A crise ambiental, a universalização da consciência ecológica e a revolução tecnológica deste final de século exigem das sociedades modernas uma nova estratégia: o desenvolvimento sustentável.
Essa nova realidade tem reflexos diretos sobre as alternativas de desenvolvimento da Amazônia. Aqueles fatores, somados ao impacto político dos movimentos ambientalistas das classes médias, assustadas com os efeitos globais da deterioração ambiental, levam o capital internacional e os países ricos à adoção de uma estratégia particular para a Amazônia brasileira, com o objetivo primordial de assegurar a preservação das áreas de maior diversidade biológica. Pressionado por essa estratégia, pela ação política dos ‘verdes’ e pelas lutas de seringueiros e índios em defesa de seu modo de vida e sua cultura, o Estado brasileiro ‘divide’ a Amazônia em duas. A Amazônia Ocidental é vista como área preferencial de preservação, por ter alta biodiversidade (em especial no Acre e no sul do Amazonas). Já a Oriental destina-se a grandes empreendimentos de mineração e metalurgia, sem prejuízo da continuação discreta de projetos agropecuários e agroindustriais.
A revolução tecnológica, no entanto, vem apontando novas opções de uso e valorização econômica para os recursos biológicos das florestas tropicais úmidas. Isso torna necessário repensar o desenvolvimento da região, principalmente no caso da Amazônia Ocidental. O novo modelo precisa ser coerente com as peculiaridades naturais daquele ambiente e com as aspirações e exigências culturais do seu povo, e deve expressar as novas relações de forças sociais. Esses pressupostos permitem pensar que o neoextrativismo, organizado na forma da produção familiar, seja a estrutura econômica adequada ao desenvolvimento da Amazônia Ocidental.
Uma atividade inviável? Certos pontos de vista não aceitam o conceito ou a possibilidade histórica de um neoextrativismo, baseados no senso comum ou em teorias sobre a economia extrativa. Por isso, é necessário aprofundar a discussão sobre o tema.
Destaca-se, entre os poucos estudos teóricos, no país, sobre extrativismo, o do especialista em economia rural Alfredo O. Homma, que aponta, com base na teoria econômica neoclássica, a inevitável extinção da atividade. Homma sustenta que: “A economia extrativa (...) começa pela descoberta do recurso natural que apresenta possibilidade econômica ou útil (...). A seqüência natural é o início do extrativismo como atividade econômica. Em geral, o crescimento do mercado e o processo tecnológico fazem com que seja iniciada a domesticação desses recursos extrativos (...) e com que sejam descobertos substitutos sintéticos.”
Essa interpretação conclui ser impossível superar as condições de atraso da atividade extrativista por meio de um salto de qualidade das forças produtivas (e não só das tecnologias de produção), o que tornaria a atividade inviável como base para o desenvolvimento da Amazônia.
No entanto, análises que apontam essa ‘extinção’ estão em geral presas ao dilema ‘extrativismo puro’ ou ‘domesticação’. O primeiro termo fundamenta o conceito de extrativismo, entendido -- por Homma -- como “coleta de produtos existentes na natureza com produtividade baixa ou produtividade declinante”. Toda atividade de cultivo, criação, beneficiamento ou processamento, mesmo integrando um sistema de produção e um modo de vida extrativos, não seria mais extrativismo, mas domesticação. Assim, práticas como adensamento, ilhas de alta produtividade (cultivo de espécies nativas em pequenas áreas cercadas pela floresta) e sistemas agroflorestais verdadeiros (cultivo de espécies lenhosas perenes, na mesma área, em conjunto com culturas agrícolas e/ou criações) não integram o conceito de extrativismo -- já seriam domesticação.
Por essa linha de pensamento, todo manejo de extração seria insustentável. Ou porque a produção do bem elimina o objeto de produção (‘extrativismo por aniquilamento’), ou porque a busca da máxima produção no curto prazo esgota o recurso a médio ou a longo prazo (‘extrativismo de coleta’). Poderia haver equilíbrio se o ritmo de extração igualasse o de regeneração do recurso, mas esse ponto de vista diz que certos fatores econômicos tornam o manejo insustentável. Para Homma, “a grande questão é que muitas vezes a prática de manejo ideal do ponto de vista biológico não apresenta viabilidade econômica”.
Essas análises pressupõem, ainda, que o extrativismo tem um atraso tecnológico intrínseco. O uso de tecnologia para beneficiar no local o produto extraído já configuraria outro ‘degrau’, não mais extrativista, da cadeia produtiva. Reduzido ao nível econômico e ao estrito processo de coleta, excluída a elaboração do produto, o extrativismo recebe um tratamento teórico sumariamente economicista -- o que leva mais a um preconceito que a um conceito.
Novo tipo de extrativismo Os questionáveis pressupostos economicistas estão na origem dos desacordos sobre a proposta neoextrativista para a Amazônia Ocidental. Por isso é preciso, antes de tudo, esclarecer de que extrativismo se está falando e o que é neoextrativismo. Neoextrativismo é um conceito ligado à totalidade social, a todas as instâncias da vida social: a econômica, a política e a cultural. Na dimensão econômica, é um novo tipo de extrativismo, que promove um salto de qualidade pela incorporação de progresso técnico e envolve novas alternativas de extração de recursos associadas com cultivo, criação e beneficiamento da produção.
Mas a caracterização de neoextrativismo deve partir de um conceito mais preciso e adequado de extrativismo. Em geral, o extrativismo é visto como a atividade de coleta de recursos naturais para obter produtos minerais, animais ou vegetais. O conceito de extração, portanto, é amplo em seu objeto, por se aplicar à totalidade do ecossistema natural, e restrito em sua função, por limitar a apropriação dos recursos às qualidades e quantidades dos estoques primitivos, sem intervenção racional para sua ampliação. Tal concepção supõe uma separação entre o homem e a natureza, ao admitir a existência de áreas naturais intocadas pelo homem.
A situação concreta do extrativismo na Amazônia recomenda a construção de um conceito mais específico. Em primeiro lugar, definir extração como coleta limitada aos estoques naturais reduz a atividade ao extrativismo mineral, à apropriação do meio físico do ecossistema natural (recursos, por natureza, não-renováveis). É preciso, portanto, distinguir extração mineral de bioextrativismo. Este refere-se ao uso econômico da biota, isto é, dos seres vivos (recursos renováveis) dos ecossistemas naturais. Nesse caso, não se pode admitir como objeto uma natureza intocada, já que as florestas são afetadas pelo uso humano.
A própria diversidade biológica resulta, em certa medida, do manejo milenar a que o homem submete os ecossistemas, como afirma Antônio Carlos Diegues no livro O mito moderno da natureza intocada. Os deslocamentos de grupos humanos primitivos, por exemplo, disseminaram espécies nativas e introduziram espécies exóticas, e as práticas tradicionais de manejo favoreceram espécies úteis e prejudicaram outras. É enganosa, portanto, a idéia de um extrativismo puro, já que a floresta, como hábitat do homem e por meio dele, sofre constantes alterações.
Harmonia com a natureza A especificidade da Amazônia, quanto à intervenção das populações tradicionais nos ecossistemas naturais, é a diversificação do uso dos recursos em sistemas de coleta, cultivo e criação de animais. Tais sistemas de manejo estão fundados na cultura tradicional das populações amazônicas, que favorecem uma relação harmônica com a natureza.
Isso acontece porque as populações que vivem nas florestas têm, em função do relativo isolamento e da forte influência do meio natural, um modo de vida e uma cultura diferenciados. Seus hábitos dependem dos ciclos naturais, e a forma como apreendem a realidade e a natureza é baseada não só em experiência e racionalidade, mas também em valores, símbolos, crenças e mitos. Essa simbiose homem/natureza, presente tanto na prática de produção quanto nas representações simbólicas do ambiente, permite que tais sociedades acumulem vasto conhecimento sobre os recursos naturais.
As práticas -- extrativistas e ecologicamente sustentáveis -- usadas para explorar os recursos naturais dependem do nível de desenvolvimento das forças de produção e das formas de organização social, mas são sobredeterminadas por elementos culturais. “A organização social e os valores culturais são os principais fatores responsáveis pela degradação do ambiente e não simplesmente a tecnologia”, diz Diegues, citando D. Jansen. Formas de organização social e culturas distintas dão lugar a diferentes racionalidades e representações do ambiente natural.
Seringueiros e índios vêem na floresta a sua morada e a de seus ancestrais, um ambiente conhecido e acolhedor, objeto de seu saber e de suas crenças e fonte de sua subsistência. Já empresários agropecuários vêem um ambiente estranho e hostil, um obstáculo a ser superado para que tenham acesso à fonte de seu lucro. As mesmas razões explicam a existência de três formas de extrativismo: o mercantil-capitalista, o da pequena produção familiar e o comunitário. O primeiro é típico da empresa extrativista (seringal, castanhal etc.) e os últimos são próprios de grupos tradicionais (seringueiros, castanheiros, pescadores, índios etc.).
O que é praticado na Amazônia é o bioextrativismo, vinculado ao tipo de organização social e seu universo cultural específico. A atividade inclui não só o uso imediato (coleta de recursos animais e vegetais), mas também usos mediatos (cultivos, criações e beneficiamento de produtos) da biota, por meio da produção familiar ou comunitária e dentro dos valores e crenças das sociedades que habitam os ecossistemas da região. Assim, o bioextrativismo das populações tradicionais pode ser definido como a intervenção, na biota dos ecossistemas naturais, pelo homem (componente da biota), baseada na racionalidade da reprodução familiar/comunitária e sobredeterminada por seu universo cultural, fundado na simbiose prática e simbólica com a natureza. Tal intervenção visa produzir biomassa útil e é regulada por sistemas de manejo imediato, associados à introdução e exploração de plantas e animais em níveis pouco intensos, que não alteram substancialmente a comunidade biótica do ecossistema.
Esse novo conceito de extrativismo transcende o nível econômico. Na verdade, a mudança conceitual corresponde às alterações ocorridas no bioextrativismo real: este é, na Amazônia, cada vez mais uma atividade econômica de produtores ‘autônomos’ e de organização comunitária. A produção adquire uma nova lógica, diversifica-se, mas se subordina sempre ao universo cultural singular da população extrativista. É a consideração desse bioextrativismo concreto, de sentido mais amplo, que dá origem e pertinência ao conceito de neoextrativismo, entendido como um ambiente social específico, em simbiose e equilíbrio com a natureza e mais determinado pelo universo cultural do que pelas demais instâncias da vida social. A cultura das populações tradicionais é o cimento que dá unidade ao ambiente social extrativista.
Essa cultura distingue-se pelo modo de vida particular e pela identidade ou auto-reconhecimento do grupo. O modo de vida tem sua matriz na dependência e simbiose com a natureza, no conhecimento empírico e simbólico dos ciclos e recursos naturais, e tal saber é a base dos sistemas de manejo de baixo impacto praticados. A produção apóia-se no trabalho familiar ou comunitário, depende do uso imediato dos recursos, subordina-se aos ciclos naturais e tem como racionalidade não o lucro, mas a reprodução social e cultural. Saliente-se, para prevenir reducionismos, que apesar da matriz comum cada grupo tradicional (seringueiros, ribeirinhos, índios etc.) tem características culturais próprias.
Dentro dessa lógica de sobredeterminação cultural, o conceito de neoextrativismo abrange todo uso econômico dos recursos naturais não conflitante com o modo de vida e a cultura extrativistas. No sentido econômico, neoextrativismo é a combinação de atividades estritamente extrativas com técnicas de cultivo, criação e beneficiamento imersas no ambiente social dominado por essa cultura singular.
Portanto, cultivo, criação, artesanato e agroindústria são extrativistas desde que se harmonizem com valores, crenças e costumes da população extrativista e com as características do seu ambiente natural. Entre outros atributos, tais atividades devem: 1) basear-se na exploração de espécies animais e vegetais da floresta; 2) integrar o sistema de valores do trabalhador extrativista; 3) inserir-se na organização do espaço existente no extrativismo; 4) incluir sistema de manejo apoiado em saberes, práticas e tradições do trabalhador extrativista; e 5) harmonizar-se com os hábitos dos processos de trabalho extrativistas.
Nessa ótica, o neoextrativismo envolve os componentes ‘agro’ e ‘florestal’, além do extrativismo ‘puro’. Mas não estão incluídas a agropecuária e silvicultura modernas, baseadas na revolução verde que acelerou a modernização agrícola, a especialização e o uso de fertilizantes e biocidas no Sudeste e no Sul. Ao contrário, o agroflorestal do neoextrativismo envolve diversificação, consórcio de espécies, imitação da estrutura da floresta e uso de técnicas desenvolvidas pela pesquisa a partir dos saberes e práticas tradicionais, do conhecimento dos ecossistemas e das condições ecológicas regionais.
Essa agricultura e essa silvicultura novas, fundadas nas necessidades, no conhecimento e na pesquisa regionais, estão integradas às peculiaridades dos ecossistemas amazônicos e ao universo cultural dos povos tradicionais da região -- seringueiros, índios, castanheiros, ribeirinhos e pequenos produtores agrícolas.
Sugestões para leitura
DIEGUES, Antônio Carlos. O mito moderno da natureza intocada, Hucitec, São Paulo, 1996
HOMMA, Alfredo Kingo Oyama. Extrativismo Vegetal na Amazônia - Limites e Oportunidades. Brasília: EMBRAPA-SPI, 1993
KAGEYAMA, Paulo Y. Extractive Reserves in Brazilian Amazonia and Genetic Resources Conservation. Piracicaba, s.n., 1991.
MURRIETA, Julio Ruiz, RUEDA, Rafael Pinzón. Reservas Extrativistas. [S.l]: UICN-CCE-CNPT, 1995.
VIANA, Virgílio M. et alii. Sistemas Agroflorestais e Desenvolvimento Rural Sustentável no Brasil. [S.l.: s.n.], 1997
REVISTA CIÊNCIA HOJE n. 147, março de 1999
Nenhum comentário:
Postar um comentário