Por: Marcos Vinícius.
Fonte: Jornal Pg20, 24 de fevereiro de 2008.
Esta semana retomamos a série de artigos sobre os sítios arqueológicos com estruturas de terra que caracterizam uma importante parte da pré-história acreana e podem revelar a trajetória e os contatos de povos da floresta que habitaram uma grande área do Acre há milhares de anos.
Até aqui a história do Acre tem sido contada olhando apenas para o norte e para o leste. Para o Brasil, portanto. Ainda está por ser conhecida a longa história de um Acre que também olha para o sul e para o oeste, ou seja, para a Bolívia e para o Peru. Especialmente se pretendemos compreender algo dos milhares de anos que antecederam o último século e meio, já que esse é todo o tempo da história do Acre brasileiro que nos esmeramos tanto em cultivar e aprofundar.
Portanto, antes mesmo de começarmos a discutir uma possível pré-história acreana, precisamos redesenhar o mapa do Acre que temos em nossas mentes e descobrirmos outra territorialidade, que pode parecer muito estranha e complicada à primeira vista, mas que é a única capaz de explicar as características desse outro Acre mais antigo e profundo.
Tendo em vista que o nome Acre, ou “Aquiri” em língua Apurinã, diz respeito apenas ao nome de um dos muitos rios da região sul-ocidental da Amazônia, que nem ao menos é um dos maiores ou mais importantes dessa área, mas que foi definido a partir de uma construção histórica. Acho que é adequado utilizarmos também este nome para a grande região que começamos a visualizar. Assim podemos nos manter atentos aos vínculos que essa história possui com o Acre que conhecemos hoje.
Mas como se trata de uma área muito maior do que aquela que custou ao Brasil alguns milhões de libras esterlinas, em 1903, podemos chamá-la então de o “Grande Aquiri”, assim manteremos também uma clara referência ao passado indígena que nomeou esse rio e que, à semelhança da história mais recente, permanece sendo o centro de nossa pré-história de 3.000 anos.
Pequeno sítio circular também localizado à margem da BR-317
Seguindo essa lógica, portanto, o “Grande Aquiri”, além de ser constituído pelos vales dos rios Purus e Juruá, inclui também os vales dos rios afluentes do rio Madeira ao norte da Bolívia: Abunã, Madre de Dios, Orton e Beni; bem como o vale do rio Ucayale, no Peru. Uma grande região constituída principalmente por um extenso divisor de águas que separa os rios Ucayale, Juruá, Purus e Madeira, e forma uma grande fronteira natural, geográfica e cultural que, por uma estranha coincidência (mas nem tanto), corresponde exatamente à fronteira atual entre o Brasil, a Bolívia e o Peru.
Com isso podemos dizer que o “Grande Aquiri”, enquanto território definido, não deve ser considerado apenas pela lógica que até hoje norteou a história amazônica. Ou seja, uma região não somente determinada pelo traçado de seus principais rios, com suas praias, barrancos e várzeas, mas pela extensa área de terra firme que existe entre os grandes e pequenos rios e igarapés dessa floresta imensa.
Exatamente a área que possui a floresta mais densa, os locais mais inacessíveis, os lugares que até hoje se constituem em refugio de culturas indígenas isoladas. Uma área que o pessoal do século XIX chamava de “o fundo dos seringais”, as mais distantes e isoladas “colocações de centro”, a “terra firme” cortada apenas por uma ou outra varação de difícil travessia. Terras que poderiam, talvez, ser definidas pelo nome de um dos muitos seringais acreano-brasileiros: o “Oco do Mundo”.
Este outro Acre, ou “Grande Aquiri”, portanto, não é só diferente do que nos acostumamos a conhecer, ele é, na verdade, em muitos aspectos, contraditório. Por isso é preciso muita atenção ao tentar compreende-lo. Assim poderemos começar a descobrir uma outra história que ainda jaz oculta nas entrelinhas dos livros e das pesquisas até aqui realizadas.
A partir do advento do Google Earth, que disponibiliza imagens gratuitas a quem quer que esteja navegando na Internet, se multiplicaram as descobertas de sítios arqueológicos que formam com suas originais estruturas de terra grandes formas geométricas.
Enquanto a pesquisa arqueológica tradicional conseguiu mapear pouco mais de duas dezenas desses sítios em território acreano e a pesquisa aérea convencional, localizou outras duas dezenas, as observações em imagens de satélite, levou o numero de sítios localizados a mais de uma centena na vasta região que se estende do norte da Bolívia, passando por Rondônia e Acre, até o sul do Amazonas, apenas considerando as áreas desmatadas e cobertas com imagens mais detalhadas de satélite. Não foi pesquisada ainda, portanto, a maior parte dessa mesma região e muito menos seus arredores.
O que abre perspectivas muito animadoras para as futuras pesquisas. Ainda mais se considerarmos que a localização dos sítios geométricos a partir de imagens de satélites está apenas começando e tem sido feita por um grande numero curiosos e pesquisadores de diferentes instituições.
Ou seja, até onde sabemos, os sítios geométricos de terra (também conhecidos pela marca de fantasia “geoglífos”) estão espalhados no que podemos considerar a região oriental do “Grande Aquiri”, constituída pelos vales do Purus e do Beni-Madeira. Não havendo até o momento registro deste tipo de sítio arqueológico nos vales do Juruá e do Ucayale. Pelo menos até agora.
E como já registrei em artigo publicado nesta coluna há alguns meses atrás, é possível reconhecer uma grande variação na forma e características dos diversos sítios já descobertos que parece obedecer a uma certa configuração territorial.
De acordo com as informações disponíveis até aqui podemos observar hipoteticamente que os sítios localizados entre Riberalta, na Bolívia, e Rio Branco são círculos simples, mas de grandes dimensões (entre 100 e 350 metros de diâmetro).
Já entre Rio Branco e Boca do Acre temos formas muito mais complexas e variadas. Nesta ultima área os sítios arqueológicos tanto podem ser círculos simples, como quadrados, octógonos, sítios irregulares, ou mesmo formas compostas por círculos e quadrados concêntricos ou interligados por muretas de terra que lembram “estradas”.
Fora desse “eixo central” de ocorrência de sítios geométricos, temos também em Sena Madureira a presença de pequenos círculos (entre 50 e 70 metros de diâmetro) associados a cemitérios com urnas funerárias de grandes dimensões e, em pelo menos um caso, com manchas de “terra preta”. E do outro lado do “eixo central”, próximo aos rios Abunã e Madeira podemos identificar a ocorrência de círculos e quadrados simples, não interligados, mas próximos entre si, apesar desta área ter sido a menos pesquisada até aqui.
Cabe ressaltar que esta possível configuração territorial de pelo menos quatro áreas de ocorrências distintas pode se referir a diferenças culturais entre vários subgrupos do povo pré-histórico que construiu os sítios com estruturas de terra. Assim como também pode remeter a diferentes períodos cronológicos, mas essa é uma questão que analisaremos com detalhe mais adiante.
Cabe ressaltar finalmente que apesar de toda a variação de formas e configurações dos sítios geométricos pelo menos uma característica parece ser comum a todas essas ocorrências: estes sítios arqueológicos nunca estão próximos às margens dos rios, mas estão sempre localizados nos divisores de águas, nos interfluvios, ou para utilizar um termo local, nas terras firmes que separam os principais rios da região.
Ou seja, bem de acordo com o padrão a que nos referimos acima como a outra “lógica” territorial, característica do “Grande Aquiri”. Mas esse é um assunto que, por sua complexidade e importantes implicações, deverá ser tratado com mais profundidade no artigo da semana que vem.
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