quarta-feira, 4 de abril de 2007

A “invenção” do Acre como exemplo de brasilidade

Por: Prof° Dr. José Pimenta (UNB) A história da colonização do Acre está estreitamente ligada ao extrativismo da seringa. Até metade do século XIX, o atual Estado do Acre ainda era pouco conhecido e as populações indígenas da região viviam num relativo isolamento do mundo moderno. Organizadas em torno da coleta de drogas do sertão (cacau, salsaparrilha, etc.), as raras e tímidas penetrações brancas na região acreana durante o século XVIII não estabeleceram nenhum núcleo de povoamento. Viajando pelas bocas dos rios Juruá e Purus no início do século XIX, os naturalistas alemães Spix e Martius ([1823-31] 1981) notaram em seus diários a presença de “índios selvagens” e a falta de “civilização” que, segundo os autores, caracterizava a região.
Além da exploração da região e de suas riquezas naturais, as primeiras expedições oficiais ao Purus e ao Juruá, lideradas respectivamente por João Rodrigues Cametá e Romão José de Oliveira, em meados do século XIX, tinham como objetivo a atração e a pacificação dos índios. Essas "entradas" permaneceram limitadas, subindo os rios apenas parcialmente, mas inauguraram uma série de explorações da região durante as décadas de 1850 e 1860. Entre essas expedições destaca-se a viagem, a mando da Royal Geographical Society de Londres, do geógrafo inglês William Chandless que subiu o Purus em 1864/65 e o Juruá em 1867. Todavia, a historiografia regional consagrou os nomes de Manoel Urbano, explorador do Purus em 1858, e João da Cunha Corrêa, que percorreu o Juruá em 1861, como os primeiros "desbravadores" e "descobridores" das terras acreanas.
A partir da década de 1870, a situação mudou paulatinamente com a chegada maciça de seringueiros de origem nordestina, vindos principalmente do Ceará. Com uma densidade elevada de hévea brasiliensis, a história do Acre foi profundamente marcada pela economia extrativista da borracha. Em 1899, a região acreana produzia cerca de 60% da borracha amazonense, ou seja, mais de 12 mil toneladas (Costa [1973] 1998: 40).
A ocupação da bacia do Purus, de acesso mais fácil a Manaus e Belém, precedeu de alguns anos à exploração de seringa no Alto Juruá. Segundo Oliveira (1992: 50), João Gabriel de Carvalho e Melo foi o primeiro colono a se estabelecer, em 1857, nas margens do Purus com 40 famílias e o fundador, em 1869, do primeiro seringal estável da região. O ritmo da colonização do Acre se acelerou a partir de 1877 em conseqüência das grandes secas do Nordeste. A imigração de milhares de seringueiros, em busca de melhores condições de vida, organiza-se a partir das casas aviadoras de Manaus e Belém apoiadas pelo capital internacional e é geralmente apresentada pelos historiadores, como Euclides da Cunha ([1909] 1998: 92) ou Ferreira Reis (1931: 216), como um movimento “fortuito”, “espontâneo” e sem “iniciativa oficial”.
A chegada dos seringueiros constitui, para usar a expressão de Ricoeur (1978: 40), o “evento fundador” da história oficial acreana. O Acre nasce com os seringueiros e a epopéia da borracha. A história da região na última década do século XIX e no início do século XX é complexa e movimentada. A “conquista do deserto ocidental” é apresentada ao leitor como um exemplo de patriotismo, um ímpeto de brasilidade e de orgulho nacional. Juntos com as figuras emblemáticas de Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco, os seringueiros nordestinos, foram os pilares da incorporação da região ao Estado-nação brasileiro. Através da análise da historiografia regional, podemos desvendar alguns mitos que participam tanto da ideologia nacional brasileira, como da “invenção da Amazônia” (Gondim 1994).
Preocupado em destacar alguns desses mitos fundadores da história oficial acreana, opto aqui por não descrever os eventos e as disputas entre o Brasil e os países fronteiriços para a demarcação das fronteiras internacionais e a incorporação do Acre ao território nacional. Os conflitos do Brasil com a Bolívia e o Peru, as insurreições dos seringueiros, a formação do Estado independente do Acre dirigido por Galvez, a epopéia militar comandada por Plácido de Castro, as negociações diplomáticas lideradas pelo Barão do Rio Branco que levaram progressivamente a definição das fronteiras atuais, são alguns dos principais marcos da fascinante história do Acre cuja exposição seria fastidiosa e ultrapassaria os limites deste artigo. Como antropólogo e não historiador, o meu interesse é discutir o lugar atribuído aos povos indígenas pela historiografia oficial da região, desvendando alguns mitos fundadores da “invenção” do Acre.
Na historiografia brasileira, a integração do Acre à nação é apresentada como um exemplo de patriotismo e de nacionalismo. Apesar das diferenças de interpretações, os historiadores acreanos concentram, geralmente, suas análises em torno da participação do povo seringueiro e dos grandes heróis da conquista: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Encarregado dos trabalhos de fixação da nova fronteira através da “Comissão mista brasileira-peruana de reconhecimento do Alto Purus”, no início do século XX, Euclides da Cunha ([1909] 1998), por exemplo, em seus escritos sobre a Amazônia, salientou a coragem e o patriotismo dos seringueiros nordestinos. Vivendo em condições sub-humanas, prisioneiros do sistema do aviamento e da hostilidade da floresta, os seringueiros são, na visão do autor, um exemplo de miscigenação e os bastidores do novo caráter nacional. Encarregados de domesticar a natureza e de integrar a Amazônia, “terra sem história”, à Pátria, os anônimos seringueiros concentram as virtudes do povo brasileiro e expressam através de uma luta cotidiana os grandes desafios da nação.
A utilização do patriotismo e do nacionalismo aparece também na construção mítica dos heróis da história do Acre. À imagem da República que elegeu Tiradentes como símbolo nacional brasileiro (Carvalho 1990), a epopéia acreana construiu seus venerandos heróis: Plácido de Castro e o Barão do Rio Branco.
Ardentes defensores das idéias positivistas, os militares tiveram um papel importante na proclamação da República no Brasil e na ocupação do território nacional.[1] Na história acreana, Plácido de Castro expressa esses valores positivistas e patrióticos do “espírito militar” que o “libertador do Acre” soube transmitir ao povo seringueiro e que foram decisivos para a incorporação da região à nação.[2]
Todavia, a dimensão militar nunca substituiu os esforços da diplomacia. Na versão da história oficial da conquista do Acre, o Brasil sempre valorizou uma resolução pacífica do conflito com a Bolívia e o Peru. Nesse contexto, o Barão do Rio Branco, chefe da diplomacia brasileira, aparece como um negociador excepcional. Ao mesmo tempo defensor do Brasil e respeitoso dos países vizinhos, Rio Branco alcançou um estatuto mítico, além dos interesses egoístas que caracterizam a condição humana. Na apresentação de sua atuação, desvendam-se algumas imagens do "homem cordial", outro símbolo poderoso de brasilidade (Buarque de Holanda [1936] 1989).[3] O patriotismo e o nacionalismo se expressaram também em vários eventos da história regional. Limito-me, aqui, apenas ao exemplo da oposição dos seringueiros acreanos à criação do Bolivian Syndicate.
Última tentativa do governo boliviano para ocupar a região, a criação do Bolivian Syndicate exigiu da antiga colônia espanhola concessões enormes de soberania. Segundo os termos do contrato assinado em julho de 1901, a Bolívia oferecia à companhia internacional, composta por grandes grupos financeiros, principalmente norte-americanos, uma concessão de trinta anos para a exploração da seringa na região. O consórcio capitalista dispunha da plena autoridade sobre o comércio da borracha e de direitos políticos e judiciais essenciais. Ele usufruía do direito de compra e venda dos seringais, do direito de navegar e controlar os rios através de uma polícia própria, de estabelecer as leis e exercer a justiça, etc. Em contrapartida, a Bolívia recebia 60% da arrecadação realizada pela companhia.
A criação do Bolivian Syndicate foi um dos momentos-chaves do conflito acreano, um “critical event” (Das 1996) que levou à incorporação do Acre ao Brasil. Para os seringueiros brasileiros, o Bolivian Syndicate aparecia como uma espécie de companhia colonial que controlava, não só a terra, mas toda a organização do trabalho extrativista da borracha. Essa situação revoltou a população acreana que conseguiu superar suas divisões internas e se organizar contra o inimigo comum.
O sentimento do povo acreano espalhou-se além das bacias do Purus e do Juruá e comoveu o país que deu um apoio decisivo à luta dos seringueiros. A formação do Bolivian Syndicate criou um fervor nacionalista e patriótico que cimentou a nação contra os inimigos do Brasil. Manifestações contra os americanos e bolivianos se organizaram em Manaus, Belém e Rio de Janeiro. Orgulho da Nação, a Amazônia era novamente cobiçada pelo capital estrangeiro. Depois do roubo das sementes da hévea que levará à crise da borracha amazônica a partir de 1910, a ameaça estrangeira sobre o território continuava com claras tentativas de se apropriar das riquezas do Brasil e impedir seu almejado progresso.
O clima decorrente da criação do Bolivian Syndicate motivou a decisão do Presidente Rodrigues Alves de enviar tropas do exército para o Acre. Espelho das hesitações da política oficial, as ordens dos militares brasileiros eram confusas e contraditórias: garantir a paz com os bolivianos e apoiar a luta dos seringueiros, defendendo os interesses da nação contra o imperialismo internacional. Ao mesmo tempo que causou a intervenção militar brasileira no Acre, onde se destacaram as façanhas de Plácido de Castro, a criação do Bolivian Syndicate também é usada na historiografia oficial para expressar o gênio diplomático do Barão do Rio Branco que propôs uma indenização financeira à Bolívia e aos americanos para evitar a extensão do conflito.
É interessante notar que nessa campanha nacional em defesa dos interesses da Pátria, a imprensa teve um papel essencial. Formador da opinião pública e do sentimento nacional, o “print capitalism” (Anderson 1996) contribuiu para assegurar a vitória dos seringueiros acreanos. Antes da criação do Bolivian Syndicate, a imprensa amazonense já havia atuado de maneira notável na defesa dos interesses do povo acreano, denunciando, periodicamente, a administração boliviana de Puerto Alonso e o imobilismo do governo federal brasileiro, acusado de abandonar seus cidadãos.
Essa atitude da imprensa amazonense manifestava claramente os interesses econômicos envolvidos no controle da região. Com a constituição do Bolivian Syndicate, o ardor patriótico dos jornais de Belém e Manaus se multiplicou e os artigos publicados pela imprensa amazonense foram reutilizados por outros diários nacionais, espalhando a indignação por todo o país e fazendo do conflito acreano uma questão de honra nacional.
[1] Cabe notar que a criação do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1910, dirigido pelo Marechal Rondon, apresentado pela a historiografia militar como “o civilizador da última fronteira” (Coutinho 1975), integrava o projeto positivista de ocupação territorial e de construção de uma identidade nacional (Souza Lima 1995; Ramos 1998). [2] Os historiadores são unânimes em elogiar a atuação de Plácido de Castro no conflito. Para uma perspectiva histórica centrada sobre o chefe militar, ver Goycochêa (1973) e Araújo Lima ([1973] 1998). [3] Sobre esse tema, alguns comentadores do Tratado de Petrópolis, como Ricardo (1954), insistiram em apresentar o acordo como um favor concedido aos bolivianos pelo generoso chefe da diplomacia brasileira. Além de incorporar os estereótipos associados ao “homem cordial”, essa apresentação do Brasil como defensor dos interesses da Bolívia, e do subcontinente em geral, contra o imperialismo americano e europeu, é também uma clara demonstração do paternalismo brasileiro em relação aos outros países latino-americanos.

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