INTRODUÇÃO
O |
presente livro trata da disputa jurídica
protagonizada pelo Estado do Amazonas, em virtude da suposta desanexação do
Acre Setentrional do seu território, operada pela União. Isso aconteceu quando
o Decreto
Federal Nº 1.181, foi publicado em 25 de fevereiro de 1904, anunciando a criação do
Território do Acre, ente governado diretamente pelo Governo Federal, o que não
era previsto pela Constituição de 1891.
Para os leitores entenderem o caso, a “Questão do Acre”, do ponto de
vista brasileiro[1],
foi dividida em duas fases: internacional e a nacional. Sendo que, em ambas, a
participação do Estado do Amazonas foi decisiva, já que interferiu no
transcurso dos acontecimentos.
Na fase internacional, a “Questão do Acre” representou o embate político,
diplomático e militar entre três
países sul-americanos, para saber quem exerceria o direito de soberania nas
terras banhadas pelos rios Purus e Juruá. Bolívia e Peru tinham os tratados
internacionais ao favor deles, já o Brasil, a posse efetiva.
Com relação à
Bolívia, os limites fronteiriços com o Brasil foram definidos pelo Tratado de
Ayacucho (1867), no entanto, ainda carecia da demarcação definitiva. Quando a
mesma foi realizada, em consequência do Protocolo Carvalho-Medina de
1895, reconheceram que a “linha oblíqua”, que cortava ambos os países, tornava
a região do atual Acre, totalmente boliviana. Com relação ao Peru, as
discussões se estenderam até 1909, quando um tratado foi firmado. Então, do
ponto de vista internacional, a “Questão do Acre” começa em 1895 e termina em
1909[2].
Do ponto de
vista nacional, a “Questão do Acre” representou a disputa política e jurídica entre
o Estado do Amazonas e a União, sobre o suposto direito do Amazonas ao Acre
Setentrional e sobre a provável inconstitucional governança da República sobre
o Acre. A questão ganha uma nova dimensão, mas o Acre continuava causando
dissensões.
O leitor deve
estar se perguntando: por que o Amazonas se achava no direito de incorporar o
Acre? A resposta está na “história da anexação do Acre” que nunca te contaram,
por ser contrária aos interesses políticos e econômicos da elite gomífera
regional inserida no movimento autonomista acreano.
No livro A
Epopeia Acreana e o abuso da História (2017), eu mostro como a versão
epopeica da gênese do Acre, que conhecemos hoje, foi resultado da manipulação
dos fatos operada pelo Movimento Autonomista. De modo que, a narrativa que nos
foi ensina é marcadamente acreanocêntrica – ou seja, ela não visa conta
a verdade e sim fabricar identidade coletiva e orgulho de pertença.
O Estado do
Amazonas foi determinante para incorporação do Acre ao Brasil. Em meu livro Não
foi acreana nem revolução (2021), eu mostro isso com farta
documentação. Foram os
governos amazonenses quem dirigiram as migrações nordestinas para as terras
banhadas pelo rio Acre (fase invasiva), quem arquitetaram e financiaram as
revoltas armadas (fase militar) e quem popularizaram a reinterpretação do Tratado
de Ayacucho de 1867, de modo a por dúvidas sobre o direito boliviano ao Acre
Setentrional (fase diplomática)[3].
O Estado
do Amazonas estendeu a sua jurisdição para a região e a administrava, garantindo
a ordem e coleta de impostos sobre a
comercialização da borracha[4]. A
bacia hidrográfica do rio Acre fazia parte do sistema hídrico do município
amazonense de Floriano Peixoto. A parte do Brasil que mais sofreria com a
bolivianização do Acre era a do Amazonas, pois era ali que acontecia a tributação
de toda a operação mercantil ligada a economia da borracha.
Quando o
governo brasileiro autorizou a instalação da aduana boliviana na região do Acre
em 1898 e a mesma se efetiva no início de 1899, foi o Estado do Amazonas quem
confabulou a resistência. A “Revolução” — de Jose de Carvalho (1899) a Plácido
de Castro (1902) — foi pensada em Manaus.
Os
“cabeças” da Junta Revolucionária eram representantes do Estado Amazonense. De
Manaus vieram boa parte do financiamento (dinheiro, armas, viveres, etc.) e dos
mercenários (pessoas contratadas para lutarem em favor da causa). Assim, o
“Acre” — terras banhadas pelo rio Acre — foi defendido como território
amazonense. O que chamamos de “Revolução Acreana” nada mais foi do que uma
“revolta amazonense” contra a soberania boliviana na região do rio Acre.
Pensem
comigo: desde a proclamação da República, todo o território nacional foi
dividido em unidades federativas. Sendo assim, era impossível pensar o “Acre”
como nacional, sem que estivesse inserido em um dos Estados. Aquele que fazia
fronteira com a Bolívia e com o Peru era o Amazonas.
A
brasilidade daquele território estava condicionada a amazonensidade dele. Afinal,
ninguém se dirigia às terras banhadas pelo rio Acre em viagem internacional,
pelo contrário, saiam de Manaus cônscios de que se deslocavam para o interior
do Estado, em uma viagem intermunicipal. Por isso, o solo pátrio que a
“Revolução Acreana” defendeu era, indiscutivelmente, o amazonense.
O uti
possidetis alegado pela diplomacia do Brasil nas negociações que
antecederam a assinatura do Tratado de Petrópolis, era garantido pelo Estado do
Amazonas. Ele quem, de fato, exercia a soberania brasileira naquela região. Por
tudo isso, era de se esperar que a jurisdição amazonense no território do
“Acre” fosse reconhecida tão logo ele fosse legalizado como brasileiro.
Contudo, não foi isso que aconteceu, como já foi dito, o Governo Federal
preferiu agir à margem da Constituição Federal e criou o ente Território do
Acre.
A decisão repercutiu
muito negativamente em Manaus, de modo que em fins de 1905, após esgotadas as negociações
políticas, o Estado do Amazonas contrata o eminente advogado Rui Barbosa para
ajuizar uma ação no Supremo Tribunal Federal contra a União. Boa parte da
história que contamos nesse livro gira em torno desse processo — a Ação Pública
Reivindicatória de Território.
Adianto
que o processo nunca foi julgado, pelos motivos que conto no livro. Contudo, o
mesmo recebeu um “veredito” favorável dado politicamente, quando a Constituição
Federal de 1934 garantiu ao Amazonas, o direito de receber uma indenização pela
desanexação do Acre.
A partir
de então, o Amazonas passou a receber inúmeros adiantamentos financeiros do
Governo Federal que ficou computado na rubrica “dívida do Acre”. O interessante
é que, na apuração do valor total “da dívida”, consta a soma dos gastos que o
Estado do Amazonas teve com a “Revolução Acreana”. Tudo mostra que o “Acre”, de
fato e de direito, era amazonense.
Apesar da
inegável participação do Estado do Amazonas na anexação das terras que
atualmente pertencem ao Estado do Acre, o Movimento Autonomista,
irresponsavelmente, expurgou da narrativa histórica a atuação desse Estado, fazendo
crer que a “Revolução” foi um movimento endógeno, atavicamente organizado.
Como o Amazonas disputava o
“Acre” judicialmente, os Autonomistas, ao longo dos anos, mobilizavam a
população local para resistir o que parecia óbvio: a vitória de Rui Barbosa e
do Estado do Amazonas no Supremo Tribunal. Um dos meios de convencimento era através
de uma história manipulada da anexação, que censurava a palavra “Amazonas” da
narrativa.
Até mesmo a Expedição Floriano
Peixoto (1900) foi rebatizada com o famigerado nome de “Expedição
dos Poetas”. Isso para dissimular a verdade de que a mesma defendia o solo
pátrio do município amazonense Floriano Peixoto. Contudo, a verdade ofendia a
causa autonomista, por isso, falsearam a narrativa dizendo se tratar de “intelectuais
boêmios” que “sonhavam” com um Acre brasileiro autônomo[5].
O abuso
da história é produzido toda vez que a mentira é propositalmente inserida na
narrativa com o intuito de provocar o engano. É uma ação consciente, intencional, deliberada e desonesta e
irresponsável praticada para auferir
alguma vantagem simbólica ou político para si ou para outrem.
Negar o
protagonismo do Estado do Amazonas é faltar com a verdade, ou melhor, é fazer
apologia à mentira na escrita da História. Em resumo, manipular, falsificar ou
abusar da história significa produzir, conservar ou fazer circular
representações do passado que não condizem com as evidências documentais e, por
isso, se constituem em um registro infiel dos acontecimentos.
Logo,
essa história acreanocêntrica, “dopada” de acreanismo, que fala de acreanos
lutando por amor à pátria ou de Autonomia como ideal da Revolução Acreana, é
espúria. É produto da falta de ética dos autonomistas, que manipularam a
história em favor da causa que defendiam. Por isso, toda a história da anexação
do “Acre” e da autonomia acreana precisa ser recontada. De antemão, sabemos que
o Estado nunca patrocinará tal revisão da História, pois os governantes
precisam da epopeia para alienar o povo em torno de um passado que nunca
existiu, causando-lhe ufanismo, otimismo e passividade.
Termino a
introdução, informando que a pesquisa que deu origem ao livro, se deu em 2019,
quando fui liberado para realizar o meu estágio pós-doutoral. No período,
visitei arquivos no Rio de Janeiro (RJ), Manaus (AM) e Rio Branco (AC), além de
acessar o acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Priorizei a
análise de fontes primárias, além de documentos oficiais, livros, matérias de
jornais e discursos parlamentares da época. A redação do livro foi iniciada em
2020, porém, só agora deparei-me com o momento oportuno para concluí-la. Espero
que gostem.
Desejo
uma boa leitura a todos.
Eduardo de
Araújo Carneiro
Rio
Branco, novembro de 2024
[1] A disputa pelo território já acontecia
entre Peru e Bolívia, desde a independência dos dois países, contudo, a questão
era designada com outro nome, já que, “Acre” foi a forma como o Brasil significou a questão.
[2] A versão “acreanocêntrica” de louvação
a Plácido de Castro demarca o fim da Questão do Acre, em janeiro de 1903,
quando as maltrapilhas tropas bolivianas, em Puerto Alonso, foram derrotadas. É
dito que o Tratado de Petrópolis só formalizou o que já havia sido definido
pela “Revolução”. Contudo, a derrota dos flagelados, não implicava em uma
vitória final contra o exército boliviano, muito menos resolvia o impasse com o
Bolivian Syndicate. Sem dizer que aconteceram batalhas armadas contra os
peruanos no Juruá, das quais Plácido de Castro se quer tomou conhecimento. A
historiografia “míope” limita a “Revolução” aos embates andinos. Faz isso só
para salvaguardar a imagem de Plácido de Castro como herói, como o “pai do
Acre”. Fato é que ele não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil, muito
menos teve participação nas negociações entre o Brasil e a Bolívia ou entre o
Brasil e o Peru que, de fato, findaram a
“Questão do Acre” em âmbito internacional.
[3] No
meu livro Amazônia, Limites &
Fronteiras (Brasil, Bolívia e Peru): uma história revisada da nacionalização do
Acre (2017), eu divido o
processo de anexação nessas três fases: invasiva (colonização ou invasão);
militar (“Revolução Acreana”); e diplomática (tratados internacionais). No
livro, defendi, com rica documentação, que a fase militar foi a menos decisiva
das três.
[4]
Não entraremos na discussão se assim fazia de forma legal ou ilegal. Fato é que
a jurisdição amazonense, no tentório do atual Acre, é inquestionável.
[5] No Brasil, na época, não existia o
topônimo Acre, muito menos o gentílico “acreano”. Acreano como fenômeno
identitário foi uma invenção póstuma aos eventos. A identidade cultural coletiva
é o resultado de um processo simbólico de longa duração. Não se cria identidade
cultural da noite para o dia. O que foi criado, na verdade, foi uma identidade
de interesses, que agrupou políticos, profissionais liberais, seringalistas e
seringueiros em torno de uma causa que prometia benefícios ou dividendos a
todos os envolvidos.
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