terça-feira, 17 de abril de 2012

A VOLTA DO FAMP (por João Veras)

É inconteste o mérito dos festivais na história da música popular brasileira. Aqueles que foram realizados pelas redes de televisão como Excelsior, Record, Tupi e Globo, nas décadas de 60, 70 e 80, tiveram significativa importância não só na consolidação da ideia de MPB e de um mercado para a música brasileira, como meio de projeção de compositores e intérpretes fundamentais para a sua qualidade, pelo menos aquela produzida nos considerados centros urbanos de difusão da indústria cultural no Brasil, caso do eixo Rio/São Paulo.

Inegável também seu valor como propulsor da criação e da difusão musical contemporânea, inclusive nas demais regiões do País. Muitos outros festivais, chamados regionais, foram sendo realizados produzindo efeitos positivos para as histórias das produções locais. Até hoje muitos deles, inclusive independentes, acontecem em todo o Brasil. O FAMP, Festival Acreano de Música Popular, é “cria” dessa história. O primeiro aconteceu em 1980, de uma série de edições que alcança até o inicio dos anos 2000.

Certamente que antes e paralelo à fase dos festivais sempre existiu vida na música popular, bem como espaços e eventos de semelhante monta. Tanto por lá, quanto por cá. Vale citar, por exemplo, os programas de calouros das rádios Difusora e Andirá e, ainda, os shows de calouros dos cines Acre e Rio Branco, na década de 70, na cidade de Rio Branco. Mas não há dúvida de que o capítulo dos festivais merece um destaque especial na história.

Para a indústria cultural, os festivais perderam uma de suas funções mais importantes, sob o ponto de vista dos interesses de mercado, que era oferecer, de forma concentrada, um produto estético musical vendável sob o selo de MPB. Hoje, os espaços em que as produções musicais podem ser lançadas e expostas ao público são os mais diversos. A difusão cultural como carimbador da qualidade perdeu sua centralidade e com isto seu potencial de influência, o que no inicio se devia ao rádio e depois à televisão, tudo sob o controle da indústria do disco, agora, agorinha, parece não haver tamanho controle. As gravadoras e os meios de comunicação tradicionais estão em crise e todo espaço é espaço de difusão, tudo passou a ser e não ser MPB. Onde estaria o eixo, quem cola o selo?

Por seu turno, a finalidade dos festivais realizados por aqui não era exatamente aquela da indústria cultural. A produção cultural local nunca foi, para o bem ou para o mal, considerada. Tal fato não se constitui nenhum “privilégio” nosso. As demais regiões do País sofreram os mesmos efeitos desta espécie de colonialismo cultural interno, que as considera como simples consumidoras e reprodutoras dos produtos da industrial da arte. A suas manifestações culturais, cunhadas de regionais, não se enquadravam nos estatutos estéticos “universais” do padrão-mercado.

A centralidade que o festival local de fato possibilitava estava a serviço da supressão de um estado de invisibilidade que envolvia a criação artística e seus produtores emergentes. Um espaço-evento que possibilitasse legitimidade social e cultural a essa produção e seus criadores era de uma importância capital (mesmo que por meio de um acontecimento anual) frente à ausência de política cultural e também de mercado. A crise dos festivais da indústria não será a mesma crise dos nossos.

Além do mais, a função dos festivais por aqui, nos seus primórdios, dizia mais respeito ao surgimento de uma criação musical, enquanto conteúdo, um tanto diversa da que se vinha produzindo até então, e de compromisso outro que com o mercado.

Dois fatores podem exemplificar melhor o que estou querendo dizer. O primeiro é a instituição de um elemento até então muito pouco comum nas letras, o da crítica – o que representava um modo de manifestação - para além da estética – de cunho político, social e cultural (vivia-se, até meados dos 80, sob a égide da ditadura, de suas políticas desenvolvimentistas e de seus efeitos...), e que caracterizava uma espécie de engajamento do artista as tais dimensões da realidade. O segundo, que aparece um tanto como consequência do primeiro, diz respeito ao fato de passar a existir a partir dali uma produção musical local com características menos vinculadas ao padrão da indústria e mais comprometidas com as questões locais – passamos a falar mais da gente, olhar-se no espelho e seus arredores. Havia ai algo de um projeto de identidade cultural, nesse campo artístico, a ser formulado e se formulando. Nesse sentido, tenho para mim que os festivais foram fundamentais na constituição de uma ideia de autoria musical local, como expressão deliberada, coletiva e com causa – como a de um movimento - que pode se afirmar ser a música popular acreana com a qualidade e diversidade que passamos a perceber hoje.

Com os festivais, a nossa música popular passou a dialogar criticamente com a realidade, de forma manifesta ou não. É significativamente marcante o fato de que o FAMP de 1988 tenha se declarado em favor de uma causa. Seu tema era: “O Canto em Defesa da Floresta”. Oito anos de festival fizeram com que o que vinha naturalmente dos artistas fosse aceito pela instituição como norma: compromisso da música com a realidade local. Agora o canto, a nossa música, será em defesa da floresta, tendo, com isso, declaradamente, uma função política e, já ali, ecológica. E isto está expresso, da forma mais contundente, como manifesto, na contracapa do disco vinil do evento, no texto assinado pelo então presidente da Fundação Cultural do Acre, Gregório Filho. O Festival aconteceu em janeiro. Em dezembro Chico Mendes era assassinado. “A floresta é agora a nossa casa encantada. Quem não chora não mora na floresta nossa encantada”, este é o refrão da música “Casa Encantada”, tema do histórico festival - que é de minha autoria com Heloy de Castro.

Pois bem. Olhando agora o presente, fiquei sabendo que o FAMP irá voltar – nove anos após a realização do último que se deu em 2003. Segundo informam os seus organizadores, ele acontecerá em junho deste ano em Rio Branco com o tema: “Pela Nossa Natureza” (tido ainda como provisório pela organização). É emblemático o fato do festival voltar a ser temático vinte e quatro anos depois (após o de 1988, se não me engano, nenhum outro foi), e com aquele velho e ainda atual apelo, desta feita renovado, pela defesa não mais da floresta, em específico, mas da natureza. Sinal dos tempos.

O FAMP - embora não devesse mais ser necessário, posto que, como entendo, seu papel histórico já tenha sido cumprido - continua sendo importante, não somente porque o senso crítico ante a realidade anda sumido da nossa criação musical, mas também porque o que deveria está em seu lugar não está: um ambiente social e uma estrutura institucional, seja estatal ou de mercado, adequado para a difusão e valorização da música popular local – a visibilidade e legitimidade reclamadas em toda a sua história que, acredito, só uma política cultural, e não um evento anual, pode efetivamente possibilitar.

Vê-se que, no caso, é o contexto histórico, com suas condições de possibilidades, quem influencia, muito fortemente, a necessidade. A volta do FAMP se constitui num fato revelador: continuamos renovando apelos pela nossa música, “pela nossa natureza” – o que alinha esta edição de 2012 à sua herança histórica denunciando o status em que nos encontramos (permanecemos) no Acre em relação à cultura e à política.

João Veras é músico e compositor acreano

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