terça-feira, 16 de setembro de 2008

Indicação de livro: BAUMAN, Zygmunt. MODERNIDADE LÍQUIDA

Ser leve e líquido
A nova, de diversas formas, modernidade tem semelhança com os fluidos. Ela não se atém a qualquer forma e está sempre pronta e propensa a mudar. Apesar de a modernidade, desde seu começo, constituiu-se em um processo liquefação das instituições, antes estava mais vinculada ao repúdio da tradição, eliminando as obrigações sem relevância que dificultavam o cálculo racional. Essa característica da primeira modernidade possibilitou a dominação da racionalidade instrumental e o papel dominante da economia na constituição de uma nova ordem social. Essa idéia de construção de uma nova e melhor ordem já não está no horizonte da ação política. Aqueles poderes de liquefação, antes no nível marco do sistema e da política, agora passaram ao nível micro da sociedade e da política da vida.
Nesse contexto, a flexibilidade que o tempo adquiriu e o acesso a rápida mobilidade transformaram-se em ferramentas de dominação e poder, o qual se tornou extraterritorial. É o fim do secular Panóptico e sua era de engajamento mútuo entre capital e trabalho, permitindo o surgimento de “senhores ausentes”, que se movem leves e confiantes da desnecessidade de se ocupar com a responsabilidade de administração, gerenciamento e bem-estar. Hoje, são os poderosos que evitam o durável, enquanto a base da pirâmide luta por suas frágeis e transitórias posses. Para que o cenário permaneça, o mundo deve estar livre de barreiras e fronteiras. 1 Emancipação
Nas décadas gloriosas após a Segunda Grande Guerra, Marcuse se questionava quanto à ausência de uma base de massas desejosas de libertação. É que as pessoas sentem-se livres quando há um equilíbrio entre imaginação, desejos e capacidade de agir, e quando isso ocorre, “libertação” é um slogan sem sentido. Os filósofos então se atormentavam com a questão de que as pessoas talvez simplesmente não quisessem ser livres.
O questionamento se a libertação é uma benção ou maldição pode ser respondido tanto como um desvelo do homem comum pela liberdade, por ser enganado ou por não querer assumir responsabilidades, quanto pela aceitação de que talvez a liberdade não traga tantos benefícios, pois não seria garantia de felicidade. Essa última análise deriva da visão hobbesiana do “homem à solta”, idéia reforçada por Durkheim, que afirmou que a submissão do indivíduo à sociedade é uma espécie de “dependência libertadora”, pois a ausência de normas criaria um estado de incertezas que faria da vida um inferno.
Porém, hoje o indivíduo já ganhou toda liberdade que poderia esperar, pois somos seres reflexivos, engajados na “política-vida”, porém sem que essa reflexão alcance os verdadeiros mecanismos que conectam e determinam nossos movimentos, impedindo uma autêntica auto-afirmação. Uma visão crítica atualizada dessa situação deve avançar em relação à teoria crítica clássica, que estava embutida em uma modernidade sólida e tendente ao totalitarismo. Aquela modernidade pesada, identificada com o sistema de controle da fábrica fordista, reduzia a atividade humana a movimentos mecânicos e repetitivos, conduzida aos moldes do Panóptico. Nesse contexto, a teoria crítica buscava a liberdade de escolha em ser e permanecer diferente, sem pretender ultrapassar esse propósito.
Afastados os demônios do totalitarismo, muitos se apressaram em anunciar o fim da modernidade, esquecendo-se que aquela sociedade diagnosticada pela teoria crítica era apenas uma das formas que a sociedade moderna assumiu. Nesse sentido, a sociedade de hoje é tão moderna quanto à de um século atrás, pois continua na busca insaciável por “limpar o lugar” em nome de um “novo e aperfeiçoado” projeto. Entretanto diferencia-se por duas características específicas: o colapso da ilusão moderna de que há um telos, um tipo de sociedade justa ideal alcançável; e a desregulamentação e privatização de tarefas e deveres de modernização.
Nesse novo mundo, indivíduos encontram apenas outros indivíduos, assumindo total responsabilidade por suas decisões, o quem vem a ser a marca registrada da nova modernidade. Essa individualização significa que a “identidade” é algo construído, uma tarefa cujas conseqüências são de responsabilidade de cada um. Na modernidade sólida, a auto-identificação se dava por meio da conformação a certa classe, o que favorecia o coletivismo, pois os elementos em comum projetavam-se sobre a gama de escolhas do indivíduo. Agora, a individualização não é uma escolha e, enquanto os riscos continuam a ser socialmente produzido, seu enfrentamento é fragmentado, criando um abismo entre a individualidade como fatalidade e como verdadeira capacidade de auto-afirmação.
A sensação de impotência, ainda que com liberdade, induz à tentativa de resgate de um passado de marcha ombro a ombro, mas que hoje já não tem função, porque as aflições agora são não-aditivas, não podendo ser condensadas em interesses compartilhados. Assim, o indivíduo passa a ser o pior inimigo do cidadão, porque enquanto o cidadão deve buscar a causa e o bem comum de uma sociedade justa, vê-se que tal objetivo é incompatível com um mundo onde os benefícios do trabalho conjunto são inferiores à busca individual, levando à corrosão e desintegração da cidadania. Esse processo faz com que o espaço público seja preenchido por preocupações dos próprios indivíduos, transformando o interesse público apenas na curiosidade sobre as vidas de pessoas públicas.
Por outro lado, há um crescente déficit entre a condição de indivíduos de jure e de facto, impedindo que o mesmo controle seu destino, situação que somente pode ser superada por meio do resgate da cidadania e da atuação na Política com P maiúsculo. É que, ao revés de haver uma colonização do público pelo privado, conforme preocupações da teoria crítica clássica, o que vem ocorrendo é o contrário, sendo o espaço público o lugar onde se faz a confissão de segredos privado e onde há cada vez menos questões verdadeiramente públicas. Enquanto isso, o verdadeiro poder passa ao largo dos governos e parlamentos, situando-se nas redes eletrônicas. É essa a situação posta à teoria crítica, que deve auxiliar no redesenho e repovoamento da quase vazia ágora, permitindo o reaprendizado pelos indivíduos das capacidades perdidas da cidadania. Todavia, com exercer essa tarefa de maneira a tornar-se compreensível sem deturpar seu conteúdo?
O problema passa pela escolha de um envolvimento político ou o radical distanciamento da prática política. A visão da filosofia como um objeto de ação dos filósofos, sem intercâmbio com o mundo real, não parece adequada, e o desengajamento político cheira a traição. Tal ponte política deve ser enfrentada, ainda que com os riscos inerentes ao processo, buscando-se suavizar a passagem da filosofia para o mundo. De qualquer forma, sendo a política o elo entre os valores universais e a realidade social, a relação com o Estado passa a ser um dilema de formação.
Nesse contexto, a teoria crítica clássica está a ponto de perder seu objeto, o que não significa a perda de seu significado, pois a emancipação ainda está à espera, o que passa pelo abismo entre a individualidade de jure e de facto. Aquela teoria esperava que o perigo fosse a colonização do privado pelo público, descuidando da possibilidade da invasão inversa. Esse processo imprevisto leva ao desaparecimento da política e à impotência da liberdade individual, que hoje precisa de mais e não menos da “esfera pública” e do “poder público”. 2 Individualidade
“Admirável Mundo Novo” e “1984” foram duas obras características da modernidade sólida, sendo que o pesadelo que as ligava era a previsão de “ausência do controle das nossas próprias vidas”. Os autores não podiam imaginar um mundo sem mesas de controle. Naquela primeira modernidade, contexto social da elaboração dos livros, o mundo era dominado pelos administradores das empresas capitalistas, cuja visão alimentava a formação do mundo e do discurso dominante, cuja ordem e regulação se sobrepunham à totalidade da experiência vivida. Naquele estágio, o capital estava fixado ao solo tanto quanto os seus trabalhadores. Todavia, hoje, na modernidade líquida, ele pode saltar a qualquer ponto do caminho, está livre do território, permanecendo o trabalho, contudo, tão imobilizado quanto antes.
Weber previu que haveria o triunfo da “racionalidade instrumental”, o quer tornaria as pessoas obcecadas com os meios. Entretanto, tal previsão não se confirmou, porque hoje as angústias estão mais voltadas, na verdade, às escolhas de objetivos. Essas escolhas são dificultadas pelo fato de que o mundo agora possui um gigantesco universo de possibilidades, o que, apesar de ser divertido, não permite saber se a decisão foi correta ou equivocada, em uma bênção mista de alegria e dúvida. Aquele capitalismo pesado, ao estilo fordista, era determinado pelas autoridades.
O leve, por sua vez, não aboliu as autoridades, mas permitiu a co-existência de tantas que elas se auto-anulam. Assim, programas de TV trazem a público assuntos que antes eram ocultos nas vidas privadas, tornam o indizível dizível, em um ritual de exorcismo que permite agora falar de coisas que estavam destinadas ao sofrimento silencioso. Questões desse tipo têm levado ao desaparecimento da “política como a conhecemos”, pois problemas privados, ainda que apresentados publicamente, não deixam de ser privados, ao mesmo tempo em que expulsa questões públicas verdadeiras. Tal fenômeno ocorre porque o que buscamos hoje são exemplos e não líderes. Assim agimos na esperança de que o conhecimento das experiências de outros indivíduos nos auxilie na tarefa solitária de autoconstrução.
O próprio caminho, e não o prêmio ao fim da caminhada, passa a ser o objetivo, situação cujo arquétipo é a atividade de comprar, o código que povoa a “política-vida”. Precisamos ser mais competentes, e cada vez que o fazemos vamos “às compras”, cuja lista é imensa, envolvendo-nos em torno do papel de “consumidores” e não de “produtores”. Como produtores, na modernidade pesada, precisávamos apenas estar “conforme” às normas, no mesmo nível de nossos “vizinhos”. Como consumidores, somos orientados pelos desejos e quereres voláteis e ninguém é referência para o nosso sucesso.
Passamos a ser guiados por um ideal de aptidão, quando antes o padrão era a saúde, e nosso corpo agora é uma “fortaleza sitiada”, o que nos leva a uma obsessão de comprar nossa defesa e não à abstinência e renúncia. Além disso, tentamos construir e moldar nossa vida como uma “obra de arte”, tarefa que busca a criação de uma “identidade”. A identidade (dos outros), à distância, sempre parece sólida, mas a nossa, experimentada, vivida, somente se mantém com o adesivo da fantasia. Em razão dessa instabilidade das identidades, o caminho para essa realização é determinada pela nossa capacidade de “ir às compras”, de ter acesso às infinitas escolhas. A partilha coletiva dessa experiência absolutamente individual passa a ser condição necessária da vida.
É uma tarefa em certo sentido coletiva, mas que deve ser realizada por cada um em condições diferentes, induzindo à competição e diminuindo a capacidade de cooperação e solidariedade. Mudamos, assim, de uma sociedade do Panóptico para o Sinóptico, onde os espetáculos substituem a supervisão, sem perder o poder de disciplina. Nessa sociedade, os despossuídos não têm mais para aonde desviar os olhos da liberdade tentadora das telas, fazendo com que quanto mais escolhas tenham os ricos, menos suportável se torna a vida. 3 Tempo/Espaço
Comunidades hoje são definidas pela defesa e controle de suas fronteiras e não mais por seu conteúdo, mantendo a separação nos lugares de convivência. Por outro lado, a vida na cidade requer a habilidade da “civilidade”, que é a atividade das pessoas estarem juntas, em um ato de engajamento e participação nos espaços públicos, uma tarefa compartilhada para o bem comum sem a obrigação de retirada da máscara social ou de expressar sentimentos e angústias. Hoje diversos espaços cumprem a função, porém sem se aproximarem do modelo ideal.
Os centros de consumo, por exemplo, referem-se a uma tarefa individual, constituindo-se lugares onde as pessoas são chamadas a descartar seus laços, aonde elas não vão para socializar-se, pois carregam consigo as companhias que querem gozar. Cria-se um sentimento de conforto, com a suposição de que “somos todos iguais” e de que “temos a mesma intenção”, como se fizéssemos parte de uma comunidade, porém evitando que possamos nos confrontar com a diferença, a alteridade do outro, um modo diferente de viver. Esse processo de afastar o diferente, de evitar a chance de encontrarmos estranhos, segundo Lévi-Strauss, utiliza duas estratégias: antropofágica e antropoêmica; a primeira visando à aniquilação dos “outro” e a segunda a suspensão de sua alteridade. Podem-se acrescer ainda os não-lugares e os espaços vazios.
Os primeiros possuem a característica pública, porém claramente não-civis, como o La Défense, em Paris, cuja estrutura faz com que os estranhos tenham presença meramente física, dispensando o domínio da civilidade. Espaços vazios são aqueles em que, por se constituírem áreas habitadas por pessoas totalmente “outras”, são apagadas de nossos mapas mentais, cuja exclusão faz os demais lugares se encherem de significado. Esse afastamento da arte da civilidade, da capacidade de interagir com o estranho sem que a diferença seja utilizada de forma desconfortável, é a característica dessas categorias. Isso porque essa capacidade de interação com o “diferente” não se obtém facilmente, senão com estudo e exercício, enquanto a incapacidade de enfrentar a pluralidade se autoperpetua e se reforça.
A principal forma de se garantir a fuga para um “nicho seguro” quando “ninguém sabe falar com ninguém” é a origem étnica, que tem ares de “natural”, onde “todos são parecidos com todos” e a “fala é fácil”. Assim, a política passa a ser uma valorização da “identidade” em detrimento dos “interesses comuns”, importando o que se é e não o que se faz. É a patologia do espaço público e conseqüentemente da política, com o esvaziamento do diálogo e da negociação.
A modernidade é a história do tempo, é o tempo em que o tempo tem uma história. Antes, a relação das pessoas com o tempo e o espaço se dava nos limites do wetware - humanos, bois, cavalos - e o uso de qualquer dessas alternativas não fazia uma diferença substancial, tornando todos mais ou menos semelhantes. Mais à frente, a modernidade do hardware, onde homens passaram a construir novas formas de transporte, permitiu a manipulação do tempo, tornando os humanos diferentes, pois agora alguns podiam chegar onde queriam bem antes dos outros. Nessa era da modernidade pesada, o poder baseava-se na territorialidade e no princípio do “quanto maior, melhor” – maiores fábricas, imóveis, países.
A rotina normatizada, como meio de controle, criada para o trabalho, o prendia ao solo. Porém, da mesma forma, os prédios e maquinários também acorrentavam o capital e, ainda que pretendesse ser o controlador, estava por esse fato limitado. Contudo, no capitalismo de “software” de hoje, nessa nova modernidade “leve”, o espaço pode ser atravessado em “tempo nenhum”, cancelando a diferença do longe e do perto, desvalorizando o espaço e desprivilegiando qualquer lugar em específico. Quem tem o domínio desse novo tempo e se movem com rapidez, mandam, e os que permanecem presos ao lugar, obedecem.
Assim, o capital finalmente de desvinculou das responsabilidades com um lugar, podendo, agora descorporificado, viajar esperançoso e confiante, enquanto o trabalho, como antes, é irrealizável isoladamente. Entre as empresas, as fusões e a redução do tamanho passaram a ser a regra, fazendo com que cada um lute pela sobrevivência, tornando desnecessária qualquer supervisão, pois o receio de ser ultrapassado é o suficiente para manter a disciplina.
O capital, assim, busca a gratificação ao mesmo tempo em que evita as conseqüências de suas ações. Além disso, a cultura de nossos tempos desconsidera o passado e não acredita no futuro, dificultando as pontes culturais e morais entre transitoriedade e durabilidade e impedindo a assunção de responsabilidades de longo prazo. Essa inflexão do capitalismo pesado ao leve, da modernidade sólida para a fluida, pode ser ainda mais radical que o próprio advento da modernidade e do capitalismo. 4 Trabalho
Havia antes uma fé no progresso da história. Uma confiança de uma marcha em direção a uma vida melhor. Hoje, porém, há uma percepção de não existe uma “agência” capaz de mover o mundo pra frente, e o progresso vem sendo questionado junto com sua soberania, credibilidade e confiabilidade, demonstrando a fadiga do Estado. Ainda que as instituições da modernidade sólida permaneçam, o poder é tirado da política, pois flui em redes deslocalizadas. No capitalismo pesado, o trabalho, era visto como meio de aumento de riqueza e valorizado pela sua contribuição à manutenção da ordem e ordenação do destino humano. Porém agora, no mundo humano labiríntico, o trabalho já não tem aquele significado, constituindo apenas um episódio isolado como o resto da vida, sendo os atos de trabalho mais parecidos como estratégias de um jogador, que estabelece objetivos de curto prazo.
O trabalho perde sua centralidade, esperando-se que seja satisfatório por si mesmo e não pelos resultados para a humanidade, para a nação ou futuras gerações. Difere-se da modernidade sólida, na qual havia a pretensão de se ordenar a rotina de forma a evitar o acidente e a contingência, fazendo com que tudo se aperfeiçoasse e se tornasse mais útil e eficaz. Naquele mundo, o uso do nome de Ford era apropriado, principalmente pela intenção de se atar o capital ao trabalho em um casamento divino: os trabalhadores precisavam do emprego; o capital dependia dos empregados para produção e crescimento. Isso mudou, e a nova mentalidade é de casamentos de curto prazo, onde “flexibilidade” é slogan principal.
Ainda que antes também houvesse incertezas, hoje elas são de natureza diferente e apontam para um fenômeno novo de “individualização” das biografias, que divide e turva a idéia de um “interesse comum”, o qual perde seu valor prático. Em um sentido mais amplo, a liberdade do capital resulta em efeitos para a política, pois as instituições locais competem com a velocidade quase instantânea dos atores capitalistas, em uma batalha que não podem vencer. Os países evitam, assim, qualquer movimento que denote falta de hospitalidade aos interesses do capital, o que em geral significa menos impostos e regras, visando à criação de um mercado de trabalho flexível de trabalho. Esse contexto contrasta com a era anterior, quando o preceito fundamental era o adiamento da satisfação, a procrastinação.
Foi o controle do desejo que possibilitou o crescimento e desenvolvimento da sociedade moderna. A idéia era de que quanto maior a auto-restrição, maiores seriam os prêmios. Hoje, o que se busca é a satisfação imediata do desejo, ao mesmo tempo em que sua satisfação encurta a duração. Contudo, vivemos em um mundo repleto de insegurança e incerteza, combinado com a falta de garantias. Ninguém está a salvo, por exemplo, da nova rodada de “downsizing” ou “racionalização” dos serviços. Como não temos segurança de longo prazo, faz sentido a satisfação instantânea, pois seu adiamento perdeu seu fascínio.
A precariedade do mercado de trabalho transborda para e é reforçada pela política da vida. Laços e parcerias são, dessa maneira, vistos como produtos de consumo. Se a característica mais importante da modernidade era a confiança das sociedades em si mesmas e nas instituições, agora o seu colapso enfraquece o engajamento político e a ação coletiva, conforme já demonstrou Pierre Bourdieu. O Estado, dessa forma, deixa de exercer seu poder de controle na rede e as instituições políticas restam irreversivelmente enfraquecidas. 5 Comunidade
Os elementos que unem os membros de uma coletividade estão cada vez menos fortes. Muitas pessoas buscam, portanto, resgatar um sentimento já perdido de “comunidade”, que costuma ser negada pelos liberais. Contudo, se uma pretensa comunidade tem que apelar aos próprios membros para sua manutenção, significa que ela é mais um projeto que uma realidade, pois só passa a existir após uma decisão individual e, dessa maneira, pode ser considerada uma comunidade postulada.
O processo indutor desse fenômeno é a falta de segurança, e o encontro de um porto seguro nas turbulentas águas das constantes, confusas e imprevistas mudanças é uma das promessas do comunitarismo.
Porém, esse mundo torna o outro hostil e irrelevante, e falar em uma “comunidade includente” seria uma contradição em termos. Por outro lado, como disse Hobsbawm, exatamente em um passado quando a comunidade entrou em colapso inventou-se a identidade. O Estado-nação teve sucesso justamente pela supressão das comunidades, buscando criar cultura, língua e história unificadas, em detrimento de tradições comunitárias, o que foi possível pela imposição de língua oficial, currículos escolares e sistema legal unificado.
Passamos a ter uma noção de “terra natal”, uma percepção que pode ser dividida como nacionalismo e patriotismo, esse último tendo um sentido pretensamente mais positivo. Porém, tal noção pode levar a uma duas estratégias de relacionamento com o “outro”: no patriotismo, a abordagem antropofágica, o que significa “devorar” a distintividade do estrangeiro; e, no caso do nacionalismo, utiliza-se a estratégia antropoêmica, que resulta em metaforicamente “vomitar” os que não estão “aptos a ser nós”, isolando-os nos guetos e nos muros das proibições culturais, ou ainda por meio das deportações e limpezas étnicas.
Nesse processo, o método distintivo entre nós e eles é apenas a configuração de uma diferença, geralmente derivativa e menor, que acaba sobrepondo-se às semelhanças. Em outra linha, e em contraste àquele patriotismo e nacionalismo, evidencia-se que a unidade alcançada é muito mais promissora, por ser constituída pelo confronto, debate, negociação e compromisso entre diversos valores e preferências de auto-identificação, sendo a única variante de unidade compatível com a modernidade líquida. Do contrário, o natural impulso de retirar-se da arriscada complexidade para o abrigo da uniformidade, um verdadeiro sonho de pureza, acaba prevalecendo. Esse impulso afasta os perigos próximos ao corpo ameaçado, buscando tornar o “de fora” parecido com o “de dentro” e refazer o “lá fora” à semelhança do “aqui dentro”, criando uma sede por segurança que não pode ser saciada, pois deixa intactas as verdadeiras fontes da incerteza e da falta de garantias.
Assim, entre liberdade e segurança, o comunitarismo aposta na última, desconhecendo que a liberdade e a segurança podem e devem crescer conjuntamente. Faz-se essa escolha pois as amizades, o trabalho e a própria família são fluidos demais para serem referências confiáveis. Nesse contexto, tendo em perspectiva que é a sociedade quem nos permite experimentar satisfações que não sejam puramente efêmeras e que o comunitarismo enfraquece essa construção, o corpo passa a ser o único referencial de continuidade a “longo prazo”, pois dificilmente algo ultrapassará os limites da mortalidade corporal. O próprio Estado renuncia o papel de responsabilidade pela certeza, segurança e garantia, em uma mudança de grande importância para os rumos da humanidade.
O casamento entre Estado e Nação claramente caminha para o fim e para a constituição de um novo arranjo de “viver juntos”, ainda que haja pouca esperança no resgate daqueles serviços de garantias, em razão da corrosão da política diante dos poderes extraterritoriais. Contudo, diante da falta de resistência soberana dos Estados àquela interferência indevida, a construção de uma ordem supranacional não passa de uma especulação que hoje é até mesmo improvável. Isso traz preocupação em relação à disseminação do que Bourdieu chamou de “política da precarização”. Essa instabilidade poderá ser compensada pelo surgimento de “comunidades explosivas”, que precisam de ameaças comuns e inimigos a serem perseguidos e mutilados, para que cada indivíduo seja cúmplice em uma eventual derrota.
A mistura dessa sociabilidade explosiva com aspirações territoriais e estratégias “fágicas” e “êmicas” resulta em mutações monstruosas, apresentando-se totalmente descontextualizadas da modernidade fluida, com a qual não compartilha código. Em outro fenômeno decorrente dessa instabilidade e precariedade é a constituição das chamadas “cloakroom communities”. Elas se caracterizam por necessitarem de um espetáculo que substitua a “causa comum” em torno do qual os indivíduos se reúnem por certo momento, colocando temporariamente outros interesses divergentes de lado. Contudo, têm o efeito colateral de impedir a condensação de comunidades genuínas e duradouras, dessa maneira reforçando e perpetuando a solidão que caracteriza o novo tempo. Posfácio – Escrever; Escrever Sociologia
Lembrando Beck: se a sociologia é a resposta, qual é a pergunta? A resposta desse questionamento passa pela necessidade de articulação de uma democracia que ultrapasse a “especialistocracia”. Ainda que tenhamos hoje ampla liberdade formal para falar, isso não é insuficiente para realização daquela democratização, pois ela depende da capacitação e auto-afirmação dos indivíduos para decidirem se querem o tipo de vida que lhes é apresentada como fatalidade.
A ausência de “significados absolutos”, de forma a possibilitar a busca de uma conformação social móvel, é condição para construção de uma sociedade verdadeiramente autônoma e indivíduos verdadeiramente livres. Aquele que nega a possibilidade de alteração da ordem social, responsável pela infelicidade das pessoas, é culpado de imoralidade. Não enxergar isso, suprimindo a possibilidade de contingência, é fator determinante para a perpetuação da situação. A revelação, é certo, não significa sua utilização imediata, mas certamente é o começo (e não o fim) da guerra contra a miséria humana.
LEIA O LIVRO NA ÍNTEGRA:

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