terça-feira, 5 de agosto de 2025

SOBRE O "6 DE AGOTO" Dr. Eduardo Carneiro

 

POR QUE O 6 DE AGOSTO?

Porque foi nesta data que as tropas acreanas tiveram sua primeira vitória sob a liderança de Plácido de Castro rumo à rendição boliviana. Como a historiografia oficial não gosta de enfatizar derrotas, deu-se importância secundária aos movimentos de resistência ao governo boliviano anteriores ao de Plácido de Castro, como por exemplo, aqueles liderados por José Carvalho (1899), Luiz Galvez (1899), Orlando Lopes e Rodrigo de Carvalho (1900), etc.

 

QUALA SUA VISÃO SOBRE OS FATOS OCORRIDOS NO “6 DE AGOSTO”?

Em uma carta de 18 de junho de 1902, portanto, antes do início da “Revolução” do 6 de agosto, Rodrigo de Carvalho diz: “baldeamos a carga da Maria Thereza, a bordo dela vem o Dr. Gentil com armamento e um capitão com vinte e tantos soldados, commissionados pelo governador para fazer a revolução” (apud OURIQUE, 1907, p. 223, grifo nosso).

Se levarmos em consideração que o próprio Plácido de Castro afirmou ter iniciado o combate contra os bolivianos em 6 de agosto de 1902 com apenas 33 homens (Cf. CASTRO, 2002, p. 56), fica fácil deduzirmos que o episódio inaugural da “Revolução Acriana” ou da “Grande Revolução” foi protagonizado por mercenários.

Assim sendo, não foram os acrianos que lutaram por amor ao Brasil e sim mercenários que lutaram por amor ao dinheiro.

 

O SENHOR QUER DIZER QUE A REVOLUÇÃO NÃO FOI FEITA POR ACREANOS?

Primeiro de tudo, é bom esclarecer que, na época, não havia propriamente acreanos. Embora este gentílico já tenha sido usado desde o Estado Independente de Galvez, a construção identitária do ser acreano é um fenômeno simbólico construído a posteriore, ao longo do tempo.

Segundo, todo processo de resistência à soberania estrangeira na região que hoje chamamos de Acre foi pensada e financiada por políticos e liberais de Manaus. Alguns dos brasileiros que residiam nos afluentes do Purus foram incorporados ao projeto de resistência, no entanto, isso não quer dizer que foram eles, os “acrianos” (brasileiros do Acre), os responsáveis pela “Revolução”.

Para os “barões da borracha”, “pouco lhes importa a procedência do herói. A sua origem. Ou sua moral. O que é preciso, e se impõe desesperadamente é salvar o Acre” (LIMA, 1998, p. 50). Zambrana (1904, p. 162) diz que “los revolucionarios del Acre, comandados por Plácido de Castro [...] se hallaban situados en Caquetá [...] tenían bajo sus órdenes fuera de las tropas revolucionarias, unos cincuenta o sesenta hombres de la guarnición estadoal de Manaos” [grifo nosso].

Parece ser inegável que havia pessoas comissionadas nas tropas revolucionárias, ou seja, que ali estavam sem qualquer motivação patriótica ou compromisso ideológico.

Outro indício de mercenarismo é a considerável quantidade de estrangeiros nas tropas acrianas. Fato comprovado pela lista dos veteranos da “Revolução Acriana” produzida durante a feitura do Projeto de Lei que pretendia conceder pensão aos ex-combatentes (Lei Nº 380, de 10 de setembro de 1948).

Fica difícil acreditar que esses estrangeiros, que mal haviam chegado ao Brasil, tenham empunhado armas para tornar o Acre o único Estado “brasileiro por opção”.  Resumindo, é possível que a dita Revolução tenha iniciado mais por força dos “não-acreanos” (políticos e liberais de Manaus e mercenários contratados) do que propriamente dos acreanos.

 

O QUE VOCÊ TEM A DIZER SOBRE AS COMEMORAÇÕES DO “06 DE AGOSTO”?

 

O 6 de agosto só passou a ser comemorado a partir de 1910. O que significa dizer que a data não assumiu importância que se dá hoje logo nos primeiros anos após a dita Revolução. Apenas quando Epaminondas Jácome, auxiliar médico das tropas de Plácido de Castro, foi nomeado prefeito do Departamento do Alto Acre, foi que, por força institucional, o “povo” passou a comemorar tal data.

Quando prefeito, ele decretou feriado nas repartições públicas para as datas 6 de agosto e 24 de janeiro. Ou seja, a data ganha importância social de cima para baixo e não por iniciativa popular. Se o poder executivo hoje deixar de promover festas cívicas ou feriado nesta data, em menos de uma geração ela será esquecida na memória coletiva.

 

 

VOCÊ CONCORDA QUE O ¨6 DE AGOSTO” SEJA REALMENTE A DATA DA GENEALOGIA DO ACRE?

“Não. O marco fundacional do Acre foi a expansão imperialista para a Amazônia. A escolha do 06 de agosto reflete um posicionamento episódico e provinciano do processo histórico. É preciso analisar a história para além da escala de observação local e regional. A história do Acre deve ser compreendida como um capítulo da história da expansão do capitalismo. A história do Acre não começa com a Revolução Acriana, muito menos com a migração nordestina para a região, mas com a expansão da Economia-Mundo Capitalista para o interior sul-ocidental amazônico. Começa com a inserção daquele reservatório natural de seringueira na cadeia produtivo-mercantil dos países imperialistas. Resumindo: o Acre foi gerado pelo imperialismo no ventre da ganância dos brasileiros que migraram para a região. Do ponto de vista jurídico, enquanto território nacional, nasceu de fato e de direito com o Tratado de Petrópolis (1903).

 

 QUAIS FORAM AS CAUSAS DA REVOLUÇÃO ACRIANA?

"É triste dizer, mais a Revolução Acriana tanto enaltecida pela história e literatura oficiais não passou de um conflito armada em defesa da propriedade privada dos seringalistas e do monopólio da cobrança de impostos sobre a produção da borracha pelo Governo do Amazonas. Mas é óbvio que tais motivos jamais figurariam nos documentos oficiais escritos pelos líderes da dita “revolução”. Eles precisavam mobilizar a opinião pública nacional em favor da causa deles e, para isso, ardilosamente, fizeram uso abusivo das palavras pátria e patriotismo em seus discursos justificatórios. Afinal, era preciso beatificar aquela ação criminosa, sanguinária, classicista e interesseira com argumentos nobres e altruísta”.

 

LUTARAM PRA SER BRASILEIROS?

Ter brasileiros na região, não faz da região um território brasileiro. Assim como o bairro da Liberdade em São Paulo não deixa de ser brasileiro mesmo sediando a maior colônia japonesa do mundo. Os brasileiros não perderiam sua nacionalidade, apenas se tornariam estrangeiros em regiões bolivianas. Volto a dizer, que o que estava em jogo de fato era a nacionalidade do território, dos impostos e da borracha, portanto, o patriotismo não passava de uma artimanha retórica para mobilizar a opinião pública nacional em favor dos interesses fundiários dos seringalistas e das rendas fiscais do governo do Amazonas. E foi exatamente a defesa desses dois interesses que ocasionaram a chamada Revolução Acreana que, diga-se de passagem, não pôs fim a Questão do Acre, pelo contrário, apenas serviu para dar visibilidade nacional à mesma, além, é claro, de produzir dezenas de cadáveres.

 

O senhor está querendo dizer que a tão comemorada Revolução Acreana não foi a responsável pela anexação do Acre ao Brasil?

 

Não sou eu quem diz, são as evidências históricas quem afirmam isso. Basta analisar os fatos sem o preciosismo típico da literatura acreanocentrica. Senão vejamos: a) independente do conceito de “Revolução Acreana”, quer seja todos os eventos de resistência ao governo boliviano, quer seja apenas aquele liderado militarmente por Plácido de Castro, ela nunca resultou na incorporação de um palmo de terra sequer ao Brasil, o máximo que fez foi tornar o Acre um país independente; b) a vitória militar obtida contra o “miúdo” exército boliviano pelas tropas acreanas em Puerto Alonso em janeiro de 1903 não foi definitiva, já que o próprio Presidente da Bolívia, juntamente com o seu Ministro de Guerra e tropas bolivianas, ameaçaram invadir a região; c) O Barão do Rio Branco, sabendo da repercussão negativa que a desforra poderia ocasionar ao governo federal, fez de tudo para evitar a carnificina, por isso que tratou logo de acordar um modus vivendis com o governo boliviano; d) a vitória militar parcial obtida pelos acreanos em janeiro de 1993 contra os bolivianos não representou o fim da Questão do Acre, pois o território já estava “arrendado” para o Bolivian Sindicate e, contra esse sindicato internacional, os acreanos pouco ou nada podiam fazer; além do mais, a Revolução, no máximo, garantiria a posse de terra dos brasileiros na região do Purus, já que a do Juruá, o conflito era com os peruanos e não com os bolivianos; e) a dita Revolução foi mais obra da iniciativa do governo do Amazonas do que a dos acreanos propriamente ditos; Plácido de Castro nunca foi o mentor intelectual e nem o político da Revolução, no máximo, foi um líder militar convidado (ou contratado?) para uma causa que não era dele. Sem a renúncia do Bolivian Syndicate assinada em 26 de janeiro de 1903 e sem a assinatura do modus-vivendi em 21 de março de 1903, tanto o destino do Acre, quanto o dos acreanos estava em suspenso. Por isso é que digo que o destino deles foi mais um resultado diplomático traçado nos gabinetes ministeriais do que um resultado militar traçado nos campos de batalha. Em resumo: a Revolução chegou ao fim sem que o Acre fosse nacionalizado.

 

 

SOBRE PLÁCIDO DE CASTRO, O QUE O SENHOR TEMA DIZER?

 

"Qual Plácido de Castro iremos abordar? O militar maragato rio-grandense? O agrimensor? O chefe das tropas acreanas? O seringalista? O presidente do Estado Independente do Acre? O ditador do Acre Meridional? O prefeito do Departamento do Alto Acre? Ou o herói nacional? A visão multifocal do personagem nos trás o seguinte questionamento: é realmente salutar ao povo acreano nutrir a admiração por um latifundiário, assassino e político autoritário? A história nos diz que ele fez tudo por amor à pátria e é somente esse lado do Herói Nacional que nos é ensinado nas escolas". Mas será mesmo que tal sentimento movia o comportamento deste cidadão? Uma coisa eu digo, ninguém vinha ao Inferno Verde impunemente.

"Devemos nos perguntar sobre o porque que somente Plácido de Castro se tornou o herói dos acreanos? Por que a veneração não se estendeu aos governadores do Amazonas Ramalho Júnior e Silvério Néri, os verdadeiros responsáveis pelo financiamento do movimento de resistência à soberania boliviana na região? Por que Rodrigo de Carvalho não foi reconhecido como herói? Ele era o principal articulador local da Revolução Acreana, diferentemente de Plácido de Castro, ele esteve presente desde o início, quando foi formada a Junta Revolucionária em 1899. Por que Souza Braga não virou herói? Ele foi um dos cinco principais seringalistas da região a atuar na Revolução Acreana e chegou a ser o segundo presidente do Estado Independente do Acre. E os seringueiros? E os acreanos que guerrearam contra os peruanos no Alto Juruá?"

 

É sabido que sem a intervenção do Itamarati e das articulações feitas por Barão do Rio Branco o Acre nunca teria se tornado brasileiro. Então, por que Plácido de Castro  recebeu tanta  projeção local como herói dos acreanos?

 

Simples, pois os autonomistas preferiram consagrar um líder local do que um nacional. Não devemos esquecer que o Barão do Rio Branco foi um dos mentores do “rebaixamento” do Acre à condição de Território, e tê-lo como herói não era estratégico para a causa autonomista. Os autonomistas queriam tornar o Acre um Estado, para tal propósito, era mais estratégico a escolha de liderança local como herói. O “Barão” sendo aceito como “pai do Acre”, ficaria mais fácil justificar o domínio político federal naquele território. O diplomata Barão do Rio Branco encarnava melhor o caráter nacional dos republicanos. Em contrapartida, a figura de Plácido de Castro fortalecia o regionalismo dos “coronéis” do Acre.  A idolatria a Plácido de Castro foi uma tradição construída e mantida postumamente.  Enquanto esteve vivo, nenhum prefeito endossou práticas comemorativas à “Revolução” ou aos “heróis da Revolução”, muito menos ao próprio Plácido de Castro. A consagração dele como “herói do Acre” só aconteceu porque ao longo da história não faltou quem obtivesse algum tipo de ganho simbólico ou dividendo político com a exaltação dele. Primeiramente os autonomistas, que fizeram dele um patrono de suas causas, depois os próprios militares, que exaltavam Plácido de Castro mais por ele ter sido um militar do que um “revolucionário”. Na literatura nacional, porém, é comum encontrarmos quem dedique o sucesso da anexação do Acre ao Brasil ao Barão do Rio Branco e não a Plácido de Castro. “Rio Branco” foi nomeado um dos centros comerciais mais importantes do Acre naquele início de século. O governo federal, através dos prefeitos, rendia-lhe homenagens, tratando-o como “patrono do Acre” (jornal Acreano, de Xapuri, 1 de novembro de 1909, Nº 56, primeira página). O Barão do Rio Branco ainda estava vivo e seu nome passou a ser utilizado em ruas, estabelecimentos públicos e praça. Sem dizer do “17 de novembro”, data da assinatura do Tratado de Petrópolis, que também virou nome de escola e outros.

 

PORÉM PLÁCIDO DE CASTRO É CONSIDERADO COMO O LIBERTADOR DO ACRE.

 

"O gaúcho Plácido de Castro foi um libertador? Todos os Tratados Internacionais negam o pertencimento do Acre ao Brasil: Bula Papal Intercoetera (1493) Tratado de Tordesilhas (1494), Tratado de Madri (1750), Tratado de El Pardo (1761), Tratado de Santo Ildefonso (1777) e o Tratado de Badajós (1801). O próprio Brasil Imperial reconhecia que o Acre pertencia à Bolívia através do Tratado de Ayacucho (1867) e por inúmeras vezes o Brasil Republicano confirmara o prescrito em 1967. Então, o agrimensor libertou o Acre de seus legítimos donos?"

"Qual Acre foi libertado pelo gaúcho? O Acre Meridional ou o Setentrional? O Alto-Purus ou o Alto-Juruá? Como a própria história relata, a “revolução” liderada pelo gaúcho limitou-se ao Vale do Rio Acre, mais precisamente em Xapurí, Brasiléia, Rio Branco e Porto Acre. Ora, então quem libertou o restante do Acre?

A região banhada pelo rio Juruá e seus afluentes, que também eram terras litigiosas do ponto de vista peruano, não conheceu a “revolução” de Plácido de Castro. O “herói”, inclusive, nem se quer foi testemunha da legalização e anexação definitiva do Juruá ao Brasil, pois ele foi assassinado em agosto de 1908 e a assinatura do Tratado Brasil-Peru aconteceu em setembro de 1909".  

"O coronel Plácido de Castro libertou o Vale do Rio Acre? O correto seria afirmar que as tropas acreanas obtiveram importantes vitórias sobre os bolivianos nessa região. No entanto, a conquista não estava plenamente definida. Isso por dois motivos: Primeiramente, por que tão logo a notícia da peripécia dos seringueiros chegou ao Andes, o próprio presidente da Bolívia, General Pando, organizou uma megaoperação militar de libertação. Em segundo lugar, o Acre já havia sido arrendado ao Bolivian Syndicate desde 21 de dezembro de 1901. Toda luta contra a Bolívia seria inglória se levado em consideração que o Consórcio não aceitaria qualquer prejuízo com o Acre".

 

NO PERÍODO DO CENTENARIO DA REVOLUÇÃO, O GOVERNO DO ESTADO FEZ BASTANTE USO DA IDEIA DE REVOLUÇÃO. O QUE O SENHOR TEM A DIZER.

"O Governo da Frente Popular do Acre construiu uma engenharia política de legitimação do poder na qual o discurso histórico teve importância privilegiada. Nunca na história do Estado do Acre um governo fez tanto uso de festas cívicas, homenagens, culto à bandeira, construções de monumentos, tombamento de bens e construção de espaços de memória. A estratégia não é tão difícil de entender. Abusaram da mídia para fomentar um acreanismo com base na história epopeica do Acre e durante as comemorações das datas cívicas ou na inauguração de um espaço de memória procuraram se filiaram a essa a essa história dizendo que a Revolução Acreana não havia sido plenamente acabada, já que os ideais e sonhos de seus líderes estavam sendo resgatados e colocados em prática na atualidade. O objetivo foi fazer com que o povo olhasse o mandatário do Poder Executivo como um novo herói e a implantação do Desenvolvimento Sustentável como uma revolução. A exaltação do passado era uma desculpa para a afirmação do presente. Tudo fazia crer que a história do Acre motivada pelo passado viveria no presente o ápice dessa glória".

"Veja o caso do sindicalista Chico Mendes. Primeiro o Governo da Frente Popular fez de tudo para diviniza-lo. Depois se aproveitou desse ser beatificado para fazê-lo um cabo eleitoral, um garoto propaganda do governo. O Partido dos Trabalhadores no Acre se apropriaram politicamente da imagem de Chico Mendes alegando que o Governo da Frente Popular nada mais estava fazendo do que colocar na prática os sonhos do sindicalista. Durante anos a imagem de Chico Mendes figurou no cabeçalho do site do PT (Ac). Quem criticariam os herdeiros político de Chico Mendes? Pois é, a mesma estratégia foi usada com a Revolução Acreana e com Plácido de Castro, ao se filiarem a essa história gloriosa, se tornavam candidatos a receberem no presente a veneração e as honras, a principio, direcionada somente ao passado".

O grande diferencial do Governo da Frente Popular do Acre com relação aos outros governos no que tange às comemorações das datas cívicas alusivas à anexação do Acre foi que a Frente Popular inaugurou uma nova tradição de interpretação ou uma nova tradição de sentidos: a da Revolução Acreana inacabada. Dessa forma conseguiu-se criar uma história epopeica de uma ponta à outra. De Galvez aos Irmãos Vianas. O povo foi ensinado a perceber, no tempo, presente as novas revoluções, os novos heróis, e os novos atos de bravura”.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em minha opinião, todas as datas festivas ligadas à fundação do Acre são memoriais da intolerância e do etnocentrismo. Comemorar esse passado é tornar tais práticas aceitáveis e dignas de louvor. Veja por exemplo o caso do genocídio indígena, a historiografia oficial ainda tenta inocentar os heróis acreanos desse flagelo. Mais o fenômeno das correrias fez do território acreano um sepulcro aberto que exala odores fúnebres até os dias de hoje".

 

31 de agosto de 1913, Folha do Acre.

Xxxxxxxxxxxx

 

A manipulação da história acontece quando um equívoco interpretativo de um dado acontecimento é produzido de modo premeditado e intencional, e isso com o fim de garantir alguma vantagem simbólica para uma pessoa, grupo social ou instituição.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

LIVRO: O ESTADO DO AMAZONAS E A DISPUTA PELO ACRE (Dr. Eduardo Carneiro)

Livro O Estado Do Amazonas ... by Prof. Dr. Eduardo Carneiro


INTRODUÇÃO

 


O Estado do Amazonas foi determinante para incorporação do Acre ao Brasil. Em meu livro Não foi acreana nem revolução (2021), eu mostro isso com farta documentação. Foram os governos amazonenses quem dirigiram as migrações nordestinas para as terras banhadas pelo rio Acre (fase invasiva), quem arquitetaram e financiaram as revoltas armadas (fase militar) e quem popularizaram a reinterpretação do Tratado de Ayacucho de 1867, de modo a por dúvidas sobre o direito boliviano ao Acre Setentrional (fase diplomática)[3].

O Estado do Amazonas estendeu a sua jurisdição para a região e a administrava, garantindo a ordem e coleta de  impostos sobre a comercialização da borracha[4]. A bacia hidrográfica do rio Acre fazia parte do sistema hídrico do município amazonense de Floriano Peixoto. A parte do Brasil que mais sofreria com a bolivianização do Acre era a do Amazonas, pois era ali que acontecia a tributação de toda a operação mercantil ligada a economia da borracha.

Quando o governo brasileiro autorizou a instalação da aduana boliviana na região do Acre em 1898 e a mesma se efetiva no início de 1899, foi o Estado do Amazonas quem confabulou a resistência. A “Revolução” — de Jose de Carvalho (1899) a Plácido de Castro (1902) — foi pensada em Manaus.

Os “cabeças” da Junta Revolucionária eram representantes do Estado Amazonense. De Manaus vieram boa parte do financiamento (dinheiro, armas, viveres, etc.) e dos mercenários (pessoas contratadas para lutarem em favor da causa). Assim, o “Acre” — terras banhadas pelo rio Acre — foi defendido como território amazonense. O que chamamos de “Revolução Acreana” nada mais foi do que uma “revolta amazonense” contra a soberania boliviana na região do rio Acre.

Pensem comigo: desde a proclamação da República, todo o território nacional foi dividido em unidades federativas. Sendo assim, era impossível pensar o “Acre” como nacional, sem que estivesse inserido em um dos Estados. Aquele que fazia fronteira com a Bolívia e com o Peru era o Amazonas.

A brasilidade daquele território estava condicionada a amazonensidade dele. Afinal, ninguém se dirigia às terras banhadas pelo rio Acre em viagem internacional, pelo contrário, saiam de Manaus cônscios de que se deslocavam para o interior do Estado, em uma viagem intermunicipal. Por isso, o solo pátrio que a “Revolução Acreana” defendeu era, indiscutivelmente, o amazonense.

O uti possidetis alegado pela diplomacia do Brasil nas negociações que antecederam a assinatura do Tratado de Petrópolis, era garantido pelo Estado do Amazonas. Ele quem, de fato, exercia a soberania brasileira naquela região. Por tudo isso, era de se esperar que a jurisdição amazonense no território do “Acre” fosse reconhecida tão logo ele fosse legalizado como brasileiro. Contudo, não foi isso que aconteceu, como já foi dito, o Governo Federal preferiu agir à margem da Constituição Federal e criou o ente Território do Acre.

A decisão repercutiu muito negativamente em Manaus, de modo que em fins de 1905, após esgotadas as negociações políticas, o Estado do Amazonas contrata o eminente advogado Rui Barbosa para ajuizar uma ação no Supremo Tribunal Federal contra a União. Boa parte da história que contamos nesse livro gira em torno desse processo — a Ação Pública Reivindicatória de Território.  

Adianto que o processo nunca foi julgado, pelos motivos que conto no livro. Contudo, o mesmo recebeu um “veredito” favorável dado politicamente, quando a Constituição Federal de 1934 garantiu ao Amazonas, o direito de receber uma indenização pela desanexação do Acre.

A partir de então, o Amazonas passou a receber inúmeros adiantamentos financeiros do Governo Federal que ficou computado na rubrica “dívida do Acre”. O interessante é que, na apuração do valor total “da dívida”, consta a soma dos gastos que o Estado do Amazonas teve com a “Revolução Acreana”. Tudo mostra que o “Acre”, de fato e de direito, era amazonense.

Apesar da inegável participação do Estado do Amazonas na anexação das terras que atualmente pertencem ao Estado do Acre, o Movimento Autonomista, irresponsavelmente, expurgou da narrativa histórica a atuação desse Estado, fazendo crer que a “Revolução” foi um movimento endógeno, atavicamente organizado.

Como o Amazonas disputava o “Acre” judicialmente, os Autonomistas, ao longo dos anos, mobilizavam a população local para resistir o que parecia óbvio: a vitória de Rui Barbosa e do Estado do Amazonas no Supremo Tribunal. Um dos meios de convencimento era através de uma história manipulada da anexação, que censurava a palavra “Amazonas” da narrativa.

Até mesmo a Expedição Floriano Peixoto (1900) foi rebatizada com o famigerado nome de “Expedição dos Poetas”. Isso para dissimular a verdade de que a mesma defendia o solo pátrio do município amazonense Floriano Peixoto. Contudo, a verdade ofendia a causa autonomista, por isso, falsearam a narrativa dizendo se tratar de “intelectuais boêmios” que “sonhavam” com um Acre brasileiro autônomo[5].

O abuso da história é produzido toda vez que a mentira é propositalmente inserida na narrativa com o intuito de provocar o engano. É uma ação consciente, intencional, deliberada e desonesta e irresponsável praticada para auferir alguma vantagem simbólica ou político para si ou para outrem.

Negar o protagonismo do Estado do Amazonas é faltar com a verdade, ou melhor, é fazer apologia à mentira na escrita da História. Em resumo, manipular, falsificar ou abusar da história significa produzir, conservar ou fazer circular representações do passado que não condizem com as evidências documentais e, por isso, se constituem em um registro infiel dos acontecimentos.

Logo, essa história acreanocêntrica, “dopada” de acreanismo, que fala de acreanos lutando por amor à pátria ou de Autonomia como ideal da Revolução Acreana, é espúria. É produto da falta de ética dos autonomistas, que manipularam a história em favor da causa que defendiam. Por isso, toda a história da anexação do “Acre” e da autonomia acreana precisa ser recontada. De antemão, sabemos que o Estado nunca patrocinará tal revisão da História, pois os governantes precisam da epopeia para alienar o povo em torno de um passado que nunca existiu, causando-lhe ufanismo, otimismo e passividade.

Termino a introdução, informando que a pesquisa que deu origem ao livro, se deu em 2019, quando fui liberado para realizar o meu estágio pós-doutoral. No período, visitei arquivos no Rio de Janeiro (RJ), Manaus (AM) e Rio Branco (AC), além de acessar o acervo da Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Priorizei a análise de fontes primárias, além de documentos oficiais, livros, matérias de jornais e discursos parlamentares da época. A redação do livro foi iniciada em 2020, porém, só agora deparei-me com o momento oportuno para concluí-la. Espero que gostem.

 

Desejo uma boa leitura a todos.

 

 

Eduardo de Araújo Carneiro

 

 

Rio Branco, novembro de 2024



[1] A disputa pelo território já acontecia entre Peru e Bolívia, desde a independência dos dois países, contudo, a questão era designada com outro nome, já que, “Acre” foi a forma como o  Brasil significou a questão.

[2] A versão “acreanocêntrica” de louvação a Plácido de Castro demarca o fim da Questão do Acre, em janeiro de 1903, quando as maltrapilhas tropas bolivianas, em Puerto Alonso, foram derrotadas. É dito que o Tratado de Petrópolis só formalizou o que já havia sido definido pela “Revolução”. Contudo, a derrota dos flagelados, não implicava em uma vitória final contra o exército boliviano, muito menos resolvia o impasse com o Bolivian Syndicate. Sem dizer que aconteceram batalhas armadas contra os peruanos no Juruá, das quais Plácido de Castro se quer tomou conhecimento. A historiografia “míope” limita a “Revolução” aos embates andinos. Faz isso só para salvaguardar a imagem de Plácido de Castro como herói, como o “pai do Acre”. Fato é que ele não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil, muito menos teve participação nas negociações entre o Brasil e a Bolívia ou entre o Brasil e o Peru que, de fato,  findaram a “Questão do Acre” em âmbito internacional.

[3] No meu livro Amazônia, Limites & Fronteiras (Brasil, Bolívia e Peru): uma história revisada da nacionalização do Acre (2017), eu divido o processo de anexação nessas três fases: invasiva (colonização ou invasão); militar (“Revolução Acreana”); e diplomática (tratados internacionais). No livro, defendi, com rica documentação, que a fase militar foi a menos decisiva das três.

[4] Não entraremos na discussão se assim fazia de forma legal ou ilegal. Fato é que a jurisdição amazonense, no tentório do atual Acre, é inquestionável.

[5] No Brasil, na época, não existia o topônimo Acre, muito menos o gentílico “acreano”. Acreano como fenômeno identitário foi uma invenção póstuma aos eventos. A identidade cultural coletiva é o resultado de um processo simbólico de longa duração. Não se cria identidade cultural da noite para o dia. O que foi criado, na verdade, foi uma identidade de interesses, que agrupou políticos, profissionais liberais, seringalistas e seringueiros em torno de uma causa que prometia benefícios ou dividendos a todos os envolvidos.


segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

SOBRE A DATA DE ANIVERSÁRIO DA CIDADE DE RIO BRANCO (AC) - Dr. Eduardo de Araújo Carneiro

 Por que hoje no estado a comemoração leva em consideração a data em que foi fundado o Seringal da Volta da Empresa, e não o dia em que o Decreto Federal 9.831/1912 foi assinado, ou pelo menos a data em que esse território virou a Vila de Rio Branco?

 As comemorações cívicas não têm compromisso com a história com “H” maiúsculo. Elas estão filiadas a mitos fundadores. O caso do aniversário do município de Rio Branco é um caso exemplar disso. Não adianta professores com doutorados fazerem pesquisas sérias, pois o Estado se torna surdo a qualquer tentativa de mudança nas tradições históricas, mesmo que elas esteja baseadas em mentiras e equívocos. Para simplificar, posso dizer que o mito fundador é uma narrativa imaginativa da origem de algo que ganha status de história por mera tradição. É preciso muita imaginação para acreditar que Neutel Maia, ao fundar o seringal Volta da Empresa, estaria projetando a capital de um futuro Estado brasileiro. Então, como um seringal, que era uma unidade produtiva rural, localizado em território estrangeiro ao Brasil, em um período em que o próprio Acre se quer existia, pode servir de referência para a capital do Acre? O município de Rio Branco não estava presente no ato de fundação do seringal. Uma coisa é o seringal, outra é o município. Uma é a data de fundação do seringal, outra é a do município. Acaso alguma mente lúcida ainda acredita no chamado “descobrimento do Brasil” em 1500? Claro que não! Ninguém descobre algo que ainda não existe. O Brasil só passou a existir em 1822. Assim como uma colônia lusitana não é Brasil, um seringal não é Rio Branco.  Somente os embriagados de anacronismo conseguem enxergar o 28 de dezembro de 1882 como data de nascimento do Município de Rio Branco.

  

Considerando que na comemoração do cinquentenário da cidade consideraram uma data, e no centenário consideraram outra, quais as implicações simbólicas dessas alternâncias de datas? Que tipos de interesses podem existir por trás dessas decisões?

 A história oficial do Acre é inclinada ao abuso, já que é inventada para ser “fantástica” e politicamente endossada para criar ufanismo, gerar otimismo e fomentar identidade coletiva desejável. Todos os políticos querem tirar proveito dela, uns menos, outros mais. Vivemos em uma terra em que a cultura do patrimonialismo era tão escancarada que a história era mudada por meio de decreto governamental. Os políticos gerenciavam a memória coletiva em gabinetes, decidindo o que devia ser lembrado e o que devia ser esquecido. De modo que o passado chega aos acreanos em uma versão “pasteurizada” e “higienizada”, ou seja, é o passado gerenciado politicamente. Falo assim por puro eufemismo, para não assustar dizendo que a história comemorada pelo Estado em suas datas cívicas é repleta de mentiras, equívocos manipulações.

Lembra o caso da data de aniversário da Polícia Militar do Estado do Acre? Pois, é! Só porque a data de criação dela foi escolhida para homenagear o início do governo dos militares em 1964, um governador civil “achou melhor mudar a história” e alterar a data de criação dessa instituição para uma data que não existia nem Estado nem governo unificado, ou seja, uma aberração. A “dança das datas” do aniversário da cidade de Rio Branco é só mais um exemplo dessa falta de ética. Se houvesse interesse do Estado em elucidar essa questão, ele já teria acionado historiadores de profissão. Departamento de Patrimônio Histórico da FEM, IPHAM e UFAC. 

A mudança das datas estão documentadas. Além dos decretos, temos o projeto de lei e as discussões parlamentares. Quem indicou a mudança da data? O parlamentar fazia parte de qual grupo político? Quais ligações o parlamentar tinha com o prefeito e o governador da época? E quais famílias tradicionais e quais empresários apoiavam o projeto de lei?  Na hora da votação, quem votou contra? Quem votou a favor? Quais documentos primários foram apresentados como justificativas para endossar a mudança da data no Projeto de Lei? Pois é. Faço perguntas só para suscitar o diálogo com os historiadores que o Estado tem lá na Fundação Elias Mansour. São eles que devem responder para o Estado e a sociedade tais questões. Por que eu, mero professor da UFAC com dois doutorados e um pós-doutorado, nunca deram e nunca dão  “ouvidos”, pois as mentiras continuam a se propagar como história a toda hora, tanto nas escolas, como na boca dos políticos em cada festa cívica que temos.

 Existe a possibilidade que em algum momento a capital e o estado passem a considerar a data de 1904 ou 1912, ou já passou do tempo de aplicar essa mudança, uma vez que já virou costume comemorar a data de 28 de dezembro de 1882?

As instituições de poder são conservadoras por natureza. Amam as tradições e desprezam as “inovações”. E se eu provasse com documentos da época que o evento que chamam de Revolução Acreana não foi uma “revolução” e nem foi “acreana”? E se eu provasse que o 6 de agosto não foi o início do Acre e que Plácido de Castro não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil? E se eu provasse que os soldados da borracha foram insignificantes para a vitória dos aliados na segunda guerra mundial? E se eu provasse que o tal “movimento autonomista” nunca foi porta voz da vontade do povo acreano? E se eu mostrasse que Guiomard Santos fez parte do movimento integralista que defendia o fascismo no Brasil e que ele foi um ferrenho defensor da Ditadura? Que Chico Mendes não foi esse ecologista nato que dizem e que o Acre contemporâneo continua uma terra de latifúndios, do clientelismo político e de miséria... mudaria alguma coisa? Certamente que não, o Estado e o Município continuariam ensinando essa ESTORIA linda de um povo heroico para os nossos filhos nas escolas, mesmo que todos nós da academia saibamos que toda essa narrativa não passa de estórias ... risos.

 

Eduardo de Araújo Carneiro – É professor Associado da Universidade Federal do Acre. É licenciado em História (UFAC), é bacharel em Economia (UFAC), é mestre em Letras (UFAC), é Doutor em História Social (USP), é Doutor em Estudos Linguísticos (UNESP), é pós-doutor em História (UFAM). É escritor membro da Academia Acreana de Letras.

 

terça-feira, 14 de junho de 2022

Entrevista com o Dr. Eduardo Carneiro (UFAC) sobre o aniversário do Estado do Acre e o movimento autonomista

 


O que pensa a respeito do aniversário do estado do Acre?

Todo aniversário constitui-se em uma data festiva, momento de homenagens e felicitações. Comemorar é lembrar-se do passado com alegria e, em um aniversário, a data de referência é a do nascimento. Então, a ideia que se tem é que o Estado do Acre está de parabéns e que o povo acreano deva render-lhe honras e congratulações. Entretanto, o povo é um sujeito anônimo (ausente?!) no Estado do Acre, desde a elaboração do Projeto de Lei da dita Autonomia, que não foi de iniciativa popular, até os dias atuais, em que “a máquina pública” não é usada para fins coletivos, como deveria. O povo não tem o que comemorar. A autonomia não tirou o Acre da menoridade, ele continua na condição periférica, dependente, primário-exportadora e latifundiária, com alta desigualdade social, como no período do Territorial. A prosperidade prometida não veio, muito menos o desenvolvimento. Os índices econômicos e bem-estar social no Acre são de lamentar. Quase 40% das famílias dependem de ajuda governamental e o próprio Estado, em pleno século XXI, ainda é carece de autonomia econômica. A participação da economia acreana no PIB nacional continua tão “nula” quanto na época territorial. Basta olharmos os dados sobre o alcance dos serviços de luz elétrica, saneamento básico, coleta de lixo, condições dignas de habitação, etc., para termos uma noção da condição quase miserável de parte da população. Vamos tirar a prova? Basta irmos lá no Jordão ou Santa Rosa do Purus (risos), mas tem “bolsões de miséria” até mesmo em Rio Branco. Infelizmente, desde que foi criado, o Estado só tem servido para o bem dos grupos de interesse que se revezam no poder através de seus políticos profissionais. Quando eleitos, a história sempre é a mesma, o Estado vira um “cabide de emprego” e os “pelegos” prosperam, quer sejam empresários ou “indicados”. Sem dizer que a corrupção é parte quase integrante da história desse Estado, a impunidade também, as aposentadorias para ex-governadores também e o endividamento público com empréstimos que ninguém sabe para onde foi também. O povo fica à margem, até que venha o próximo espetáculo eleitoral. O Estado do Acre que deveria ser um instrumento de promoção do bem-estar coletivo, serve a interesses particulares. Por isso, o povo se cala, em cada 15 de junho que passa, pois ele é um sujeito anônimo e ausente que aparece apenas nos discursos de quem está no poder. O governo convida para o aniversário, porém, quem acende e apaga as velas do aniversariante são os mandatários e “pelegos” da vez. É duro dizer, mas o povo não se reconhece no Estado do Acre.

 

Você afirma que o povo foi um sujeito ausente no Estado do Acre desde a origem do movimento autonomista até à elaboração do Projeto de Lei de apresentado por Guiomard Santos, em 1957, que visava a criação do Estado do Acre. Explique melhor.

 

A proposta de autonomia sempre esteve ligada a uma elite urbana, machista e letrada, quase sempre maçônica, em um Acre hegemonicamente rural, patriarcal, iletrado e oligárquico. Portanto, o projeto sempre careceu de participação popular. As discussões da cidade não tinham “eco” nas comunidades, que se mantinham indiferentes aos acontecimentos políticos, até porque pobre (analfabeto) não podia votar no Brasil e a comunicação no interior do Acre era péssima. Então, a defesa da autonomia estava ligada a pequenos grupos que, por sinal, nunca entraram em consenso, fazendo da autonomia acreana um projeto “esquartejado” por interesses políticos, econômicos e regionais. No início do século XX, os autonomistas do Juruá não apoiavam os autonomistas do Purus e vice-versa. Os autonomistas dos anos 1950 prometiam tudo a todos, mesmo assim, eram rejeitados. Os principais políticos e empresários do Juruá foram contra o Projeto de Lei proposto ao Congresso pelo Deputado Federal Guiomard Santos, em 1957. Eles temiam, como de fato aconteceu, que o Purus continuasse monopolizando regionalmente o orçamento público. Os seringalistas que, até então, gozavam de isenção tributária, temiam ter que pagar impostos ao futuro Estado. Os comerciantes temiam a elevação dos impostos. Os funcionários públicos federais temiam ser remanejados e serem rebaixados ao status de servidores estaduais. Além disso, um dos maiores caciques políticos da época, Oscar Passos (PTB), com os seus apoiadores, criticava o projeto. Dizia que a autonomia seria apenas política e não ocasionaria benefício algum na vida das pessoas comuns. Portanto, “o povo” é um sujeito ausente no processo de criação do Estado do Acre. A participação da mulher no movimento só aconteceu nos anos 1950 e de forma tímida e consentida, porque os autonomistas careciam de legitimação e apoio. Tentaram obter o apoio dos estudantes, prometendo-lhes ensino superior, porém, os estudantes foram às ruas em defesa da criação da universidade e não propriamente da Autonomia. Em síntese: na primeira eleição do Estado do Acre, Guiomard Santos perdeu a eleição de governador para um candidato desconhecido do Juruá. O PTB, partido que fazia oposição ao projeto de autonomia, ganhou todas as prefeituras. O resultado das urnas diz tudo, só não vê quem não quer.

 

Sobre o Movimento Autonomista, o que tem a dizer?

Não foi a continuação da dita Revolução Acreana, como dizem muitos, mas um movimento que teve origem na iniciativa do Estado do Amazonas em incorporar o território nacionalizado pelo Tratado de Petrópolis. Até a publicação do Decreto Presidencial Nº 1.181, de 25 de fevereiro de 1904, a única opção constitucional que se tinha era a incorporação daquelas terras ao Estado do Amazonas, pois esse Estado já administrava a região e era quem fazia fronteira com a Bolívia. Não havia a opção autonomista, pois a Constituição Federal de 1891 impunha diversas condições para a criação de um Estado, dos quais, nem o Purus e nem o Juruá se enquadravam, como ter mais de 300 mil habitantes, condições sanitárias básicas, urbanidade, etc., (não existia o argumento de que o Acre já fora um país e que podia ser um Estado. Todos sabiam que, de fato, o país Acre nunca havia existido, a não ser na cabeça de Galvez e de seus apoiadores. Afinal, declarar a região um país, não faz dela um país. É preciso o reconhecimento internacional, coisa que não houve). Surpreendendo a todos, o Governo Federal cria um “elefante branco” chamado Acre Território, algo inconstitucional para a época, mas que possibilitou pensar a região como algo diferente do Amazonas. Em 7 de abril de 1904, pelo Decreto Presidencial Nº 5.188/04, o território nacional banhado pelos afluentes do rio Purus e Juruá é, pela primeira vez, chamado de Acre. Imediatamente o Estado do Amazonas emite nota de repúdio e contrata Rui Barbosa para processar a União, no Supremo Tribunal Federal. A ação de “Petição reivindicatória de território” foi protocolada em 4 de dezembro de 1905, mesmo mês em que o senador amazonense Jônatas Pedrosa apresentou um Projeto de Lei que condenava a inconstitucionalidade do Território do Acre e solicitava a imediata incorporação das terras ao Estado do Amazonas. Foi nessa conjuntura que o movimento autonomista surge e ganha força, pois a “Revolução” defendia a brasilidade das terras do Purus (o Juruá é excluído) e não autonomia do Acre (Purus e Juruá), que nem existia na época como topônimo brasileiro. Não precisa ser um cientista político para identificar as reais intenções dos autonomistas. Eles queriam fazer no Acre o que todas as oligarquias regionais brasileiras faziam em seus respectivos Estados: se “apoderarem” da máquina pública, dos cargos, do orçamento, dos mandatos de governado, de deputados, de senadores, etc. Na “Velha República”, esse era o tradicional “caminho curto” para quem desejava obter poder, prestígio social e riqueza fácil. O que aconteceu quando o Acre se tornou Estado? Eu desconheço um único autonomista que tenha morrido pobre ou que tenha vivido sem se “lambuzar” em cargos políticos e mandatos. Guiomard Santos é o maior exemplo disso.

 

... E sobre a figura de Guiomard Santos? Qual a sua opinião?

É uma amostra grátis do “pra quê” o Estado do Acre serviu: fomentar o caciquismo político regional e o “parasitismo estatal”. Façamos um desafio: vamos contabilizar todos os gastos públicos que tivemos em mantê-lo como senador pelo Acre por 20 anos (1963-1983), ele e toda sua equipe de assessores. Depois, vamos contabilizar, os benefícios que a população acreana teve com essa sequência de mandatos. O saldo será positivo para o povo acreano ou para o “pai do Estado do Acre”? Falo “pai do Estado do Acre”, como ironia, pois essa consagração é típica de uma sociedade oligárquica que despreza o processo histórico e inventa “heróis”. Basta dizer que ele foi tão somente o autor do projeto e não o responsável pela aprovação dele no Congresso. No Congresso, a dinâmica é outra, não há espaço para o personalismo ou pelo suposto prestígio e persuasão de quem apresenta um projeto. Não se aprova Projeto de Lei gratuitamente sem o “toma lá, dá cá”. O partido de Guiomard Santos era maioria no Congresso e fazia oposição ao Presidente, mas essa discussão pouco importa para os inventores de heróis. Eu julgo que o povo não merece ter “cacique político” como herói. Não esqueçamos que Guiomard Santos era um conservador, apoiador da ditadura militar e faleceu como “senador biônico”. Não esqueçamos que ele foi um “camisa-verde”, como era conhecido os integrantes do movimento integralista que defendiam o fascismo no Brasil. Sem dizer que ele foi um legítimo representante da elite urbana. Ele não é heróis do povo, ele é herói do Estado e, o Estado do Acre, nesses 60 anos, tem se caracterizado como o espaço onde as nossas oligarquias políticas administram os seus interesses. Está na hora de nossos políticos pensarem mais no povo do que nas suas reeleições.

 

Tem algum ponto importante que queria evidenciar nessa data (emancipação)?

O Acre precisa sair desse estado de colonialidade, que lhe é centenário. O Estado, nesses últimos 60 anos, só perpetuou essa condição. O aniversariante não tem servido como instrumento de prosperidade regional. Basta que o tráfego de veículos seja suspenso na BR 364, no trecho que liga Rio Branco a Porto Velho, como em 2014, para que em menos de 10 dias falte “tudo” no Acre. O grau de dependência econômica é alarmante. Não produzimos “quase nada” do que consumimos e o pouco que produzimos é exportado, pois não visa o abastecimento do mercado local, como no caso da carne, castanha, madeira e açaí (por isso, são caros). Se pegarmos o gráfico da participação da produção acreana no PIB do Brasil nos últimos 60 anos, veremos que sofreu variação mínima e se manteve na casa dos 0,2%. O Estado não garantiu ao povo acreano a autonomia econômica, nem autonomia em energia elétrica e nem autonomia na comunicação rodoviária entre os municípios, nem saúde pública de qualidade, etc. Como não cumpriu o seu papel de agente do desenvolvimento regional, recebeu a punição de viver “com pires na mão”, mendigando verbas federais que, nada mais são do que a transferência, para o Acre, de riquezas produzidas em outros Estados do país. Está na hora de revitalizar o Estado do Acre, pois ele é um ente burocratizado e ineficiente, propício ao “parasitismo” e à corrupção. O estado tem endividado o povo acreano com empréstimos “de faz de conta”, a dívida é coletivizada e o dinheiro privatizado. Cadê a CPI da estrada que liga Rio Branco à Cruzeiro do Sul? Cadê o dinheiro da merenda escolar? Cadê os responsáveis pela falência do Banacre? E as viagens internacionais feitas com dinheiro público? Cadê o resultado coletivo delas? O Estado tem se tornado em um fardo pesado demais para a sociedade civil carregar. Será que esses políticos profissionais (os que vivem de fazer política) não percebem que o povo acreano não aguenta mais essa lógica eleitoreira que domina o gerenciamento do Estado? Nesses 60 anos de Estado do Acre, não temos o que comemorar, pelo contrário, temos muito a lamentar.

 

Qual a sua visão sobre a revolução acreana, que dá início ao Acre como território, antes da emancipação?

A “Revolução” não deu início ao Acre como território. O Acre Território foi uma decisão governamental baseada nas obrigações que o Brasil teve que assumir com o Tratado de Petrópolis. A dita “Revolução” não anexou um palmo de terra sequer ao Brasil, ela não foi a responsável pela nacionalização das terras do Juruá e Purus. O máximo que ela conseguiu fazer foi declarar independente algumas das regiões banhadas pelos afluentes do rio Purus. Portanto, o resultado prático dela foi o separatismo (ponto de vista boliviano) e a independência (ponto de vista brasileiro). A Questão do Acre era muito mais ampla do que a dita Revolução, esta terminou em 1903, enquanto aquela em 1909, com a assinatura do Tratado Brasil-Peru. Com a Bolívia, a questão se resolveu nos EUA e não às margens do rio Acre, pela via armada.  Naquela conjuntura, o Acre seria de quem os EUA quisessem. A Questão do Acre não era uma simples disputa territorial entre dois países sul-americanos e sim um palco de disputa imperialista entre EUA e Inglaterra. Os EUA eram os maiores importadores de borracha do mundo, em contrapartida, a Inglaterra era a maior fornecedora de borracha do mundo. A Inglaterra sabia que, desde 1823, os EUA praticavam a Doutrina Monroe: “América para os americanos”. Por isso, tratou logo de biopiratear as sementes de seringueiras amazônicas para a Malásia, garantindo, com isso, sua autossuficiência gomífera. Acontece que o Brasil era o único país da América Latina que ainda mantinha a Inglaterra como a maior parceira comercial, inclusive, vendendo-lhe, a título de monopólio, toda produção de borracha. Isso ofendia por demais os interesses norte-americanos, por isso, que eles resolveram mexer “nas pedras do tabuleiro”, ajudando a fomentar o “Bolívian Syndicate”, com diversos acionistas ianques, inclusive, o próprio irmão do presidente. Os EUA já haviam anexado a metade do México, incluindo o Texas em 1845 e a Califórnia em 1846. Em 1855, invadiu a Nicarágua, Cuba em 1891 e Caribe e Havaí em 1898. O Panamá, por influência ianque, estava prestes a proclamar a independência. O “destino manifesto” já era praticado nas Américas, subordinando as soberanias nacionais latino-americanas aos interesses ianques. Para os EUA, pouco importava com qual país latino-americano ficaria as terras do rio Acre, contanto que a Doutrina Monroe prevalecesse naquela região. Quem seria Plácido de Castro e seus exércitos de seringueiro diante dos EUA? O Barão do Rio Branco entendeu a situação e enviou aos EUA o diplomata Assis Brasil que confirmou o alinhamento do Brasil à Doutrina Monroe, caso esse país se mantivesse neutro, sem apoiar a Bolívia. Por isso que o Brasil teve que indenizar (subornar?) o Bolivian Syndicate, assumindo um papel que deveria ser da Bolívia. Mas foi uma decisão imposta pelos EUA, que não aceitaria seus acionistas no prejuízo. Foi somente após a solução da Questão do Acre com os EUA e com o Bolivian Syndicate, que a diplomacia brasileira se impôs contra a Bolívia.  Plácido de Castro não exerceu influência alguma nas negociações com a Bolívia, afinal, ele nunca foi o mentor intelectual da dita “Revolução”. A Junta Revolucionária, que era gerenciada de Manaus, incluiu Plácido de Castro no projeto para assumir uma missão estritamente militar.  Portanto, embora o resultado da “Revolução” tenha sido a proclamação da independência do Purus, o objetivo dela era garantir a validação dos títulos fundiários emitidos em Manaus e a permanência da coleta dos impostos sobre a comercialização da borracha pelo Estado do Amazonas. A “revolução” não foi responsável pela nacionalização das terras que formariam o Território do Acre, a Questão do Acre foi resolvida pelo Itamarati, mas a luta armada serviu para dar visibilidade nacional à causa amazonense.

 

Como assim “causa amazonense”? O senhor acredita numa participação amazonense na história de anexação do Acre ao Brasil?

Primeiramente, as terras incorporadas ao Brasil pelo Tratado de Petrópolis não se chamavam “Acre”. Quando o texto do referido Tratado menciona a palavra Acre é para se referir a um rio, que, por sinal, fazia parte da bacia hidrográfica do município amazonense chamado de Floriano Peixoto. Portanto, as terras banhadas pelo rio Acre eram conhecidas pelo referido topônimo municipal, vários documentos provam isso. Mas, basta dizer que o nome original da Expedição dos Poetas, na verdade, era Expedição Floriano Peixoto (1900), pois tinha como missão a libertação do território municipal amazonense Floriano Peixoto. Porém, a historiografia acreanocêntrica “apagou” o nome original e inventou o nome “expedição dos poetas”. Foi o governo do Amazonas que nomeou diretores de índios para o reconhecimento dos afluentes do rio Purus e Juruá, por isso contratou João Rodrigues Cametá, Serafim da Silva Salgado e Manuel Urbano da Encarnação, só para citar alguns dos que aparecem na historiografia acreana como  desbravadores, porém, só não é dito que estavam à serviço do Amazonas, que também foi quem viabilizou o serviço de transporte para a região do atual Acre. Conforme a migração acontecia, o Amazonas ia estendendo sua jurisdição, já que era a parte do Brasil que fazia fronteira com a Bolívia. Em fins do século XIX, ninguém migrava para as terras do rio Acre acreditando que se tratava de uma viagem internacional, pelo contrário, considerava-se uma viagem intermunicipal amazonense – de Manaus para Floriano Peixoto. Todo o território nacional da República estava dividido entre os Estados, de modo que, se lutaram para ser brasileiros, a brasilidade daquelas terras estava condicionada a amazonensidade delas. A “núcleo duro” da Junta Revolucionária era composta por funcionários públicos do Amazonas e o restante eram seringalistas que haviam adquirido títulos fundiários em Manaus, portanto, as terras do rio Acre eram cadastradas como amazonenses. Não existia um topônimo Acre, dando nome a um território brasileiro. Na época, Acre era um hidrônimo. A expressão “Revolução Acreana” queria dizer “revolução às margens do rio Acre”, ou seja, nada a ver com o gentílico “acreano” atual. Em meus livros, eu mostro diversos documentos comprovando que a “Revolução” se constituiu em movimentos armados financiados pelo Estado do Amazonas. Portanto, a historiografia intoxicada de acreanismo foi quem inventou a Revolução como um mito fundador da acreanidade. Revolução que, por sinal, não teve nada de revolucionária, pelo contrário, teve objetivos conservadores de manutenção da ordem. É preciso desacreanizar a história do Acre, pois ela é muito etnocêntrica, e isso transforma a narrativa do passado em uma epopeia de heróis, muito mais próxima da literatura do que da história. O Acre, enquanto topônimo que faz referência a um lugar em território brasileiro, só passou a existir em abril de 1904. Pensar a região banhada pelos rios Purus e Juruá com o nome Acre, anterior a essa data, é um erro de anacronismo. Lembra quando eu disse que Rui Barbosa ingressou com uma ação pública contra a União em nome do Estado do Amazonas? Pois é, a Constituição Federal de 1934, no seu Art. 5º, Disposições Transitórias, diz: “A União indenizará os Estados do Amazonas dos prejuízos que lhes teriam advindo da incorporação do Acre ao território nacional”. O Brasil teve que indenizar o Amazonas pela perda do Acre, ou seja, as terras do Acre deveriam ser amazonenses, porém, essa parte da história do Acre é censurada há anos... e quem sou eu para ressuscitá-la (risos).

 

Eduardo de Araújo Carneiro é Licenciado em História (UFAC) e bacharel em Economia (UFAC). É mestre em Linguagem e Identidade (UFAC), doutor em História Social (USP), doutor em Estudos Linguísticos (UNESP) e pós-doutor em História (UFAM). É professor da UFAC e membro da Academia Acreana de Letras. Autor de diversos livros e editor de mais de uma centena de obras.