Hoje o Estado do Acre completa 54 anos. Desde 1962, ouvimos da boca dos
autonomistas e daqueles que se colocaram como herdeiros deles que a elevação do
Território do Acre à categoria de Estado representou uma conquista do povo
acriano. Devo dizer em plena comemoração desta data cívica que esta afirmação é
mentirosa. O “povo” nunca teve a oportunidade de se posicionar a respeito da
“autonomia”, não houve
qualquer consulta popular para saber o que as pessoas pensavam sobre o assunto.
A autonomia era uma proposta exclusivamente urbana em um Acre eminentemente
rural. Até mesmo entre a elite urbana não se havia consenso, o que fazia da
autonomia uma proposta mais oligárquico
do que propriamente popular.
O Movimento Autonomista
Acriano teve origem quando o Acre foi “rebaixamento” à categoria de Território
administrado diretamente pelo Governo Federal pelo Decreto Presidencial Nº
1.181, de 25 de fevereiro de 1904. No entanto, os próprios autonomistas
divulgaram a ideia de que o movimento teve início com a Revolução Acriana. Isso
servia como instrumento de convencimento, afinal, o “povo” que supostamente
arriscou a vida por “amor ao Brasil” deveria ser premiado com um Estado. Seria
uma obrigação do Governo Federal reparar essa injustiça contra os “únicos
brasileiros por opção”.
Em 25 de março de 1912,
foi publicado no jornal O Cruzeiro do Sul, de Cruzeiro do Sul, nas
páginas 1 e 2, um artigo do autonomista e maçom Craveiro Costa intitulado Genesis
de um Estado. Nele, o autor afirma que a “genesis” do Estado acriano estava
na “Revolução Acriana” e que o movimento autonomista era uma continuidade da
Revolução. Puro anacronismo, pois antes da anexação, a proposta hegemônica
entre os principais envolvidos na Questão do Acre era a da incorporação do território
ao Estado do Amazonas, já que este era quem financiava as revoltas armadas
contra o governo boliviano no Acre. Leia abaixo o que Rodrigo de Carvalho,
membro ativo da Junta Revolucionária, disse a respeito do posicionamento de
Plácido de Castro.
Plácido é indiferente que isso (o território
do Acre) seja do Amazonas. A mim (Rodrigo de Carvalho) ele (Plácido de Castro)
diz sempre: isso (o Acre) não pode ser Estado; há de ser do Amazonas; já vê
Vossa Excelência (Governador Silvério Nery) que ele é amigo [...] Combinei com
os oficiais em aclamarmos o Plácido governador [...] Só assim teremos o Acre do
Brasil e com certeza do Amazonas. (Rodrigo de Carvalho. Carta ao governador do
Amazonas apud OURIQUE, 1907, p. 417, grifo nosso).
É sabido que após a
anexação e a confirmação da condição de Território para o Acre, Plácido de
Castro e tantos outros passaram a defender abertamente a autonomia. A intensão dos
ex-integrantes da Junta Revolucionária, dos “coronéis de
barranco” e dos liberais em nada tinha a ver com o bem-estar do povo, pois os
seringueiros, por exemplo, continuariam “trabalhando para se escravizar” e
pouco sabia sobre o assunto, visto que era, no dizer de Oliveira Viana, “o mais
apolítico dos brasileiros” (apud
Craveiro Costa, 2005, p. 221). Na verdade, o que eles
queriam eram mandatos políticos, cargos públicos e o controle das rendas
fiscais oriundas da tributação gomífera por meio de um governo estadual. É por isso que o movimento autonomista se fortalecia
proporcionalmente ao aumento da importância da economia da borracha e da renda
que ela proporcionava na região.
Com o fim do chamado
“primeiro ciclo da borracha”, na segunda metade da década de 1910, o “acrianismo”
dos líderes do movimento autonomista também enfraqueceu. Nos anos 1920 e 1930,
o movimento só não desapareceu por causa do constante interesse do governo do
Amazonas em incorporar o território do Acre. Em 1921, um deputado amazonense
apresentou um novo Projeto de Lei ao Congresso Nacional com este objetivo. O
primeiro havia sido apresentado em dezembro
de 1905 pelo senador Jonathan Pedroza (AM). Por conta desse perigo, os autonomistas tiveram que se organizar
minimamente para tentar impedir tal intento.
Foi somente a partir dos
anos 1940, com o chamado “segundo ciclo da borracha”, que o movimento
autonomista ganhou força novamente. Com a importância estratégica que o Acre
passou a ter para os Aliados na Segunda Guerra Mundial (a partir de 1942), os
autonomistas aproveitaram o momento para exigir do Governo Federal a condição
de Estado para o Acre. Com o fim da guerra e a consequente bancarrota da
economia gomífero, os autonomistas passaram a exigir a criação do Estado,
dentre outras, como forma de reparação, uma vez que o governo federal havia
financiado a migração dos “soldados da borracha”, no entanto, se recusava em
levá-los de volta, deixando-os na região em uma situação de penúria.
Quem
se tornou porta-voz da autonomia acriana no Congresso Nacional foi o Deputado
Federal José Guiomard Santos, militar mineiro e ex-membro da Ação Integralista
Brasileira (AIB), partido político fundado no Brasil sob a influência do
fascismo italiano em 1932. Ele também havia sido governador do Território do Acre nos últimos anos da
década de 1940 e se tornou militante do Partido Social Democrata (PSD), de
tendência conservadora. Na época, o PSD compunha a base aliada do poder
executivo no Congresso Nacional, e logo concedeu
apoio irrestrito à proposta de autonomia do Acre. O partido almejava eleger
mais deputados em sua legenda e, por isso, viu com “bons olhos” a autonomia
acriana. Pensava-se que todas as vagas para o Congresso destinadas ao Estado do
Acre seriam preenchidas por candidatos do PSD. Por isso, o diretório nacional
mobilizou toda sua bancada, a maior do Congresso, para aprovar a proposta.
Páginas dos principais jornais do Brasil que estavam sob a influência de
políticos desse partido foram disponibilizadas para a divulgação da proposta de
autonomia do Acre.
Em 1957, Guiomard Santos redigiu a Proposta de Lei (PL) que elevaria o
Território do Acre à categoria de Estado. Sob sua liderança, também foi formado
o Comitê Pró-Autonomia Acriana, que colheu assinaturas para endossar o projeto.
A aprovação da Proposta teve que enfrentar três obstáculos: a) a PL apresentada
era inconstitucional; b) líderes do Vale do Juruá não concordavam com o projeto
e defendiam que o Acre fosse dividido e o Vale do Juruá permanecesse como
Território; c) vários segmentos sociais do Vale do Purus eram contra a
emancipação do Acre.
O primeiro desses
obstáculos foi vencido porque o PSD tinha maioria no Congresso. Foi feito
“vistas grossas” à Constituição Federal de 1946 que, no artigo nono das
“disposições transitórias”, estabelecia como requisito para a autonomia do
Território uma renda, no mínimo, igual à do menor Estado brasileiro. Mas o Acre
não tinha como sobreviver sem os repasses federais, o pouco que se produzia (borracha
e castanha) recebia isenção fiscal desde os anos 1930.
A maioria da
população acriana vivia em condições de extrema pobreza e, nessas condições, a
renda tributária do futuro Estado do Acre se tornaria insuficiente para cobrir
as despesas com a máquina pública. Tal situação obrigaria o governo federal de
ter um custo mensal com a emancipação do Acre, pois quase 90% do orçamento do
novo Estado seria subsidiado. Esse “custo Acre” existe até hoje, uma vez que o
percentual de dependência que o Estado tem dos recursos federais chega a quase
70% de seu orçamento.
O movimento autonomista
“desfocou” o debate orçamentário por meio da retórica do emocionalismo.
Dizia-se que o Brasil deveria compensar aqueles que “lutaram para ser
brasileiros”. Para os autonomistas, pouco importava à condição de dependência
econômica com a qual o Estado do Acre ficaria submetido, o objetivo era o
aumento das vagas destinadas ao Acre no Congresso Nacional e o aumento do
orçamento público acriano via repasses federais.
O segundo obstáculo ao
projeto de Guiomard Santos foi superado com a indiferença dos parlamentares da
oposição. Os principais membros da elite do Juruá organizados no
Comitê Pró-Território do Juruá pregavam o separatismo. Diziam que o Juruá foi
desprestigiado desde 1920 com a criação de um governo único para o Acre, pois o
Vale do Purus passou a concentrar a maior parte das verbas federais. Assim
sendo, tal região, segundo acreditavam, estava em condições de ser elevada à
condição de Estado, diferentemente do Vale do Juruá, região até então desassistida,
e que, por isso, deveria continuar na condição de Território. Nenhum deputado
quis defender oficialmente o separatismo, já que, desde aquela época,
cogitava-se a exploração petrolífera na região do Juruá (serra do rio
Môa), por
conta dessas pendengas, tal proposta não ganhou força no Congresso Nacional.
O terceiro obstáculo
à proposta da criação do Estado do Acre foi a falta de apoio político de parte
de vários segmentos sociais do Vale do Purus. Os comerciantes e seringalistas
ficaram com medo de ter que pagar impostos mais elevados com a emancipação do
Acre. Temiam também que se o governo federal não ajudasse o Estado
financeiramente, aconteceria uma provável diminuição do poder de compra local,
o que atrapalharia o comércio. Além do mais, os funcionários federais que
cumpriam expediente no Acre não queriam virar funcionários estaduais, como era
pregado na época. O porta-voz desses segmentos sociais foi o então Deputado
Federal Oscar Passos (PTB-AC), que não pôde interferir tanto na aprovação da
proposta de emancipação do Acre, porque o seu partido era minoria no Congresso.
A elevação do Acre à
categoria de Estado foi um projeto político desconhecido pela maioria da
população acriana, que ainda era rural, e entre os “cidadãos” da zona urbana,
também dividia opiniões, portanto, não era consenso. Tanto no Movimento Autonomista do início do
século XX, quanto no dos anos 1950, o povo, enquanto ator social, só aparecia
nos discursos. Era uma expressão
de retórica utilizada para promover a causa que pertencia, na verdade, a um
grupo de interesse bem restrito.
A principal prova da falta de adesão política da proposta da Autonomia
veio das urnas. Os resultados da primeira eleição do Estado do Acre foram um desastre
para o PSD/AC. Guiomard Santos, que era candidato ao governo do Acre, saiu
derrotado pelo “desconhecido” professor José Augusto (PTB), acriano do Vale do
Juruá. Oscar Passos, que fazia oposição ao “pai do Estado do Acre”, foi eleito
senador. Além do mais, o PTB sagrou-se vencedor em todas as eleições
municipais.
Sobre a autonomia do
Acre a história foi duplamente vilipendiada. Primeiro porque a narrativa
oficial afirma que a proposta era popular, e não era. Segundo porque essa mesma
narrativa nega o fato de que o resultado das eleições de 1962 fora, na
verdade, uma nota de repúdio contra o projeto de Autonomia. Os historiadores de
gabinete dizem que a vitória de José Augusto (PTB) foi devida ao fato de ele
ser carismático e acriano, mas tudo isso foi uma forma de evitar com que a
história virasse uma testemunha contra o “pai da emancipação do Acre” e contra
o projeto da emancipação que ele defendia, imposto, diga-se de passaje, de
“cima para baixo”, sem qualquer consulta popular prévia. Os autonomistas nunca
foram intérpretes dos anseios do povo acriano, pelo contrário, foram
intérpretes dos seus próprios interesses “em nome do povo”. Guiomard Santos, faleceu como “senador biônico”, defensor e apoiador da
Ditadura Militar no Brasil (militante do ARENA /PDS), e sobre este, não preciso
dizer mais nada.
O grande
problema da história do Acre é que ela é constantemente “torturada” pelos
historiadores oficiais a fim de que sirva como testemunha de uma suposta
grandeza do povo acriano. O Estado divulga uma
narrativa conservadora que tematiza a origem das coisas como eventos “fabulosos” feitos por “mãos de
heróis”. E isso prejudica a conscientização política dos acrianos, pois promove
a exaltação do passado e a dos “grandes” homens às custas da alienação coletiva
e do abuso da história.
O abuso da
história impõe uma imagem apoteótica do passado que é consagrada pelos rituais
de celebração das festas cívicas. Toda história contada a partir do ponto de vista do
vencedor se mostra digna de comemoração futura. O emudecimento dos vencidos é
o que sustenta a apoteose dos vencedores, a nobreza dos últimos termina quando
o direito da fala dos primeiros é restabelecido. Portanto, a memória coletiva acriana está povoada por “lembranças” de
uma apoteose inaugural que nunca existiu de fato, a não ser nos textos
literários, nos documentos oficiais e na história manipulada divulgada pelo
Estado.
A consagração de uma história louvável da origem do Estado do Acre só aconteceu
porque ao longo da história não faltou quem obtivesse algum tipo de ganho
simbólico ou dividendo político com a exaltação dela. Em um Acre em
que a economia gira em torno do orçamento público, a escrita da história não
poderia ser outra senão a do louvor ao Estado e dos seus políticos. O povo pouco ou nada “lucrou” com a autonomia política, visto que a
autonomia econômica lhe faltou ao encontro. Portanto, nada tem do que
comemorar. Termino o artigo mostrando uma prova de como
essa história hipócrita é útil politicamente. Na imagem abaixo, veja que a bandeira que o “povo” da propaganda institucional levanta não é a do Estado
do Acre, mas sim a do logotipo de um governo, pura manipulação.
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