Seu nome: Wilson Pinheiro. Um homem alto, determinado, de fala mansa e rara, mas de olhar poderoso.
Por um mês procuramos, em vão, sinais de sua voz.
Nada.
Nenhum papel de pão manuscrito, nenhum documento do
Sindicato, nenhuma entrevista nos jornais, nenhuma frase solta e memorizada
pela multidão que instintivamente seguia os passos daquele homem de uma coragem
evidente.
Foi pelas vozes alheias que começamos a conhecer a
história do Wilson. Sobram relatos do dia 21 de julho de 1980, quando três
balas desferidas pelas costas puseram fim a sua vida. O primeiro dos líderes da
floresta a morrer sem razão, por uma causa. Mas não o ultimo a pagar com sua
vida para que outros pudessem continuar vivendo de acordo com suas tradições
ancestrais. Foram esses relatos da morte, da comoção popular, do enterro, da
indignação, da dor e das juras de vingança, publicadas nos jornais acreanos e
repetidas nas entrevistas feitas com as pessoas que participaram dessa
história, que nos fizeram começar a ouvir o som da voz daquele homem calado.
Não pudemos evitar um calafrio na espinha ao
conhecer a história do homem enterrado de bruços pela multidão, com uma moeda
na boca para evitar a fuga de seus assassinos. Os signos populares são
poderosos. A sina de um homem pode ser sintetizada em um único gesto.
Não pudemos, tão pouco, evitar um enjôo desagradável
ao ler matérias do jornal oficial que diziam que a culpa da malfadada “Tensão social” vivida pela população
acreana naqueles anos terríveis era dos agitadores, dos subversivos, dos
comunistas que só queriam conflagrar a multidão para destruir a ordem vigente.
Se bem entendemos essa história, era o povo que
estava tentando manter a ordem das coisas de um Acre invadido por pessoas
inescrupulosas, que pouco sabiam da gente que vivia do que a floresta tinha pra
oferecer, que só se interessavam por tirar o máximo possível no menor tempo
possivel. Quem subvertera a ordem natural das coisas havia sido o então chamado
“Capitalismo Selvagem”, o Governo Militar, o Governo Biônico Estadual; para os
quais só contavam índices econômicos favoráveis e um povo manso que obedecesse
prontamente o que lhe era determinado. Era preciso progredir, alcançar e
desenvolver as fronteiras de um país subdesenvolvido (outra palavra da moda
na época). Afinal de contas “Esse é um
país que vai pra frente”. “Brasil, o país do futuro”. E o que é o progresso ? Estradas
asfaltadas, bois no pasto, horizontes sem homens monotonamente preenchidos por
soja para exportação. Não importa o preço a ser pago. No máximo, uma ou duas
gerações de brasileiros cerceados, sem liberdade de ir e vir, falar, pensar, plantar,
sonhar, buscar a felicidade, enfim. Milhões de brasileiros entre 30 e 40, anos que
sabem bem o preço que foi pago por tamanha estupidez oficial encastelada nas
estruturas de poder desse país.
Naquela época eram eles que falavam, o Wilson
calava, mas agia. Usava sua enorme força vital para conduzir o povo em uma
marcha pacífica pelo “empate” do progresso. Todos sabiam que não se podia
vence-los. Eles possuíam a polícia, as forças armadas, o capital, a justiça,
tudo de seu lado. E o povo o que tinha ? Somente sua determinação e coragem
frente à força bruta. Mas, se não se podia vencer os opressores podia-se pelo
menos “empatar” com eles. E lá iam eles, mulheres e crianças à frente, impedir
mais uma derrubada. Centenas de Wilsons, anônimos, calados, transformando suas
ações em uma voz que gritava.
Da culminância da dor, a vingança. Morte trocada.
Para um Wilson morto, uma outra morte, um Nilão, culpado ou não, um deles. Era
o mínimo que podiam fazer se quisessem sobreviver. Aceitar de braços cruzados a
morte de Wilson significaria a derrota e a condenação à morte de muitos outros homens
de um povo submetido ao terror instituído. Existe razão possível na guerra ?
As versões estão lá, para todos verem. Quem perder
algum tempo lendo as matérias publicadas no “Varadouro”, no “Nós Irmãos”, na
“Gazeta do Acre”, no “O Rio Branco” e no “O Jornal” vão poder constatar
pessoalmente a mobilização popular que se espalhava por todos os vales do Acre
- de Boca do Acre até Brasiléia, de Sena Madureira até Cruzeiro - contra a
invasão predatória e ofensiva dos “paulistas”. Quem se detiver em ler as
páginas que apenas começam a amarelar daqueles jornais ficará sabendo do
descaso oficial com a captura dos assassinos de Wilson e depois a fúria com que
os assassinos de Nilão foram perseguidos, presos e torturados. “Operação Pega
Fazendeiro”, “Balas de Aço”, “Os sete dias de Brasiléia”. Uma sequencia de
manchetes que nunca precisariam ter sido publicadas, se nossos governantes
fossem homens sensatos e esse um país justo.
Anos se passaram desde então. A luta continuou e as
manchetes dos jornais seguiram estampando notícias de crimes de encomenda, de
conflitos eminentes, de empates vitoriosos e de ações públicas insuficientes.
Outros homens tombaram antes que a floresta acreana e o modo de se viver com ela
pudessem ser salvos. Poucos culpados foram presos por seus crimes. Mas o povo
venceu. No que era possível, mas venceu. Reservas extrativistas foram
demarcadas, o povo da floresta fez uma aliança que mostrou a todos a existência
de um povo que só queria tranquilidade e justiça pra tocar sua vida. A voz de
Wilson e de seu povo foi forte o suficiente para se fazer ouvir.
O Acre nunca mais seria o mesmo então. Os
governantes até continuariam os mesmos, nas mesmas famílias que à décadas. Mas
havia algo novo na paz que aos poucos voltava às cidades acreanas. O povo das
cidades também havia assistido à chegada de milhares de famílias expulsas de
suas casas, presenciado a miséria que explodia em suas invasões periféricas e
ouvido as vozes que se levantaram de dentro da floresta. Os educados filhos da
cidade, viram que tudo o que acontecera em Xapuri, Brasiléia, Boca do Acre,
Quinari, Tarauacá, era questão de resistência de um povo. Era preciso
reconhecer que nada daquilo havia sido coisa de comunista, de subversivo, de
políticos cassados, de ambientalistas pós-modernos, de ativistas burgueses, de
intelectuais urbanos.
Mais uma vez a voz que vinha do interior foi
expressa por veículos estranhos ao povo que falava. Foi a vez das monografias
acadêmicas, das dissertações de mestrado, das teses de doutorado. O que era
coragem e sabedoria popular foi logo promovido à ciência, multiplicando os
títulos, as abordagens, os recortes epistemológicos, as linhas
teórico-metodológicas de pesquisa, economia, história, sociologia,
antropologia, expressões e palavras estranhas ao povo que de sujeito se tornou
objeto (de pesquisa).
Diferente daquelas manchetes de jornais que não
deveriam ter sido escritas, alguns dos novos títulos revelaram o aprendizado de
uma sociedade civilizada com o que havia de mais antigo e inovador em sí mesma,
a voz do povo. “Ocupação recente das terras do Acre (Transferencia de capitais
e disputa pela terra)” (1982); O sertanejo, o Brabo e o Posseiro (Os cem anos
de andanças da população acreana)” (1985); “Conflitos pela terra no Acre”
(1987); “Os ‘Imperadores do Acre’ – uma análise da recente expansão capitalista
na Amazônia” (1988); “Modernização da agricultura – pecuarização e mudanças – o
caso do Alto Purus” (1991); “Seringueiros e Sindicato: Um povo da floresta em
busca de liberdade” (1991); “Capital e trabalho na Amazônia Ocidental” (1992);
entre tantos outros publicados nos corredores das UNBs, UFACs, UFMGs, PUCs.
Isso sem falar nas prateleiras das livrarias dos
shopping-centers repletos de livros sobre a devastação da Amazônia, sobre a
vida e a morte de Chico Mendes, sobre ecologia, etc. Será possível que essa
sociedade de consumo rápido e desenfreado tenha realmente ouvido aquela voz que
silenciou na boca de um Wilson Pioneiro ? Talvez nunca saibamos ao certo.
O que parece certo é que o Acre continua no seu
caminho, Tentando construir um destino próprio. Não importa se diferente das
receitas caseiras ou internacionais. Aqui existe uma voz que nunca foi escrita,
da qual não se registrou o timbre, da qual não restou nenhuma frase, mas que
não deixa de ser repetida e ouvida por seringais e cidades dessa Amazônia
Ocidental. Uma certa voz, de um certo homem alto e determinado, de fala mansa e
rara, dono de um olhar e um silêncio poderosos.
Um comentário:
Acadêmicos e não acadêmicos
As regras para um texto acadêmico na área de humanas não devem ser as mesmas aplicadas para as áreas de tecnológicas ou biológicas. Os textos de Platão, subscrevendo Sócrates, são repletos de paixões e são mais acadêmicos do que muitos dos enfadonhos textos que lemos diariamente repletos de citações retóricas. O que faz um texto acadêmico não as regras das ABNT´s reducionistas, mas a sua veracidade; a sua constatação pelos meios científicos; e, mas, sobretudo, a sua capacidade de produzir reflexão. As paixões em textos acadêmicos não podem produzir convencimento do contexto, mas não existe pesquisa na área de humanas despidas de corações.
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