quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

“TUDO FOI FEITO POR AMOR À PÁTRIA”.


A burguesia enganava o povo, ocultando os verdadeiros fins da guerra, seu caráter imperialista, de anexação. Todos os governos imperialistas declararam que faziam a guerra em defesa da pátria (Lênin)
Pátria serve como pretexto para a guerra (José Arbex)
O patriotismo é um instinto egoísta (Spencer)


Voltemos àquele enunciado do capítulo anterior: “A Revolução Acreana foi muito mais que uma guerra [...] foi, na verdade, um momento singular onde foram estabelecidos os signos que ainda hoje trazemos em nossa identidade mais essencial [...] antes da Revolução não havia acreanos” (VIANA, Jorge. In: CALIXTO, 2003).

Uma pergunta ficou solta no “ar”: quais são esses “signos” que os acreanos trazem até hoje em sua “identidade mais essencial”? Várias respostas seriam possíveis, destacamos duas: o heroísmo e o patriotismo.


Ambos são tratados aqui como acontecimentos discursivos que se realizam nas malhas da história, formando arquivos, ou seja, uma ordem do discurso desejada. “A verdade não existe fora do poder”, já dizia Foucault (2001, p. 12). Tanto um como o outro formam uma positividade dentro do discurso fundador do Acre, uma unidade discursiva ou uma continuidade temática preservada através do tempo. Comecemos a análise arqueológica pelo patriotismo.



Quem primeiro mobilizou os seringalistas a apoiarem um movimento contrário ao governo boliviano na região foi José Carvalho, secretário do superintendente do município amazonense de Floriano Peixoto, região banhadas pelos rios Acre, Iaco e Alto Purus.



Em fins de abril de 1899, à revelia do governo amazonense que preferia não envolver funcionários públicos na questão, pois temia represálias vindas do Governo Federal, José Carvalho, em nome do povo da região, confronta oficialmente a administração boliviana nas “tierras de la goma”, intimando-os a saírem do Acre imediatamente.



A decisão não foi um ato impensado. Na casa do seringalista Joaquim Victor, no local “onde nasceu a idéia de expulsar o delegado boliviano e a respectiva delegacia” (CABRAL, 1986, p. 33), “reuniam-se de preferência os conspiradores para combinar um plano seguro de rebelião” (COSTA, 2005, p.115). Nesse local,

pesavam-se ainda os prós e os contras da atitude a assumir, não só de rebelião contra a Bolívia, também contra o governo federal. Esse aspecto da questão apresentava-se como o mais sério. E uma pergunta surgia: como o governo brasileiro receberia a atitude dos acreanos, de hostilidade à Bolívia, ele que os abandonara reconhecendo os direitos bolivianos sobre o território? (Idem, p. 116) [grifo nosso].

Era preciso encontrar uma justificativa que tornasse o descumprimento dos acordos internacionais aceitável perante a opinião pública nacional, que nunca os apoiaria caso a ordem do discurso fixasse como motivação maior daquela atitude a defesa da propriedade e dos impostos. Uma justificativa mais nobre foi encontrada: o “amor à pátria” serviu perfeitamente àquela ocasião.



José Carvalho era advogado formado em Pernambuco, Estado considerado um dos principais pólos insurrecionais do país. Além do mais, vinha de família tradicional, ele foi “bisneto de Bárbara Alencar, a heroína da revolução pernambucana de 1817” (TOCANTINS, 2002, p. 239). Obviamente, Carvalho tinha uma base filosófica liberal, pois os iluministas eram estudados nos cursos de Direito.



A Era das Revoluções (1789 -1848) espalhou a ilustração para a maioria das academias ocidentais. Durante as revoluções liberais, o discurso patriótico foi uma retórica privilegiada das elites urbanas.



Era na cidade que o liberalismo tomava “forma de conspirações militares” (RÉMOND, 2002, p.35), pois ali, as guerras eram planejadas em defesa dos interesses econômicos dos homens de posse. O individualismo foi reinante no período liberal, no entanto, o altruísmo patriótico foi quem justificou as mais bárbaras atrocidades feitas em nome do capital.



No período liberal, o patriotismo ainda estava ligado exclusivamente ao país ou ao lugar/região onde se nascia. Somente no século XX o patriotismo se identificaria à nação, expandindo o alvo da fidelidade para os costumes e tradições da comunidade, ou seja, para a identidade coletiva.
Quando o discurso liberal emprega vocábulos como “nós” e “povo”, não significa que haja uma identificação coletiva ou uma comunidade formada. São efeitos de sentido que simulam ser de “todos” o que era apenas de uma minoria. Um exemplo clássico disso foi a primeira constituição norte-americana. Ela inicia com a frase: “Nós, o povo dos Estados Unidos”. Que povo era aquele? Os índios? Os negros? Os imigrantes? Certamente que não.



José Carvalho fez uso dos signos da filosofia iluminista. Essa interdiscursividade marcou a gênese do Acre. Patriotismo, heroísmo, vontade soberana do povo, por exemplo, são categorias que contribuíram na nomeação dessa comunidade.



Mas que “povo” era esse? Todos sabem que a sociedade gomífera foi rigidamente verticalizada, o seringueiro não fazia nada sem a permissão do patrão. Que patriotismo era esse? Tal sentimento se desenvolve melhor em cidades fortemente politizadas e não em meio à floresta com indivíduos analfabetos. Que vontade soberana do povo era essa? A região abrigava uma das mais desumanas empresas econômicas até então vista no Brasil, que isolava e semi-escravizava o seringueiro.



Mas foi exatamente essa idéia de “povo do Acre” (CARVALHO, J. apud AGUIAR, 2000, p. 27) e de “patriotismo” (idem, 2002, p. 24) que instaurou a discursividade da comunidade acreana. Carvalho dizia: “nós aqui defendemos a honra da pátria arrancando do domínio estrangeiro o Acre que é nosso, que nos pertence, custe, embora, o sacrifício de nossa vida!” (idem, p. 34).
Outro personagem que fez uso de signos liberais para fundar a comunidade acreana foi Luiz Galvez. Nesse caso, a situação era mais cômica, pois se tratava de um espanhol defendendo uma pátria estrangeira, para onde havia imigrado há pouco tempo. Tão hilariante foi a chegada dele em Antimari que Leandro Tocantins diz que “a população tomou Galvez por boliviano” (TOCANTINS, 2001, p. 324).



Galvez mais assimilou o discurso liberal dos iluministas bem mais que José Carvalho, pois foi estudante de Direito na conceituada Universidade de Madrid e falava fluentemente cinco idiomas, conforme afirma Osório Figueiredo (2007, p. 30). Devido a isso, teve a oportunidade de se tornar diplomata e respirar os “ares” republicanos de vários países. Não foi à toa que Galvez escolheu o diz 14 de julho para proclamar o Estado Independente do Acre. “A data fora escolhida de propósito, em comemoração à queda da bastilha, acontecida há 110 anos” (FIGUEIREDO, 2007, p. 31). Abaixo está o Brasão de Armas do Estado Independente:
Figura 11 – Fonte: AGUIAR, 2000, p.41.

Chamado por Barros (1993, p. 38) de “demagogo e figurante, escolhido a dedo”, Galvez não só se aventurou em entrar na ordem do discurso patriótico como também foi um dos principais interlocutores dela entre os acreanos. “Sua participação, embora alguns o tenha como quixotesca, despertou o sentimento patriótico de toda aquela gente, gerando o espírito de civismo acreano” (FIGUEIREDO, 2007, p.30). Logo abaixo, um trecho do discurso feito por Galvez no momento da proclamação do Estado Independente do Acre em 1899:

Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecemos, passivamente todos os julgamentos de alta e baixa justiça praticados pelo Delegado nacional da Bolívia, na esperança que nossa idolatrada Pátria e gloriosa e humanitária Nação brasileira acudisse em nosso socorro e atendesse nossos justíssimos pedidos. O governo do Brasil não respondeu aos nossos patrióticos alarmes; a Pátria, a nossa estremecida mãe personificada em grupo de valentes [...] os habitantes destas regiões pertencem à livre e grande Pátria brasileira! É justo, pois que cidadãos livres, conhecedores dos seus direitos civis e políticos, não se conformem com estigma de párias criado pelo governo de sua pátria, nem podem, de forma alguma, continuar sendo escravos de uma outra nação – a Bolívia. Impõe-se a independência destes territórios [...] é necessário levantar nossa honra pela Bolívia depreciada [...] se não aceitais a independência continuaremos a sofrer humilhações que nos impõem uma nação estrangeira. (apud AGUIAR, 2000, p.54, 55) [grifos nossos].

Ouvir o “dom-juan” (BARROS, 1993, p. 33) expressar sentimentos de amor ao Brasil realmente era patético. Mas esse discurso foi “uma demagogia necessária para o gênero do papel que estava desempenhando” (TOCANTINS, 2001, p. 326). Afinal, “era o melhor caminho para exaltar o amor cívico, assim como persistir no estilo derramado de patriotismo [...] tinha em mira comover os brios regionais dos que escutavam a oração” (idem, p. 327).

Bizarra aquela República? Sem dúvida, mas os proprietários mais abastados e esclarecidos sabiam que, sem a Ordem, sem que aquela vasta região, com seus milhares de habitantes fosse política e juridicamente organizada, mais difícil se tornaria a acumulação e circulação de capital. Desde que Galvez organizasse o recém criado Estado, de modo a não obstar o fluir da riqueza advinda da exploração da força de trabalho nos seringais, eles, os patrões, também poderiam tolerar as bizarrices humanitárias de seu presidente [...] Convivendo no reino do caos, grande número de patrões sabiam o quanto o estado de anomia representava um entrave à acumulação, uma acumulação pseudofáustica diríamos nós. (CALIXTO, 2003, p. 158) [grifo nosso].

Até o próprio coronel Plácido de Castro entrou nessa ordem arriscada do discurso, afirmando que lutava “pela integridade da pátria” (apud CASTRO, 2002, p.136. cf.: p.137). Como já foi falado, pátria para todos os chefes revolucionários era o mesmo que país. Plácido de Castro, por exemplo, se dizia respeitador de “todas as disposições do Governo de nossa Pátria” (idem, p.139. cf.: p.140).



Se José Carvalho falava em “povo do Acre”, Plácido de Castro já se referia ao “povo acreano” (CASTRO, 2002, p.179). Fez essa menção em seu relatório sobre as ações de seu governo à frente da prefeitura do Alto Acre (1906-1907) entregue ao Ministro da Justiça.
Essa mudança é significativa. Não se referia mais ao povo brasileiro que habitava no Acre, mas a um conjunto populacional específico, com identidade própria. Dessa forma, o discurso fundador da comunidade acreana se consolida de vez, pois afirma ser real o que era apenas uma comunidade imaginada.



Mas o fato de ele ter dito não lhe faz autor de nada. Pois o discurso já nasceu sob as malhas do interdiscurso. Havia uma memória discursiva com a qual dialogava. O próprio Manifesto dos Chefes da Revolução Acreana, escrito em 1900, já falava em “levantamento patriótico do povo acreano” (BRAGA, 2002, p. 11) [grifo nosso]. Além do mais, o poema escrito por Francisco Mangabeira, em 1903, já nomeava de “acreano” os habitantes daquela região.

No ano de 1903, surge o primeiro poema, cujo tema é a Revolução Acreana. Por ter sido escrito no Acre, voltando-se para o público local, pode ser considerado a primeira tentativa de representação literária para dizer o que pode ser o Território e seu povo (SILVA, 1996, p.90).

Na época, nem todos concordavam com o malogro do discurso patriótico dos chefes da revolução. Achavam que o idealismo não era o melhor traço que caracterizava aqueles aventureiros. No entanto, muitas vozes foram sufocadas para que o arquivo do patriotismo fosse montado. Vejamos o que diz o jornal Pátria, do dia 6 de julho de 1899:

O fundo desse quadro triste em que os traidores da pátria transformaram a esplendorosa região do Acre [...] julgaram encontrar asada ocasião para, patrioticamente, roubarem o suor do incauto habitante do Acre [...] essa rebelião [...] não subsistirá jamais porque ali o que impera é a ambição desordenada, porque dali fugiu os sentimentos generosos, porque ali o mal tem guarida e a traição subsiste! [...] empregara a chantagem e a chantagem reuniu adeptos; mentiram e a mentira congregou entorno de uma bandeira despedaçada os que deixaram se amasiar pelo canto da sereia, belo mais traidor, harmonioso, mas desgraçado [...] Para roubar, vestiram mendaz capa de patriotismo, cobriram os rostos com a máscara de fingido amor à pátria. (n° 205, p.1) [grifos nossos].

A lei discursiva do patriotismo regra até hoje a historiografia acreana. Para o Senador Tião Viana (PT-Ac), “ambos, líder e liderados, embalados pelo ritmo das vazantes e das cheias, viram crescer em seus corações o orgulho de ser brasileiro” (In: CASTRO, 2002 p. 6) [grifo nosso]. Araújo Lima (1998, p. 19) referiu-se à existência de um “patriotismo incandescente dos guerrilheiros acreanos”. Para Craveiro (2005, p. 190), a chamada revolução acreana foi “a maior e mais patriótica em que já se envolveram brasileiros”. E até autores da envergadura de Arthur Cezar Ferreira Reis (1953, p. 114) fez circular esse discurso:

Profundamente amante da pátria, nas campanhas pela integração do Acre ao Brasil foi uma vontade e uma energia cívica constantes a serviço dos objetivos da revolução que Plácido de Castro chefiou, no ciclo final, daquela peleja cívica.

Em suma, segundo os chefes da revolução acreana o “desejo de ser brasileiro” foi o motivo da “luta patriótica dos seringueiros” (CRAVEIRO, 2005, p. 179). Esse “signo” é, até hoje, um distintivo da comunidade acreana. Como afirma o ex-governador do Acre: “O Estado do Acre é uma das partes mais legítimas do território brasileiro. É feito por um povo que se orgulha de ser brasileiro, porque lutou para isso” (VIANA, Jorge. apud Jornal Página 20, em 06 de agosto de 2005).

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