ainda mais o evento que agora também recebe apoio pessoal do senador Tião Viana, políticos e empresários do Acre”.

Taskan confessa: “Chorei quando meu pai, disse que já poderia morrer satisfeito por saber que tinha feito sua parte ao garantir que nossa cultura sobreviva para sempre nas nossas crianças agora tem orgulho em falar nossa língua, cantar nossas musicas e ouvir nossa história dividida em tempo das malocas, tempo da servidão, conquista da terra e o resgate de nossa cultura étnica”.

Senador Tião Viana prestigiou a festa e ofereceu seu apoio ao trabalho do resgate cultural do povo yawanawá; Pajé Rusharro abençoa Marluce Viana

Canto de agradecimento

Acompanhando o esposo senador Tião Viana, a arquiteta Marluce esclareceu: “É minha segunda visita a este festival, que, além de celebrar a natureza, a paz e o amor no dia-a-dia, resgata a história de um povo que encontra sua força na sabedoria dos antepassados”.

Após receber uma bênção da pajé Rusharro, Marluce declarou: “Este é um ritual no qual a pessoa que faz se doa força e energia a quem recebe com fé. Dar de si é a mais bela expressão de amor ao próximo, por isso recebo esta bênção com humildade e respeito”.

Logo na chegada à aldeia, Marluce manifestou seu agradecimento à acolhida do povo yawanawá convidando os presentes a entoar com ela o canto que diz: “Fica sempre um pouco de perfume nas que oferecem rosas, nas mãos que são generosas”.

A pajé Rusharro respondeu: “Vocês demonstram respeito e carinho por nós ao vir de longe numa dura viagem, e tudo que podemos oferecer é apenas a nossa hospitalidade, o nosso amor, carinho e dedicação na esperança de que ajudem a consolidar nossos sonhos conforme nossos costumes”.

Famílias que se encontram

Antônia Calazans de Medeiros Apurinã, ou simplesmente Capía (nambu-preta), conheceu Roque Yawanawá durante um dos primeiros encontros de

povos indígenas realizados em Rio Branco ainda na década de 80.

“Fiquei sabendo que ele pertencia a um povo guerreiro e que vivia muito distante. Era estudante e militava no movimento indígena e eu vivia na aldeia Camapã, na estrada de Boca do Acre. Gostamos um do outro e estamos juntos há 17 e esta é a primeira vez que venho à aldeia trazer meus filhosYawá Narenê, Tatá, Yanaranê Shitã e Yawa Rawan para conhecer a festa do nosso povo”.

A participacão e a emoção de Capía em todas as danças e rituais eram constantes, e ela explica o motivo. “Nossa aldeia Apuriná fica no quilômetro 124 da estrada de Rio Branco para Boca do Acre, à beira da estrada e entre fazendas que causaram um grande impacto sobre nossa gente, tanto que a maioria dos jovens deixou de falar a língua, rituais e costumes de nossos ancestrais. Em 280 pessoas, só meu tio Mariá e meu pai Ariúca falam a língua perfeitamente. Alguns têm até vergonha de dizer que são índios”.

Estimulados pelos festivais Yawanawá e de outros povos do Juruá, os apurinãs já começam a resgatar sua cultura.

Casamento à moda Yawanawá

A névoa da manhã vai cedendo à luz do sol que desponta no horizonte e de longe já se pode ouvir o som das machadadas com que Macu Mawá Yusmá parte a lenha para abastecer a cozinha da futura sogra.

Aos 20 anos, ele demonstra força no preparo do roçado, valentia como caçador e pescador experiente, sabe como construir uma casa, então está pronto para casar, mas, apesar de seus pais concordarem e da aprovação da sogra e do sogro, ele está ansioso à espera de três dos cinco cunhados para pedir também a eles, como é de costume na aldeia nos acertos de casamento.

O Festival Yawa, assim como os Mariris (festas) de antigamente, tem, além da função de agradecer pelas dádivas da natureza e celebrar a vida, a oportunidade para que rapazes e moças conheçam primos e outros jovens para futuros relacionamentos que darão continuidade ao povo. Quando ele se casa deve obediência ao sogro pelo resto da vida, ajudando nas derrubadas, caçadas e outros serviços.

FONTE: http://www2.uol.com.br/pagina20/16092007/especial.htm

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