quinta-feira, 14 de junho de 2012

A genealogia da “economia-mundo capitalista”: ensaio sobre a violência e corrupção.

           
“Toda história do capital é uma história de violência e saque, de sangue e lama” (LÊNIN, 1968. p. 35).

A História Econômica é um campo de estudo do conhecimento acadêmico que analisa as atividades econômicas do homem no tempo. As atividades econômicas têm a ver com a produção, circulação e consumo de bens e serviços. E “bens” e “serviços” têm em comum o fato de serem obras do trabalho humano que visam à satisfação de necessidades individuais ou sociais, quer sejam físicas ou mentais.
O homem, independente de sua genealogia fundadora - criacionista ou evolucionista, sempre precisou consumir. É uma questão biológica de sobrevivência, pois sem a alimentação mínima, o homem tende a morrer em poucos dias. E para tanto, o trabalho é imperativo. Pode-se dizer que o trabalho é a ação mental e/ou empírica do homem sobre “o mundo que o cerca” a fim de produzir utilidades que venham satisfazer as necessidades dele e/ou as de outrem.
As habilidades do homem em sustentar a si mesmo e a outros se aprimoraram com o tempo. Os instrumentos de trabalho se aperfeiçoaram de modo que as “utilidades” passaram a ser feitas com mais rapidez, maior qualidade e menor esforço físico. Resultado: a capacidade produtiva humana se tornou ilimitada. Hoje se tem condições de suprir a miséria mundial. No entanto, a produção acontece no limite da demanda solvível ou realizável.
Concomitante a esse aumento da capacidade produtiva humana, aconteceu que muitos passaram a ser sustentados ou terem suas necessidades supridas por outros. Classes sociais, propriedade privada, divisão social do trabalho e desigualdade social são temas relacionados a esse fato. Mas a discussão sobre eles não serão priorizados aqui. Basta afirmar que todos eles fazem parte da história econômica do homem. As formas como esses fenômenos se manifestaram no tempo, serviram para que muitos estudiosos caracterizassem ou classificassem as diversas sociedades.  
Há quem defenda a hipótese de uma etapa inaugural universal do desenvolvimento material humano: o comunismo primitivo. A característica dele seria a ausência de propriedade privada, de classes sociais e do Estado (ENGELS, 1986). No entanto, tal proposição não é harmônica com a hipótese da existência de instintos naturais ao ser humano que são inibidores ao comunismo. Exemplo disso é a agressividade, o egoísmo e o impulso à dominação, dentre outros. 
A riqueza e a pobreza são milenares. A violência do homem sobre o homem também. A riqueza parece não existir sem a pobreza. E esse estado de coisas não se mantém sem o uso da violência. Sendo assim, a história das experiências humanas em sociedade aponta para algumas premissas: a de que o mais fraco serve ao mais forte; a de que o mais forte geralmente é aquele que tem maior poder de destruição; e a de que o mais fraco é sempre o mais pobre.
O historiador marxista Perry Anderson (1992) afirma que nos países ocidentais a riqueza de uns sempre requer a miséria de muitos. Embora o modelo neoliberal seja tão bem defendido por personalidades como Francis Fukuyama (1989) e Friedman (1974), fica patente que a desigualdade social lhe é constitutivo.    Se a riqueza tem ligação com o trabalho e se quem trabalha realmente não fica rico, então alguma coisa está errada. Grupos de pessoas estão laborando em prol do enriquecimento e satisfação dos desejos de outrem.
E como ninguém aceita uma situação de exploração pacificamente, o uso da violência física e simbólica se tornam quase inevitáveis. O uso da força é um instrumento de dominação antigo, mas que até hoje é utilizado. Está presente em todo o processo “civilizatório” do homem. O desenvolvimento econômico ocidental, por exemplo, teve a exploração colonial como um dos seus fatores principais. Consequentemente, o assassinar e o roubar foram práticas inaugurais da “modernidade” europeia.
Por tudo isso, é que a riqueza e a violência estão muito próximas para serem estudadas separadamente. É como diz Keegan (1996, p. 16): “a guerra está indiscutivelmente ligada à economia”. Pois, “se a essência do poder é a efetividade do domínio, não existe então nenhum poder maior do que aquele que provêm do cano de uma arma (ARENDT, 1994, p. 23, grifo nosso). A dominação econômica de um continente por outro, de um país por outro, de uma classe social por outra sempre terá como aliada a hegemonia do poder de destruição.

Ninguém que se dedique à meditação sobre a história e a política, consegue se manter ignorante do enorme papel que a violência sempre desempenhou nas atividades humanas, e à primeira vista é bastante surpreendente que a violência tão raramente tenha sido objeto de consideração. (ARENDT, 1994, p. 7, grifo nosso).
Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora esses poucos tenham parado de trabalhar a muito tempo [...] É sabido o grande papel desempenhado na verdadeira história pela conquista, pela escravização, pela rapina e pelo assassinato, em suma, pela violência. (MARX, 1968, p. 829, grifo nosso)

Para satisfazer, sem muito esforço, os seus infinitos desejos, o homem é capaz de qualquer coisa. Quando objetivo é “se dar bem”, o respeito e a observância de princípios morais e éticos sempre ficam em segundo plano. A “lei” do máximo conforto por meio do mínimo dispêndio de energia pode ser empiricamente observada no tempo por meio das diversas formas de exploração do homem pelo homem.
O homem enquanto agente econômico parece não estar tão preocupado com o seu semelhante. É aquilo que o filósofo inglês Thomas Hobbes (1984) disse: “o homem é o lobo do próprio homem”. É fácil verificar isso, pois a História Militar muita das vezes acaba sendo uma extensão da História Econômica. Os fins dos mais forte sempre justificam os meios nem sempre tão democráticos utilizados sobre os mais fracos. Matar, escravizar, servilizar, assalariar, roubar, guerrear, infringir leis, invadir territórios são alguns poucos exemplos.

O homem é um animal político, disse Aristóteles. Clausewitz, herdeiro de Aristóteles, disse que um animal político é um animal que guerreia. Nenhum dos dois ousou enfrentar o pensamento de que o homem é um animal que pensa, em quem o intelecto dirige o impulso de caçar e a capacidade de matar [...] a psicanálise busca persuadir-nos de que o selvagem que há em todos nós espreita não muito abaixo da pele. (KEEGAN, 1996, p. 19 e 20, grifo nosso).

Infelizmente a história do desenvolvimento econômico mundial é a história da violência e da corrupção humana. É uma narrativa “encharcada” de “sangue” e “lodo”. Tais expressões foram empregadas pelo economista alemão Karl Marx após estudar a acumulação primitiva de capital que financiou a dita “revolução industrial” na Europa. Ele diz que “o capital ao surgir escorem-lhes sangue e sujeira por todos os poros, da cabeça aos pés” (1968, p. 879).
O “sangue”, de modo geral, simboliza toda a exploração do homem pelo homem, a ação predatória dele sobre a natureza e as incontáveis mortes que o sistema exige para “sobreviver”. São óbitos oriundos da subnutrição de milhares de excluídos e dos conflitos armados ocasionados pela expansão do capital. O “lodo” representa toda estrutura criada para manter a ordem de exploração aceita ou pelo menos imexível na essência. Tudo aquilo que legitima os interesses e privilégios da elite econômica e a continuidade das desigualdades sociais. Os poderes executivo, judiciário, legislativo e midiático[1] são espertes nessa tarefa.
Portanto, nem sempre é o “cano da espingarda” que legitima a exploração do mais forte pelo mais fraco. As leis, cultura, as escolas, as tradições, os meios de comunicação, a história oficial, o patriotismo e outros também podem assumir esse papel, ou seja, o de manipular a coletividade a fim de fazê-la aceitar as “regras do jogo” de maneira pacífica. São as chamadas “violências simbólicas” tanto estudadas pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu (1975). Por meio dela, o grupo dominante inibe as “inevitáveis” revoluções.
Num mundo onde os recursos estão cada vez mais escassos e não há como universalizar o padrão de consumo vivenciado pelos países desenvolvidos, o convite à violência fica mais tentador. Tanto pelo lado do explorador, quanto pelo do explorado. A “perfectibilidade[2]” defendida Jacques Rousseau (1989) e a “razão” como condutora do “progresso” humano das teorias iluministas, não foram capazes de livrar o mundo contemporâneo de guerras mundiais e regionais, cujas causas envolveram questões econômicas.   
Mas para prosseguir na discussão a que esse capítulo propõe, necessário se faz falar sobre o conceito “capitalismo”. O termo só foi plenamente utilizado no século XX (BRAUDEL, 1987, p. 42)[3]. Alguns estudiosos contemporâneos aplicam o termo a realidades europeias do século XVIII e, outros chegam a utilizá-los ao se referirem a algumas economias europeias dos séculos XVI e XVII[4].
Os fenômenos econômicos europeus pós-feudais ou pré-revolução industrial se manifestaram das mais diversas formas. No entanto, para facilitar os estudos, muitos pesquisadores preferiram acomodar aquele “turbilhão de realidades” em conceitos que transmitem certa homogeneidade. Não é inoportuno lembrar que os conceitos são abstrações, meras categorias de análise. Eles não espelham a realidade tal qual elas são. A própria “economia em si, é coisa que não existe” (BRAUDEL, 1987, p. 11), pois empiricamente é inseparável do social, do cultural e de outras dimensões. A separação é apenas uma ação metodológica.
O capitalismo é um desses conceitos que tende a nomear diversas realidades economias. A dificuldade em continuar com o conceito se intensificou com as contradições que a “sociedade industrial” (ARON, 1981) foi desenvolvendo, ao ponto de o “capitalismo” ter de ser adjetivado, a fim de melhorar a compreensão dele. A utilização somente do termo “capitalismo” se tornou insuficiente para explicar uma dada realidade econômica. Vão surgindo, com isso, os conceitos de “capitalismo liberal”, “mercantil”, “imperialista”, “monopolista”, “dependente”, “tardio”, “central”, “de Estado”, “planificado”, “desenvolvido”, “subdesenvolvido”, “atrasado”, “colonial”, “neoliberal”, “global”, etc.
A opção por adjetivar o substantivo “capitalismo” ao invés de criar novos conceitos aconteceu em consequência da aceitação do pressuposto de que, apesar das diferenças estruturais ou conjunturais, as economias do mundo ocidentais tinham em comum o fato de “a atividade produtiva ser controlada pelo capital e realizada pelo trabalho assalariado” (BASTOS, 1996, p. 27). Ou seja, “o capitalismo apesar das transformações sofridas ao longo da sua história, mantém características básicas distintas” (idem, p. 5).
A preferência por preservar o conceito de “capitalismo” e, dependendo do tempo e do espaço, “adjetivá-lo” da forma que melhor possa distingui-lo, sugere dois pressupostos: a) existem fortes semelhanças econômicas entre as sociedades pós-feudais e contemporâneas ocidentais ao ponto de ambas serem estudas hoje como “capitalistas”; b) o capitalismo enquanto fenômeno socioeconômico não é estático, mas dinâmico e capaz de mudanças, embora preserve sua essência.
A identificação da “essência” ou “natureza” do capitalismo (HEILBRONER, 1988) que em hipótese se mostra “imóvel” na “longa-duração” é importante para qualquer estudo na área das ciências humans. Mas o debate sobre a “essência” ou a “lógica” do capitalismo não é de hoje. Muito já se escreveu sobre o assunto. Não compensa aqui acrescentar mais palavras sobre isso. Basta dizer que, com o fim de analisar o objeto do estudo aqui proposto, a hipótese da existência de um “núcleo” identificador do sistema é aceita. E que tal “âmago” se caracteriza, dentre outras coisas, pela expansão ou valorização do capital a qualquer custo, pela concentração da renda e de uma economia-mundo geradora de conflitos armados internacionais.

A lógica de um sistema expressa a energia potencial criada por sua natureza. Essa energia potencial é descarregada em inúmeros processos e pode ser considerada em muitos níveis de complexidade [...] Efetivamente, alguma coisa está errada. O sistema capitalista é ineficaz e destrutivo, irracional e injusto. É ineficaz e destrutivo porque periodicamente está em crise, em inflação ou em deflação. E quando chega a crise já não é um quarto, mas, mais da metade da capacidade produtiva que fica paralisada [...] O sistema capitalista é ineficaz e destrutivo porque é incapaz de dar trabalho útil a todos os homens e mulheres que desejam e ao mesmo tempo permite que milhares de pessoas física e mentalmente sãs vivam sem nunca terem trabalhado. É incapaz de desenvolver os recursos do país, de aproveitar a totalidade do potencial humano, é incapaz de resolver a contradição da existência de terras incultas ao lado de camponeses sem terra. [...] É ineficaz e destrutivo, porque ocupa muitos homens e equipamento na produção dos bens de luxo mais extravagantes, não produzindo os bens mais elementares para a vida do povo. É incapaz e destrutivo porque, no delírio de aumentar os preços e os lucros, em vez de satisfazer as necessidades humanas, destrói as colheitas e os bens em geral para aumentar a procura e assim subir os preços [...] a economia capitalista funciona com muita dificuldade em situação de paz [...] na guerra e somente na guerra, o capitalismo consegue dar trabalho aos seus milhões de desempregados. (HARNECKER, 1979, p. 9-10, grifo nosso).

O sistema é muito racional do ponto de vista de seus donos estrangeiros e de nossa burguesia de intermediários, que vendeu a alma ao diabo por um preço que teria envergonhado Fausto. Mas o sistema é tão irracional para com todos os demais que, quanto mais se desenvolve, mais se tornam agudos seus desequilíbrios e tensões, suas fortes contradições [...] o sistema vomita homens. (GALEANO, 1994, p. 16).

              O economista brasileiro Paul Singer (1987, p. 11) chegou a afirmar que o capitalismo era um “sistema irracional” e “desumano”. Outra afirmação similar é a do famoso advogado e romancista carioca Eduardo Novais (2008, p. 4) que diz que “o capitalismo é o lobo sob a pele do cordeiro da democracia [...] é o mais desumano, injusto, perverso e antidemocrático de todos os sistemas econômicos”. Se aceita, portanto, que o “sangue” e o “lodo” são fenômenos que integram o “miolo” do chamado sistema capitalista, ou melhor, fazem parta da “genética” dele.

As contradições internas do sistema capitalista engendraram graves doenças econômicas e sociais no meio da sociedade, que se intensificam cada vez mais. O desemprego, a inflação, a crescente criminalidade, os acessos periódicos de febres econômicas, as crises destruidoras, o medo crescente do futuro [...] o capitalismo é responsável pelos sofrimentos de milhões de pessoas na Europa, Ásia, África, América e Austrália. (BUZÚIEV, 1987, p. 4-5).

Obviamente não há como negar o quanto a economia mundial se desenvolveu nos últimos trezentos anos. Foi muito mais do que os mil e quinhentos anos anteriores ao século XVIII. Mas nem por foi aceita aqui uma visão otimista do progresso como a dos liberais[5], a dos neoclássicos, a dos neoliberais e outros. Devido ao fato que todo o inigualável avanço da capacidade produtiva humana ocasionou “externalidades” tão negativas, que os conceitos de “progresso”, “razão”, “ciência” e “civilização” tiveram que ser repensados. Isso aconteceu principalmente nos anos 1960 pelos intelectuais da dita “pós-modernidade”.
Depois das barbaridades cometidas na Segunda Guerra Mundial pelos países desenvolvidos e considerados “letrados”, tomou-se mais consciência de que havia algo de errado nessa “modernidade” projetada pela razão e pela ciência iluministas. Ficou patente a existência de “patologias sociais” (FROMM, 1983) na “sociedade da razão”. O “sangue” e o “lodo” formam a parte “ilógica” da expansão do capital.
Até então a história universal humana parecia caminhar tranquilamente numa reta em direção ao progresso. Até mesmo os comunistas olhavam o futuro com certo otimismo, procurando entrever nele uma sociedade marcada pela igualdade e justiça social. Hoje se tem plena consciência de que o “amanhã” é uma incógnita, mais tendencioso a um apocalipse do que a um final feliz.
Apesar de toda a “evolução” cultural que marca o terceiro milênio, o homem ainda hoje é capaz de praticar as mais cruéis atrocidades para satisfazer suas necessidades e desejos, de preferência com o mínimo de esforço. As guerras mundiais do século XX estão aí para provar que o invejoso progresso tecnológico advindo com capitalista não alterou significativamente as patologias sócias (FROMM, 1983).
O homem “moderno” continua tão rude e primata quanto o “bárbaro” da antiguidade. O querer de dar bem com o menor custo possível faz do homem “lobo do próprio homem” (HOBBES, 1984), na medida em que se preciso for ele se dispõe a práticas bestiais para conseguir seu intento, como escravizar, roubar, matar, dentre outros. Vale ressaltar que não foram os analfabetos que decidiram pelas guerras mundiais, muito menos são eles os maiores corruptos de dinheiro público dos Estados Nacionais. Os chamados “letrados” têm espaço privilegiado na trágica história econômica humana ocidental.
Não é em vão que o historiador Victor Hanson (2004) chegou a afirmar que a Europa somente retomou a hegemonia econômica mundial depois dos mil anos de “trevas” medievais por conta do “jeito ocidental de matar”, “da letalidade singular da cultura ocidental em guerrear” (idem, p. 9). A economia mundial não se tornou eurocêntrica sem que o “sangue” e o “lodo” se fizesse presente nessa história. Por isso que a “idade moderna”, tão exaltada nos livros didáticos de história como um período de “renascimento cultural”, na verdade, um momento de atuação do homo brutalis.
A expansão marítima comercial europeia e toda a ação colonizadora iniciada nos idos do século XV representou um dos mais sanguinários processos de pilhagem econômica que se tem conhecimento. Ela ocasionou milhares de vítimas nos continentes americano, asiático e africano. Os europeus se tornaram “os soldados mais mortais da história da civilização” (idem, p. 19). E foi por meio dessa “qualidade” que eles conquistaram a hegemonia econômica mundial.
O período foi analisado pelo economista Karl Marx (1818-83) como requisito para compreender a formação do Modo de Produção Capitalista[6]. Ele o estudou como sendo um momento de acumulação primitiva de capital[7] europeia. Em consequência, ele afirmou que a origem do capital que desencadeou as revoluções industriais europeias não tinha nada de “moderno”.

Roubo dos bens da igreja, a alienação fraudulenta dos domínios do Estado, a ladroeira das terras comuns e a transformação da propriedade feudal e do clã em propriedade privada moderna, levada a cabo com terrorismo implacável, figuram entre os métodos idílicos da acumulação primitiva. (MARX, 1968, p. 850, destaque nosso).

As descobertas de ouro e de prata na América, o extermínio, a escravidão das populações indígenas, forçadas a trabalhar no interior das minas, o início da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África num vasto campo de caçada lucrativa são os acontecimentos que marcam a aurora da era da produção capitalista. Esses processos idílicos são fatores fundamentais da acumulação primitiva. (idem, p. 868).

O sistema colonial, a dívida pública, os impostos pesados, o protecionismo, as guerras comerciais, etc., esses rebentos do período manufatureiro desenvolvem-se extraordinariamente no período infantil da indústria moderna. (idem, p. 875).

Essas mesmas ideias foram defendidas pelo advogado e historiador francês Gilles Perrault (1931-), em seu famoso livro “O livro negro do capitalismo” ele diz que:

As devastações, no espaço de um século e meio, pelo colonialismo e o neocolonialismo, são imaculáveis, como impossível é calcular os milhões de mortos que lhes são imputáveis [...] escravatura, repressões impiedosos, torturas, expropriação, roubo das terras e dos recursos naturais pelas grandes companhias ocidentais, americanas ou transnacionais ou por potentados locais a seu soldo, criação ou desmembramento artificial de países, imposição de ditaduras, destruição dos modos de vida e das culturas ancestrais, desmatamento e desertificação, desastres ecológicos, fome, êxodo das populações rumo às megalópoles, onde as esperam o desemprego e a miséria [...] Quais são os meios de expansão e de acumulação do capitalismo? A guerra, a repressão, a espoliação, a exploração, a usura, a corrupção, a propaganda. (PERRAULT, 1999, p. 19-20, grifo nosso).

A Europa foi como um útero para o capitalismo e o os séculos XV a XVII como o período gestacional dele. As revoluções liberais e industriais do século XVIII ocasionaram o parto e o imperialismo do século XIX o seu amadurecimento. Em todas essas fases, o “sangue” e o “lodo” estão por toda parte. Como diz o socialista francês Jean Jaurès[8] (1859-1914): “o capitalismo traz em si a guerra como a nuvem traz a trovoada”.
O que se quer dizer com tudo isso é que o capitalismo é um sistema econômico provocador de violência social. Ou seja, que os conflitos armados entre países, por exemplo, são consequências naturais da expansão do capital. Como também são as violências urbana e rural protagonizadas pelos excluídos no interior de cada nação. A sociedade contemporânea, como afirma Erich Fromm (1967), carece de sanidade mental, pois não consegue “desenvolver a capacidade do homem para amar o próximo” (p. 81).
A economia de mercado não é capaz de gerar uma situação de paz por muito tempo. A concorrência comercial e a disputa por áreas de influência provocam, mais cedo ou mais tarde, conflitos armados. Isso sem dizer da violência ou do uso da força no interior de cada nação, onde compatriotas se digladiam com frequência, ora na tentativa de enriquecer-se cada vez mais, ora na esperança de sair do estado pleno de miséria. 

Dada a natureza anárquica e competitiva das rivalidades entre as nações, a história das questões internacionais nos últimos cinco séculos tem, com demasiada frequência, sido uma história de guerras ou pelo menos de preparação para a guerra [...] a maioria dos estudos históricos supõe que ‘guerra’ e ‘sistema de grandes potências’ andam de mãos dadas. (KENEDY, 1991, p. 510).
A guerra [...] é um instrumento quase incontornável de solução dos conflitos da concorrência no controle dos mercados, onde a diminuição constante do poder de compra que a ei do lucro origina reduz ainda mais os canais de distribuição possíveis. (WEYL, Monique. In: PERRAULT, 1999, p.534).

De modo geral, por trás de todo declaração de guerra há sempre um fato econômico não resolvido no rol da exposição de motivos. Às vezes, está disfarçado em um discurso religioso, nacionalista, patriótico ou racial. As justificativas mais nobres possíveis são sempre empregadas para convencer a opinião pública da necessidade do conflito e das consequentes mortes de militares e civis. 

Ficamos endurecidos para o que conhecemos e racionalizamos e até justificamos as crueldades praticadas por nós e nossos semelhantes ao mesmo tempo em que retemos a capacidade de nos chocar diante de práticas igualmente cruéis que, nas mãos de estranhos, assumem uma forma diferente. (KEEGAN, 1995, p. 25).

No mundo regido pelo capital, conflitos armados são provocados para justificar gastos governamentais que, a curto prazo, geralmente “aquece” a economia e “espanta” o perigo da recessão. Sem dizer que o comércio de armas além de gerar lucro e impostos, ainda oferece oportunidade de emprego. É a chamada “economia de guerra”.
Hoje, os meios de destruição se constituem no seleto grupo das mercadorias que mais se aperfeiçoaram nos últimos trezentos anos. Consequentemente, há de se deduzir também que a indústria bélica foi uma das que mais recebeu investimentos. Os estados e as elites nacionais sabem que não há como manter a atual divisão internacional do trabalho, nem a propriedade privada, nem impor respeito com “poder de fogo” defasado.
Muitas economias nacionais já foram “salvas” por improvisarem conflitos armados. Isso por que numa situação de guerra, o Poder Executivo tem mais liberdade de planejar e executar o orçamento público sem tanta interferência ou controle do legislativo. Para proteger a população ou os interesses da nação, o Estado acaba tendo “carta branca” para “queimar dinheiro” na indústria bélica e em outros empreendimentos que em tempos de paz seria impossível.
No capitalismo, grande parte das crises é oriunda de superprodução, por isso a necessidade de se destruir capitais. A guerra é um dos meios usados para isso. Pois, ela força o poder público a “comprar” a crise. Isso por que o Estado se endivida liberando verbas públicas para a iniciativa privada, principalmente para as empresas que formam a chamada indústria bélica. 
É provável que somente no século XX tenha morrido algo em torno de 100 milhões de pessoas em consequência de conflitos internacionais. Um contingente um pouco superior à metade da população brasileira atual[9]. Se fossem consideradas as vítimas oriundas de movimentos sociais populares contra governos e oligarquias regionais, contra a concentração da terra e a da renda[10], a quantidade certamente seria bem maior.
Segundo dados da Federação Internacional da Cruz Vermelha[11], atualmente um bilhão de pessoas dormem sentindo fome. A Revista Veja[12] divulgou que a subnutrição infantil é a causa de mais de um terço das mortes de crianças menores de cinco anos ao redor do planeta. Ao todo, a desnutrição é responsável por cerca de três milhões e meio de mortes infantis ao ano. A fome acaba sendo “um meio civilizado e honesto do mundo capitalista”, como ironizou o anarquista italiano Carlos Cafiero (1990, p. 110). Mesmo na paz, o sistema econômico se mostra tão sanguinário como se estivesse em situação de guerra.
Duas são as explicações para as constantes interrupções da paz na sociedade capitalista. A primeira tem a ver com as contradições entre o capital e o trabalho; a segunda, com a constante necessidade que o capital tem de expansão. As disputas pela dominação e controle de mercados e de espaço são os motivos mais corriqueiros das guerras capitalistas.
A paz militar não significa ausência de violência no mundo capitalista. A política é a continuação da guerra por outros meios[13]. Como afirma Hanson (2004, p. 43) “os ocidentais há muito tempo viram a guerra como um método para fazer o que a política não conseguia e, por isso, estão dispostos a destruir quem quer que esteja no seu caminho”. Todo o “sangue” derramado nas páginas da história da sociedade moderna tem a conivência ativa dos políticos profissionais que se elegem para representar o “povo”. A corrupção política é uma ação mortal contra as vítimas da miséria. Os poderes executivos, legislativos e judiciários legitimam toda essa estrutura social desigual e brutal.
A corrupção faz parte da “essência” do capitalismo. É um mal necessário sem o qual o sistema como um todo não “roda” com segurança. O processo eleitoral e o sistema representativo democrático como um todo é uma farsa. É controlado desde as eleições até o planejamento e execução orçamentária do Estado. E quando acontece algo que coloque em risco o lucro dos grandes capitalistas ou a propriedade privada deles a ditadura é sempre acionada. A história está cheia de exemplos, basta lembrar o que aconteceu nos países da América Latina nos anos 1960.
O “estado democrático de direito” e a “igualdade, liberdade e fraternidade” ainda são uma das superstições mais imaculadas da modernidade. Se não fosse a “bandalheira”, os “senhores do capital” não conseguiriam fazer prevalecer suas opiniões e interesses. Licitações direcionadas, paraísos fiscais, “lavagem” de dinheiro, “caixa dois”, propinas, lobbies, tráfico de influência e manipulações contábeis, eis aí o “lodo” sem o qual o sistema democrático deixaria de ser “burguês”. A impunidade é algo banalizado, todos sabem que ao final tudo acaba em “pizza”.
A “violência” e “sujeira” ou o “sangue” e o “lodo” se fizeram presentes na formação do Estado Nacional Moderno. E por mais que Perry Anderson (2004) insista na ideia de um “estado feudal” durante o período, não se pode negar que foram instrumentos importantes para ascensão econômica europeia e, consequentemente, para a própria acumulação primitiva de capital europeia.

Os Estados em que vivemos nasceram de conquistas, guerras civis ou lutas pela independência. Ademais, os grandes estadistas da história escrita foram, em geral, homens de violência, pois ainda que não fossem guerreiros, e muitos o foram, compreendiam o uso da violência e não hesitavam em colocá-la em prática para seus fins. (KEEGAN, 1996, p. 399)

Diante de tudo que foi dito, não dá para pensar em qualquer compromisso humanitário e ecológico no processo de geração de riqueza capitalista. Capacidade econômica se tem para garantir a alimentação dos sete bilhões de seres humanos que vivem hoje no mundo, no entanto, “a produção capitalista volta-se, logo de início, para o mercado: o capitalismo produz para vender” (PERRAULT, 1999, p. 26). Portanto, pouco importa se há milhões de miseráveis passando fome, eles pertencem ao grupo de consumidores sem poder de compra.

Quanto mais desenvolvido se encontra um país capitalista, mais se acentuam os males assinalados. Esta ineficácia e destruição não é um simples desejo que se possa corrigir, mas sim uma característica da natureza do sistema capitalista [...] porque é que na sociedade capitalista existe um pequeno grupo de pessoas que possui tantas riquezas e goza uma vida fácil, enquanto a grande maioria dos trabalhadores vive numa situação muito difícil [...] de onde vem a grande riqueza deste grupo minoritário? (HARNECKER, 1979, p. 9-10, grifo nosso).

              O economista Karl Marx foi um dos que mais tentou explicar a última pergunta da socióloga chilena Marta Harnecker. Foge aos limites desse estudo desenvolver todo o raciocínio dele para solucionar tal questão. O que interessa aqui é apontar a existência dessas contradições inerentes ao sistema.  E que, portanto, são características fundantes dela.  O “sangue” e o “lodo” são as principais peculiaridades dessa verdadeira “contradição em processo” (MAZZUCHELLI, 1985) que é a expansão do capital.
           
Eduardo de Araújo Carneiro – é professor da Universidade Federal do Acre e bloqueio
www.eduardoeginacarli.blogspot.com



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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[1] “É preciso desmantelar o universo da publicidade como se faz com as armas de destruição em massa [...] atualmente o capitalismo deve manter vivas as suas vítimas, transformadas em meros consumidores: ele já não mata, elimina cérebros [...] os seus mísseis chamam-se publicidade” (FRÉMION, In: PERRAULT, 1999, p. 513).
[2] Disposição natural do homem para o aperfeiçoamento pessoal.
[3] Isso sem falar daqueles que nem se quer utilizam o conceito de “capitalismo” para estudar a economia pós-feudal, como o professor de História do Comércio da Universidade e Harvard, o Ph. D. N. Gras (1943) e escritor norte-americano Alvin Toffer (1980).
[4] O período que vai do Séc. XV ao XVIII, do ponto de vista econômico, já foi qualificado das mais diversas formas, tais como: “feudalismo urbanizado”, “capitalismo comercial”, “mercantilista”, “pré-capitalista”; “capitalismo primitivo”; período de “transição”, etc.
[5] Os economistas e políticos liberais e neoclássicos são os principais defensores do capitalismo. Há quem diga que eles assim o fazem por estudarem o capitalismo do ponto de vista da minoria, daqueles que se apoderam de todo o excedente econômico do sistema.
[6]O sociólogo Wallerstein (1930- ), apesar de se basear em Marx, faz uma leitura infiel dele, não utilizando o conceito de “Modo de Produção Capitalista”. Embora Marx não trate tal período de “acumulação primitiva de capital” como capitalista propriamente dito, o pesquisador Wallerstein já o considera como uma Economia-Mundo Capitalista. O conceituado historiador Fernand Braudel (1902-85) vai mais além, identificando o surgimento do capitalismo na Itália do século XIII (BRAUDEL, 1998), mas afirma que seu triunfo só aconteceu quando o capitalismo se “identifica com o Estado, quando é o Estado” (BRAUDEM, 1987, p. 70). O economista italiano Arrighi (1937-2009), seguidor de Wallerstein, chegou a dizer que o período fez parte de pelo menos dois ciclos sistêmicos de acumulação de capital do “capitalismo histórico”, a saber: o Genovês (do XV ao início do XVII) e o Holandês (fim do XVI ao XVIII). Resumindo: o surgimento do capitalismo não está tão associado e dependente do aparecimento do trabalho assalariado como afirmava Marx.
[7] (in: MARX, 1968).
[8] Defensor da revolução socialista por meio da democracia e não da violência.
[10] Segundo Viviane Forrester (1997), a causa do que ela chama de “horror econômico” é o fato de a economia nacional não ser capaz de oferecer emprego a todos.

[13] Invertendo a frase do militar alemão Carl von Clausewitz quando diz: "A guerra é a continuação da política por outros meios". <http://pt.wikipedia.org/wiki/Carl_von_Clausewitz> (acessado em setembro de 2011).


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