Francisco Bento da Silva (professor assistente da UFAC e doutorando pela UFPR).
“A democracia existe, quando existe a incerteza.”
Adam Przeworski
01 - Introdução
No fim da década de 70, muitos países na América Latina, incluindo o Brasil, começam a promover a “abertura política”. Este período é chamado por Samuel Huntigton de “terceira onda”[2], por abrir canais mais ampliados de participação e dotar o Estado e a sociedade de mecanismos democráticos nos países até então dominados por ditaduras militares. No Brasil, durante todo o tempo em que existiu a política de caserna no âmbito do poder executivo, movimentos sociais, e outros setores da sociedade civil organizada, lutaram pela volta da democracia e por uma maior participação popular na condução dos interesses coletivos. A abertura política lenta, gradual e a volta do “pluripartidarismo controlado” culminou, em 1982, com o retorno das eleições diretas em todo o país para governador.
Contudo, ocorria uma situação sui generis, enquanto se escolhia de forma direta os governadores, em âmbito nacional continuava um presidente militar, sustentado por um corpo político-burocrático de pessoas ligadas de forma ideológica, senão pragmática, ao sistema político que dava seus últimos suspiros.
No Acre, assim como em todo o país, as forças políticas que polarizaram na primeira eleição pós golpe de 64 foram o PMDB, que abrigava nas suas fileiras alguns políticos com idéias mais progressistas e o PDS, que era em síntese a Aliança Renovadora Nacional (Arena) com uma nova denominação. Apesar do PT e do PTB também terem disputado as eleições, eles não tiveram desempenho comparável com o PMDB e PDS, que herdaram todo o espólio do bipartidarismo, contavam nas suas hostes com políticos tradicionais e já tinham uma base política segmentada através de seus quadros executivos e legislativos nas esferas municipais, estaduais e federal.
É neste cenário que ocorrem as eleições em 1982 no Acre, onde este processo de abertura e distensão, pelo menos no campo político, causou uma espécie de horizontalização da escolha política através de uma maior participação dos cidadãos, que até então estavam alijados, na sua maioria, do processo eleitoral como votantes capazes de escolhas ampliadas de candidaturas e partidos.
A partir destas questões, este trabalho visa buscar discutir como a abertura política que culminou com as eleições de 1982 no Acre, uma participação mais ampliada de partidos, de candidatos e de eleitores através do voto, interferiram na formação, introdução e consolidação dos valores democráticos no âmbito da tomada de decisões da esfera estatal. Ou seja, como se deram as relações com a sociedade civil e o novo governo eleito.
02 - Aspectos da ditadura militar no Estado do Acre
Mas antes apenas uma breve digressão. No Acre, como nos demais Estados da federação, os reflexos da ditadura militar implantada em abril de 1964 foram imediatos. O governador José Augusto de Araújo, primeiro governador do Acre eleito democraticamente pelo PTB em 1962 e empossado em 1963, foi obrigado a renunciar no dia 08 de maio de 64 por um golpe implementado pelo capitão do Exército Edgard Pedreira de Cerqueira Filho em conluio com a Assembléia Legislativa acreana.
As cassações também atingiram deputados federais, deputados estaduais e alguns membros da equipe de governo de José Augusto. Os direitos democráticos de liberdade de imprensa, de reuniões de contestação política, de partidos de esquerda e de associações sindicais foram proibidos. Sindicatos, como o dos Trabalhadores Rurais de Rio Branco, foram fechados e as lideranças que não foram presas, estavam sob vigilância continua dos aparelhos repressivos.
Neste contexto, a Igreja foi um elemento fundamental de apoio e participação na resistência ao arbítrio que se estabelecera. A este respeito Abrahim Farhat diz: “... nós fomos de uma inteligência! Nós nunca tínhamos trabalhado com a Igreja porque ela sempre foi aliada do poder. Aí, nós deslocamos ela (sic) e, ela virou parte da luta. Nós vivíamos escondidos na batina do padre.”[3]
Naquela época a Igreja católica funcionou como única instituição que podia servir de abrigo para aquelas pessoas que, de uma forma ou de outra, se sentiam restringidas nas suas atividades políticas. Compreendemos que isto ocorreu não pelo deslocamento da igreja feito pelos que eram contra a ditadura militar e sim, pelo próprio voluntarismo e ideologia de algumas lideranças da própria Igreja, que no Acre se colocaram contra o arbítrio por questões de princípios. Devido questões de ordem histórica existia ainda um certo receio, por parte do Estado, em confrontar o poder clerical.
A repressão da ditadura militar era inevitável, mas a falta de liberdade de expressão, de manifestação e o nível de organização deficiente dos movimentos sociais contribuíam para que quase tudo que fosse feito estivesse sob o manto da Igreja. Na concepção de Nilson Mourão, a Igreja teve um papel muito relevante na luta pela liberdade e pela democracia pois, a Igreja era a instituição que serviu como pólo de aglutinação de todos esses setores desorganizados que vieram dos seringais. Era nas igrejas que eram discutidas as ocupações das áreas urbanas. Era nas igrejas que se discutiam as manifestações públicas, a feitura de boletins; feitos nos mimeógrafos das igrejas. Qualquer manifestação popular tinha que ser sob o guarda-chuva da Igreja.[4]
Somente na segunda metade da década de 70 é que surge um órgão de imprensa muito importante na luta pela democratização, marcando de forma indelével a história da imprensa no Acre. Este jornal foi Varadouro, que tinha uma linha editorial bastante identificada com os seringueiros expulsos de suas colocações, dos indígenas, dos desempregados e dos moradores da periferia que começavam a migrar com mais intensidade para as cidades acreanas. Os assuntos que não eram publicados nos outros jornais saíam no “nanico das selvas”.
O Varadouro, devido às próprias condições políticas e econômicas que enfrentava, tinha uma periodicidade irregular e todos trabalhavam sem remuneração, desde a elaboração das matérias para a composição do jornal até sua venda final. Inclusive, a impressão tipográfica de algumas edições foi realizada em outros estados porque os redatores não encontravam meios de imprimir o jornal nas oficinas em Rio Branco, impedidas de fazer serviços para o jornal.
Os principais responsáveis pelo surgimento do “nanico das selvas” foram os jornalistas Elson Martins, Sílvio Martinello, Abrahim Farhat, Sued Chaves, entre outros. No editorial da primeira edição, afirmavam ser “um grupo de pessoas decididas a fazer um jornal decente e dificuldades em dobro e de todos os tipos de matizes — técnicas, econômicas e outras próprias dos dias que correm — a atrapalhar qualquer passo.”
Para o jornalista Bernardo Kucinski[5], que tem um trabalho sobre a imprensa alternativa no período da ditadura, o Varadouro era a expressão do ethos amazônico ao retratar como personagens principais os Índios, diaristas, soldados da borracha, posseiros e estivadores. Era um jornal que se propunha a registrar de forma crítica uma nova ordem econômica que se estabelecia no Acre, marcada pela expansão agropecuária nas terras acreanas após os anos 70.
É em meados desta década que os trabalhadores rurais começaram a se organizar em sindicatos e associações. De acordo com o Varadouro[6], no ano de 1978 já existiam no Acre cerca de 20 mil trabalhadores rurais sindicalizados, fator que contribuiu principalmente para a organização dos seringueiros e posseiros afetados pela expansão da fronteira agropecuária. As Comunidades Eclesiais de Base - CEB’s que existiam organizadas nos bairros periféricos de Rio Branco, nos municípios e ao longo dos rios e seringais proporcionavam além do aspecto religioso, a organização e conscientização da população na defesa de seus direitos, educação e formação de lideranças. Além desses setores mais expressivos, existiam ainda organizações dos trabalhadores da construção civil, estivadores, bancários e lavadeiras.
Esta mobilização e organização de diversos setores populares foi muito importante, já que a oposição no âmbito institucional era quase inexistente como aponta o jornal Varadouro:
Na verdade, é difícil saber quem é ou não adesista na oposição do Acre, ou melhor, não é fácil excluir os deputados e vereadores oposicionistas que não fizeram composições, conchavos e toda espécie de negociatas com o partido do governo ou diretamente com os governos que passaram nesses anos todo pelo Palácio Rio Branco. Oposição firme, intransigente, ideológica não só ao governo, mas e principalmente oposição ao regime ditatorial, repressivo, concentracionista anti-popular e anti-nacional que perdura desde 15 anos neste país, a rigor isto nunca foi feito! Dos chamados ‘políticos profissionais’ praticamente nada se pode esperar. A esperança de uma oposição atuante e verdadeira reside mesmo nos grupos populares — sindicatos, Igrejas, estudantes, etc. - que começam a se movimentar para entra na política partidária.[7]
03 – O processo eleitoral de 1982 no Acre: Antecedentes e condicionantes eleitorais
Em 1974, ocorreu eleição direta para o Senado e a Câmara Federal. O Movimento Democrático Brasileiro - MDB saiu vencedor fazendo maioria dos parlamentares naquele ano. Para contrapor a isto e antevendo uma derrota maior, em março de 1977 o governo federal fecha o Congresso Nacional e impõe o chamado “pacote de abril” (Emenda constitucional nº 08), contendo novas normas para as eleições de 1978.
Entre estas novidades estava o aumento do mandato do futuro presidente da República para seis anos[8], continuidade de eleições indiretas para os governos estaduais e a obrigatoriedade de 1/3 do Senado ser renovado de forma indireta, escolhidos por um colégio eleitoral especial na proporção de um por estado. Eram os famosos senadores biônicos, que exerceram seus mandatos até 1986.
No ano de 1979, com a anistia e volta do pluripartidarismo tutelado[9], começa a se desenhar um novo cenário para as eleições de 1982. No dia 13 de novembro de 1980 é aprovada, na Câmara Federal, a emenda que estabelece eleições diretas para governador. De acordo com esta emenda ficavam proibidas as coligações partidárias, era obrigação dos partidos lançarem candidatos para todos os cargos da disputa eleitoral, os analfabetos e os soldados não votavam e o voto seria vinculado. Ou seja, só era permitido votar em candidatos de um mesmo partido. Além é claro, dos prefeitos dos municípios de áreas consideradas de segurança nacional serem escolhidos de forma indireta.
Os partidos de orientação comunista continuavam na ilegalidade e ainda vigorava a Lei de Segurança Nacional[10], que era aplicada pela justiça militar aos acusados de cometerem atos contra o status quo vigente. Existia ainda a Lei Falcão, que regia a propaganda partidária nos meios de comunicação.
Manoel Pacífico da Costa, critica de forma dura esse novo cenário desenhado pelas novas normas eleitorais dizendo que:
Esse regime (militar) impede a coligação de partidos, obrigando partidos que mal nascem a inventar (sic) candidaturas no grito, de vereador a governador, impede o acesso ao rádio e a televisão aos candidatos de oposição mantendo a famigerada Lei Falcão, mantendo a Lei de Segurança Nacional como um cutelo sobre a cabeça de todos, impede o voto do analfabeto, estabelece que mais de 20 milhões de brasileiros não podem escolher seus prefeitos e, mantêm uma legislação casuística das mais espúrias, condenando os partidos à clandestinidade.[11]
É neste contexto, de convivência entre o arbítrio corporificado e institucionalizado, que a luta pela democracia através dos partidos de oposição e das organizações populares tentam começar a construir uma nova ordem política. Inicia-se aí, a remoção gradual do autoritarismo com o retorno de certos direitos políticos e a instituição das normas mínimas para uma participação formal da maioria.
Neste quadro político condicionado, apenas quatro partidos estavam aptos e puderam lançar candidatos nas eleições de 1982 no estado do Acre: PMDB, PT, PDS e PTB. De acordo com dados da época, o Acre tinha uma população de 302.762 habitantes, destes, 102.762 estavam aptos a votar; sendo que 59.062 eram eleitores da zona urbana e 43.700 da zona rural[12].
O PMDB era composto basicamente dos partidários oriundos do MDB e, constituía-se em um partido muito amplo no que se refere a composição ideológica dos seus membros. Comportava desde políticos moderados e conservadores, até grupos ligados a esquerda. Abrigava membros dos Partidos Comunistas – PCB e PC do B (que estavam na ilegalidade), do MR-8[13], movimentos urbanos e também de indivíduos que não tinham nenhuma inserção e envolvimento nos movimentos populares. Lançou como candidato ao governo, o deputado federal Nabor Teles da Rocha Júnior[14], que acabou sendo eleito com cerca de 42% dos votos válidos.
Já o PT, tinha os seus quadros compostos por certa intelectualidade urbana integrada por estudantes, professores e alguns profissionais liberais. No entanto, no meio rural sua força era muito maior, principalmente entre seringueiros e pequenos produtores organizados através dos sindicatos rurais e das CEB’s. O PT teve como candidato o sociólogo Nilson Mourão, que era ligado as Comunidades de Base da Igreja Católica. Ficou em terceiro lugar, com pouco mais de 05% dos votos.
De acordo com Mourão, a aspiração do partido não era tanto de uma improvável vitória, mas de começar a solidificar o nome do PT como um partido de defesa dos trabalhadores e o mais importante, derrotar a ditadura expressa, segundo ele, no ex-governador Jorge Kalume.
Outro partido era o PDS, que na verdade era a nova denominação da Arena. Era o partido onde permaneciam os políticos mais conservadores e os defensores da manutenção do cenário desenhado durante o governo dos generais do planalto. O candidato escolhido foi o então senador Jorge Kalume[15], figura tradicional no meio político acreano que obteve mais de 39% dos votos, ficando em segundo lugar na disputa eleitoral.
De tradição trabalhista e tendo sua história ligada ao varguismo, o PTB volta sem sua força anterior a 1964. Acaba abrigando em seu interior muitos políticos que tinham sidos preteridos em outros partidos: por questões de ordem ideológica (no caso do PT) ou por excesso de quadros com maior potencial de votos (PMDB e PDS). O partido trabalhista teve como candidato o coronel do Exército Natalino da Silveira Brito, que ficou em último lugar com pouco mais de 3% dos votos.
O jornal Gazeta do Acre em editorial publicou o seguinte artigo três dias depois das eleições: “O povo compareceu as urnas para votar (ao menos quem pôde),[16] fez uma festa bonita, participou do processo com alegria e com o grau de consciência que lhe é peculiar e possível e, esta festa não pode ser estragada de modo algum por métodos antidemocráticos, como de ganhar eleição no grito”[17].
Ganhar mas não levar. Este receio retratado nas páginas da imprensa à época era realmente uma possibilidade factível de ocorrer com candidatos eleitos pelos partidos de oposição. Pois, em 1978, na eleição para o senado, o ex-governador indicado pelos militares, Jorge Kalume (Arena) acabou assumindo no lugar de Alberto Zaire (MDB). Este após ter sido apontado como virtualmente eleito, no apagar das luzes, em uma única urna no município de Sena Madureira foram “descobertos” 62 votos a favor do candidato da Arena. Foi o escore suficiente para reverter o resultado anterior que lhe era desfavorável.
Realmente, o PDS realmente usou de todos os artifícios para lograr êxito no pleito eleitoral para o senado e o governo do estado, desde boatos de um possível golpe, da impugnação de votos, do uso e abuso do poderio econômico patrocinado pelo planalto e pelos membros do diretório nacional do partido.
Nós não elegemos o nosso tio [Said Farhat] porque, ele veio aqui para o Acre a mando Figueiredo [presidente da República], só para concorrer as eleições e ganhar. Esse homem [Figueiredo] jogou um poderio econômico tão grande, que todo dia chegava um avião carregado de material pra ele [Said] e, não ganhou, quem ganhou foi o Mário Maia [PMDB].[18]
Caso ocorresse uma ampla vitória do PDS, as eleições serviriam como um elemento de justificativa da permanência dos defensores do regime militares no poder pois, do ponto de vista do regime, as eleições deveriam funcionar como um expediente de auto-legitimação. E os donos do poder não regatearam esforços e, sobretudo recursos para chegar a este resultado. O casuísmo embutido poucos meses antes das eleições, o rio de dinheiro gasto com a propaganda não foram acionados em vão (...) e, a avaliação deve começar exatamente pelo fato de que o regime não conseguiu legitimar-se, como pretendia, não restando outra alternativa senão ver na oposição um interlocutor com quem está obrigado a dialogar. Se é verdade que se quer fazer deste país uma democracia[19].
Dentro deste quadro eleitoral de continuidade com elementos liberalizantes ainda muito tímidos, o resultado eleitoral foi amplamente favorável ao PDS e ao PMDB, os dois maiores partidos surgidos dos estertores do regime militar. Ambos não só ocuparam quase que totalmente todos os cargos eletivos disponíveis, como também tiveram juntos mais de 80% de todos os votos válidos no Acre.
Apesar do PMDB ter sido vitorioso, a votação obtida pelo PDS foi muito significativa, com percentuais muito próximos aos do PMDB. Para reforçar ainda mais essa afirmação, vejamos alguns dados sobre o resultado eleitoral: Para o cargo de governador, Nabor Júnior e Jorge Kalume tiveram juntos 81,15% dos votos; para o senado, o PMDB e o PDS obtiveram 79,38% dos votos; para a Câmara federal, das oito vagas em disputa, cada partido ficou com quatro cadeiras; e na Assembléia estadual, o PMDB elegeu doze deputados, o PDS onze e o PT elegeu apenas um representante, quebrando a hegemonia bipartidária do PMDB e do PDS.
Talvez isto tenha ocorrido, como afirmamos anteriormente, devido ao fato destes dois partidos terem herdado o espólio do bipartidarismo. Ou seja, tinham em suas fileiras políticos que já possuíam inserção segmentada junto aos eleitores e contavam com uma estrutura partidária mais forte que a dos outros partidos. Para completar este quadro, o PDS ainda mantinha o domínio da máquina do Estado em suas mãos, tanto em âmbito estadual quanto federal, o que influiu de sobremaneira para sustentar a transição negociada.
A permanência obrigatória no poder de políticos do PDS era uma imposição que ocorria fora das disputas eleitorais através dos chamados municípios de segurança nacional. Nestes municípios, os prefeitos eram nomeados e suas respectivas aprovações cabiam ao Ministério do Interior, após sanção do presidente da República. Em 1983, eram ainda 109 municípios enquadrados nesta lei, sendo que 11 no Acre. Em matéria sobre este caso o jornal Gazeta do Acre fez o seguinte relato em seu editorial:
Os lideres do PDS nacional deixaram claro que a convivência da democracia com instrumentos de exceção terá de ser tolerada, na melhor das hipóteses até o fim do governo de João Figueiredo. (...) é de 109 o número de municípios considerados de segurança nacional, impedidos como tal de eleger seus prefeitos. (...) Dentro desse estranho principio de convivência dos procedimentos democráticos com os resquícios do arbítrio caminha-se, na verdade, para um caso típico de intervenção branca em parte dos Estados conquistados pelas oposições. No Acre, só a capital pode ter seu prefeito nomeado pelo seu governador, Nabor corre o risco de só ter jurisdição em Rio Branco. Os outros 11 municípios acreanos são considerados de segurança nacional e isso levar a crer que continuarão nas mãos do PDS. Nabor, no fundo, vai se convencer de que não ganhou coisa alguma.”[20]
Na verdade, os municípios considerados de segurança nacional continuaram sendo administrados pelo PDS mas, no caso do Acre, isto não significou problemas e nem conflitos entre o governador e estes prefeitos. Até porque, a fraqueza financeira dos municípios fazia com que estes fossem completamente dependentes do governo estadual e o maior mal que poderia acontecer a um prefeito era se indispor com o governador. Então, predominou a mentalidade governista junto aos prefeitos destes municípios, que também não contavam com uma base legislativa considerável, já que o PMDB elegeu nestes municípios a maioria dos vereadores.
Assim, marcado por estas peculiaridades, este foi o resultado das primeiras eleições diretas após o período de inflexão perpetrado pelos militares. Uma eleição que estava eivada de elementos condicionantes, casuísticos, mas que serviu para produzir um novo quadro político junto com a velha ordem que ainda permaneceu, por algum tempo, presente no interior da democracia tutelada surgida após a ditadura militar.
Na verdade, esse conservadorismo embutido na transição foi e é o preço a ser pago nas democracias negociadas. Com bem afirma Maria Lúcia Barbosa o PMDB foi o grande beneficiado desta situação pois, na ambigüidade da situação, todas as vantagens foram possíveis para o PMDB: de um lado, as do poder em si; de outro, a manutenção diante da massa de uma atitude de oposição, capaz de empolgar o eleitorado sempre desconfiado com a distância e a inoperância dos poderosos. Ser poder e ao mesmo tempo combater o poder, quando isto fosse conveniente, nada poderia ser mais ideal. Diante dessas sutilezas políticas, o povo se abstinha de compreender[21].
04 - Nabor Júnior: um governo de “participação”?
Ao tomar posse em março de 1983, Nabor Júnior recebeu o cargo de governador do então último mandatário designado pela ditadura militar, Joaquim Falcão Macedo. O novo governador em seu discurso afirma ser sem vocação para revanches e perseguições e assegura ainda que mesmo com as dificuldades enfrentadas nos diversos setores da administração pública, o estado precisava crescer e desenvolver-se. Para isso, era necessário um governo de participação, como afirmou em seu discurso de posse.
Mas o que seria um governo de participação? Em sua obra participação e teoria democrática, Carole Pateman ressalta que Charles De Gaulle já utilizava amiúde este slogan nas campanhas políticas. Segundo esta autora, o uso contínuo, generalizado e constante do termo nos meios de comunicação, indicava o desaparecimento de qualquer conteúdo preciso e significativo. “Participação” era empregada por diferentes pessoas, de diferentes linhas ideológicas para se referirem a uma variedade de situações[22].
Este mote da campanha e que passou a compor o “projeto” de governo apresentado logo após a vitória em novembro de 1982. As propostas de ações administrativas foram elaboradas pela equipe de governo através de um documento chamado: Acre — Participação e mudança. Diretrizes de governo: 1983/1986. A coordenação da sistematização das diretrizes ficou a cargo de Adalberto Ferreira da Silva[23] e de mais alguns técnicos de áreas especificas da administração. De acordo com essas diretrizes, o objetivo principal da nova administração era aproximar o povo do governo. Pois após muitos anos de ausência de um governo eleito de forma direta, existia a perspectiva de uma administração que fosse realmente voltada para os reais problemas da população. Que esta população pudesse ter então, voz ativa nas discussões acerca das ações governamentais.
Este propalado discurso de um “governo de participação” serviu para desfocar um novo arranjo entre as forças políticas majoritárias que sempre conduziram a política acreana na base do compadrio, nepotismos e favores através do Estado. Foi a continuidade e permanência de figuras políticas tradicionais no interior dos vários níveis da máquina estatal, estes principalmente no âmbito dos poderes legislativos com seus apadrinhados preenchendo cargos nos escalões inferiores. Eram figuras com uma capacidade enorme de adaptação às situações políticas do momento. Tinham poder de barganha para fazer negociatas e acordos com setores administrativos do governo.
Como bem afirma James Petras[24], as transições de regimes militares para governos civis foram organizadas para consolidar as conformações vigentes e de interesse do poder estatal, não para democratizar a sociedade. E isto estava embutido neste modelo adotado de maneira uniforme no Brasil e em muitos outros países que passavam por processos de transição autoritária.
O que foi proposto e idealizado ficou muito distante daquilo que o governo conseguiu realizar no que se refere à participação popular e de democratização no interior dos aparelhos do Estado. No Brasil a democracia surgida após a democratização tutelada conservou promessas e valores que eram incapazes de se efetivarem por estes “novos governos”. O próprio AI-2 possibilitou isto ao instituir o bipartidarismo no país, criando o MDB e a Arena que mais tarde, serviu de arcabouço para o surgimento do PMDB e PDS. Isto demonstra que estes dois partidos têm como origem a mesma matriz, nasceram no mesmo berço, embora no PMDB a mácula autoritária seja menos marcante por conta do seu ecletismo interno e da presença de muitas pessoas comprometidas com o fim do autoritarismo.
Para Adalberto Ferreira, a necessidade de contemplar interesses diversos através do preenchimento de cargos na administração e a falta de unidade interna contribuiu para que as propostas de governo não fossem viabilizadas da forma como se pretendia originalmente. Pois, como diz ele, alguns secretários de governo não estavam alinhados com as metas estabelecidas nas propostas e isso fez com que se distorcesse a proposta inicial de governo.
Estes problemas internos do PMDB foram um complicador da administração de Nabor Júnior, mas não os únicos. Entretanto, antes mesmo da posse, as correntes políticas que existiam dentro do partido começaram uma luta interna por disputa de cargos e de influência na nova administração. Assim, o governador Nabor Júnior começou a sua administração tentando conciliar os interesses dos três grupos majoritários que existiam dentro do partido: os chamados moderados, os conservadores e os progressistas da Tendência Popular. Estes interesses eram basicamente por divisão de cargos e consequentemente, de influência na nova administração.
Esta observação sobre as divergências internas, em tom de previsão, já tinha surgido antes mesmo da posse, quando o jornal Diário do Acre questionava se essa capacidade de aglutinação e conciliação com esses setores não seriam um entrave da administração. Eis o conteúdo de uma matéria publicada no dia 15 de março de 1983:
Sob o ponto de vista político não podem os dizer que o Sr. Nabor Júnior vem com muitas esperanças para a população acreana, até mesmo para os seus seguidores do PMDB. Até agora o que se viu foi uma guerra surda nas hostes peemedebistas, onde a Tendência Popular encabeçada pelos senadores Aluízio Bezerra e Mário Maia fazem frente aos conservadores e a ala moderada do partido. Na divisão do bolo administrativo a Tendência Popular levou nítida vantagem, graças a acordos que teria feito com o governador.
Acontece que pelas próprias tradições do Sr. Nabor Júnior, como pela própria índole do acreano, dificilmente a ala progressista do partido poderá adubar as sementes que plantou e mesmo que o faça, os moderados não haverão de permitir, por uma questão de sobrevivência política, sua germinação (...). O compromisso doravante é do PMDB e os compromissos populares hão de ser cobrados, senão imediatamente, pelo menos daqui a quatro anos quando poderemos afirmar se a oposição cumpriu o que prometeu ou foi mais uma administração onde a tônica foi a insatisfação da grande massa popular por deficiência em vários setores da vida pública estadual[25].
Fazendo uso da mesma linguagem alegórica, a verdade é que as “sementes plantadas” pelos chamados progressistas da Tendência Popular não nasceram. Em seu lugar brotaram ervas daninhas travestidas de progressistas, que gradativamente foram alijando os antigos aliados de dentro dos quadros administrativos ao longo dos quatro anos de governo. Pessoas de dentro do próprio PMDB — como o ex-secretário de planejamento Adalberto Ferreira —, também acham que o arranjo conciliatório e as acomodações feitas em virtude de compromissos eleitorais e partidários, marcaram de maneira negativa o governo do PMDB que tantas esperanças tinha prometido e gerado.
Além desses acordos com políticos na alta cúpula do partido, era necessário também resolver promessas de campanha com os militantes e cabos eleitorais do partido que trabalharam nas eleições. A chamada divisão do bolo, ou seja, das secretárias da administração direta e indireta proporcionou, além da acomodação de correntes divergentes, que se estabelecesse uma relação de barganha e apadrinhamento que levaram a um aumento considerável de servidores públicos do Estado e consequentemente elevação e comprometimento de gastos com o funcionalismo.
As disputas internas não deixaram de ser uma constante, redundando muitas vezes em demissões de secretários e membros do segundo escalão. Até mesmo confrontos entre parlamentares do partido ocorriam comumente, como atesta o discurso proferido na Câmara municipal de Rio Branco pelo vereador Adauto Paiva — que pertencia à ala conservadora — contra o deputado e vice-líder do governo na Assembléia Legislativa Manoel Pacífico. Para o vereador, Manoel Pacífico era “invasor, desestabilizador da imagem do governador Nabor Júnior e culpado da marginalização de um governo eleito pela vontade popular, por suas ações extremistas e perigosas ao regime.”[26] O rótulo de “invasor” e “extremista” explicita bem o sentimento que as figuras conservadoras do partido tinham em relação aos comunistas que permaneciam dentro do PMDB.
O primeiro governador eleito após quase duas décadas de ditadura militar, não conseguiu implementar na sua administração um espírito de equipe de governo coesa porque esta internamente estava cindida entre interesses mais imediatos de facções e pessoas influentes do partido e aqueles que realmente imaginavam construir algo mais participativo, que eram uma minoria. Portanto, estes fatores intrínsecos a prática política de muitos peemedebistas, contribuíram para que a administração do PMDB fosse marcada por diversas facetas, menos a de “participação”.
Na verdade, o período conhecido como transição, conservou em seu bojo elementos de uma nova democracia que engatinhava com os resquícios da ditadura que permaneciam. O PMDB, como partido, privilegiou esta democratização tutelada em lugar de lutar por uma ampla transformação social. Na verdade, o que ocorreu foi uma democratização que embora extremamente necessária, foi signatária e expoente das forças majoritárias que a compunham. Suas fronteiras ultrapassaram apenas os tênues limites do formalismo. Faltou democracia com um conteúdo mais amplo, mas isto não era projeto político das forças majoritárias que ascenderam ao poder no início da década de oitenta.
[1] Aluno do curso de Pós-graduação em História da UFPR (doutorado). Professor Assistente do Centro de Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre - UFAC
[2] A “primeira onda” ocorreu na última metade do século XIX e início do século XX e a “segunda onda”, após a Segunda Guerra Mundial. Cada uma entremeada por períodos de reversão democrática. HUNTIGTON, Samuel. A terceira onda: A democratização no final do século XX. São Paulo: Ática, 1994.
[3] Abrahim Farhat Neto foi um dos fundadores do Partido dos Trabalhadores no Acre. Fez parte do 01º Diretório Nacional do PT e foi candidato ao senado nas eleições de 1982. Entrevista concedida em 28/10/97.
[4] Nilson Moura Leite Mourão é Sociólogo, professor universitário e foi candidato ao governo estadual pelo PT em 1982. Atualmente exerce o terceiro mandato de deputado estadual pelo PT. Entrevista concedida em 21/11/97.
[5] KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários. São Paulo: Scritta editorial, 1991
[6] Varadouro, ano II, nº15, p. 03, junho de 1979.
[7] PMDB acreano nasce fedendo a adesismo. Varadouro, ano II, n.º 17, p. 03, dezembro de 1979.
[8] General João Baptista de Figueiredo, que assumiu no dia 15/03/79.
[9] Em dezembro de 1979 é aprovada a Lei 6.767, que extingue o bipartidarismo e estipula um prazo de 180 dias para as novas formações partidárias.
[10] No Acre, o caso mais notório de aplicação da LSN aconteceu em 1981, alguns dias após o assassinato do sindicalista Wilson Pinheiro. Em um comício em Brasiléia, Luís Inácio Lula da Silva, Jacob Bittar, José Francisco (pres. CONTAG), João Maia (delegado da CONTAG) e Chico Mendes, foram acusados pela auditoria militar do Amazonas de incitamento à luta de classes. Ver Varadouro, nº 23, p. 03. Ano IV, ago/set de 1981.
[11] Manoel Pacífico foi eleito deputado em 1982 pelo PMDB e pertencia a corrente de esquerda Tendência Popular. Formado em Filosofia, foi dos quadros do PC do B. Entrevista ao jornal O Rio Branco, p. 03, de 05/09/82.
[12] Fontes: Almanaque Abril 1982 e Tribunal Regional Eleitoral - TRE/AC.
[13] Movimento Revolucionário 08 de outubro.
[14] Deputado estadual entre 1962 e 1974, deputado federal de 1974 até 1982 e governador até 1986, quando renunciou para ser candidato ao Senado da República onde exerceu o mandato de senador pela segunda vez.
[15] Deputado federal de 1961 a 1966, governador de 1966 até 1971, senador de 1978 até 1986 e prefeito de Rio Branco de 1988 a 1992.
[16] O índice de abstenção foi de 15,77%.
[17] O povo merece. Gazeta do Acre, p, 03, de 18/11/82.
[18] Abrahim Farhat em entrevista citada.
[19] Ainda o resultado. Gazeta do Acre, p. 03, de 03/12/82.
[20] O limite do poder das oposições. Gazeta do Acre, p. 03, de 07/12/82.
[21] BARBOSA, Maria Lúcia Victor. O voto da pobreza e a pobreza do voto: A ética da malandragem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1988, p. 81.
[22] PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 09.
[23] Adalberto Ferreira da Silva, economista e professor universitário. Foi secretário de planejamento do governo de Nabor Júnior. Entrevista realizada dia 16/12/97.
[24] PETRAS, James. Ensaios contra a ordem. São Paulo: Scritta editorial, 1995, p, 21.
[25] Jornal Diário do Acre, p. 03, de 15/03/83.
[26] O vereador se referia a dois fatos. 1) Devido o deputado ter exigido que apurassem as denúncias de irregularidades nas Secretarias de Saúde, Segurança, Deracre e Colonacre; 2) Relacionado às posições ideológicas do deputado Manoel Pacífico que pertencia ao PC do B. Jornal O Rio Branco, p. 03, de 09/10/83. Estes acontecimentos levam M. Pacífico renunciar a vice-liderança do governo na Assembléia no dia 26/11/83.
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