Melo, Senildo. Embiricica: ... by Prof. Dr. Eduardo Carneiro
Livro O Estado Do Amazonas ... by Prof. Dr. Eduardo Carneiro
INTRODUÇÃO
O Estado do
Amazonas foi determinante para incorporação do Acre ao Brasil. Em meu livro Não
foi acreana nem revolução (2021), eu mostro isso com farta
documentação. Foram os
governos amazonenses quem dirigiram as migrações nordestinas para as terras
banhadas pelo rio Acre (fase invasiva), quem arquitetaram e financiaram as
revoltas armadas (fase militar) e quem popularizaram a reinterpretação do Tratado
de Ayacucho de 1867, de modo a por dúvidas sobre o direito boliviano ao Acre
Setentrional (fase diplomática)[3].
O Estado
do Amazonas estendeu a sua jurisdição para a região e a administrava, garantindo
a ordem e coleta de impostos sobre a
comercialização da borracha[4]. A
bacia hidrográfica do rio Acre fazia parte do sistema hídrico do município
amazonense de Floriano Peixoto. A parte do Brasil que mais sofreria com a
bolivianização do Acre era a do Amazonas, pois era ali que acontecia a tributação
de toda a operação mercantil ligada a economia da borracha.
Quando o
governo brasileiro autorizou a instalação da aduana boliviana na região do Acre
em 1898 e a mesma se efetiva no início de 1899, foi o Estado do Amazonas quem
confabulou a resistência. A “Revolução” — de Jose de Carvalho (1899) a Plácido
de Castro (1902) — foi pensada em Manaus.
Os
“cabeças” da Junta Revolucionária eram representantes do Estado Amazonense. De
Manaus vieram boa parte do financiamento (dinheiro, armas, viveres, etc.) e dos
mercenários (pessoas contratadas para lutarem em favor da causa). Assim, o
“Acre” — terras banhadas pelo rio Acre — foi defendido como território
amazonense. O que chamamos de “Revolução Acreana” nada mais foi do que uma
“revolta amazonense” contra a soberania boliviana na região do rio Acre.
Pensem
comigo: desde a proclamação da República, todo o território nacional foi
dividido em unidades federativas. Sendo assim, era impossível pensar o “Acre”
como nacional, sem que estivesse inserido em um dos Estados. Aquele que fazia
fronteira com a Bolívia e com o Peru era o Amazonas.
A
brasilidade daquele território estava condicionada a amazonensidade dele. Afinal,
ninguém se dirigia às terras banhadas pelo rio Acre em viagem internacional,
pelo contrário, saiam de Manaus cônscios de que se deslocavam para o interior
do Estado, em uma viagem intermunicipal. Por isso, o solo pátrio que a
“Revolução Acreana” defendeu era, indiscutivelmente, o amazonense.
O uti
possidetis alegado pela diplomacia do Brasil nas negociações que
antecederam a assinatura do Tratado de Petrópolis, era garantido pelo Estado do
Amazonas. Ele quem, de fato, exercia a soberania brasileira naquela região. Por
tudo isso, era de se esperar que a jurisdição amazonense no território do
“Acre” fosse reconhecida tão logo ele fosse legalizado como brasileiro.
Contudo, não foi isso que aconteceu, como já foi dito, o Governo Federal
preferiu agir à margem da Constituição Federal e criou o ente Território do
Acre.
A decisão repercutiu
muito negativamente em Manaus, de modo que em fins de 1905, após esgotadas as negociações
políticas, o Estado do Amazonas contrata o eminente advogado Rui Barbosa para
ajuizar uma ação no Supremo Tribunal Federal contra a União. Boa parte da
história que contamos nesse livro gira em torno desse processo — a Ação Pública
Reivindicatória de Território.
Adianto
que o processo nunca foi julgado, pelos motivos que conto no livro. Contudo, o
mesmo recebeu um “veredito” favorável dado politicamente, quando a Constituição
Federal de 1934 garantiu ao Amazonas, o direito de receber uma indenização pela
desanexação do Acre.
A partir
de então, o Amazonas passou a receber inúmeros adiantamentos financeiros do
Governo Federal que ficou computado na rubrica “dívida do Acre”. O interessante
é que, na apuração do valor total “da dívida”, consta a soma dos gastos que o
Estado do Amazonas teve com a “Revolução Acreana”. Tudo mostra que o “Acre”, de
fato e de direito, era amazonense.
Apesar da
inegável participação do Estado do Amazonas na anexação das terras que
atualmente pertencem ao Estado do Acre, o Movimento Autonomista,
irresponsavelmente, expurgou da narrativa histórica a atuação desse Estado, fazendo
crer que a “Revolução” foi um movimento endógeno, atavicamente organizado.
Como o Amazonas disputava o
“Acre” judicialmente, os Autonomistas, ao longo dos anos, mobilizavam a
população local para resistir o que parecia óbvio: a vitória de Rui Barbosa e
do Estado do Amazonas no Supremo Tribunal. Um dos meios de convencimento era através
de uma história manipulada da anexação, que censurava a palavra “Amazonas” da
narrativa.
Até mesmo a Expedição Floriano
Peixoto (1900) foi rebatizada com o famigerado nome de “Expedição
dos Poetas”. Isso para dissimular a verdade de que a mesma defendia o solo
pátrio do município amazonense Floriano Peixoto. Contudo, a verdade ofendia a
causa autonomista, por isso, falsearam a narrativa dizendo se tratar de “intelectuais
boêmios” que “sonhavam” com um Acre brasileiro autônomo[5].
O abuso
da história é produzido toda vez que a mentira é propositalmente inserida na
narrativa com o intuito de provocar o engano. É uma ação consciente, intencional, deliberada e desonesta e
irresponsável praticada para auferir
alguma vantagem simbólica ou político para si ou para outrem.
Negar o
protagonismo do Estado do Amazonas é faltar com a verdade, ou melhor, é fazer
apologia à mentira na escrita da História. Em resumo, manipular, falsificar ou
abusar da história significa produzir, conservar ou fazer circular
representações do passado que não condizem com as evidências documentais e, por
isso, se constituem em um registro infiel dos acontecimentos.
Logo,
essa história acreanocêntrica, “dopada” de acreanismo, que fala de acreanos
lutando por amor à pátria ou de Autonomia como ideal da Revolução Acreana, é
espúria. É produto da falta de ética dos autonomistas, que manipularam a
história em favor da causa que defendiam. Por isso, toda a história da anexação
do “Acre” e da autonomia acreana precisa ser recontada. De antemão, sabemos que
o Estado nunca patrocinará tal revisão da História, pois os governantes
precisam da epopeia para alienar o povo em torno de um passado que nunca
existiu, causando-lhe ufanismo, otimismo e passividade.
Termino a
introdução, informando que a pesquisa que deu origem ao livro, se deu em 2019,
quando fui liberado para realizar o meu estágio pós-doutoral. No período,
visitei arquivos no Rio de Janeiro (RJ), Manaus (AM) e Rio Branco (AC), além de
acessar o acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Priorizei a
análise de fontes primárias, além de documentos oficiais, livros, matérias de
jornais e discursos parlamentares da época. A redação do livro foi iniciada em
2020, porém, só agora deparei-me com o momento oportuno para concluí-la. Espero
que gostem.
Desejo
uma boa leitura a todos.
Eduardo de
Araújo Carneiro
Rio
Branco, novembro de 2024
[1] A disputa pelo território já acontecia
entre Peru e Bolívia, desde a independência dos dois países, contudo, a questão
era designada com outro nome, já que, “Acre” foi a forma como o Brasil significou a questão.
[2] A versão “acreanocêntrica” de louvação
a Plácido de Castro demarca o fim da Questão do Acre, em janeiro de 1903,
quando as maltrapilhas tropas bolivianas, em Puerto Alonso, foram derrotadas. É
dito que o Tratado de Petrópolis só formalizou o que já havia sido definido
pela “Revolução”. Contudo, a derrota dos flagelados, não implicava em uma
vitória final contra o exército boliviano, muito menos resolvia o impasse com o
Bolivian Syndicate. Sem dizer que aconteceram batalhas armadas contra os
peruanos no Juruá, das quais Plácido de Castro se quer tomou conhecimento. A
historiografia “míope” limita a “Revolução” aos embates andinos. Faz isso só
para salvaguardar a imagem de Plácido de Castro como herói, como o “pai do
Acre”. Fato é que ele não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil, muito
menos teve participação nas negociações entre o Brasil e a Bolívia ou entre o
Brasil e o Peru que, de fato, findaram a
“Questão do Acre” em âmbito internacional.
[3] No
meu livro Amazônia, Limites &
Fronteiras (Brasil, Bolívia e Peru): uma história revisada da nacionalização do
Acre (2017), eu divido o
processo de anexação nessas três fases: invasiva (colonização ou invasão);
militar (“Revolução Acreana”); e diplomática (tratados internacionais). No
livro, defendi, com rica documentação, que a fase militar foi a menos decisiva
das três.
[4]
Não entraremos na discussão se assim fazia de forma legal ou ilegal. Fato é que
a jurisdição amazonense, no tentório do atual Acre, é inquestionável.
[5] No Brasil, na época, não existia o
topônimo Acre, muito menos o gentílico “acreano”. Acreano como fenômeno
identitário foi uma invenção póstuma aos eventos. A identidade cultural coletiva
é o resultado de um processo simbólico de longa duração. Não se cria identidade
cultural da noite para o dia. O que foi criado, na verdade, foi uma identidade
de interesses, que agrupou políticos, profissionais liberais, seringalistas e
seringueiros em torno de uma causa que prometia benefícios ou dividendos a
todos os envolvidos.
Por que hoje no estado a comemoração leva em consideração a data em que foi fundado o Seringal da Volta da Empresa, e não o dia em que o Decreto Federal 9.831/1912 foi assinado, ou pelo menos a data em que esse território virou a Vila de Rio Branco?
Considerando que na comemoração do
cinquentenário da cidade consideraram uma data, e no centenário consideraram
outra, quais as implicações simbólicas dessas alternâncias de datas? Que tipos
de interesses podem existir por trás dessas decisões?
Lembra o caso da data de aniversário da Polícia Militar do Estado do Acre? Pois, é! Só porque a data de criação dela foi escolhida para homenagear o início do governo dos militares em 1964, um governador civil “achou melhor mudar a história” e alterar a data de criação dessa instituição para uma data que não existia nem Estado nem governo unificado, ou seja, uma aberração. A “dança das datas” do aniversário da cidade de Rio Branco é só mais um exemplo dessa falta de ética. Se houvesse interesse do Estado em elucidar essa questão, ele já teria acionado historiadores de profissão. Departamento de Patrimônio Histórico da FEM, IPHAM e UFAC.
A mudança das datas estão documentadas. Além dos decretos, temos o
projeto de lei e as discussões parlamentares. Quem indicou a mudança da data? O
parlamentar fazia parte de qual grupo político? Quais ligações o parlamentar
tinha com o prefeito e o governador da época? E quais famílias tradicionais e
quais empresários apoiavam o projeto de lei?
Na hora da votação, quem votou contra? Quem votou a favor? Quais
documentos primários foram apresentados como justificativas para endossar a
mudança da data no Projeto de Lei? Pois é. Faço perguntas só para suscitar o
diálogo com os historiadores que o Estado tem lá na Fundação Elias Mansour. São
eles que devem responder para o Estado e a sociedade tais questões. Por que eu,
mero professor da UFAC com dois doutorados e um pós-doutorado, nunca deram e
nunca dão “ouvidos”, pois as mentiras
continuam a se propagar como história a toda hora, tanto nas escolas, como na
boca dos políticos em cada festa cívica que temos.
As
instituições de poder são conservadoras por natureza. Amam as tradições e
desprezam as “inovações”. E se eu provasse com documentos da época que o evento
que chamam de Revolução Acreana não foi uma “revolução” e nem foi “acreana”? E
se eu provasse que o 6 de agosto não foi o início do Acre e que Plácido de
Castro não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil? E se eu provasse que os
soldados da borracha foram insignificantes para a vitória dos aliados na
segunda guerra mundial? E se eu provasse que o tal “movimento autonomista”
nunca foi porta voz da vontade do povo acreano? E se eu mostrasse que Guiomard
Santos fez parte do movimento integralista que defendia o fascismo no Brasil e
que ele foi um ferrenho defensor da Ditadura? Que Chico Mendes não foi esse
ecologista nato que dizem e que o Acre contemporâneo continua uma terra de
latifúndios, do clientelismo político e de miséria... mudaria alguma coisa?
Certamente que não, o Estado e o Município continuariam ensinando essa ESTORIA
linda de um povo heroico para os nossos filhos nas escolas, mesmo que todos nós
da academia saibamos que toda essa narrativa não passa de estórias ... risos.
Eduardo de
Araújo Carneiro – É professor Associado da Universidade Federal do Acre. É
licenciado em História (UFAC), é bacharel em Economia (UFAC), é mestre em
Letras (UFAC), é Doutor em História Social (USP), é Doutor em Estudos
Linguísticos (UNESP), é pós-doutor em História (UFAM). É escritor membro da
Academia Acreana de Letras.
O
que pensa a respeito do aniversário do estado do Acre?
Todo aniversário
constitui-se em uma data festiva, momento de homenagens e felicitações.
Comemorar é lembrar-se do passado com alegria e, em um aniversário, a data de
referência é a do nascimento. Então, a ideia que se tem é que o Estado do Acre
está de parabéns e que o povo acreano deva render-lhe honras e congratulações.
Entretanto, o povo é um sujeito anônimo (ausente?!) no Estado do Acre, desde a
elaboração do Projeto de Lei da dita Autonomia, que não foi de iniciativa
popular, até os dias atuais, em que “a máquina pública” não é usada para fins
coletivos, como deveria. O povo não tem o que comemorar. A autonomia não tirou
o Acre da menoridade, ele continua na condição periférica, dependente, primário-exportadora
e latifundiária, com alta desigualdade social, como no período do Territorial.
A prosperidade prometida não veio, muito menos o desenvolvimento. Os índices
econômicos e bem-estar social no Acre são de lamentar. Quase 40% das famílias
dependem de ajuda governamental e o próprio Estado, em pleno século XXI, ainda
é carece de autonomia econômica. A participação da economia acreana no PIB
nacional continua tão “nula” quanto na época territorial. Basta olharmos os
dados sobre o alcance dos serviços de luz elétrica, saneamento básico, coleta
de lixo, condições dignas de habitação, etc., para termos uma noção da condição
quase miserável de parte da população. Vamos tirar a prova? Basta irmos lá no
Jordão ou Santa Rosa do Purus (risos), mas tem “bolsões de miséria” até mesmo
em Rio Branco. Infelizmente, desde que foi criado, o Estado só tem servido para
o bem dos grupos de interesse que se revezam no poder através de seus políticos
profissionais. Quando eleitos, a história sempre é a mesma, o Estado vira um
“cabide de emprego” e os “pelegos” prosperam, quer sejam empresários ou
“indicados”. Sem dizer que a corrupção é parte quase integrante da história
desse Estado, a impunidade também, as aposentadorias para ex-governadores
também e o endividamento público com empréstimos que ninguém sabe para onde foi
também. O povo fica à margem, até que venha o próximo espetáculo eleitoral. O
Estado do Acre que deveria ser um instrumento de promoção do bem-estar
coletivo, serve a interesses particulares. Por isso, o povo se cala, em cada 15
de junho que passa, pois ele é um sujeito anônimo e ausente que aparece apenas
nos discursos de quem está no poder. O governo convida para o aniversário,
porém, quem acende e apaga as velas do aniversariante são os mandatários e “pelegos”
da vez. É duro dizer, mas o povo não se reconhece no Estado do Acre.
Você afirma que o povo foi um sujeito ausente no Estado do
Acre desde a origem do movimento autonomista até à elaboração do Projeto de Lei
de apresentado por Guiomard Santos, em 1957, que visava a criação do Estado do
Acre. Explique melhor.
A proposta de
autonomia sempre esteve ligada a uma elite urbana, machista e letrada, quase
sempre maçônica, em um Acre hegemonicamente rural, patriarcal, iletrado e
oligárquico. Portanto, o projeto sempre careceu de participação popular. As
discussões da cidade não tinham “eco” nas comunidades, que se mantinham
indiferentes aos acontecimentos políticos, até porque pobre (analfabeto) não
podia votar no Brasil e a comunicação no interior do Acre era péssima. Então, a
defesa da autonomia estava ligada a pequenos grupos que, por sinal, nunca entraram
em consenso, fazendo da autonomia acreana um projeto “esquartejado” por
interesses políticos, econômicos e regionais. No início do século XX, os
autonomistas do Juruá não apoiavam os autonomistas do Purus e vice-versa. Os
autonomistas dos anos 1950 prometiam tudo a todos, mesmo assim, eram
rejeitados. Os principais políticos e empresários do Juruá foram contra o Projeto
de Lei proposto ao Congresso pelo Deputado Federal Guiomard Santos, em 1957.
Eles temiam, como de fato aconteceu, que o Purus continuasse monopolizando
regionalmente o orçamento público. Os seringalistas que, até então, gozavam de
isenção tributária, temiam ter que pagar impostos ao futuro Estado. Os
comerciantes temiam a elevação dos impostos. Os funcionários públicos federais
temiam ser remanejados e serem rebaixados ao status de servidores estaduais.
Além disso, um dos maiores caciques políticos da época, Oscar Passos (PTB), com
os seus apoiadores, criticava o projeto. Dizia que a autonomia seria apenas política
e não ocasionaria benefício algum na vida das pessoas comuns. Portanto, “o
povo” é um sujeito ausente no processo de criação do Estado do Acre. A
participação da mulher no movimento só aconteceu nos anos 1950 e de forma
tímida e consentida, porque os autonomistas careciam de legitimação e apoio.
Tentaram obter o apoio dos estudantes, prometendo-lhes ensino superior, porém,
os estudantes foram às ruas em defesa da criação da universidade e não
propriamente da Autonomia. Em síntese: na primeira eleição do Estado do Acre,
Guiomard Santos perdeu a eleição de governador para um candidato desconhecido
do Juruá. O PTB, partido que fazia oposição ao projeto de autonomia, ganhou
todas as prefeituras. O resultado das urnas diz tudo, só não vê quem não quer.
Sobre
o Movimento Autonomista, o que tem a dizer?
Não
foi a continuação da dita Revolução Acreana, como dizem muitos, mas um
movimento que teve origem na iniciativa do Estado do Amazonas em incorporar o
território nacionalizado pelo Tratado de Petrópolis. Até a publicação do Decreto
Presidencial Nº 1.181, de 25 de fevereiro de 1904, a única opção constitucional
que se tinha era a incorporação daquelas terras ao Estado do Amazonas, pois esse
Estado já administrava a região e era quem fazia fronteira com a Bolívia. Não
havia a opção autonomista, pois a Constituição Federal de 1891 impunha diversas
condições para a criação de um Estado, dos quais, nem o Purus e nem o Juruá se
enquadravam, como ter mais de 300 mil habitantes, condições sanitárias básicas,
urbanidade, etc., (não existia o argumento de que o Acre já fora um país e que
podia ser um Estado. Todos sabiam que, de fato, o país Acre nunca havia existido,
a não ser na cabeça de Galvez e de seus apoiadores. Afinal, declarar a região
um país, não faz dela um país. É preciso o reconhecimento internacional, coisa
que não houve). Surpreendendo a todos, o Governo Federal cria um “elefante
branco” chamado Acre Território, algo inconstitucional para a época, mas que
possibilitou pensar a região como algo diferente do Amazonas. Em 7
de abril de 1904, pelo Decreto
Presidencial Nº 5.188/04, o território nacional banhado pelos afluentes do rio
Purus e Juruá é, pela primeira vez, chamado de Acre. Imediatamente o Estado do
Amazonas emite nota de repúdio e contrata Rui Barbosa para processar a União,
no Supremo Tribunal Federal. A ação de “Petição reivindicatória de território”
foi protocolada em 4 de dezembro de 1905, mesmo mês em que o senador amazonense
Jônatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei que condenava a
inconstitucionalidade do Território do Acre e solicitava a imediata
incorporação das terras ao Estado do Amazonas. Foi nessa conjuntura que o
movimento autonomista surge e ganha força, pois a “Revolução” defendia a
brasilidade das terras do Purus (o Juruá é excluído) e não autonomia do Acre
(Purus e Juruá), que nem existia na época como topônimo brasileiro. Não precisa
ser um cientista político para identificar as reais intenções dos autonomistas.
Eles queriam fazer no Acre o que todas as oligarquias regionais brasileiras
faziam em seus respectivos Estados: se “apoderarem” da máquina pública, dos
cargos, do orçamento, dos mandatos de governado, de deputados, de senadores, etc.
Na “Velha República”, esse era o tradicional “caminho curto” para quem desejava
obter poder, prestígio social e riqueza fácil. O que aconteceu quando o Acre se
tornou Estado? Eu desconheço um único autonomista que tenha morrido pobre ou
que tenha vivido sem se “lambuzar” em cargos políticos e mandatos. Guiomard
Santos é o maior exemplo disso.
...
E sobre a figura de Guiomard Santos? Qual a sua opinião?
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do “pra quê” o Estado do Acre serviu: fomentar o caciquismo político regional e
o “parasitismo estatal”. Façamos um desafio: vamos contabilizar todos os gastos
públicos que tivemos em mantê-lo como senador pelo Acre por 20 anos
(1963-1983), ele e toda sua equipe de assessores. Depois, vamos contabilizar,
os benefícios que a população acreana teve com essa sequência de mandatos. O
saldo será positivo para o povo acreano ou para o “pai do Estado do Acre”? Falo
“pai do Estado do Acre”, como ironia, pois essa consagração é típica de uma
sociedade oligárquica que despreza o processo histórico e inventa “heróis”.
Basta dizer que ele foi tão somente o autor do projeto e não o responsável pela
aprovação dele no Congresso. No Congresso, a dinâmica é outra, não há espaço
para o personalismo ou pelo suposto prestígio e persuasão de quem apresenta um
projeto. Não se aprova Projeto de Lei gratuitamente sem o “toma lá, dá cá”. O
partido de Guiomard Santos era maioria no Congresso e fazia oposição ao
Presidente, mas essa discussão pouco importa para os inventores de heróis. Eu julgo
que o povo não merece ter “cacique político” como herói. Não esqueçamos que
Guiomard Santos era um conservador, apoiador da ditadura militar e faleceu como
“senador biônico”. Não esqueçamos que ele foi um “camisa-verde”, como era
conhecido os integrantes do movimento integralista que defendiam o fascismo no
Brasil. Sem dizer que ele foi um legítimo representante da elite urbana. Ele
não é heróis do povo, ele é herói do Estado e, o Estado do Acre, nesses 60
anos, tem se caracterizado como o espaço onde as nossas oligarquias políticas
administram os seus interesses. Está na hora de nossos políticos pensarem mais
no povo do que nas suas reeleições.
Tem
algum ponto importante que queria evidenciar nessa data (emancipação)?
O Acre precisa sair
desse estado de colonialidade, que lhe é centenário. O Estado, nesses últimos
60 anos, só perpetuou essa condição. O aniversariante não tem servido como
instrumento de prosperidade regional. Basta que o tráfego de veículos seja
suspenso na BR 364, no trecho que liga Rio Branco a Porto Velho, como em 2014,
para que em menos de 10 dias falte “tudo” no Acre. O grau de dependência
econômica é alarmante. Não produzimos “quase nada” do que consumimos e o pouco
que produzimos é exportado, pois não visa o abastecimento do mercado local,
como no caso da carne, castanha, madeira e açaí (por isso, são caros). Se
pegarmos o gráfico da participação da produção acreana no PIB do Brasil nos
últimos 60 anos, veremos que sofreu variação mínima e se manteve na casa dos 0,2%. O Estado
não garantiu ao povo acreano a autonomia econômica, nem autonomia em energia elétrica
e nem autonomia na comunicação rodoviária entre os municípios, nem saúde
pública de qualidade, etc. Como não cumpriu o seu papel de agente do
desenvolvimento regional, recebeu a punição de viver “com pires na mão”,
mendigando verbas federais que, nada mais são do que a transferência, para o
Acre, de riquezas produzidas em outros Estados do país. Está na hora de revitalizar
o Estado do Acre, pois ele é um ente burocratizado e ineficiente, propício ao
“parasitismo” e à corrupção. O estado tem endividado o povo acreano com
empréstimos “de faz de conta”, a dívida é coletivizada e o dinheiro
privatizado. Cadê a CPI da estrada que liga Rio Branco à Cruzeiro do Sul? Cadê
o dinheiro da merenda escolar? Cadê os responsáveis pela falência do Banacre? E
as viagens internacionais feitas com dinheiro público? Cadê o resultado
coletivo delas? O Estado tem se tornado em um fardo pesado demais para a
sociedade civil carregar. Será que esses políticos profissionais (os que vivem
de fazer política) não percebem que o povo acreano não aguenta mais essa lógica
eleitoreira que domina o gerenciamento do Estado? Nesses 60 anos de Estado do
Acre, não temos o que comemorar, pelo contrário, temos muito a lamentar.
Qual a sua visão sobre a revolução acreana, que dá início ao
Acre como território, antes da emancipação?
A “Revolução” não deu
início ao Acre como território. O Acre Território foi uma decisão governamental
baseada nas obrigações que o Brasil teve que assumir com o Tratado de
Petrópolis. A dita “Revolução” não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil,
ela não foi a responsável pela nacionalização das terras do Juruá e Purus. O
máximo que ela conseguiu fazer foi declarar independente algumas das regiões
banhadas pelos afluentes do rio Purus. Portanto, o resultado prático dela foi o
separatismo (ponto de vista boliviano) e a independência (ponto de vista
brasileiro). A Questão do Acre era muito mais ampla do que a dita Revolução,
esta terminou em 1903, enquanto aquela em 1909, com a assinatura do Tratado
Brasil-Peru. Com a Bolívia, a questão se resolveu nos EUA e não às margens do
rio Acre, pela via armada. Naquela
conjuntura, o Acre seria de quem os EUA quisessem. A
Questão do Acre não era uma simples disputa territorial entre dois países
sul-americanos e sim um palco de disputa imperialista entre EUA e Inglaterra. Os
EUA eram os maiores importadores de borracha do mundo, em contrapartida, a
Inglaterra era a maior fornecedora de borracha do mundo. A Inglaterra sabia que,
desde 1823, os EUA praticavam a Doutrina Monroe: “América para os americanos”.
Por isso, tratou logo de biopiratear as sementes de seringueiras amazônicas para
a Malásia, garantindo, com isso, sua autossuficiência gomífera.
Acontece que o Brasil era o único país da América Latina que ainda mantinha a
Inglaterra como a maior parceira comercial, inclusive, vendendo-lhe, a título
de monopólio, toda produção de borracha. Isso ofendia por demais os interesses
norte-americanos, por isso, que eles resolveram mexer “nas pedras do
tabuleiro”, ajudando a fomentar o “Bolívian Syndicate”, com diversos acionistas
ianques, inclusive, o próprio irmão do presidente. Os
EUA já haviam anexado a metade do México, incluindo o Texas em 1845 e a
Califórnia em 1846. Em 1855, invadiu a Nicarágua, Cuba em 1891 e Caribe e Havaí
em 1898. O Panamá, por influência ianque, estava prestes a proclamar a
independência. O “destino manifesto” já era praticado nas Américas,
subordinando as soberanias nacionais latino-americanas aos interesses ianques. Para
os EUA, pouco importava com qual país latino-americano ficaria as terras do rio
Acre, contanto que a Doutrina Monroe prevalecesse naquela região. Quem seria
Plácido de Castro e seus exércitos de seringueiro diante dos EUA? O Barão do
Rio Branco entendeu a situação e enviou aos EUA o diplomata Assis Brasil que
confirmou o alinhamento do Brasil à Doutrina Monroe, caso esse país se
mantivesse neutro, sem apoiar a Bolívia. Por isso que o Brasil teve que
indenizar (subornar?) o Bolivian Syndicate, assumindo um papel que deveria ser
da Bolívia. Mas foi uma decisão imposta pelos EUA, que não aceitaria seus
acionistas no prejuízo. Foi somente após a solução da Questão do Acre com os
EUA e com o Bolivian Syndicate, que a diplomacia brasileira se impôs contra a
Bolívia. Plácido de Castro não exerceu
influência alguma nas negociações com a Bolívia, afinal, ele nunca foi o mentor
intelectual da dita “Revolução”. A Junta Revolucionária, que era gerenciada de
Manaus, incluiu Plácido de Castro no projeto para assumir uma missão
estritamente militar. Portanto, embora o
resultado da “Revolução” tenha sido a proclamação da independência do Purus, o
objetivo dela era garantir a validação dos títulos fundiários emitidos em
Manaus e a permanência da coleta dos impostos sobre a comercialização da
borracha pelo Estado do Amazonas. A “revolução” não foi responsável pela
nacionalização das terras que formariam o Território do Acre, a Questão do Acre
foi resolvida pelo Itamarati, mas a luta armada serviu para dar visibilidade
nacional à causa amazonense.
Como assim “causa amazonense”? O senhor acredita numa participação
amazonense na história de anexação do Acre ao Brasil?
Primeiramente, as
terras incorporadas ao Brasil pelo Tratado de Petrópolis não se chamavam
“Acre”. Quando o texto do referido Tratado menciona a palavra Acre é para se
referir a um rio, que, por sinal, fazia parte da bacia hidrográfica do
município amazonense chamado de Floriano Peixoto. Portanto, as terras banhadas
pelo rio Acre eram conhecidas pelo referido topônimo municipal, vários
documentos provam isso. Mas, basta dizer que o nome original da Expedição dos
Poetas, na verdade, era Expedição Floriano Peixoto (1900), pois tinha como
missão a libertação do território municipal amazonense Floriano Peixoto. Porém,
a historiografia acreanocêntrica “apagou” o nome original e inventou o nome “expedição
dos poetas”. Foi o governo do Amazonas que nomeou diretores de índios para o
reconhecimento dos afluentes do rio Purus e Juruá, por isso contratou João
Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da Encarnação, só para
citar alguns dos que aparecem na historiografia acreana como desbravadores, porém, só não é dito que
estavam à serviço do Amazonas, que também foi quem viabilizou o serviço de transporte para a região do atual Acre. Conforme
a migração acontecia, o Amazonas ia estendendo sua jurisdição, já que era a
parte do Brasil que fazia fronteira com a Bolívia. Em fins do século XIX,
ninguém migrava para as terras do rio Acre acreditando que se tratava de uma
viagem internacional, pelo contrário, considerava-se uma viagem intermunicipal amazonense
– de Manaus para Floriano Peixoto. Todo o território nacional da República
estava dividido entre os Estados, de modo que, se lutaram para ser brasileiros,
a brasilidade daquelas terras estava condicionada a amazonensidade delas. A
“núcleo duro” da Junta Revolucionária era composta por funcionários públicos do
Amazonas e o restante eram seringalistas que haviam adquirido títulos
fundiários em Manaus, portanto, as terras do rio Acre eram cadastradas como
amazonenses. Não existia um topônimo Acre, dando nome a um território
brasileiro. Na época, Acre era um hidrônimo. A expressão “Revolução Acreana”
queria dizer “revolução às margens do rio Acre”, ou seja, nada a ver com o
gentílico “acreano” atual. Em meus livros, eu mostro diversos documentos comprovando
que a “Revolução” se constituiu em movimentos armados financiados pelo Estado
do Amazonas. Portanto, a historiografia intoxicada de acreanismo foi quem
inventou a Revolução como um mito fundador da acreanidade. Revolução que, por
sinal, não teve nada de revolucionária, pelo contrário, teve objetivos
conservadores de manutenção da ordem. É preciso desacreanizar a história do
Acre, pois ela é muito etnocêntrica, e isso transforma a narrativa do passado
em uma epopeia de heróis, muito mais próxima da literatura do que da história.
O Acre, enquanto topônimo que faz referência a um lugar em território brasileiro,
só passou a existir em abril de 1904. Pensar a região banhada pelos rios Purus
e Juruá com o nome Acre, anterior a essa data, é um erro de anacronismo. Lembra
quando eu disse que Rui Barbosa ingressou com uma ação pública contra a União
em nome do Estado do Amazonas? Pois é, a Constituição Federal de 1934, no seu Art. 5º, Disposições
Transitórias, diz: “A União indenizará os Estados do Amazonas dos prejuízos que
lhes teriam advindo da incorporação do Acre ao território nacional”. O Brasil
teve que indenizar o Amazonas pela perda do Acre, ou seja, as terras do Acre
deveriam ser amazonenses, porém, essa parte da história do Acre é censurada há
anos... e quem sou eu para ressuscitá-la (risos).
Eduardo de Araújo Carneiro é Licenciado em História (UFAC) e bacharel em Economia (UFAC). É mestre em
Linguagem e Identidade (UFAC), doutor em História Social (USP), doutor em
Estudos Linguísticos (UNESP) e pós-doutor em História (UFAM). É professor da
UFAC e membro da Academia Acreana de Letras. Autor de diversos livros e editor
de mais de uma centena de obras.
Como surgiu a ideia
do livro?
O livro Não foi Revolução nem Acreana é parte de um projeto que tem como
objetivo propor uma revisão da História do Acre, já que, muito do que sabemos
do passado acreano, está referenciado em livros que não foram escritos por
historiadores de formação, portanto, sem o rigor científico que temos hoje, sem
a crítica às fontes, sem o compromisso com a verdade. A faculdade de história
no Brasil tem início nos anos 1940 e no Acre em 1970. Então, os escritores que
moldaram o nosso imaginário sobre o passado acreano eram militares,
jornalistas, engenheiros e advogados e a maioria assumiu uma visão
“acreanocêntrica” dos fatos e um estilo epopeico da escrita da história. Temos
muitos livros de literatura (romances históricos) que gozam do status de História, porém, trabalham com
a verossimilhança, com a imaginação, com as emoções e o prazer estético, não
citam documentos comprobatórios do que afirmam. Nenhuma faculdade de História
atualmente adota a epopeia como modelo de escrita da história. Entretanto, essa
forma não científica de narrar o passado ainda é utilizada aqui no Acre e é,
por isso, que equivocadamente a nossa história aparece como uma “saga” de
grandes feitos e de grandes heróis. Isso massageia o ego coletivo, porém, está
baseada em equívocos e manipulações da história. Então, o projeto revisionista
que propus foi enquadrar a narrativa do passado do Acre nos métodos e técnicas
de redação científica, tentando aproximar o conhecimento histórico, ao máximo,
da verdade e, consequentemente, distanciando-o da “história politicamente
correta” que vigora hoje. Revisar a história é isso: criticar a ortodoxia, o
oficial, o tradicionalmente aceito, mediante a releitura das fontes, descoberta
de novos acervos e emprego de novos métodos e teorias na produção do
conhecimento.
O que significa
“história politicamente correta”?
É aquela narrativa do passado que
não tem compromisso com a verdade e sim com os interesses políticos dos
vencedores, ou seja, das elites dominantes que protagonizaram ou fizeram parte
dos eventos. É uma história que obedece a um projeto de criação e manutenção de
identidade coletiva. Identidade essa que singulariza um povo de forma positiva,
criando consenso e otimismo e, com isso, docilização e apatia. O que eu fiz foi
tentar desacreanizar a história do Acre, pois ela é muito ideologicamente
marcada. Ela é etnocêntrica.
Pode dar uma sinopse
do livro?
O livro propõe um olhar
revisionista da fase militar do processo de nacionalização das terras banhadas
pelos afluentes dos rios Purus e Juruá. Nós conhecemos o evento como “Revolução
Acreana”, porém, o nome dado é uma expressão mal empregada, que não descreve
com fidelidade o evento em si, pelo contrário, o reinventa como algo que ele
não foi. Então, no livro, eu explico o conceito de revolução, desde o emprego
dele na astronomia do século XV. Mostro a evolução do conceito até chegar na
dita Revolução Francesa, que se tornou o evento de referência para a semântica moderna
da palavra. Então, eu fiz a pergunta: será que o significado de “revolução” que
temos nas ciências humanas atualmente é o mesmo que os brasileiros na Amazônia
tinham em fins do século XIX? Certamente
que não! Eu historicizei o uso da palavra “revolução” no Brasil, mostrando o
quanto ele era mal-empregado. É por isso que temos diversos movimentos
contestatórios chamados de revolução: “revolução de beckman”, “revolução
praieira”, “revolução pernambucana”, “revolução federalista”, “revolução de
1930”, “revolução de 64”. Tais eventos têm nome de “revolução”, mas não foram
revolução. O conceito de “revolução” em seus nomes foi politicamente empregado.
A escolha do termo não passou por critérios científicos e sim ideológicos. O
desafio que assumi foi mostrar que a Revolução Acreana foi inventada como
revolução. Eu mostro como os jornais da época chamavam-na de outros nomes:
guerra do Acre, revolta do Acre, insurreição do Acre, etc. Porém, a “revolução”
prevaleceu, não que fosse a tipologia mais adequada, mas que era a
politicamente correta.
No livro eu também tento provar
que a “Revolução Acreana” não foi acreana. A pergunta que eu me fiz foi: qual o
sentido da palavra Acre em fins do século XIX, na Amazônia brasileira?
Certamente não era o mesmo do atual. Quando lemos um documento da época com o
quadro semântico que temos hoje da palavra Acre, cometemos anacronismo. Na
época, Acre não era um topônimo, não fazia referência a um lugar. A palavra
dava nome a um rio. “Revolução Acreana” era a revolução feita às margens do rio
Acre. Acontece que hoje aprendemos a dita “revolução” como uma espécie de mito
fundador da acreanidade, que é um erro grotesco. Pois, os principais membros da
Junta Revolucionária eram funcionários do Estado do Amazonas e o próprio rio
Acre fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense Floriano
Peixoto. Foi o Estado do Amazonas que incentivou a migração de nordestinos para
essa região e, quanto mais a migração adentrava em território estrangeiro, mais
o Amazonas estendia sua jurisdição – criando postos aduaneiros e policiais.
Quem perderia com a bolivianização da região era o Amazonas, que já
administrava a região. Todo o “processo” revolucionário foi amazonense. Afinal,
o Acre não existia e aquelas terras eram pensadas como brasileiras por meio de
topônimo amazonense. O Amazonas era o Estado mais próximo da Bolívia e não
existia outra maneira de pensar a brasilidade daquelas terras sem a
amazonensidade delas. Todo território nacional estava dividido em Estados e o
mais próximo da Bolívia era o Amazonas. No livro, eu reúno várias provas do envolvimento
do Estado do Amazonas com a dita “Revolução Acreana”, desde José Carvalho,
Galvez, Expedição Floriano Peixoto (equivocadamente chamada de Expedição dos
Poetas) e até Plácido de Castro. Quando as terras acreanas foram nacionalizadas
pelo Tratado de Petrópolis e o governo federal criou a figura inconstitucional
do Acre Território, o Estado do Amazonas contratou o advogado Rui Barbosa para
ingressar uma ação pública contra a União pela perda do Acre. Ninguém sabe, mas
o Brasil teve que indenizar o Amazonas, pois, juridicamente, essas terras
deveriam pertencer àquele Estado. A partir da Constituição de 1934, o Brasil se
obrigou em indenizar o Amazonas. O pagamento foi feito como provo no livro. O
interessante foi que, para o pagamento acontecer, era preciso mensurar o valor
do Acre. E, na contabilidade feita, consta os gastos que o Estado do Amazonas
teve com a Revolução Acreana. Então, prova cabal de que a “revolução” foi
Amazonense. Nada foi feito por iniciativa popular, muito menos pelos seringalistas
locais. Os autores intelectuais do “evento fundador do Acre” foram os políticos
e comerciantes de Manaus. Foram eles também que financiaram a “Revolução”.
Alguns dos nossos heróis não passam de mercenários contratados. É difícil para
mim dizer isso. Mas foi a conclusão que cheguei.
Portanto, a “Revolução Acreana” é um “nome de fantasia” dado
ao evento, porém, basta tirarmos essa “etiqueta” do evento, basta
desembrulharmos os fatos do seu envólucro ideológico, para termos uma visão do
passado mais isenta. E foi isso que fiz.
Esse não foi o primeiro livro que escrevi sobre o assunto. Já se foram mais de
seis livros. Todos eles denunciando as manipulações da história oficial.
Como foi o processo
de escrita?
Já estudo o assunto há mais de
dez anos. Defendi meu mestrado, doutorado e pós-doutorado sobre o mesmo.
Pesquisei nos acervos que estão no Rio de Janeiro, Pernambuco, Brasília, Manaus
e os de Rio Branco. O trabalho foi árduo, pois o que encontrei foi um volume
muito grande de livros “embriagados” de acreanismo, ou seja, presos a um
projeto identitário. Por isso, que desconsiderei tudo que havia lido sobre
Revolução Acreana e voltei-me às fontes primárias e, delas, fiz suscitar um
novo conhecimento do assunto, mais isento de paixões e ideologias. Tudo que
afirmo está lastreado em documentos e, assim, pude garantir a cientificidade da
escrita. Além, do mais, esse livro passou por uma banca de pós-doutorado, o
que, por si, já garante a seriedade do mesmo.
Qual a importância do
livro para a história do estado?
O livro propõe uma leitura
alternativa à oficial sobre a nacionalização das terras banhadas pelos
afluentes dos rios Purus e Juruá. Um livro baseado na análise de uma vasta
documentação. Infelizmente, a conclusão que cheguei fere um pouco o sentimento
de acreanidade, porém, eu prefiro
provocar feridas narcisistas no eu acreano e ter uma imagem dele mais
próxima do real, do que me embriagar de acreanismo e sentir orgulho de
um eu acreano que não existe. Acredito que o povo não precisa de uma epopeia,
muito menos de heróis. O que todos nós queremos é uma educação emancipatória
que promova a conscientização política e não a alienação por meio da
manipulação da história. Não precisamos de comemorações cívicas, o que
precisamos é de cidadania!
O Google é tão poderoso que "esconde" outros sistemas de busca de nós. Só não sabemos a existência da maioria deles.
INTRODUÇÃO
Essa obra é parte do relatório de
pesquisa do estágio pós-doutoral que fiz na Universidade Federal do Amazonas
(UFAM) entre agosto de 2018 a agosto de 2020. A pesquisa teve início em 2019,
porém o texto final só foi iniciado em 2020, quando os dados já haviam sido
coletados. O tema que propus ao Programa de Pós-Graduação teve a ver com dúvidas
que nutria desde o ensino médio, a saber: teria sido a anexação das terras
banhadas pelo rio Acre uma dádiva dos heróis acreanos?
Os livros
que lia sobre o assunto me diziam que sim, a publicidade governamental
divulgada nas datas comemorativas e os discursos que anualmente ouvia nas
paradas cívicas também. Porém, suspeitava de que havia algo de “podre no reino
da Dinamarca”, como diria Hamlet, no livro de Shakespeare.
Quando iniciei o curso superior em 1997, eu ainda pensava a
história como um conjunto de acontecimentos fantásticos realizados por pessoas
extraordinárias. O que me instigava não era a presença de heróis na
historiografia acreana e sim a ausência de algumas personalidades que eu,
inocentemente, também considerava dignos de mesma honra.
Obviamente
que hoje sei que a história não é feita por “grandes homens” e nem por “grandes
acontecimentos”. Sei que os “homens” e os “acontecimentos” não são “grandes” nem
“pequenos” em si mesmos. A valoração ou depreciação deles depende da forma como
foram traduzidos pela visão de mundo dos vencedores que sempre tem suas narrativas
documentais preservadas.
Apesar disso, a dúvida do porquê certos nomes foram
interditados no “panteão dos heróis” acreanos persistiu. É claro que não
existem heróis de verdade, principalmente em um conflito armado motivado por
interesses econômicos, como foi o caso da Questão do Acre. Porém, é preciso considerar
os fatos e avaliar quais deles realmente foram decisivos para a nacionalização
da região do Acre ao Brasil. E foi isso que fiz em meus livros anteriores e é o
que continuo fazendo neste.
O livro
foi dividido em três capítulos. No primeiro, abordo a polissemia do conceito de
“revolução” e do porquê considero equivocado o emprego dessa terminologia política
na Questão do Acre. No segundo capítulo, mostro a atuação do Estado do Amazonas
no processo de colonização das terras banhadas pelo rio Acre, pré-requisito
fundamental da anexação.
No
terceiro, explico que os embates militares contra os bolivianos em fins do
século XIX se deu em território administrado, embora ilegalmente, pelo Estado
do Amazonas. E que o termo “Acre”, na época, significava tão somente um rio que
fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense de Floriano Peixoto.
Portanto, a suposta “revolução” foi adjetivada como acreana por ter os seus
principais eventos ocorridos às margens do rio Acre que, naquela ocasião, fazia
parte da jurisdição do Estado do Amazonas.
Esse
livro faz parte de um projeto revisionista que propõe reescrever a história do
Acre de uma maneira mais sincera. A revisão consiste em atitudes relativamente simples,
por exemplo, no caso do processo de nacionalização das terras que vieram a se
chamar Acre, em descentralizar a figura de Plácido de Castro da narrativa. Dando
ao mesmo uma posição mais realista, portanto, secundária.
Afinal, ele
não era o mentor intelectual da dita “revolução”, apenas foi inserido pelos
amazonenses em um projeto de resistência à soberania boliviana já em andamento.
A vitória em Puerto Alonso em janeiro de 1903, não anexou um palmo de terras
sequer ao Brasil, no máximo, tornou-o independente. Sem dizer que não foi
definitiva, já que mais soldados bolivianos se dirigiam ao local para a
desforra e a região já estava “arrendada” para o Bolivian Syndicate, consórcio internacional diante do qual Plácido de Castro
não significava nada.
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Isso
acontece porque o sentido de um vocábulo não lhe é imanente e sim convencional.
A depender da situação comunicacional e dos interactantes, o sentido das palavras
podem deslizar, produzindo o que a linguística chama de polissemia. Se o
sentido modifica, então, a palavra já não é mais a mesma, ela se fez outra,
embora com a mesma grafia.
Foi, por
isso que fiz, às fontes documentais produzidas em fins do século XIX, a
seguinte pergunta: qual o sentido das palavras “Acre”, “acreano” e “revolução”
naquele contexto histórico amazônico? Teria a palavra “revolução” sido empregada
na época da chamada Questão do Acre com a mesma força conceitual daquela
aplicada na França em 1789? Por que optaram pelo termo revolução e não subversão,
rebelião ou revolta?
Eu
defendo que o conflito armado entre brasileiros e bolivianos foi mal “etiquetado”.
O fato de o evento às margens do rio Acre ter sido qualificado como revolução não
é suficiente para transformá-lo em uma revolução.
As
etiquetas são espécies de adesivos conceituais postos sobre os fatos para
atribuir-lhes sentido, muito dos quais, irresponsáveis. Por exemplo, quando se
diz “História Moderna”, cria a falsa ideia de que todos os fatos ocorridos na
Europa, durante os séculos XV e XVIII, tenham sido “avançados”. Acontece que
não dá para aceitar como obra do progresso, fenômenos como o colonialismo, o poder
absolutista, o tráfico de seres humanos, as guerras religiosas, etc.
Sendo assim,
a opção pelo adjetivo “moderno”, só se torna compreensível, se considerada a
inserção dele em um projeto etnocêntrico da História. É o mesmo caso das
chamadas “Grandes Navegações”, etiqueta criada para nos induzir a acreditar que
as experiências náuticas interoceânicas europeias do século XV foram as
primeiras do mundo. A verdade é que os chineses já dominavam os mares antes dos
europeus e isso com tecnologias bem mais avançadas.
E os fatos
políticos ocorridos no Brasil que culminaram com um golpe de Estado em 1930? Até
que ponto não é mero “preciosismo” chamá-lo “Revolução”? Acaso a utilização da
etiqueta “Revolução de 1930” não foi uma decisão política de dissimular o Golpe
de Estado? Ou uma forma de garantir à posteridade uma imagem positiva do acontecimento?
Quando a narrativa usa a etiqueta “Nova República” para designar a parte da história
política do Brasil que decorreu dessa “Revolução”, não seria isso uma forma de
direcionar o “olhar” do leitor, fazendo-o tomar como verdade uma ideologia?
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Se
alguém, um dia, chamou de “herói” aquele que, pelo Código Penal em vigor, demonstrou
ser um criminoso, por que eu tenho que render-lhe tributos? Não seria mais
sensato eu procurar me informar do porquê a fama dele de “bom mocinho” prevaleceu?
Acaso a
fama de “herói” que o assassino ganhou tem alguma finalidade política? Por que
querem que eu o veja como herói e não como um assassino? Acaso o assassino que
mata em defesa de alguma ideologia deixa de ser assassino? Acaso aquela
ideologia que dizem ter motivado o herói a matar não fora um mero fetiche usado
para encobrir os verdadeiros interesses em jogo?
A
história oficial recria os fatos como fantásticos e reinventa os sujeitos como
dignos de admiração. A história que aprendemos é uma história enfeitada. Nela,
até a escolha do que deve ser lembrado é política. A forma como o acontecimento
deve ser lembrado também. A depender do grupo político dominante, a narrativa recebe
uma maquiagem com “etiquetas” e “penduricados” diferenciados.
Há, porém,
fatos que já estão tão consagrados no imaginário social com um certo formato que
se torna muito difícil mudar-lhe os enfeites. Isso porque eles agradam a
“gregos e troianos”, pois é útil politicamente, independentemente da classe
dominante vigente. Um exemplo disso é a visão epopeia da origem do Acre. Não é
em vão que a narrativa da “REVOLUÇÃO acreana” permanece até hoje “intocável”,
mesmo após mudanças tão expressivas no tabuleiro político regional.
Como historiador,
já denunciei por demais o caráter abusivo dessa narrativa epopeica da história
do Acre. Basta ler os livros e artigos que já escrevi e as entrevistas que já
dei, maioria disponível na internet. A história do Acre ensinada pelo Estado
não tem compromisso com a verdade e sim com o envaidecimento do povo acreano,
com um projeto identitário que cultiva o arquétipo de um eu acreano heroico,
patriótica, cordial e ecológico. Entretanto, quando a verossimilhança é ensinada
como verdade, a narrativa histórica dá lugar à literária - é a imaginação do
passado interditando as pesquisas científicas sobre o assunto.
Os
fomentadores do acreanismo torturam a história para obrigá-la a confessar a
suposta grandeza do povo acreano, porém, o resultado já não é mais a História,
e sim o “abuso a história”. O objetivo de quem oferece uma “história alucinada”
ao consumo é produzir alucinações históricas em quem a consome. Material didático,
festas cívicas, museus, plenárias parlamentares e propagandas institucionais são
lugares privilegiados de divulgação desse discurso psicotrópico.
Sob o efeito
do psicoativo ideológico do acreanismo, a pessoa passa a enxergar fatos que
nunca existiram como se fossem verdades irrefutáveis. Com a percepção afetada,
o sujeito perde a capacidade de distinguir o que é “etiqueta” e o que é história,
passando a aceitar como natural a maquiagem ideológica que embelezou a
narrativa. Um exemplo disso é a crença de que o acreano foi “o único a lutar
para ser brasileiro”. Empiricamente isso nunca aconteceu. Ninguém empunhou
armas contra a Bolívia por amor à pátria. Isso não passa de um sofisma historiográfico.
Entretanto, muito útil para alimentar a singularidade identitária acreana e dissimular
os reais interesses econômicos e políticos que estavam em jogo.
Boa leitura!
Rio
Branco, 18 de dezembro de 2020.