“Como todas as formas de ocupação capitalista, tanto a conquista como a ocupação da região Juruá-Purus pela empresa extrativa não ocorreram pacificamente. Deu-se através de um processo de relações antagônicas que podem ser explicadas pela oposição, entre si, de diferentes formações sociais. De um lado inúmeras e distintas sociedades indígenas e, de outro lado, as frentes de conquista e ocupação da expansão extrativista” (PICCOLI, 1993, p. 483).
Esse é o tema nevrálgico da historiografia acreana. Isso por que a genealogia do Acre começa onde a história de inúmeros povos termina. Não há como manter a ideia de “epopeia acreana” se levado em consideração o etnocentrismo dos seus “heróis”. Ofenderia o ego acreano se a história do Acre começasse com o crime hediondo do genocídio. A literatura e a história oficial muito contribuíram para deixar esse tema em “suspenso”.
Durante algum tempo chegaram a afirmar a inexistência de nativos no “deserto ocidental”. Mas não podendo mais negar a “farsa”, passaram a abordar o assunto para tentar justificar a elegia. Uns diziam que os índios morreram por mãos peruanas e bolivianas, outros diziam que foram vítimas de conflitos intertribais. A mais audaciosa narrativa se limita a mostrar os nativos como agressores e que o genocídio foi uma pratica defensiva. É do saber de todos que por influência europeia imperava no imaginário coletivo a ideia de que o aborígene era um ser “sem alma”, num estágio primitivo de humanidade. Não é a toa que se fala em pré-história do Acre.
Hoje os inúmeros geoglifos encontrados em território acreano são provas incontestáveis da presença milenar do homem na região. Os migrantes nordestinos não são os primeiros a colonizar as bacias do Juruá e do Purus. Antes de o Acre ser Acre o ser humano já habitava nesse espaço. Como afirma Calixto (1984, p. 15), “a extensão territorial que forma atualmente o Estado do Acre foi um dos maiores redutos de povos indígenas da Amazônia”.
Os geoglifos[1] são desenhos gigantescos feitos na superfície da terra que só podem ser observados em áreas desmatadas e em posição aérea de longa distância. No Acre eles foram descobertos na década de 1970 quando a pecuarização ocasionou a devastação de milhares de quilômetros de floresta. As técnicas empregadas para a feitura das figuras ainda são desconhecidas. Sabe-se que tomam formas geométricas, zoomorfas e antropomorfas. Estudiosos afirmam que provavelmente foram feitos há mais de dois mil anos.
O professor Alceu Ranzi da UFAC em 2001 desenvolveu o projeto “Geoglifos – patrimônio cultural do Acre”, financiado pela Lei de Incentivo à Cultura do Acre. O estudo possibilitou a identificação de vários desenhos, ao todo já somam mais de 130. O interessante é o conteúdo etnocêntrico do título do projeto. Ele afirma que os vestígios das civilizações passadas são patrimônios do ente político-administrativo “Acre”, mesmo sabendo que o processo de fundação do Acre foi o principal agente aniquilador dessas civilizações[2].
Não interessa aqui saber qual a origem desses povos “pré-colombianos”, muito menos os motivos que os levaram a fazer os geoglifos. O importante aqui é afirmar a vivência milenar humana na região e mostrar a relação que o genocídio praticado pela primeira geração de acreanos guarda com a expansão do capital internacional na Amazônia.
Sendo assim, o processo de formação do Acre enquanto território brasileiro é apenas um capítulo da história humana na região. O menor capítulo por sinal, pouco mais de cem anos, porém, o mais funesto. Nesse curto período foram extintos quase quarenta etnias, assassinados mais de 50 mil nativos[3] e desmatada mais de 1/3 do território. Alguns autores fomentadores do “acreanismo”, não sabendo como explicar o “sumiço” dos nativos sem relacioná-lo a atuação exploratória da borracha pelos “heróis acreanos”, preferiram representar a região como uma “terra vazia”[4] ou um “deserto ocidental” (COSTA, 1973).
A história da extinção, assimilação e integração de tais grupos está estreitamente ligada à expropriação territorial, nas fases e formas que a expansão econômica da sociedade nacional desencadeou na região [...] os grupos tribais foram externados, dominados e sistematicamente expropriados de suas terras [...] habitavam a região [...] uma população de aproximadamente 60 mil indivíduos. (CALIXTO, 1984, p. 16).
A violência perpetrada pelos bandos extratores ao se projetarem sobre os territórios, habitados pelas comunidades nativas, foi responsável pela sua rápida despopulação e extermínio [...] a insurreição e a reação dos grupos eram punidas com a morte. Os colonizadores também utilizaram métodos como manipulação das rivalidades tribais, contaminação través de doenças, etc. Paralelamente à violência física, desencadeada em função da expansão extrativista, foi alimentadas atitudes etnocêntricas que consideravam o indígena como ser inferior, primitivo, psíquica, biologicamente e culturalmente aquém [...] esta ideologia dos colonizadores seringalistas foi repassada aos seringueiros, os quais tinham no indígena um inimigo permanente. (idem, p. 18). [grifo nosso].
É duro reconhecer que a sociedade acreana foi fundada a partir do extermínio de vários povos. O ativista Albert Memmi (2007, p. 22) já dizia que “se a colonização destrói o colonizado, ela apodrece o colonizar”. O próprio escritor amazonense Márcio Souza (1977, p.113) chegou a afirmar que “a sociedade gomífera era doente”, e que as melhores virtudes dela eram “estúpidas”.
Tudo isso aponta para a confirmação da tese aqui defendida: a de que o apoderamento do Aquiry como área de influência do capital internacional projetou nele uma sociedade “civilizada” marcada desde sua origem pelo “sangue” e pelo “lodo”. Dessa forma, as narrativas que “bem-aventurada” a função do Acre são inconcebíveis. Esse “mito fundador” só serviu para forjar um “acreanismo”[5] que enaltece uma sociedade “apodrecida de nascimento” (idem) pela desgraça indígena e pelo trabalho servil dos “patriotas” seringueiros.
As relações socioeconômicas decorrentes do aviamento foram responsáveis pelo atrelamento da força de trabalho indígena aos seringais e pela expropriação de seus antigos territórios, bem como a subordinação, dependência, manipulação e manutenção compulsória da exploração do trabalho. (CALIXTO, 1984, p. 19).
A economia gomífera antes da migração nordestina foi alimentada em grande parte pelo trabalho escravo indígena. Isso sem dizer que os nativos serviram durante muito tempo como guias durante os desbravamentos em várias expedições. Com o início da crise do chamado “primeiro ciclo da borracha” que aconteceu a partir de 1912, os nativos foram, aos poucos, novamente integrados a economia “dos brancos” atuando como força de trabalho[6]. Os “civilizados” perceberam que “amansar” os nativos era mais vantajoso economicamente do que assassiná-los. O que desencadeou um processo de aculturação dos índios, processo esse que os transformou em “caboclos”.
Em fins do século XIX, houve um aumento exponencial da demanda mundial por borracha. Isso exigiu a abertura constante de novos seringais, consequentemente, o despovoamento de terras já ocupadas por nativos. Em favor do lucro das grandes potências mundiais, os “iludidos do capital” praticaram o assassinato em massa de nativos nas regiões banhadas pelos rios Juruá e Purus. Os que conseguiam sobreviver corriam “mata a dentro” ou para as “cabeceiras dos rios”. Esse “corre-corre” ou essas “correrias”[7] passaram a identificar o método como o acreano conquistava as terras dos nativos.
As correrias apresentavam como objetivos: a) o extermínio de grupos hostis e arredios; b) a expulsão das sociedades indígenas de seus territórios imemoriais; c) a expropriação e ocupação de terra indígena a fim de atender à expansão dos seringais; d) o acossamento dos grupos sobreviventes para fora das áreas de atuação extrativismo; e) a escravidão de mão-de-obra para o trabalho extrativo do caucho e da seringa; f) a assimilação e integração de contingentes de trabalhadores indígenas à empresa seringalista; g) o sequestro e rapto de mulheres jovens e crianças para servirem como esposas, amasias e serviçais das sedes de seringais, etc. (PICCOLI, 1993, p. 478).
As correrias representam materializações históricas resultantes de um conjunto de relações assimétricas de natureza econômica, social, cultural e ideológica, próprias do período e das regiões do extrativismo gumífero, envolvendo as frentes de expansão e ocupação das diferentes sociedades nacionais [...] coordenadas pelo capital monopolista internacional e pelo capital mercantil e dezenas de sociedades tribais [...] De outro lado, representam uma tipologia de relações marcadas pelo extermínio, genocídio, redução, escravização, expropriação, assimilação e integração das populações indígenas. De outro lado, supõem relações de resistência e luta, oferecidas pelos grupos nativos ao projeto de ocupação extrativista. (Idem. p. 482-3). [grifo nosso].
As correrias foram consequências diretas da economia gomífera. O próprio surgimento do termo “está historicamente associada às regiões do extrativismo gomífero” (Idem, p.477). Eram “expedições de iniciativa privada, organizadas e financiadas pela empresa extrativa [...] tinham nos seringalistas os seus verdadeiros responsáveis; e nos seringueiros, os executores” (idem, p. 478). Não dá para duvidar que “o capital monopolista implantou relações de dominação que afetaram irreversivelmente a estrutura e o comportamento das sociedades indígenas da região” (idem).
A fome da borracha levou os seringalistas, donos dos seringais, e os seringueiros a procurar as maiores concentrações de seringueiras. Mais uma vez esbarraram com os grupos indígenas [...] Os seringueiros adotaram a prática das correrias, que significava simplesmente botar os índios para correr a tiros de espingarda. Os que não corriam bastante rápido eram massacrados. Foi mais um capítulo da morte das culturas indígenas da região. (LESSA, 1991, p. 28).
Não há como desvincular a abertura de seringais do genocídio. A historiografia oficial fez de tudo para inocentar os “heróis acreanos” desse grande mal. Uma das estratégias foi ensinar o anexação do Acre ao Brasil como algo separado da história dos povos indígenas na região. A atual geração de acreano deve ter bom senso e olhar o passado de modo mais crítico ao ponto de ao menos desconfiar dos reais motivos pelos quais o Governo do Estado insiste em comemorar anualmente as datas que marcam a formação do Acre. Todas as datas festivas da fundação do Acre são memoriais fúnebres da intolerância e do racismo.
As correrias foram “expedições fortemente armadas com o objetivo de aniquilar dos caboclos brabos” (AQUINO, s/d, p. 8). Esse fenômeno fez do território acreano um “sepulcro aberto” que exala odores fúnebres até os dias de hoje. Os acreanistas[8], inventores e reinventores da identidade acreana (MORAIS, 2008), como diz o ditado popular: “querem esconder o sol com a peneira”. Mas apesar de todos os fatos contrários à representação epopeica, o “discurso fundador do Acre”[9] (CARNEIRO, 2008), ainda aparece hegemônico no imaginário social.
Para os nativos, constituiu-se num grande mal ter abundância de seringueiras em suas terras - era “a maldição da própria riqueza” apontada por Eduardo Galeano (1994, p. 59). Com a cobiça despertada e tendo em mãos um winchester norte-americano calibre 44, os nordestinos-acreanos praticaram inúmeros “atos de bravura” contra aborígenes, bolivianos e contra eles mesmos. Na disputa por terras, a questão da nacionalidade dos litigantes não é tão relevante, já que se tem conhecimento de vários casos em que brasileiro matava brasileiro para usufruir da posse da terra. O certo é que, conscientemente ou não, seringueiro e seringalista defenderam a causa do imperialismo e alargaram a área de influência do capital internacional na Amazônia.
Nosso povo, tempos atrás, vivia nessas terras, antes delas receberem o nome de Brasil, antes de ser Acre. Todos libertos, tranquilos. Nossa função era só trabalhar na agricultura, na caça, na pesca, na coleta de frutas e festejar a vida. Mas, em meados do século XIX, começou a invasão dos territórios dos povos indígenas pelos nordestinos, que vieram com o destino de extrair borracha [...] os invasores vinha à procura de seus interesses: a riqueza do caucho e da borracha [...] tudo era destruído, até os roçados eram queimados para os índios não terem o que comer [...] por esse motivo, as nações indígenas foram se acabando e se integrando a esses invasores nordestinos. (KAXINAWÁ, 2002, p. 93). [grifo nosso].
Por: eduardo carneiro
[1] (geo = terra + glifos = desenhos).
A maioria das informações sobre o assunto foi obtida através do informativo “Geoglifos do Acre”, escrita pela arqueóloga Denise Pahl Schaan, disponível online no Site da Biblioteca da Floresta: <http://www.bibliotecadafloresta.ac.gov.br/biblioteca/docs_expo/geoglifos.pdf> acessado em abril de 2011.
[2] Não necessariamente daqueles que desenharam os geoglifos.
[3] No início dos anos 1980, a população indígena em território acreano se restringia a “5.000 indivíduos” (CALIXTO, 1984, p. 19).
[4] “Os cronistas davam ao Juruá cerca de meia centena de tribos [...] a região quase não tinha índio, sendo pequenas as tribos [...] tendo sido dizimados pelo sarampo e externados as sobras pelos bolivianos [...] além das lutas internas entre as próprias tribos” (BRANCO, 1950, p. 12).
[5] Uma pretensa identidade acreana baseada num origem fantástica e gloriosa, “recheada” de atos de bravura, heroísmo e patriotismo.
[6] Cf. (PICOLLI, 1993).
[7] Logo depois da primeira organização político-administrativa do Território do Acre, o delegado de polícia do Alto Tarauacá Luis Sobra afirmara ser “as correrias o esporte predileto dos seringueiros nos momentos de lazer” (apud AQUINO, s/d, p. 8).
[8] Geralmente intelectuais e políticos ligados à elite econômica local. Eles promoveram a imagem positiva do ser acreano, principalmente por meio da literatura e da história. Divulgam narrativas que revelam comunhão entre os acreanos e uma identidade dos habitantes com o espaço acreano. Afirmam que o passado inaugural do Acre fora glorioso e que, portanto, revela um “destino manifesto” venturoso para esse povo. A “lei do eterno retorno” tornaria a “grandeza” da fundação uma marca constitutiva em um processo em plena presentificação contínua.
[9] Conjunto de discursos que representam a anexação do Acre ao Brasil desvencilhado de interesses econômicos ou ambições pessoais. Afirma que a causa da anexação foi o patriotismo - a vontade que os acreanos tinham de ser brasileiro; e o heroísmo – conquistaram a região com atos de bravura.
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