Tudo girava em
torno deste esquema: a Bolívia queria auferir renda que de direito lhe
pertencia, e o Amazonas, prejudicado na sua arrecadação fiscal, opunha-se,
nos bastidores, ao funcionamento da aduana de Puerto Alonso, contando com a
adesão dos seringueiros locais e do comércio de Belém e Manaus.
(TOCANTINS, 2001 p. 247) [grifo nosso].
Antes mesmo que a Questão do Acre surgisse,
parte das terras banhadas pelo rio Aquiri/Acre já era tratada como brasileira
pelo Amazonas, uma vez que esse Estado o administrava. Por conta disso, no
plano discursivo, que é o que me interessa aqui, o abrasileiramento do “Acre” (terras
banhadas pelo rio Acre) teve início antes mesmo de o Acre (territórios banhados pelos
rios Purus e Juruá) existir como Acre (topônimo). É que o “Acre” foi imaginado como
brasileiro na forma de um “não-Acre”, ou seja, com outra identidade
territorial, outro nome, outro topônimo[1].
Durante a segunda metade do século XIX, aqueles
que moravam às margens do rio Acre estavam sob a jurisdição do município
amazonense Antimary, que depois ficou conhecido como “Floriano Peixoto”, de
onde eram expedidos os títulos
fundiários na região. Cartas que eram
destinadas à região do atual Acre eram endereçadas como “Antimary”, “Floriano Peixoto” ou “Lábrea”. Em 1890, o
município de Lábrea foi dividido e deu origem ao município de Antimary, que em
1897 passou a se chamar de “Floriano Peixoto”. Segundo Serzedello Correa o governo do
Amazonas já administrava o “Acre”, como se vê a seguir.
Ora, o Estado do Amazonas exerce plena e inteira jurisdição em toda
essa região. A 32ª divisão distrital ou circunscrição política do Amazonas na
Comarca de Lábrea estende-se desde o foz do Rio Teuni, por ambas as margens,
até a boca do Rio Acre, inclusive. A 34ª principia na foz do Iaco e termina nos
limites com o Peru pelo mesmo rio. Assim, pois, segundo a organização dos Municípios no Amazonas as regiões do Acre
estão sob a jurisdição do seu governo: a prefeitura de Lábrea rege-as desde
o Rio Purus até o Rio Mari, ou desde o Ituxi até o Teuni (CORREA,1899, p. 138,
grifo nosso).
O Ato
Governamental Nº 248, assinado pelo Presidente da Província do Amazonas em 12
de agosto de 1878, comprova, assim como tantos outros documentos, que a região
do rio Acre era tratada como nacional. Ou seja, já havia um discurso de
abrasileiramento da região que hoje pertence ao Estado do Acre. O Ato fala de
duas Agências de Renda, uma no rio Purus, “até Iutanaã, derradeiro ponto de
escala dos vapores subvencionados, outra deste ponto até o Rio Acre,
nomeando logo o serventuário para a segunda” (grifo nosso).
O papel do
governo do Amazonas foi fundamental para a exploração da região banhada pelos
afluentes do Purus e isso foi um pré-requisito para a colonização do
Acre. A partir dos anos 1950, diretores
ou encarregados de índios foram nomeados pelo governo da Província do Amazonas
para realizarem as primeiras expedições de reconhecimento na região (Cf.
CARNEIRO, 2017). Elas tinham como
objetivo provável a “pacificação” dos índios e a obtenção de informações sobre
a quantidade de seringueiras, de índios e de bolivianos naquelas plagas. No
entanto, a justificativa era a descoberta de uma passagem fluvial livre de
cachoeira e menos extensa para a Bolívia com o objetivo de adquirir carne
bovina mais barata. Após confirmada a ausência de bolivianos e o potencial
gomífero da região, aconteceu um intenso processo de invasão[2] na
década de 1870.
Os famosos
exploradores João Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da
Encarnação, por exemplo, eram “diretores de índio” em missão oficial designada
pelo governo amazonense. O primeiro saiu de Manaus em direção ao sul amazônico
em março de 1852 e se tornou o primeiro brasileiro a explorar o rio Purus.
Nesse mesmo ano, o segundo foi contratado, e até onde se sabe, ele explorou o
rio Purus até 10º 25’ de latitude sul, ou seja, ultrapassou o paralelo que o Tratado
de Ayacucho (1867) definiria a fronteira do Brasil com a Bolívia. Em 1861, foi
a vez do terceiro “diretor de índio” subir o rio Purus; conta-se que atingiu o
rio Acre, chegando até Xapuri (Cf. CASTELO BRANCO, 1950).
Depois de os primeiros
“desbravadores” contratados pelo governo do Amazonas terem feito uma espécie de
“zoneamento ecológico-econômico” da
região, foi a vez de a iniciativa privada financiar os “colonizadores”. Eles exploraram
economicamente a região e, por conta disso, eram obrigados a pagarem os devidos
impostos à alfândega amazonense. Em 1871, quando o Coronel Pereira Labrea
chegou às margens do rio Acre. Em 1877-8 (?), foi a vez de João Gabriel de
Carvalho e Melo, juntamente com inúmeros outros, chegar à confluência do rio
Acre com o rio Purus (Cf. CASTELO
BRANCO, 1958).
Pelo que se sabe,
eles foram os primeiros “invasores” que operaram a extração e a comercialização
clandestina de borracha naquele território até então estrangeiro. “Em poucos
anos, o rio Acre estava todo ocupado, e assim também o Purus, até onde existia
a seringueira, ou seja, até onde é a atual fronteira com a República do Peru”
(MELO, 1968, p. 105). O Estado do Amazonas incentivava a exploração econômica
da região porque lucrava com a arrecadação de impostos sobre a exportação da
borracha. Por isso é que quando surgiu o perigo de a Bolívia exercer a
soberania na região do atual Acre, alguns dos principais políticos, liberais e
comerciantes de Manaus e de outros municípios amazonenses ligados à economia
gomífera resistiram. Inclusive, pela via armada, provocando um “clima
de tensão e de revolta” (CABRAL, 1986, p. 37) entre os brasileiros da
região. A seguir, tem-se o posicionamento de um historiador boliviano sobre o
assunto.
Todo el conflicto giraba en torno a estos factores: Bolivia quería tomar
las riendas del territorio del Acre, que por derecho le pertenecía, y el Estado
del Amazonas perjudicado en sus recaudaciones fiscales se oponía tenazmente,
pero entre bastidores, al funcionamiento de la aduana de Puerto Alonso. Para
efectuar esa oposición contaba con la adhesión de los seringueros, los
empleados públicos, los empleados locales y los comerciantes del Pará e Manaos,
un complejo de intereses que se movían para oponerse a los cabios de una
situación que les estaba produciendo riquezas y poder político. (RIBERA, 1997, p. 53).
Após a resistência militar da chamada “Revolução Acreana” e
do sucesso diplomático que desembocou na assinatura do Tratado de Petrópolis, o
território banhado pelos afluentes dos rios Purus e Juruá foi nacionalizado de
fato e de direito. Por tudo que o Estado do Amazonas fez para que tal
território fosse anexado ao Brasil, era de se esperar que ele fosse incorporado
ao território amazonense. No entanto, como já foi dito, o Governo Federal
resolveu administrá-lo diretamente, conforme o Decreto Federal Nº
1.181, de 25 de fevereiro de 1904.
A decisão feriu
expressamente os interesses do Estado do Amazonas que, obviamente, não aceitou
passivamente a ideia da criação do Território. Foi a partir dessa
situação que o Estado do Amazonas resolveu disputar política e judicialmente a
posse Acre setentrional (Mapa 01, p. 30) com a União. Em
dezembro de 1905, o senador Jonatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei ao
Congresso Nacional que visava à anexação do Território do Acre Setentrional ao Estado
do Amazonas[3].
Naquele mesmo mês, o Estado do Amazonas contratou o
renomado jurista Rui Barbosa para atuar como advogado em uma Ação Civil Pública
Reivindicatória Originária (Nº 9), aberta contra a União no Supremo Tribunal
Federal. É justamente essa peça jurídica que constituímos como corpus
preferencial de nossa pesquisa para analisar tanto o discurso da amazonensidade
do Acre quanto o da não amazonensidade dele. A seguir, uma
charge que mostra Rui Barbosa conferenciando com o Barão do Rio Branco sobre o
destino do território do Acre.
Figura
07 – Disputa pelo Acre: “União entalada com o Amazonas”
Fonte: jornal
O Malho, do Rio de Janeiro, em 11 de
junho de 1904, p. 17.
Rui Barbosa defende a incorporação do Acre ao Estado do Amazonas e, para
tanto, faz uso de argumentos jurídicos. No entanto, Barão do Rio Branco leva a
discussão para o campo político e econômico, desabonando o pleito. A Figura 07 sugere
que o Acre foi “rebaixado” à categoria de Território por questões financeiras.
O Governo Federal pretendeu administrar o Acre diretamente com o fim de compensar
as obrigações que teve que contrair perante o governo boliviano com a solução
“pacífica” da Questão do Acre.
Os discursos analisados nessa tese estão inscritos na conjuntura
histórica que acabamos de sintetizar. É nesse contexto que as condições de
enunciabilidade deles estão circunscritas. Só é possível compreendê-los se a
dispersão de textos que os tematizam forem remetidos à história que lhes serviu
como condição de sentido. O discurso da amazonensidade do Acre e o da não
amazonensidade não apenas dialogam entre si como também polemizam-se. O
comportamento polêmico deles é o alvo de nosso estudo. Nos próximos dois
capítulos, apresentarei a imagem que cada um dos dois discursos construíram de
si a partir dos seus respectivos planos argumentativos, depois analiso o
processo de construção da imagem que fizeram um do outro.
[1]
Portanto, o “Acre” já havia sido imaginado como brasileiro com os nomes de
“Antimary”, “Floriano Peixoto” e “Lábrea”. Além destes, é sabido também que o
pernambucano Serafim da Silva Salgado, pioneiro na exploração do rio Purus,
apesar de não ter navegado pelo rio Acre, se referiu às terras por ele banhadas
como “Canaquiri” (Cf. CASTELO BRANCO,
1958, p. 22).
[2]
Vários fatores favoreceram a “invasão”: a) o território era rico em seringueiras;
b) os bolivianos não protegiam as suas fronteiras; c) os brasileiros tinham
facilidades creditícias para expandir a produção gomífera para além das
fronteiras etc. (CARNEIRO, 2015)
[3]
Rui Barbosa menciona que em 1906 o projeto já havia sido aprovado no Senado
(Cf. 1986, p. 99).
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