Surpreendeu-me a
noticia de que está em tramitação na Assembleia Legislativa um Projeto de Lei
que muda a bandeira do Estado do Acre. Não tive acesso ao referido projeto, no
entanto, por dedução, dá para imaginar que a justificativa de tal mudança está
baseada em um raciocínio silogista, no mínimo, equivocado, a saber: Premissa 1:
a bandeira do Estado Independente do Acre proclamado por Luís Galvez é
diferente da atual. Premissa 2: o Estado Independente de Galvez é a origem do
Acre Estado. Premissa 3 (conclusão por Inferência): a bandeira atual não é a original, portanto,
deve ser mudada.
A primeira premissa
está correta. Realmente a bandeira adotada pelo Estado Independente do Acre
proclamado por Luís Galvez em 1899 e por
Plácido de Castro em 1903 era outra distinta da atual. Digo “outra”, porque
quando se trata de um pavilhão cívico (nacional, estadual e municipal),
qualquer alteração, mesmo que mínima, já a descaracteriza, uma vez que suas
especificações em detalhes são reguladas por decretos. Portanto, alterar as
proporções, as posições, as cores, acrescentar ou suprimir detalhes, etc., é o
mesmo que produzir outra bandeira. E como não se pode ter duas bandeiras
representando um mesmo ente político, a segunda é qualificada como “desrespeito cívico”. Então, a bandeira do
Acre atual e a bandeira do Acre “de Galvez” não são simplesmente iguais com
alguns detalhes diferentes, pelo contrário, são duas bandeiras, cada um
representando entes políticos distintos. De acordo com a vexilologia, o projeto
de criação de uma bandeira pode levar em consideração a verossimilhança com
outras bandeiras já existentes, caso aja entre as comunidades algum lastro
histórico comum. É bom lembrar que caracteres verossimilhantes não são
caracteres idênticos, já que não se pode adotar uma mesma bandeira para entes
políticos diferentes. Um Estado não pode adotar a bandeira de um país. Um
município não pode adotar a bandeira de um Estado e assim por diante. É
exatamente isso que acontece nessa questão, apesar de mesmo nome, o Acre “de
Galvez” é um país estrangeiro ao Brasil, e o Acre Atual é um Estado brasileiro.
Bastaria isso para que o “silogismo wilsoniano” caia por terra.
Então, para esse
projeto que tramita na Assembleia Legislativa ganhe um mínimo de coerência seria
preciso que primeiro provasse que a República de 1899 é igual ao Estado de
1962. Caso consiga essa missão impossível, estaria facultada a adoção de uma
mesma bandeira. Seria o Acre de 1962 IGUAL ao Acre de 1899? Certamente que não.
Mas ambos têm o mesmo nome. Sim, são homônimos, e talvez essa seja uma das
poucas coisas em comum entre eles. Ter nomes iguais não tornam iguais esses
dois topônimos. Para início de conversa, cada Acre têm um respectivo decreto de
criação, ou seja, uma certidão jurídica de nascimento própria. Geograficamente
são distintos, uma vez que o limite oeste do “Acre país” ia até o rio Iaco, excluindo
os afluentes do Juruá. O espaço jurisdicional de um era bem menor que o do
outro. A natureza política deles também são divergentes, um era país e outro
estado. São pessoas jurídicas de direito público com naturezas opostas. O Acre
Estado é brasileiro, o Acre País era de nacionalidade estrangeira. O Acre País
era independente do Brasil, já o Acre Estado é dependente. O Acre “de Luiz
Galvez” era um Estado soberano que adotara a forma republicana de governo. A
república pressupõe o exercício da cidadania que, por sua vez, supõe um vínculo
jurídico entre o indivíduo e o Estado Nacional, que nada tem a ver com o Acre
Estado.
O Acre Estado não é a
continuação do Acre país. Isso seria uma “involução”, um movimento regressivo
contrário a ideia de progresso tão basilar no ponto de vista da historiografia positivista,
típica do século XIX. A história oficial do Acre foi construída aos moldes
positivistas, por isso é que temos a impressão de que trata-se de uma narrativa
linear e cronológica do idêntico em pleno desenvolvimento, ou seja, como se
fosse um único Acre em estágios de evolução diferentes. Atualmente, nenhum
curso de história de prestígio internacional adota o estilo narratológico
positivista como padrão, justamente por causa desse caráter teleológica
manipulador. A bandeira é a marca identitária de uma ente político republicano,
portanto, se há dois entes, que se tenha duas bandeiras.
Mesmo que o Acre País fosse hipoteticamente
tido como o passado fundador do Acre Estado, a necessidade de diferenciá-los
simbolicamente com bandeiras próprias continuaria sendo pertinente, afinal, o
primeiro Acre tinha nacionalidade estrangeira. Porém, os historiadores
positivistas e conservadores dirão: mas o “sangue da República de Galvez corre
nas veias do Estado do Acre”. Eu responderia: mesmo que essa “fantasia
historiográfica” fosse verdadeira, não implicaria dizer que se trata de um
mesmo Acre, pois ser “descendente sanguíneo” não torna as “digitais” individualizadoras
iguais. Justamente por causa da singularidade é que há a necessidade de símbolo
civis também singular.
Diante de tudo que
foi dito, a caracterização exata da bandeira do Estado Independente do Acre se
torna secundária, se ela tinha a estrela na parte superior ou inferior, isso
tanto faz, apesar de que as evidências históricas apontam para que ela estivesse
na parte superior. A bandeira do Acre “de Galvez” foi tomada como modelo em
1920 para que OUTRA fosse inventada a partir de sua verossimilhança, invertendo
a linha diagonal das cores e, por fim, sendo aceita oficialmente via decreto
pelo governador do então Território do Acre Epaminondas Jacome. Qual o motivo
da mudança? Sinceramente não sei, somente uma pesquisa apurada poderia nos
dizer. Resgatar o projeto que idealizou a bandeira do Acre unificado, as
discussões que houveram em torno dele, se houve contrapropostas ou projetos
alternativos, tudo isso precisaria ser pesquisado.
Para concluir, o projeto em tramitação diz
que a bandeira atual do Acre está “ERRADA”, porém eu digo que a ideia de erro só
tem validade a partir de um “padrão” socialmente aceito como certo, fora disso,
as ideias de certo e errado viram “fumaça”. Então, o “padrão” aceito seria a
bandeira do Acre País? Por quais motivos esse padrão deveria ser aceito? É bom
que se diga que, nesse caso, não se trataria de “corrigir um erro” e sim de adotar
uma OUTRA bandeira, qual seja, aquela que representava um Acre estrangeiro ao
Brasil. O “erro histórico winsoniano” não precisa ser corrigido, pois a atual
bandeira não está “de cabeça para baixo”, ela está exatamente onde deveria
estar. Repito em dizer, não estamos tratando de uma mesma bandeira, sendo uma
certa e a outra errada, o caso aqui é que temos duas TOTALEMENTE singulares,
uma representando um país e a outra representando uma unidade federativa de um
país. Não se trata de “resgatar a história do Acre” com uma suposta correção da
bandeira e sim consolidar, por meio de um símbolo civil, o mito fundador do
Acre, ou seja, o abuso da história.
Dr. Eduardo de Araújo Carneiro é professor da UFAC, lotado no Centro
de Filosofia e Ciências Humanas. É escritor e editor de livros.
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