Os países capitalistas ricos, principalmente desde o pós II Guerra, desenvolveram uma verdadeira ‘indústria da piedade’ e da ‘cooperação’. Nos países da OCDE quase todas as administrações possuem Ministérios, Secretarias ou escritórios de ‘Solidariedade e Cooperação Internacional’.
Sobre este tema encontramos o prodigioso trabalho de Graham Hancock , Les nababs de la pauvreté. Paris: Éditions Robert Leffont. O autor é jornalista e realizou extensa e corajosa pesquisa sobre o significado da ajuda e cooperação internacional, e atinge seus objetivos ao elucidar o significado em si da ajuda aos países pobres. Trabalho de fundamental importância já que a grande maioria dos estudos voltados a esse objetivo são fortemente desencorajados e os poucos que seguem, trabalham com os dados permitidos pelas agências de ajuda.
Nos primeiros capítulos de seu livro ele demonstra que onde tem seca, inundação, terremotos e toda sorte de catástrofes, estão sempre aqueles da ajuda humanitária. Em diversos exemplos, o desperdício, a corrupção, a ineficácia e burocracia, a espionagem e contra-insurgência estão presentes no que ele chama da ‘indústria da piedade’ do capitalismo. Reproduzimos a seguir fartos exemplos da pesquisa de Hancock.
Em relação aos empregados nos países pobres das organizações de ajuda, o autor constatou, que além de seus altos salários eles são ‘mestres em catástrofes’, e demonstram, na maioria dos casos, falta de experiência e habilidades para tratar com as diversas realidades.
Os empregados da USAID na Somália ganham 25% a mais por estarem em um país muito mais pobre que os outros. Os funcionários da ONU receberam generosas quantidades de bebidas alcoólicas importadas (e sem taxas) e recebem salários em média de US$ 55.000 por ano. O mais bem pago ministro da Somália teria que trabalhar cinqüenta anos para receber a mesma soma.
Os funcionários da OXFAM habitavam as melhores casas de Mogadiscio (capital da Somália), tendo ao menos duas empregadas domésticas, situação que somente os muito ricos de seu país poderiam desfrutar. (HANCOCK, 1991, p.57). O autor entrevistou vários funcionários dessas organizações para compreender o que de fato os movia para irem trabalhar em países de condições tão adversas.
A maioria dos entrevistados admitiu que canditavam-se a esses cargos especialmente por causa dos altos soldos recebidos e em algumas profissões por conta da falta de empregos em seus países de origem. Alguns estavam com idade mais avançada e admitiam que os últimos três anos de trabalho na ativa elevariam a aposentadoria deles (idem, p. 136-137).
O autor os denomina como os ‘yuppies da beneficiência’ e o auge de suas carreiras é quando trabalham para as Nações Unidas, por serem melhores pagos e terem regalias semelhantes às do mundo diplomático (idem, p. 139). O autor culmina a expressão ‘mestres em catástrofes’ para situar aqueles que trabalham e são muito bem remunerados pelos organismos da ajuda.
Os exemplos de inoperância, desperdícios e descaso, colocam em risco a vida de milhares de pessoas muito pobres. Para a Somália foram enviados grande quantidades de remédios que as autoridades sanitárias desse país consideraram ‘lixo’. O Sudão, um dos países mais quentes do mundo, recebeu doações inúteis como cremes para rachaduras nos pés e cobertores elétricos. Países que tem na fome seu principal problema recebem sopas e chocolates dietéticos em grandes quantidades (idem, p. 37-38).
A Comunidade Econômica Européia - C.E.E. enviou toneladas de trigo radioativo, (idem p.39). A Food for Hungry (norte americana) enviou ao Camboja dezenove toneladas de alimentos que por estarem tão velhos, tinham sido recusados pelo jardim zoológico de São Francisco, e os remédios enviados estavam vencidos há mais de quinze anos ( idem, p.39). Os laxantes e remédios para indigestão estão entre os produtos favoritos das listas de doações.
Os fatos de desperdício beiram a insanidade. Foram comprados dois centros sanitários polivalentes pré-frabicados na Finlândia, ao custo de um milhão de dólares cada. Quando estes chegaram na Somália para serem transportados à Mogadiscio, constatou-se que os equipamentos não cabiam em nenhum dois caminhões disponíveis para transporte (idem, p 37).
Em algumas situações a caridade coloca em risco a vida dos pobres. A Map International Inc. (Illinois) recebeu de doação estimuladores cardíacos no valor de US$ 17 milhões do American Hospital Supply Corporation (AHS). Com essa doação o AHS teria um substancial abatimento fiscal para um setor que de qualquer forma ele havia decidido suprimir. Esses equipamentos chegaram aos países pobres e constatou-se que seus marca-passos e estimuladores possuíam graves problemas, que colocariam em risco a vida dos pacientes (idem, p. 43).
O exemplo dos desperdícios do ‘capitalismo da assistência’ envolvem também fortes emoções. No fim de 1984 um canal de TV francesa organizou a “caravana da esperança”, que fariam uma espécie de rali para levar aos países pobres do oeste africano medicamentos, alimentação e equipamentos. Foi gasto na aquisição destas doações quase o mesmo montante do que custou a comunicação por satélite com a França durante a viagem. Devido às altas velocidades da caravana a maioria da doação foi perdida no caminho (idem, p. 43-44).
Em 1971 a ONU fundou o Escritório de Coordenação dos Unidos para o Socorro em Caso de Catástrofe (UNDRO), ao custo de US$ 50 milhões, pagos com contribuições dos países ricos. Segundo relatório confidencial os próprios auditores chegaram a conclusão que a UNDRO não alcançou os objetivos de sua missão. O autor cita mais exemplos do desperdício: a compra de duas estaçõs postes de rádio para melhorar a freqüência, ao custo de US$ 90 000, onde os auditores constataram que os postes não foram utilizados; a grande parte das viagens efetuadas pela equipe da UNDRO era para efetuar contatos e representações nos países doadores (idem, p.50).
Os auditores das operações humanitárias da C.E.E. concluíram que estas não passam de um ‘catálogo de desastres’, com seus erros, incompetência e burocracia, seus desperdícios, impropriedades e atrasos imperdoáveis (idem, p.41). A ONU realizou pesquisa em 84 organizações que fazem parte de seu Programa Alimentar Mundial. As organizações responderam que levavam em média 196 dias para responder aos pedidos de assistência e entrega de alimentação aos países pobres (idem p. 52).
Hancock esteve presente como observador na reunião anual do BM e FMI no ano de 1986, ele ficou bastante impressionado com o montante de recursos que a pobreza pode render para alguns. O custo total dos setecentos eventos sociais organizados para os delegados do encontro ficaram em torno de US$ 10 milhões (idem, p.73).
Para compararmos o nível das disparidades, esta quantia seria suficiente para fornecer durante um ano comprimidos de vitamina A para 47 milhões de crianças pobres asiáticas e africanas, para livrá-las dos problemas de visão e até cegueira causada pela xérophtalmie (carência de vitamina A) (idem, p. 75). O autor constatou pompa e cerimônia, jantares de US$ 200 por pessoa, hotéis cinco estrela fazem parte integrante da vida daqueles que trabalham nas Organizações Internacionais de Assistência.
A ‘indústria da assistência’ remunera muito bem seus funcionários, todos patrícios dos financiadores das agências internacionais. O então presidente do Banco Mundial em 1986, Barber Conable, resolveu enxugar o quadro de pessoal da instituição demitindo 600 pessoas. O custo das indenizações milionárias alcançaram a cifra de US$ 175 milhões, montante suficiente para pagar a escolaridade elementar completa para sessenta e três mil crianças pobres da América Latina ou da África (idem, p.79).
Hancock utiliza o termo ‘Indústria do Desenvolvimento S.A.’ para nomear uma indústria internacional gigante, complexa, diversificada e funcionando por delegação.
Financiada pelas doações públicas dos países ricos, ela emprega milhares de pessoas no mundo para atender um grande leque de objetivos econômicos e humanitários.
Destinada a promover o desenvolvimento nos países pobres conforme as próprias palavras do presidente do BM em 1987, Barber Conable: Pensando no futuro, eu estou de fato confiante: nós vamos melhorar fortemente nossa aptidão institucional de aportar apoio sensível, eficaz e apropriado a cada um de nossos devedores e lhes oferecer uma liderança intelectual na compreensão do desenvolvimento. (HANCOCK, 1991, p. 79, tradução e itálico nosso)
Poderíamos destacar várias características boas e que almejamos de desenvolvimento, como educação, saúde e moradia satisfatórios, crescimento econômico e pleno emprego. Será que alguns países preferem serem pobres em vez de ricos ou atrasados e sub-desenvolvidos no lugar de avançados e desenvolvidos? Davis (2002) mostrou o quão avançados e ricos eram a China, a Índia, a indústria têxtil do nordeste brasileiro, antes da chegada dos colonizadores.
Hancock faz distinções importantes a respeito do caráter das doações. O conceito de Ajuda Pública ao Desenvolvimento-APD é dinheiro público coletado sob a forma de impostos e repassado para os organismos oficiais e entre os estados e governos, portanto este conceito exclui todo financiamento da parte dos organismos voluntários privados, tais como a Oxfam.
Para uma transferência de recurso ser classificada como APD tem que satisfazer a duas condições: 1) ter como objetivo principal a promoção do desenvolvimento; 2) ter o caráter de uma concessão e conter uma subvenção de 25%. Os empréstimos com juros de mercados não são APD’s.
Ao contrário, a assistência humanitária dispensada pelas organizações oficiais, o socorro de urgência e ajuda alimentar, embora nenhum fale em desenvolvimento, são considerados como Ajuda Pública ao Desenvolvimento - APD.
Os fluxos de ajuda pública realizados por dezoito países industrializados alcançou o montante de 45 a 60 bilhões de dólares por ano na década de 1980 (HANCOCK, 1991, p.81).
O autor relativiza esta cifra ao compará-la com outros dados (idem, p.82-84): a) os EUA e a então URSS gastavam US$ 1,5 bilhões por dia com gastos militares para suas defesas, ou seja, o total da ajuda mundial equivalia a um mês dos gastos dos países com despesas militares; b) cinqüenta mísseis “Peacekeeper MX” custavam US$ 4,5 bilhões, mais que a APD da Alemanha; c) o custo de um ano da “Guerra nas estrelas” foi de US$ 3,9 bilhões, mais do que a APD do Reino Unido e do Canadá; d) em 1962 os Estados Unidos gastaram quase US$ 300 milhões para treinamento de golfinhos com fins militares, mais do que o orçamento de ajuda anual da Áustria e Nova Zelândia juntos; e) em 1988 a Grã Bretanha gastou quatorze vezes mais com sua defesa do que com doações (US$ 1,8 bilhão).
As mulheres britânica gastaram US$ 480 milhões em perfumes e cosméticos, mais do que toda a ajuda da Suíça de US$ 429 milhões; f) os free shops faturaram mais de US$ 5,5 bilhões, mais do que a França despendeu em ajuda; g) os norte americanos gastavam US$ 22 bilhões com cigarros, mais do que as doações dos três maiores doadores juntos (EUA, Japão e França); h) Michael David Weill, da sociedade americana Lazaid Frères, ganhava anualmente como salário o equivalente aos orçamentos de ajuda da Nova Zelânia e Irlanda (US$ 128 milhões), i) os dez bilhões de dólares que os EUA destinavam a ajuda estrangeira, representavam menos da metade da fortuna de Yoshiaki Tsutsumi, dono do Grupo SEIBU e um dos homens mais ricos do mundo.
No ramo do ‘capitalismo da piedade’ Hancock aponta para uma estreita vinculação entre o aumento da arrecadação das receitas dos organismos da caridade e a ocorrência das catástrofes da fome, seca e inundações nos países pobres. A World Vision britânicas doou US$ 25 mil ao documentarista que realizou um curta em 1984 chamado ‘Calvário Africano” sobre a fome na Etiópia. No final do documetário há um apelo aos telespectadores para doarem recursos a World Vision para amenizarem a fome africana.
O montante de recursos da organização era de tal vulto, que eles possuíam uma frota de cinco aviões. Outras organizações como Cristian AID, Oxfam, Save The Children organizaram um Comitê de urgência das catástrofes, para evitar que a Word Vision recebesse todas as doações sozinha, por ocasião da campanha contra a fome na Etiópia. (HANCOCK, 1991, p. 45-46).
O autor cita alguns exemplos de como algumas organizações tem suas receitas aumentadas em épocas de calamidade, ele refere-se ao período da fome etíope de 1985:
a) após anos de expansão lenta de suas receitas a Oxfam dobra suas arrecadações no período de 1978-1980. Isto foi resultado da forte pressão exercida para levantamento de fundos em favor das vítimas da fome e da guerra do Camboja. Depois as doações permaneceram estacionadas até 1985, quando os apelos em favor dos famintos etíopes multiplicaram de novo as receitas da Oxfam alcançando a cifra de 51,1 milhões de libras, embora elas fossem inferiores a 20 milhões de libras em 1983-84;
b) também em 1985 a Band Aid coleta 76 milhões de libras para os famintos junto ao público britânico;
c) os norte americanos enviaram 1 bilhão de dólares às organizações benevolentes privadas engajadas no terceiro mundo;
d) as organizações War on Want, Oxfam, International Cristian AId, Care Incorporated, Project Hope, Médicos sem fronteira e Médicos do Mundo, receberam US$ 2,4 bilhões para financiarem seus projetos e programas nos países pobres. Em 1985 esta cifra chega a US$ 4 bilhões com a campanha de combate a fome etíope (idem, p. 24) .
Historicamente a perversa espoliação dos povos das Américas, África e Ásia, foi acompanhado por missões religiosas que produziram os nefastos efeitos que a história já conhece. As Ongs e organizações humanitárias têm também trabalhado neste campo e são freqüentes as denúncias contra elas também na ação de contra-insurgência e espionagem. Hancock (op.cit, p.33-34) cita a acusação contra a atuação da Word Vision em Honduras no período de 1980-1981, onde seus funcionários se recusavam a dar alimentação aos refugiados que não participassem dos auxílios religiosos da missão dos protestantes.
Os funcionários da Word Vision foram acusados de serem da polícia e de trabalharem para o serviço secreto para entregarem a localização e o nome de ativistas políticos que estavam nos campos de refugiados por eles assistidos. A denúncia mais grave foi sobre episódio ocorrido na noite de 22 de maio de 1981, quando dois refugiados salvadorenhos que estavam abrigados na cidade hondurenha de Colomoncagua foram recolhidos pela Word Vision e colocados em um veículo onde lhe disseram que estavam sendo levados ao campo de refugiados de Limones. No lugar disto eles foram entregues às forças armadas. Alguns dias mais tarde eles foram encontrados mortos na fronteira. A Word Vision negou veemente todas as acusações de envolvimento com o caso.
No aspecto da caridade estar associada ao missionarismo religioso é esclarecedora a a fala do ex-presidente da Word Vision, Ted Engstrom:”Nós analisamos cada projeto, cada programa que estamos envolvidos, para nos assegurar que a evangelização é um componente significante. Nós não vamos alimentar os indivíduos para em seguida os enviar ao inferno, citado em Hancock (op.cit, p. 33). Um dos mais bem sucedidos exemplos da atual filantropia é o ex-presidente dos Estados Unidos, Bill Clinton, que reuniu em Nova York, por ocasião da reunião anual da ONU, celebridades e milionários, para arrecadar fundos para combater os males da miséria, da AIDS e do aquecimento global nos países pobres. Em apenas três dias a Clinton Global Initiative arrecadou US$ 7,5 bilhões para 215 projetos ao redor do mundo, acumulando em apenas dois anos de vida, US$ 10 bilhões (Jornal O Globo, 24/09/2006).
A filantropia e sua ‘indústria da piedade’ parece pouco contribuir com a redução dos males que atingem povos do mundo inteiro. A extrema disparidade entre ricos e pobres segue em nosso país e também no mundo. Segundo dados do relatório da ONU (2006) mostram que mais de metade da riqueza mundial está nas mãos de apenas 2% dos adultos do planeta, enquanto os 50% mais pobres têm só 1%. A riqueza está distribuída de forma extremamente desigual e também sua distribuição geográfica: 90% do total da riqueza está concentrada na América do Norte, na Europa e nos países de alta renda da Ásia e do Pacífico.
O aumento da concentração da riqueza nas mãos de tão poucos, aumentou enormemente nos últimos cinqüenta anos. Para termos uma idéia o patrimônio per capta no Japão é de US$ 181 mil, nos EUA de US$ 144 mil, enquanto no Congo e na Etiópia é de menos de US$ 200.
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