domingo, 22 de maio de 2016

O passado acriano e a esquizofrenia coletiva. CONCLUSÃO do livro "O Discurso fundador do Acre(ano)"


CONCLUSÃO

“O que nos importa é observar esse movimento entre o real da descoberta (sem-sentido), a fantasia (imaginação), e a ideologia (imaginário), produzindo a realidade dessa história que se está fazendo. E que produz o efeito de que a ideologia sempre está fora da história (oficial). Por seu lado, essa história aproveita, do discurso fundador, o fato de que nele há ainda uma indistinção entre imaginação, imaginário e realidade”.
 (ORLANDI, 1993, p. 18, grifo nosso).

O Acre é, acima de tudo, a consagração do homem branco de nacionalidade brasileira em uma região milenarmente marcada pela presença indígena. No entanto, o apoderamento físico desse território foi precedido pelo assenhoreamento simbólico dele, uma vez que, antes mesmo da colonização, os migrantes já imaginavam aquele “fim do mundo” (JACKSON, 2011), como uma “terra de ninguém”, uma espécie de “deserto ocidental” (COSTA, 2005).
A nosogenia acriana foi inaugurada pelo apelo econômico do capital internacional em favor da produção da borracha e pela violência imagética da negação da humanidade indígena. O sangrento genocídio, o dramático culturicídio e tantas outras patologias sociais protagonizados pelos “heróis patriotas” (Cf. CARNEIRO, 2015a), base da árvore genealógica do povo acriano, foram invisibilizados pela historiografia oficial. Infelizmente o excesso de “acrEanismo” provocado por políticas simbólicas de governos com tendência ao autoritarismo populista tem afetado a sanidade mental coletiva local. Até hoje parte dos acrianos sofrem com surtos de megalomania e com delírios de grandeza, pois insistem em viver sob a égide de um passado fantasiosamente glorioso.  
Eu tive que aproximar as minhas reflexões da linguística e utilizar o conceito de discurso fundador para entender como um período tão violento e tão corrupto conseguiu transmutar-se em uma espécie de Idade de Ouro da acrianidade. Por conta disso, esse livro se preocupou mais em historicizar a emergência da verossimilhança do que em descrever os fatos propriamente ditos. A verossimilhança é a imagem através da qual as “vozes constituintes do discurso fundador” pintaram a cena inaugural do Acre(ano). É a representação ideal dos acontecimentos, de como deveriam ser imortalizados no imaginário social para posterior recordação.
Em resumo podemos dizer que o discurso fundador do Acre tem as seguintes características: a) estabelece um marco inaugural glorioso para o Acre(ano) – a “Revolução Acriana”; b) sugere o culto ao passado por meio do eterno retorno às origens; c) instaura o idealismo patriótico como motivação constituinte da “Revolução Acriana”;         d) consagra qualidades heroicas para a primeira geração de acrianos;      e) inventa uma comunhão em torno da “Revolução”.
Até hoje o período relativo à formação histórica do Acre(ano) é tratado como uma espécie de Idade de Ouro, em que os paradigmas e os arquétipos da identidade acriana se encontram em seu estado puro. É como se a ideia triunfalista da origem fosse fiadora do otimismo presente e futuro. Esse atavismo acriano precisa ser desintoxicado, pois a ideia de gênese defendida está “envenenada” com “acrEanocentrismo”. No decorrer dessas linhas mostramos que a apoteose da genealogia Acre(ana) foi o resultado de um processo de significação, qual seja, o do “embelezamento” dos fatos. A nossa missão foi justamente denunciar o caráter artificial desses sentidos enobrecedores, revelando o jogo de interesse que estava por trás deles.
O fato de o caráter “glorioso” da origem ser retratado nos documentos e textos jornalísticos da época, não garante o caráter célebre da genealogia do Acre(ano). Isso porque o discurso enobrecedor é explicado pelas condições históricas e linguísticas que permitiram a emergência dele. Consequentemente, a representação beatificada do Acre(ano) tem uma história e está eivada de “violência simbólica” e de relações de poder. A manutenção dela é puramente convencional. O gentílico “acrEano”, por exemplo, foi inventado com o propósito de causar certa união entre os “brasileiros do Acre” em torno da causa latifundiária dos seringalistas e da demanda fiscal do governo do Amazonas.
Essa disposição à heroificação do passado demonstra o conservadorismo das elites acrianas, afinal, a evocação ao heroísmo se torna uma necessidade social quando se trata de uma sociedade constituída de covardes (Cf. MICELI, 1994), e “quanto mais fracos os homens numa sociedade, tanto mais eles precisam de super-heróis. E tanto mais super-heróis eles recebem para se manterem fracos” (KOTHE, 1985, p. 72). E tudo isso não deve servir de espanto, pois a retórica da identidade é sempre mais proferida naqueles povos em que a união é mais frágil.
O debate sobre o discurso fundador do Acre(ano) está apenas começando. Há um longo caminho a ser percorrido para que essa categoria de análise seja consolidada nos estudos historiográfico e linguístico regionais. Toda a pesquisa que resultou nesse livro visou encontrar, nas “origens” do Acre(ano) fincadas pela historiografia oficial, a formação do acriano enquanto subjetividade, e a do Acre enquanto território brasileiro. No entanto, tais origens não foram encontradas, no lugar delas o que se achou foi uma rede interminável de discursos.

O passado inaugural glorioso, a identidade bem-aventurada e a anexação territorial epopeica, tudo, não passam de discursos. E se esses discursos circulam até hoje com o status de verdade, é porque existe uma política institucional para preservá-los como tal. Por isso, a história do Acre, da forma como vem sendo escrita e ensinada, mais deseduca do que educa. Ela não tem compromisso com o desenvolvimento do juízo crítico do cidadão acriano, pelo contrário, a missão dela é produzir ufanismo, alienação e pacificação social. Toda a glória desse passado imemorial pode ser resumida nisto: discursos, uma rede interminável de discursos.

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