Israel Souza (sociólogo e morador)
Nos dias recentes, um fato tomou conta do noticiário acreano: a “intervenção” estatal no Bairro 6 de Agosto que atingirá entre 100 e 250 família. Notadamente, isso ocorreu por força da indignação dos moradores do bairro, e não em função da propaganda governamental, como em geral ocorre. Embora dedicando extensas matérias sobre o assunto, a cobertura da grande imprensa em nada contribuiu para informar sobre a “intervenção” e nem sobre a indignação dos moradores. Ao contrário disso, semeou muitas inverdades e confusão. É hora de um pouco de luz.
Semana passada, passaram em nossas casas preenchendo um cadastro. Mas foi somente esta semana (segunda, dia 12) que os representantes do governo vieram a público falar da “intervenção” (o eufemismo é deles). E falaram coisa pouca e equívoca. De modo vago, falaram de “projeto em construção”, “de estudo em andamento”, de “área verde”, “reflorestamento” etc. Basicamente, disseram que a intenção era “retirar” as famílias dessa área alagadiça e levá-las para outra área. De imediato, elas receberiam uma quantia para pagarem aluguel (“aluguel social”), enquanto as casas que elas receberiam não ficavam prontas. Isso demoraria mais ou menos um ano.
O governo defende que a maioria das pessoas quer sair e que a reação dos moradores é manobra da oposição e/ou incompreensão quanto ao objetivo do projeto. Cumpre dizer, entretanto, que a reação dos moradores se deveu às muitas coisas que os representantes do governo disseram durante o preenchimento do cadastro. Em umas casas disseram que não sabiam ou não podiam informar para que era. Em outras disseram que era coisa referente ao Bolsa Família. E em outras disseram que era para “controle” (a expressão é deles) dos que moravam nesta “área de risco”. E ainda em outras casas que era para sair e ganhar casa.
Dessa forma, as pessoas responderam a um questionário sem saber qual sua finalidade. Que legitimidade ele tem? Sejamos francos, nenhuma! É mais que provável que, se soubessem que o “aluguel social” é do valor de 300 (trezentos reais), muitas das pessoas que responderam afirmativamente à pergunta se sairiam de casa repensassem a resposta. Vale destacar que essa pergunta não foi feita em todas as casas. Isto porque, ainda que a área seja habitada por gente simples, há aqui pessoas que, com esse dinheiro, não conseguiriam alugar uma casa em que coubessem todos os seus pertences. Talvez tivessem que escolher se as pessoas ou as coisas ficariam na casa. Ademais, sabemos pelo que está acontecendo em outros bairros não-alagadiços (a intervenção é, portanto, mais ampla), que há pessoas que têm que tirar do próprio bolso para complementar o aluguel. A pessoa que estipulou esse valor ou não sabe de aluguel e das condições dos moradores ou usou de má-fé?
Em reunião com os moradores (ocorrida ontem, dia 13, por iniciativa dos moradores), os representantes do governo diziam que não haveria indenização, para em seguida dizer que talvez tivesse. Mas, se houvesse indenização, alertavam, as casas dessa área “estão valendo em média” 3.000 (três mil). Uma nota particular: com isso não conseguiria sequer construir o banheiro (de alvenaria) aqui de casa. Isso, que mais se assemelha a uma brincadeira ou a uma ofensa, não valeria as noites de sono perdida, nem a tristeza, o medo, a indignação que os moradores estão sofrendo. Ao que parece, as melhorias feitas com o complexo Amadeu Barbosa em vez de valorizar desvalorizou as casas de seu entorno.
Certamente, essa seria uma informação capaz de fazer mudar a opinião daqueles que diziam estar dispostos a sair de casa. Para não abandonar a casa por 3.000 ou para não trocá-la por outra que não nos daria as condições que hoje temos, preferíamos encarar duas, três ou mais alagações por ano. Sim. As autoridades disseram que não nos enganariam: as casas que receberíamos talvez não dessem as condições que hoje temos. Vamos jogar nossos móveis no lixo ou deixaremos alguns dos nossos parentes do lado de fora? Como o governo vai nos ajudar se suas ações se concretizam em violência e prejuízo? Não queremos mais do que merecemos. Só não queremos menos.
É justo dizer que para muitos de nós, talvez para a maioria, ganhar uma casa do governo e sair do “alagado” seja um benefício de grande monta. Para outros não. Esses outros - que, mesmo não sendo maioria, não são poucos - apenas seriam prejudicados. A realidade dos moradores desta região é muito diversa, e o governo deveria levar isso em conta.
Outras contradições e dissabores foram colhidos na reunião já referida acima. Ora eles diziam que apenas as pessoas que aceitaram sair sairiam, que “nos acalmássemos, que quem não queria sair não sairia”. Em seguida, diziam que as pessoas que não querem sair seriam procuradas posteriormente para “outra conversa, depois”. “Que conversa e quais seus termos?”, perguntávamos e eles não nos diziam. Não souberam responder por que alguns moradores foram visitados segunda (dia 12) e receberam a ordem de deixar suas casas até quarta (hoje, dia 14). Foram ameaçados de ter luz e água cortadas se não abandonassem suas residências. Os representantes do governo também não nos disseram que projeto têm para a área, como isso impacta a todos em geral e a cada um em particular.
Há entre nós aqueles que vivem há décadas no Bairro 6 de Agosto, um dos mais tradicionais do Acre. Optaram por isso e não precisam do governo durante os períodos de alagação. Não somos arruaceiros, nem massa de manobra, nem interesseiros. Somos gente trabalhadora, pais e mães de família. Se hoje somos visto negativamente, devemos isso à imprensa acreana que - não na totalidade, mas pelos menos na maioria - é ignorante, incompetente e servil ao governo.
Reivindicamos clareza e honestidade da parte do governo. O que há de ser feito aqui? O que acontecerá conosco? Reivindicamos sensibilidade e não truculência, diálogo e não monólogo. Queremos não privilégios, mas respeito pelos direitos que sabemos que temos. Não defendemos apenas nossas casas (e isso já é muito), patrimônio material, mas nossa história, nossa memória afetiva, nossa identidade, nossos sonhos, nossa dignidade.
Ontem (dia 14), em reunião, decidimos que queremos que outro cadastro seja feito. O primeiro não tem legitimidade e a retirda das famílias deve ser suspensa. Queremos que o governo apresente a todos os envolvidos o projeto, de forma clara e detalhada. A apresentação deve ser feita num final de semana, sábado ou domingo, quando todos possam participar. Dessa vez, as pessoas saberão do que se trata e quais as implicações disso para as suas vidas. Queremos que as diferentes vontades (se saem ou não; e, se saem, em que condições o fazem) e condições (de propriedade) dos moradores sejam levadas em conta. Formulamos isso em documento e hoje, dia 15, vamos entregar na Assembleia Legislativa do Acre.
É pelos motivos expostos e por tantos outros que estamos em luta. Não contra o governo, mas pelos nossos direitos.
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