“Quanto mais um poder dura, maior é a parte irreversível com a qual terão de contar aqueles que conseguirem derrubá-lo”. Pierre Bourdieu.
2.1 – A gênese e as várias faces do movimento autonomista acreano.
Desde a epopéia de Luiz Galvez no apagar do século XIX, e a partir dos primeiros momentos em que o Acre se constituiu como membro do território nacional, a questão autonomista foi algo que sempre se aventou como uma necessidade por certos grupos internos. Muitos autonomistas começam a se organizar, nesse contexto, no intuito de requererem um direcionamento político da “sociedade acreana” de maneira mais autônoma, que passasse preferencialmente por uma decisão final das oligarquias locais e o controle do poder executivo sendo decidido a partir de uma escolha emanada pelos auto-intitulados homens das “classes conservadoras” do Acre.
Internamente, as maiores brigas se estabeleceram entre os grupos políticos e econômicos dos vales do Acre - Purús e do Juruá. Onde neste último, ocorreram as mais fortes tentativas de contraposição à unificação departamental e intentos separatistas em relação ao vale do Acre - Purús.
Em princípio, não havia um movimento autonomista unificado e sim, vários focos autonomistas que foram surgindo ao longo dos anos: nos seus primórdios são movimentos dispersos e inconsistentes, em alguns momentos exacerbados em revoltas nos Departamentos — como as ocorridas no Alto Juruá e no Alto Purús — onde predominavam como justificativa os elementos políticos — principalmente ligados às diversas concepções de autonomia; — e, econômicos — vinculados à taxação elevada de impostos sobre a exportação de borracha.
Somente a partir dos anos 20 é que irão surgir, com certa regularidade, os jornais e panfletos autonomistas; nos anos 30 surgem os partidos e associações autonomistas e, a partir de meados dos anos 40, já com o fim do Estado Novo, a tese ganha força através de Guiomard Santos, dos seus partidários do PSD e alguns poucos membros do PTB, não alinhados a figura de Oscar Passos.
Todavia, já em 1904, surge na cidade de Cruzeiro do Sul, o chamado Movimento Autonomista do Alto Juruá, composto pelos comerciantes e personalidades locais. Estes primeiros ecos contestatórios conseguiram chegar à capital federal e “sensibilizar” algumas vozes parlamentares acerca da causa acreana. Pouco tempo depois, dois Projetos de Lei foram apresentados no Congresso Nacional, levantando a questão da autonomia dentro do ambiente legislativo brasileiro.
Como o Acre não contava com representantes legislativos, o primeiro Projeto autonomista foi apresentado em 1908 pelo deputado cearense Francisco Sá e um outro, em 1910 por Justiniano Serpa, ambos foram devidamente “esquecidos” e engavetados no Congresso Nacional. Pois não havia interesse nenhum do poder central em dar a pretendida autonomia política ao Território do Acre.
Mas, umas das primeiras medidas, coletiva e organizada, ocorreu em 1910, quando vários comerciantes de Sena Madureira enviaram uma carta, datada em 11 de abril, tratando da questão autonomista, ao presidente Nilo Peçanha. Esta missiva, que foi publicada na íntegra na Folha Official, abria com um texto da seguinte forma: “mensagem da maioria dos proprietários e commerciantes e industriaes, representantes da classes conservadoras do Alto Purús” e era assinada por 78[1] personalidades, os auto-intitulados “homens de bem daquela localidade”.
Como fica claro, o texto ressalta acima de tudo a condição econômica e a posição social daqueles que se consideravam “homens de bem”. Proprietários e, portanto, no entendimento deles, detentores de direitos que lhes eram negados enquanto cidadãos de fato. Isto relembra as bases do liberalismo clássico inglês, baseado no famoso lema “no representation, no taxation”. Nesta acepção, aqueles que pagam impostos e que têm propriedade a zelar, devem em correspondência ter seus direitos políticos assegurados e a cidadania apta a ser exercida em sua plenitude. Se isto não acontece, ocorre um cerceamento e uma incompletitude a partir da não correspondência entre direitos e deveres do cidadão. Acima de tudo, era isso que estava posto por essas vozes dissonantes do Território acreano.
Contudo, no período em apreço ocorreu um dos mais significativos levantes com signo autonomista. Foi a chamada “Revolta do Alto Juruá”, que teve seu início em 01º de junho de 1910, quando uma Junta Governativa[2] toma o poder e declara criado o Estado do Acre. Este movimento teve seu estopim quando chega à Cruzeiro do Sul, o novo prefeito nomeado pelo governo federal, João Cordeiro, “que a população recebeu com desagrado, acirraram os ânimos dispostos à insuflação de idéias subversivas” (Craveiro Costa, 1974, p. 164). Diante do quadro de animosidade que se instaurou, o prefeito, que só existiu formalmente no papel, embarcou de volta para o Rio de Janeiro.
O movimento era composto basicamente por seringalistas e comerciantes locais, ligados ao chamado Partido Autonomista do Juruá – PAJ. Teve inclusive o apoio inicial da Força Policial Federal, comandada pelo então capitão Fernando Guapindaia. O movimento contou “com apoio de todos os proprietários, dirigidos pelo venerado Francisco Freire de Carvalho” (ibidem, p. 164), presidente da Associação Comercial do Alto Juruá. Para tentar ganhar apoio do Departamento do Alto Purús, os insurretos do Alto Juruá propuseram nomear Sena Madureira capital do “Estado do Acre” e ainda, o coronel Antônio Antunes de Alencar, então prefeito do Alto Acre, governador do aludido Estado.
Este, encontrava-se em viagem à Manaus e se mostra pouco interessado em assumir a cadeira de governador que lhe ofereceram, preferindo ficar ao largo do movimento juruaense. Com esses entraves iniciais, provocados pela indiferença dos outros Departamentos, o movimento cruzeirense começou natimorto, pois fragmentado e sem o apoio dos dois co-irmãos era impossível lograr êxito nos seus intentos autonomistas. Mesmo assim, levaram-no adiante isoladamente.
Abaixo está transcrito fragmentos do intitulado Manifesto Autonomista, apresentado pela Junta Governativa em 01º de junho de 1910:
“É conhecida do país inteiro a situação humilhante e excepcional que o poder legislativo entendeu de criar para os brasileiros que habitam o Acre (...) banidos da constituição; relegados ao tempo da treda justiça d’El-Rei; considerados incapazes de intervirem nos negócios nacionais; exilados dentro da pátria; carecidos de tudo os acreanos (...) vêem o produto do imposto que pagam — o mais exorbitante do mundo inteiro — aplicar-se em serviços que não lhes aproveitam, em melhoramentos que não lhes beneficiam, em prazeres de que não gozam, em suntuosidade, que nem sequer imaginam. (...) Se todos os brasileiros são iguais perante a lei, não deve haver exceção para os 120.000 homens que habitam as terras acreanas (...) e se o governo, cerrando os ouvidos ao julgamento nacional, pretender impedir esse grande movimento de liberdade, que sobre ele recai a responsabilidade do que acontecer; que o sangue que se derramar fique como um estigma eterno na história da nossa nacionalidade[3]”.
Este levante durou cerca de três meses, com intensas negociações entre os segmentos políticos dos Departamentos acreanos. Causou ainda fortes preocupações junto aos comerciantes de Belém e Manaus, que se manifestaram contrários ao movimento[4] após a interrupção do envio da produção de borracha[5] dos seringais acreanos para estas praças, um duro golpe ao sistema de aviamento[6]. De acordo com um conhecido comerciante e seringalista da época chamado Gentil Norberto[7], residente no Alto Acre, esta “revolução visa escangalhar o fabrico e dar enorme prejuízo às praças do Pará e Manaus” (apud Craveiro Costa, p. 170).
O governo federal, preocupado com os acontecimentos, através do presidente da República Nilo Peçanha, envia à Manaus um telegrama datado de 13 de julho e endereçado ao prefeito destituído do cargo, com o seguinte teor: “o governo da República está disposto a agir resolutamente no sentido de fazer respeitar a autoridade federal e manter as leis vigentes. Convém aconselhar nossos compatriotas, cessarem o movimento insurrecional com o qual o governo não transigirá” (ibidem, p. 170).
Esta questão só chegou ao fim na primeira semana de setembro, quando o movimento foi sufocado pela Força Policial Federal, que no início tinha dado apoio aos chamados autonomistas. Mais uma vez, a força se sobrepôs ao consenso e a fugaz autonomia, sem alicerces sólidos, ruiu ao primeiro confronto. Ruiu porque, do ponto de vista econômico, estava causando um enorme prejuízo ao comércio local e regional pela interrupção da comercialização da borracha. Pelo viés político, causava intranqüilidade ao governo federal, que não poderia acatar movimentos de cizânia que colocassem em xeque sua autoridade.
Pouco tempo depois, o exemplo vindo do Alto Juruá reaparece no Alto Purús, cuja sede era a cidade de Sena Madureira. Em 1912 cerca de 350 pessoas, segundo relatos da época, se insurgiram contra o prefeito Tristão de Araripe, incendiaram a prefeitura, depuseram-no e proclamaram o Estado Livre do Acre. A insurgência contra a municipalidade foi deflagrada pelos “coronéis” e homens de poder da localidade, que forneceram todo apoio logístico para tal intento, mas o movimento logo foi sufocado e os insurretos foram obrigados a se refugiarem no seringal Oriente[8]. Este embate terminou com dois soldados mortos, um tenente e nove soldados feridos (Barros, 1981, p. 71). Mais uma vez, as aspirações autonomistas, isoladas e esparsas, foram reprimidas e momentaneamente controladas.
Com estes acontecimentos, a questão acreana ganha cada vez mais amplitude. No âmbito legislativo, em 1921, o deputado amazonense Aristides Rocha apresentou um Projeto na Câmara Federal, onde visava anexar o Acre ao Amazonas. O deputado Juvenal Antunes, do Rio Grande do Norte, apresentou parecer favorável ao referido Projeto. É o estopim para a fundação em 17 de novembro daquele ano da Liga contra a anexação do Acre[9], composta pelos chamados homens de bens e dignos representante das classes “conservadoras”, como se auto-denominavam. Frente a esta oposição, o referido Projeto não foi adiante. Este procedimento reforça mais ainda a idéia de que o governo federal não queria abrir mão do controle sobre o Território do Acre, dando lhe a autonomia.
No ano de 1927, em um artigo intitulado “Pró-alforria” e assinado pelo Juiz de Direito Giovanni Costa, a questão autonomista foi mais uma vez colocada em evidência. Dentre outras coisas, ele afirmava nos seguintes termos:
“somos cerca de 100 mil brasileiros sem direitos políticos, sem dispor de nossas rendas, lutando com toda sorte de agressividades, atrophiados pela indifferença da união, reduzidos a mera condição de colonos na própria pátria. Nunca tivemos a gestão de nosso bens, organização agrícola, formação industrial, estímulo para applicação das nossas atividades; pelo contrário, temos sido sempre um povo infelicitado pelas imposições do governo central, impingindo-nos governantes, sem capacidade econômica e social, sem amor pelos irmãos na raça”[10].
Um ano depois, no dia 08 de julho, foi organizado no Rio de Janeiro o Comitê Pró-autonomia do Acre, sendo eleita na ocasião a primeira diretoria cujo presidente era Octávio Steiner, que tinha como vice Paulino Pedreira. Os demais membros da direção eram Pedro Timótheo, Povoas de Siqueira, Laudelino Benigno[11] e Clodoveu Gadelha.[12] Todos eles considerados personalidades do meio político-social acreano, embora morassem na Capital Federal.
Mas, nem todos sem colocavam como defensores do intento autonomista de forma contundente. Em seu relatório de governo[13], apresentado ao Ministro da Justiça, Augusto Vianna do Castello, o governador Hugo Carneiro (27/30) afirma que a questão da autonomia não era oportuna, pois só uma diminuta parte dos habitantes acreanos aspirava tal intento e que “a maioria não está preparada para recebê-la e exercitá-la”. No entanto, em seu relatório ele advoga que sejam dados para acreanos os mesmos direitos políticos que ao restante dos brasileiros: o voto para elegerem os seus representantes legislativos federais e escolherem o presidente e o vice-presidente da república. Ironicamente, ele foi o primeiro parlamentar do Acre no Congresso Nacional, representando a facção política Legião Autonomista Acreana.
Embora fosse advogado, Hugo Carneiro não encarava a figura do Território Federal como algo inconstitucional ou extra-constitucional, como muitos à época viam a questão. Para ele, “a organização política do Acre tem sido e continua a ser uma instituição tutelar e de estágio, pela qual se vae preparando a formação de um futuro Estado autonômo na grande pátria commum” (ibidem, p. 128). Sua justificativa era eminentemente política, em consonância direta com a postura do governo federal.
Como chefe do executivo designado pelo poder central, seu discurso não poderia ser diferente. Era natural que todo e qualquer governador estivesse afinado com os ordenamentos vindo da capital federal, a quem deviam prestar contas do cargo que exerciam e gratidão política. Este ponto de vista se opondo à criação do Estado do Acre, Hugo Carneiro manteve muito tempo depois. Em 1958, ao conceder entrevista ao jornal carioca O Globo[14], o mesmo defende a manutenção do instituto do Território e faz criticas ao Projeto de Guiomard Santos, acusa-o ainda de pretender ser senador com a criação do Estado. Além destas questões colocadas anteriormente, no seu entender a criação do Estado do Acre serviria antes de tudo, para benefício político do seu autor.
Mas recuando um pouco no tempo, um limitante às pretensões autonomistas se deu com um entrave jurídico criado em 1934, quando foi aprovada a nova Constituição Federal. Versava a Carta em seu artigo 16, parágrafo 1°, que para ser eregido a Estado, o Território Federal teria que ter no mínimo 300 mil habitantes e recursos suficientes para manutenção dos seus serviços públicos[15]. Um duro golpe aos propósitos autonomistas, pois o Acre tinha menos de um terço da população mínima exigida. Passou ainda, ter taxas decrescentes de crescimento demográfico (vide em Apêndices, Tabela III), provocadas pela crise no volume produtivo da borracha amazônica e a derrocada do seu preço no mercado internacional, produto este que sempre foi o principal elemento impulsionador da economia local e o atrativo que fixou as bases colonizadoras da região acreana.
Com a crise extrativista dos anos 20 e 30, conseqüentemente, a dependência dos recursos repassados pela União se agravou ainda mais. Um alento fugaz à crise da borracha foi o advento da Segunda Guerra Mundial, ao permitir que a Amazônia, — e o Acre em especial —, adquirissem por razões estratégicas uma importância impar, após o domínio dos países do Eixo sobre os seringais de cultivo da Ásia. Desta forma, o Brasil e os EUA pactuam os famosos “Acordos de Washington”, que visavam acima de tudo a produção de borracha para atender a demanda dos países aliados no conflito. Novamente vêm para Amazônia uma leva nordestinos trabalhar como “soldados da borracha” nos declinantes seringais nativos nortistas (Martinello, 1988).
Com o fim da Segunda Guerra, as pressões locais frente ao governo federal sobre “a questão acreana” surgem novamente como assunto primordial. O setor do comércio, — que sempre foi um elemento importante na economia acreana —, em meados dos anos 50, também se manifestou no intento de requerer ao presidente da república um governador autóctone, não no sentido de nascimento; mas que residisse e não fosse uma pessoa estranha às hostes locais. Em uma carta enviada em 1953 ao presidente Getúlio Vargas, a Associação Comercial do Acre reforça esta tese ao afirmar ser que “o referido governador seja escolhido entre os homens aqui radicados para atender um pedido justo e um apelo angustioso”[16].
As vozes contrárias, embora em menor número e com menor intensidade e eco, também se manifestavam em âmbito local e nacional. Em Rio Branco, no final de 1960 o jornalista Foch Jardim, do jornal O Liberal, defendia em editorial a inconveniência da tese autonomista ao afirmar que
“somos de opinião que na atual conjuntura política e econômica do Acre, governador a ser nomeado pelo presidente da República deverá ser um estranho ao nosso meio e pessoa de inteira confiança, para que possa haver modificações na máquina administrativa, para que possa ser consertada muita coisa errada, o que qualquer pessoa ligada ao Acre não fará por questões de ordem política e social”[17].
De acordo com esse jornalista udenista, por mais paradoxal que possa parecer — já que todos governadores anteriores eram forâneos — somente um governador com total desvinculação com as questões políticas locais poderia romper com uma ordem de coisas que foi construída ao longo dos anos, por esses mesmos governadores em consonância com grupos locais. Para mudar, era preciso continuar aquele modelo. Naquela conjuntura, talvez um udenista de inteira confiança de Jânio Quadros, recém eleito presidente.
Na mesma época, em Cruzeiro do Sul, o jornal O Juruá[18] reproduziu uma reportagem originária do jornal carioca Tribuna da Imprensa cujo título era: “porque ainda é cedo para o Acre ser Estado”. Mas divergia deste em alguns pontos do referido artigo, principalmente no tocante a honestidade dos ex-governantes vindos para o Acre, pois segundo a Tribuna “era difícil apontar qual governador menos roubou” e ainda, “as verbas que o governo federal enviava para o Acre nunca chegavam lá”. O Acre era para o Diário de Noticias, um outro jornal carioca, retratado como “um Marrocos mal disfarçado”, talvez para fazer alusão ao aspecto colonizador e tendo no Acre uma situação semelhante[19] com a existência de governos intermitentes, quase rotativos e, vindos de fora.
Em editorial, o jornal O Juruá concordava com a tese da inconveniência do Acre ser elevado a Estado, pois segundo sua avaliação não haviam ainda condições para alcançar tal objetivo se não fosse modificada a forma de administração territorial. De acordo com o artigo, o Acre deveria ser dividido[20] em dois governos regionais devido as suas peculiaridades geográficas: Bacia do Juruá–Tarauacá e Bacia do Acre– Purús. Administrativamente os juruaenses requeriam uma atenção maior, sentiam-se diminuídos em relação ao Vale do Acre–Purús, região mais beneficiada devido facilidade de acesso e por ser a sede do governo territorial.
Preconizavam que ao se bipartir administrativamente o Acre, cada Departamento teria dois municípios com seus respectivos prefeitos e Câmara de vereadores, e o Território passaria a ter representantes nas duas casas do Congresso Nacional. Defendiam que todos os cargos administrativos fossem preenchidos a critério do Ministério da Justiça, com pessoas residentes há pelo menos dois anos no Acre e, após decorridos dois anos da implementação desse sistema, os Departamentos se tornariam Estados federados da República brasileira (Barros, 1981). Como se percebe, não houve interesse nenhum da União de atender tal proposta.
Em Cruzeiro do Sul, um sujeito chamado Aluísio de Carvalho e alcunhado de Lulu Parola[21], fez em forma de versos nas páginas de O Cruzeiro do Sul[22] uma crítica ao intento da autonomia. Dizia o seguinte, o verso Cantando e Rindo:
“Não sei como é que vão reorganizar
O Território do Acre tão falado
Há vontade autônomo o tornar?
Querem fazê-lo Estado?
Dar-lhe assento na câmara e no senado
Por si mesmo, fazer-se governar?
Se é isso: oh! Território celebrado,
Que presente de grego vão te dar!
Não queiras não! Prefere essa tutela
em que estás, da união!”[23]
Soberania hoje é muito melhor passar sem ela.
Sim! Que mal sabes tu, Acre inocente
Quanto custa hoje em dia
Viver qualquer Estado.... independente!”
No tom hilário e gozador do autor destes versos, percebe-se que a discussão autonomista era também vista com ressalvas, principalmente pelas obrigações constitucionais que ela trazia embutida, caso acontecesse. Mas, uma questão que sempre vinha à tona para os autonomistas cruzeirenses era optar entre Estado ou Território, e como promover a integração entre os dois vales distintos que eram separados por dificuldades geográficas imensuráveis. Por isso, no Alto Juruá sempre vingou e veio à tona a possibilidade de separação em relação ao restante do Acre. Esta propalada e necessária integração não era uma novidade naquela época de acontecimento insurretos que explicitei anteriormente.
Euclides da Cunha (1998), quando empreendeu viagem de reconhecimento à região acreana em 1906, ressaltava este aspecto limitante entre as duas regiões. Como engenheiro que era, propõe a construção de uma estrada de ferro, chamada Transacreana[24], que ligaria os Vales do Juruá e do Acre-Purús entre si. Serviria no seu entender como uma via auxiliar aos rios da Amazônia Ocidental, cortando-os de forma transversal e reduzindo a viagem entre Cruzeiro do Sul e Rio Branco para apenas um dia. Já que pelo deslocamento fluvial, era necessário um mês de navegação para ir de Tarauacá à Rio Branco, percorrendo quase sete mil quilômetros de águas. Era preciso para isso encampar uma verdadeira odisséia, descendo o rio Tarauacá até entrar no rio Juruá, depois sair no Solimões baixá-lo até encontrar as águas do Purús em viagem até a foz do rio Acre e subir para Rio Branco (Tocantins, 1998).
Era a natureza imprimindo seu ritmo e suas dificuldades aos homens[25]. Sem cair em determinismos geográficos, sou tentado a concordar que o tempo nestas paragens se exacerba e adquire contornos próprios, a geografia se apresenta adversa ao homem em todo instante. O tempo geográfico braudeliano parece ser vivido cotidianamente. Os rios sinuosos eram e ainda são as medidas de distâncias das viagens que ligam locais isolados pela floresta, onde para os “intrusos impertinentes” de Euclides da Cunha, a forma mais usual de percorrer a distância entre dois pontos não é seguindo uma reta, mas através das curvas dos rios.
2.2 – Os embates em torno do Projeto autonomista de Guiomard Santos.
A luta pela integração e emancipação acreana, se origina nos primeiros anos do século XX, depois se implementa dispersa e fragmentada em movimentos isolados nos Departamentos do território. Só tardiamente parece interessar aos representantes do Acre na Câmara Federal. É somente no final de 1950 que o ex-governador Guiomard Santos, num tino de oportunismo político, adota para si a bandeira da elevação do Acre a Estado e tenta capitalizar o êxito desta empreitada a seu favor no campo político local.
É dele a autoria do Projeto de Lei n°2654/57, que originou a “emancipação política” do Acre. Este Projeto foi apresentado em 1957, tendo sido aprovado e sancionado em 15 de junho 1962 por força do Decreto n° 4070/62, após discussões acaloradas no Acre e no Congresso Nacional. Mas a gênese deste Projeto pode ser encontrada em um discurso proferido pelo então deputado federal Guiomard Santos, no dia 17 de novembro de 1953, em alusão ao cinqüentenário do Tratado de Petrópolis[26]. Isto demonstra que na maioria das vezes, uma mudança para se realizar necessita produzir no imaginário coletivo algo que encontra no passado as bases de sua coerência ou justificativa. Assim, se meio século antes o Acre se tornara brasileiro, agora precisava deixar o estatuto de Território e se igualar às demais unidades federativas.
Nesse discurso, recheado com apartes de apoio, o ex-governador defende a criação de um Território Federal Independente. Território porque, segundo ele, não podia o Acre abrir mão das verbas federais que lhes sustentavam. Independente, porque deveria ter os mesmos direitos políticos que os outros Estados da União. No plano político, isto daria ao Acre o direito de eleger seu governador e dispor de uma Assembléia Legislativa, três senadores e sete deputados federais no Congresso Nacional, todos escolhidos de forma direta pelos acreanos.
Mais tarde, ao apresentar seu Projeto de Lei, Guiomard Santos passa a defender a idéia de um Estado federado à nação brasileira e afirma em defesa de seu intento, que o Território não possibilita um caminho para a democracia e sim, “conduz a fórmulas totalitárias” e que o fato do governador não depender do povo, “tudo estimula a prepotência e a arbitrariedade”[27]. É em cima de um discurso prometendo novos horizontes para o Acre, que Guiomard Santos consegue arrebatar na mesma intensidade apoiadores e críticos ao seu Projeto.
Dentre os críticos, alguns correligionários seus como João Mariano — ligado a Associação Rural e dono do jornal O Juruá —, residente em Cruzeiro do Sul e que através de algumas cartas enviadas[28] ao próprio Guiomard Santos explica o porquê de sua oposição ao Projeto. Para João Mariano, Guiomard Santos deveria insistir na saída mais sensata para aquele momento: elevar a região do Acre-Purús a Estado e que o Juruá em separado formasse um outro Território. Para sustentar sua opinião, afirma textualmente: “seria oportuno que se fizesse o Território do Juruá, uma vez que nossa condição não nos permite continuar unificados a Rio Branco, nem como Estado, nem como Território”.
Em Cruzeiro do Sul esta concepção também foi adotada pela Associação Comercial do Juruá, Associação dos Seringalistas, Centro Operário e Associação Rural, que criam em 1957 o Comitê Pró Território do Juruá para rivalizar com o Comitê Pró Autonomia do Acre, este último ligado à defesa do Projeto de Guiomard Santos. Os juruaenses inclusive, mandam uma carta ao presidente da República e outra ao relator do Projeto na Comissão de Constituição e Justiça, deputado Tarso Dutra. Ambas as cartas[29], com o mesmo teor e, intituladas “Memorial das classes conservadoras do Juruá Federal”, estavam assinadas pelos presidentes[30] das organizações classistas e patronais acima citadas, onde estes expressavam suas preocupações com a possível autonomia acreana e dos problemas advindos dela.
Os comerciantes e seringalistas, tanto do vale do Acre quanto do Juruá tinham um receio em comum, que fazia sua grande maioria ser contra ou ver com certa desconfiança a possibilidade do Acre ser elevado a categoria de Estado. Este receio era em relação a um possível aumento dos impostos sobre as mercadorias que comercializavam e sobre a industria extrativa da borracha. Em um evento ocorrido em Rio Branco, patrocinado através da Associações Comercial e Associação dos Seringalistas, que reuniu os dois grandes opositores políticos — Guiomard Santos e Oscar Passos, — isto fica patente quando os dois grupos patronais manifestam suas preocupações diante de ambos deputados.
O próprio presidente da Associação Comercial, Abrahim Isper Júnior, ao abrir a solenidade ressaltava que
“o grande medo são os impostos que fatalmente surgirão com a transformação do nosso Território em Estado. Medo também da burocracia, de uma máquina estatal que trará para aqui Alfândega, Ministério do Trabalho, Delegacia do Imposto de Renda, Capitania dos Portos, Instituto de Previdência Social, Sindicatos e quanta coisa mais que das vezes dificulta, embaraça e por demais aperreia os homens que querem liberdade de trabalho, liberdade de ação”[31].
Como fica evidente nesta fala, o maior temor para a maioria dos comerciantes e seringalistas era que o Estado traria novos ordenamentos fiscais e jurídicos através de órgãos reguladores e burocráticos. Isto iria alterar de sobremaneira toda estrutura na qual se assentavam os procedimentos comerciais e as relações de trabalho não formalizadas em contrato. Além da diminuição da suas margem de lucros, bem como a possibilidade de uma fiscalização sobre suas atividades econômicas, que durante longo tempo permaneceram ao largo de qualquer injunção estatal de caráter regulatório. Liberdade era ficar livre de qualquer ingerência do poder público que pudesse “prejudicar” seus negócios.
Quando a palavra é passada ao deputado Guiomard Santos, ele afirma categoricamente: “tenho a coragem de defender de público o imposto. Há quem queira passar por cima do assunto”. Era indubitavelmente uma alfinetada indireta ao deputado Oscar Passos, seu “inimigo” fidalgal, que se encontrava presente. E complementa tentando acalmar os “intranqüilos” homens de negócios: “não vou enganar o povo dizendo que não haverá imposto. Haverá, mas certamente pequeno e não será para já, mas para quando for possível, para quando se puder taxar” e de forma direta se dirige a platéia dos “homens de bem” e representantes das “classes conservadoras”, continuando o seu discurso nos seguintes termos:
“afirmo aos seringalistas: quem vai pagar o imposto não é o seringalista acreano, e sim quem consome, quem compra a borracha.(...) Não creio, seringalistas e comerciantes, que numa hora em que o Acre deseja ser progressista, deseja avançar, que vossas senhorias, por medo, por carrancismo[32], não queiram colaborar com o Estado do Acre. Não quero acreditar que nenhum acreano, em sã consciência, diga ‘não pago, porque só quero viver para minha família’, quando devia dizer: ‘pago, com prazer, porque posso pagar, porque estou ganhando mais e, por conseguinte, devo um tributo também ao povo e à coletividade’”[33]
O discurso de Guiomard Santos deixa claro que na sua visão, a permanência do estatuto do Território, bem como aqueles que se colocavam contra seu Projeto, estavam presos e situados a um passado superado. Era agora momento de uma nova etapa para o Acre, de novos horizontes, um caminho rumo ao “progresso” e para isso, era necessário a negação da velha ordem que claudicava. Guiomard Santos parece apelar para um fraternalismo e um espírito público dos comerciantes, em torno do seu Projeto, que talvez nem ele acreditasse ser possível angariar.
Oscar Passos por sua vez, utilizava como justificativa em sua oposição ao Projeto de Guiomard Santos, o subterfúgio de que o Acre não tinha recursos econômicos para caminhar em direção a uma autonomia nos moldes que seu opositor desejava. Com isso, ele procurava granjear para si o apoio dos seringalistas e comerciantes acreanos, que nas suas palavras “desde muito há essa mania de perseguir esses homens sem os quais o Acre não seria nada”[34]. Mas ressalvava que não era um opositor da autonomia acreana e sim, contra a proposta de Guiomard Santos. Na sua contradita, dizia ele em tom indagativo: “que vantagem advirá da imediata autonomia do Acre? Positivamente nenhuma. Vantagens terão os mandões atuais, que tudo farão para se manter no poder e sugar mais e mais a anemia (sic) da economia acreana”. Nestas duas falas percebe-se que embora ambos façam a defesa dos seus pontos de vista, também procuram deixar margem para relativizar os pontos mais polêmicos. Há uma certa dubiedade para não desagradar pôr completo os ânimos inquietos de uma platéia tão especial.
Excetuando a oposição mais ferrenha dos membros do Partido Autonomista do Juruá - PAJ, na verdade, a elevação do Acre a Estado era algo que todos concordavam. Mas esta era obstaculizada por interesses pessoais e de grupos: os comerciantes e seringalistas devido o medo de sentirem no próprio bolso uma sensível avaria nos seus lucros e uma mudança em torno das relações de trabalho que se encontravam baseadas em um certo tradicionalismo[35]; a turma do PTB liderada por Oscar Passos, porque se opor ao PSD e a Guiomard Santos significava acima de tudo sobrevivência política e a manutenção de uma aura de confronto perante parte da população. Assim, as oposições estavam pautadas em interesses imediatistas e pragmáticos, jamais ideológicos.
Para ilustrar, de antemão, destaco quase na integra, um artigo do deputado Guiomard Santos que considero bastante relevante. Importante acima de tudo pelos aspectos, abordados pelo seu autor, a respeito de como ele via o Acre nas suas diversas variantes, principalmente em relação a hegemonia plena do poder público. Afirma ele em seu texto intitulado o Estado Socialista do Acre, que
“o governo é tudo; é infelizmente, o dono de tudo. Eis, pois, um pequeno Estado socialista. A telha, o cimento, os caminhões são do governo. Todos os estabelecimentos de instrução são do governo. Todos os trabalhadores da cidade ganham pelo governo. Quem não trabalha nas obras do governo, é funcionário do governo, que detém assim, todos os empregos, quase sem exceção. Acrescentemos o avião, a Guarda Territorial, os médicos, os dentistas, os agrônomos, os mecânicos, os choferes, os eletricistas, os carpinteiros, os pedreiros, os pintores, os encanadores, etc. tudo está engrenado ou depende do governo.
Relevando um pouco o tom hiperbólico do seu texto, de certa maneira, era isso o que acontecia. Existia no Território do Acre um poder público que abarcava quase todas as dimensões da existência social, constituído-se em uma seara privilegiada para a manutenção de interesses restritos a grupos reduzidos de pessoas, que amealhavam todas as vantagens e prerrogativas que este modelo possibilitava. É substancial aqui aludir, de modo paralelo e comparativamente, à uma passagem em que Marx (1997) comenta algo similar sobre o mesmo fato, acerca da nação francesa em meados do século XIX.
Diz ele que lá “o poder executivo controla um exército de funcionários e portanto mantém uma imensa massa de interesses e de existências na mais absoluta dependência, onde o Estado, enfeixa, controla, regula, superintende e tutela a sociedade civil desde suas mais amplas manifestações de vida” (idem, p. 66). Sem cair em anacronismos, era isso que ocorria no Acre comentado por Guiomard Santos em seu artigo.
Ao fazer esta constatação tardia, talvez Guiomard Santos não quisesse destruir esse modelo que o beneficiava politicamente, mas reduzi-lo à esfera do essencial, de uma pretensa res publica palidamente liberal, sem destruir estruturalmente a galinha dos ovos de ouro que era a máquina executiva estatal. Liberar o poder público do fardo de ter que se ater com tudo e todos.
Parecia querer que o Estado passasse a se preocupar com as suas funções básicas enquanto tal, porque
“o povo está de fato convencido que o governo é para guardar, cuidar, limpar, curar, dar, melhorar, resolver ou salvar tudo! E sozinho! Uma letra protestada, uma desavença entre amigos, alguém que ficou sem casa, um pobre que não encontra comida, uma tábua que faltou na construção particular, uma viagem imprevista por motivo de saúde, enfim até uma carta que desgostou o seu destinatário, qualquer coisa assim pode originar consultas a sua excelência o mais atribulado dos governadores, o governador designado da União no Território Federal do Acre.
Mas como já foi ressaltado, era assim que os governadores territoriais comandavam o poder local. Exorbitavam nas suas funções ao agirem através de uma rede variada de compromissos que assumiam diante de seus apadrinhados. Por isso o executivo parecia, para todos, ser apto a resolver os interesses mais comezinhos, ser capaz de delegar, mandar, manter e concentrar para si as ações mais elementares de regulamentação do cotidiano. Essa capacidade exacerbada de atos do chefe executivo era oriunda do modelo de governo territorial implantado décadas antes: um poder executivo forte, sem o elemento legislativo presente e um sistema judiciário deficiente, geralmente atrelado ao primeiro.
Expressado ainda no fato do chefe executivo ser uma escolha do presidente da República e que só a ele prestava conta dos seus atos. A sua lealdade era mais significativa com os interesses da União do que com os governados e com a unidade federativa. Junto a isso, os órgãos federais instalados no Acre Territorial foram desde o início transformados em agências de empregos, de locus para a troca de favores políticos e econômicos. Tudo bem articulado, contando com o beneplácito do governo federal e das oligarquias locais.
Depois de já ter sido governador e ocupando uma cadeira no parlamento federal, Guiomard Santos reconhece tardiamente que o modelo implantado em 1921 era de um
“Estado árbitro, o Estado intervencionista, coordenando e burocratizando a sociedade, a economia, as finanças e a vida material do Território. Sistema patriarcal com suas pequenas vantagens e as suas grandes desvantagens de carregar o peso monstruoso de todos os interesses particulares e particularistas. Do lado de fora restam apenas uma dúzia de seringalistas – comerciantes e a massa de seringueiros párias.
Estes são compradores forçados de seus patrões, assim como os patrões se acham algemados aos bancos e as casas aviadoras. Do panorama acima deduzem-se os malefícios de semelhante estado de coisas. Todas as pessoas que vieram para o Acre, desde o seringueiro aos governadores e magistrados traziam a idéia de voltarem aos seus estados no mais curto espaço de tempo”[36].
O emprego público era a vocação de todos e o Estado o elemento que possibilitava essa realização. Este discurso contém um elemento central, que o explica parcialmente: a partir da decadência do modelo extrativista, grupos hegemônicos da economia acreana, tanto empresários seringalistas quanto os grandes comerciantes urbanos, inclinam-se em influir diretamente na máquina estatal.
Passam a ver este espaço como um locus privilegiado para manutenção dos seus negócios e imprimem um direcionamento que passou a visar o poder político como garantidor de interesses particularistas. Isso nos leva a concordar, que no Acre ocorreu também o caso clássico em que “a partir da decadência econômica de seus empreendimentos, a elite local inclina-se por substituir as externalidades econômicas por externalidades políticas” (Souza, 1999, p. 68). Ao se adotar essa prática, ficava explícito que o importante era continuar expressando a distinção e o poder, seja no âmbito privado ou público; que no caso acreano, não estava claro onde terminava um e começava o outro.
Antes, a máquina pública estava em um patamar secundarizado em relação ao modelo econômico, depois gradativamente passa a ser o inverso que interessa: os próceres do modelo econômico, baseado no comércio capenga e no extrativismo decadente, passam a ver no Estado uma arena crucial que daria possibilidade de sobrevivência de seus negócios, poder e status.
O concreto é que a organização do aparato público e do aparelho de Estado, não era universalista nos seus procedimentos, nem meritocrático na arregimentação dos servidores. Por não existir concurso público, predominava o esquema de conexões políticas em detrimento à competência, o Título e o saber. Era um modelo acima de tudo com fortes cores clientelistas, baseado no compadrio e nos interesses das oligarquias — internas e externas — que o comandavam.
2.3 - Guiomard Santos versus Oscar Passos: apogeu do poder personalista e do clientelismo político.
Durante cerca de duas décadas (40/60), estes dois personagens que militavam em campos partidários opostos, irão monopolizar a vida política acreana. Tanto Oscar Passos como Guiomard Santos, foram primeiramente governadores nomeados do Território do Acre, depois passaram a dedicar-se ao parlamento federal e se tornaram-se as principais lideranças de seus partidos — respectivamente PTB e PSD —, sendo que, em torno de ambos tudo e todos gravitavam. Enquanto estiveram em cena, procuraram monopolizar as indicações dos principais cargos federais, inclusive influenciando na escolha dos governadores indicados para o Acre neste período.
Personalizaram em suas pessoas as vantagens do poder, mantendo sobre controle os seus apadrinhados subalternos, todos inseridos em uma rede de relações fisiológicas e clientelistas, explicitadas nos recursos estatais. Para Edson Nunes (1997), em um estudo singular sobre esta temática, o clientelismo é um processo de troca de favores que impregna as instituições formais do Estado, através de uma burocracia que opera este sistema de trocas e que suplanta o sistema partidário, colocando-o em posição secundária (idem, p. 33). No Acre, esses homens estavam acima dos partidos e estes, a serviço de seus intentos políticos, que se confundiam ao ponto de não se separar os interesses públicos dos privados.
Em períodos eleitorais, as disputas eleitorais entre Guiomard Santos e Oscar Passos eram sempre acirradas e com acusações de ambas as partes dando o tom. Em 1954, quando ocorreram a eleições para a escolha dos dois únicos representantes acreanos para a Câmara Federal, eles lançam-se candidatos pelos seus respectivos partidos. Oscar Passos (PTB) concorre em uma chapa tríplice, que era complementada por Ruy Lino (PTB) e Adalberto Sena (UDN). Guiomard Santos, do PSD, encabeça a chapa Coligação Democrática Acreana, tendo ainda como candidatos — apenas para lhe “puxar votos” — Manoel Fontenele de Castro (PSP) e frei Peregrino Carneiro (PDC), o primeiro tenente-coronel e o outro ligado a Igreja Católica. Aliança nada inusitada em se tratando da política brasileira.
Em um dos panfletos de propaganda da chapa, publicado no jornal O Rebate, estava estampado: “o comunismo lutará e empregará todas as forças para impedir a nossa eleição. Eleitor acreano, pensa na tua família, no futuro dos teus filhos, na tranquilidade do teu lar, votando nos candidatos que acima de tudo obedecem o lema: Deus e família"[37].
Em um outro panfleto, estampado no mesmo jornal e na mesma data, lia-se: “empunhando em uma mão a arma branca do voto e na outra a cruz de cristo, haveremos de expurgar de uma vez por todas a horda vermelha”[38]. Estes slogans visavam minar a candidatura de Oscar Passos, ligado a PTB, partido cujo o epíteto à época era de ter em seus quadros partidários do “credo comunista”, um bom elemento naquele período para tentar colocar adversários em descrédito. Oscar Passos era acusado ainda de ser favorável ao divórcio, tese combatida principalmente por grupos conservadores e pela Igreja Católica através do jornal “Mensageiro cristão”. Com as eleições finalizadas, mais uma vez estavam eleitos Guiomard Santos e Oscar Passos[39].
Mas os acordos entre os dois grupos políticos[40] também eram comuns, principalmente quando era para conformar certos arranjos políticos que beneficiavam um e outro. Em 1953, o PSD e o PTB pactuam um acordo amplo que visava a nomeação do novo governador que substituiria João Kubitschek, que pedira exoneração do cargo.
O próprio presidente do PTB acreano, Wagner Eleutério, em entrevista[41] confirmou de forma detalhada as bases dessa combinação, que estava estruturada da seguinte maneira: o PSD indicaria o governador[42] e teria ainda ao seu dispor os Departamentos de Obras e Viação, Educação e Cultura, Produção, Chefia do Gabinete e as prefeituras de Cruzeiro do Sul, Tarauacá e Brasiléia.
Com a partilha acertada em comum acordo, coube ao PTB a Secretaria Geral, os Departamentos de Saúde, Administração, Geografia e Estatística e ainda, as prefeituras de Rio Branco, Feijó, Xapuri e Sena Madureira. Era a explicitação do chamado “Estado de compromisso” originado no Brasil a partir do período Vargas, caracterizado pelo fato de nenhum ator ou facção política ter uma supremacia clara sobre os outros e não poder sobreviver isoladamente e sem dispor da corretagem estatal (Nunes, 1997, p. 26). Desta forma, constituía-se um círculo fechado e restrito, que embora marcado por contradições internas, se mantinha no poder através de acordos e compromissos.
Após aparar as arestas e feito os acertos locais, era a vez de Guiomard Santos e Oscar Passos usarem de suas influências e bom trânsito junto ao MJNI para a concretização daquilo que beneficiava além de ambos, os dois maiores grupos políticos do Acre que estavam sob seus domínios. O próprio Guiomard Santos comentou de forma clara este conluio político ao dizer que “fez-se apenas um esquema inter-partidário visando os cargos em comissão”[43]. Afirmava ainda de maneira incisiva que o esquema “não envolve compromissos eleitorais futuros (...) mas reforça muito a autoridade dos partidos e o nobre gesto do governador (indicado por eles!) em conceder aos partidos de expressão eleitoral no Território, o direito natural de pleitearem os altos posto políticos, está sendo mal interpretado pelos saudosistas”[44]. Eis a admissão de um poder centralizado nas mãos de grupos restritos, que vêem com uma “naturalidade orgânica” o enfeixamento e a partilha do poder sob seus domínios. Com isto, estes acordos pragmáticos e momentâneos, procuram colocar à margem outras forças políticas, que ficam impossibilitadas de emergirem diante de tal quadro.
Por sua vez, Oscar Passos corrobora o que Guiomard Santos dissera e coloca a questão da seguinte forma: “não há nada de indecoroso e humilhante no acordo para governador (...) esses acordos incluem, obrigatoriamente, cláusulas de distribuição equitativa de postos de governo, para evitar o que se passava anteriormente, quando um só partido monopolizava todos os cargos”[45]. Formava-se assim um rede ampla de “corretagem política”[46] que se espraiava por toda máquina governamental e prefeituras dos municípios acreanos, pautada na distribuição de cargos entre partidários do PTB e PSD.
É evidente que além dos cargos de comissão no primeiro escalão, haviam também acertos para cargos do segundo escalão, bem como os cargos nas prefeituras. Era a cristalização da utilização da máquina pública “com bastante eficácia nas disputas eleitorais do mercado político para garantir a continuidade dos detentores do poder” (Schwartzman, 1982, p. 67).
“Governo” e “oposição” eram termos sem grandes significados de conteúdos que indicassem e demarcassem campos claros de ação política ou consistência ideológica, o que importava antes de tudo era o “controle das agências governamentais para o exercício do clientelismo” (idem, p. 136), que ocorria uniformemente em todo o Território. Sem sombra de dúvida, o que existia era uma teia ampla de acomodações políticas e compromissos que eram essenciais existirem para conformar grupos e sujeitos hierárquicos e diferenciados, que não conseguiam subsistir fora desta ordem de coisas que era vista como “natural” e necessária.
2.4 – As últimas cenas do regime territorial e a transição para Estado.
Com o modelo territorial em vias de extinção e as turbulências e tensões políticas que aconteciam no país, agravadas mais ainda pela renúncia do presidente Jânio Quadros no segundo semestre de 1961, o quadro político local também sofre alterações no seu tabuleiro. Logo que recebe a notícia relatando o cenário político nacional, o governador Altino Machado, junto com seu secretário imediato, que exercia também o papel de vice-governador, “solidariamente” renunciam e o presidente interino, Ranieri Mazzili indica, também interinamente, Oswaldo Pinheiro de Lima para o cargo de governador do Acre.
Ao se acomodarem momentaneamente as turbulências nacionais, no Acre a pauta volta ser novamente a procura para uma definição da questão da autonomista. Após aprovação do Projeto no Congresso Nacional e assinatura de João Goulart, novo presidente que assumia a vaga do renunciante, o Decreto que elevou o Acre a Estado determinava que as eleições para governador e cargos legislativos deveriam ocorrer em um prazo de três meses. Ficava aos deputados estaduais eleitos e empossados, a função de Constituintes e o governador tomaria posse somente no dia da promulgação da nova Constituição Estadual. Caso a Constituição não fosse promulgada quatro meses após a posse dos deputados, o Acre passaria a fazer uso da Constituição do Estado do Amazonas até a aprovação da sua carta magna.
Nesse período de transição, era governador do Acre o agrônomo e Delegado da União Ruy da Silveira Lino, que além de ser o primeiro governante nascido no Acre, assumiu o poder em 29/10/61 quando ainda predominava o regime territorial e deixou-o em 06/07/62, — quando o Acre já tinha sido elevado à categoria de Estado, — por força e necessidade de desincompatibilização para candidatar-se a deputado federal. Com isto, o último governante nomeado para o período de transição foi Aníbal Miranda, que assume durante sete meses até a posse do primeiro governador eleito[47].
Esta decantada autonomia, requerida durante décadas, foi um parto difícil e implementada após longos embates entre grupos privilegiados, internos e externos. Foi acima de tudo uma transição passiva e controlada pelas mesmas pessoas que se beneficiavam no regime anterior, foi uma mudança de cunho conjuntural e permeada por exclusões. Organizada e conduzida de forma descendente e que trouxe consigo as entranhas do modelo territorial, baseado em práticas autoritárias e personalistas. Uma mudança com continuísmos, vícios e sem rupturas, características que sempre predominaram na política brasileira, no Acre não foi diferente.
Este longo e duradouro parto autonomista, embora necessário, ocorreu de cima para baixo, sem participação ou clamor popular e dirigido por grupos políticos internos, que viam na autonomia o deslocamento e a definição do poder para a esfera local. Deve-se pensar que junto a isto, houve vontade do governo federal em mudar o estatuto acreano. Também não parecia ser mais interessante à União manter e administrar os problemas acarretados pelas demandas acreanas, Território cujo modelo econômico já não justificava mais a tutoria exercida durante mais de meio século. Foi dada ao Acre uma alforria semelhante àquela concedida aos escravos em 1888: paradoxalmente ser “livre” para se submeter às novas amarras, tirando o peso da responsabilidade do seu então tutor, o Estado nacional.
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[1]Examinado o conjunto da lista que compunha estas 78 assinaturas, existem nada menos 49 militares de altas patentes, 42 seringalistas, 38 comerciantes, 01 capitalista, 03 advogados, 01 tabelião, 01 agrimensor e 02 industriais. O número evidentemente excede as 78 assinaturas e se explica devido ao fato de muitos se auto-intitularem como pertencentes a mais de uma categoria profissional e/ou social. Folha Official, p. 04, abril de 1910. (este jornal era o órgão oficial da prefeitura do Alto Acre).
[2]A Junta Governativa foi formada pelos coronéis Francisco Freire de Carvalho, João Bussons e Mâncio Lima. Tinha como suplentes o major Francisco Borges de Aquino, coronel Alfredo Teles de Menezes e o major Glicério de Vasconcellos Pessoa (Cf. Craveiro Costa, 1974, cap. 18).
[3]Craveiro Costa (1974, p. 170).
[4]No dia 14 de junho de 1910 o jornal carioca A Gazeta de Notícias publica as reivindicações dos autonomistas do Juruá: “entre essas medidas há notícias da prohibição da saída de borracha até a confirmação da autonomia; creação de vários cargos judiciários; organização de um novo corpo de segurança; (...) imposição para que o imposto de 20% sobre a exportação da borracha seja reduzido a 15%, cobrado na alfândega de Manáos e Pará e, pela União até o praso de 05 annos; creação de uma câmara de deputados com 20 membros (...).
[5]“A vida do Acre era a borracha. Em torno dela gravitavam todos os interesses, todos os labores, todas as ambições”. Craveiro Costa (1974, p. 185).
[6]O sistema de aviamento era toda uma cadeia de relações que envolvia a produção de borracha na Amazônia. Genericamente era baseado numa pirâmide de relações e compromissos que envolvia de forma descendente grandes empresas européias que importavam a borracha amazônica, as casas comercias e exportadoras de Belém e Manaus, que supriam os seringais com as mercadorias, o seringalista e por último, o seringueiro, imprescindível para a extração do látex e quem menos se beneficiava dele.
[7]Formado em engenharia, Gentil Tristão Norberto veio para o Acre em 1900, fazendo parte da famosa “expedição Floriano Peixoto”, patrocinado pelo governo do Amazonas para dar combate aos bolivianos.
[8]A Gazeta do Purús, 1981.
[9]A primeira reunião ocorreu no Cine Éden e tinha como participantes os membros do PRAF e do PEA. A Capital, nº 16, p. 01, 27/11/21.
[10]Folha do Acre, nº 565, p.01, 27/03/27.
[11]Ex-governador interino, vide em Apêndices.
[12]“Comitê pró-autonomia”. Folha do Acre, n° 642, 12/07/28.
[13]“Governo do Território do Acre”, (1930, pp. 126/134).
[14]Apud Bezerra (1992, p. 197).
[15]O parágrafo terceiro, deste mesmo artigo, denominava constitucionalmente a figura do governador do Território de “Delegado da União”.
[16]“Pede a Associação Comercial do Acre”. O Acre, n° 1118, p.01, 26/04/53.
[17]O Liberal, datado de 24/12/60. Era um semanário irregular auto-intitulado “um jornal em defesa dos interesses populares” e que fazia oposição a Guiomard Santos. Foch Jardim era militante da UDN e por “coincidência” Jânio Quadros assumiria a presidência da República alguns dias depois.
[18]O Juruá foi fundado no ano de 1953 em Cruzeiro do Sul. Seu proprietário era João Mariano da Silva. Na Tribuna da Imprensa a matéria foi publicada dia 10/04/61 e n’ O Juruá dia 28/06/61, n° 116, pp. 01/03/04.
[19]Diário de Noticias, 28/03/56.
[20]Esta proposta tardia soava como café requentado. Em 24 de maio de 1927, o coronel Mâncio Lima, então Intendente de Cruzeiro do Sul (1927/1934), envia telegramas ao Senado e à Câmara Federal, pedindo a divisão do Acre em duas administrações (Alto Tarauacá e Alto Juruá/Alto Acre e Alto Purús).
[21] Parola vem do verbo parolar e significa sujeito falastrão, tagarela.
[22]Órgão oficial do Departamento do Alto Juruá, criado na administração do marechal Gregório Thaumaturgo de Azevedo. Circulou entre os anos de 1906 e 1918.
[23]In Barros (1982, p. 72). O autor do livro não faz referência à data de publicação no jornal O Cruzeiro do Sul, certamente ocorreu após a revolta do Juruá, provavelmente entre os anos 1912 e 1915.
[24]Pelos cálculos de Euclides da Cunha a estrada teria 29.040.000m² (726 mil metros de extensão com 40 metros de largura) com um custo aproximado de 1:1:452.000$000. Cunha (1998, p. 133).
[25]Para Euclides da Cunha, o homem amazônida “é um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado e querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu luxuoso e vasto salão” (idem, p. 66).
[26]Bezerra {(coord.) 1993, p. 50}.
[27]O Jornal, 10/02/57.
[28]Datada de 03/03/57, apud Bezerra, 1992, p. 77.
[29]Datadas de 30/04/57, apud Bezerra, 1992, pp. 148/150.
[30]Manoel Borges de Paiva - Centro Operário; Raimundo Quirino Nobre – Associação Comercial; Moacir Rodrigues – Associação Comercial e João Mariano – Associação Rural.
[31] Este debate aconteceu no ano de 1957, não sabemos precisar o dia. Apud Bezerra (1992, pp. 290/291).
[32]Apego ao passado.
[33]Idem, ibidem, pp. 313/320.
[34]Idem, ibidem, p. 344.
[35]O uso deste termo remete a Weber (1998). Para ele, a dominação tradicional ocorre quando a legitimidade repousa nos poderes senhoriais em virtude de regras tradicionais não inclusas em estatutos universalizantes, impessoais e abstratos. Neste caso, não existe a figura do “funcionário”, mas do “servidor” (idem, p. 148).
[36]“O Estado socialista do Acre”. O Rebate, n° 1011, pp. 02/04. 18/05/52.
[37]O Rebate, nº117, p. 01.
[38]Idem.
[39]Pela chapa de Guiomard Santos, este obteve 4.178 votos, frei Peregrino 1.185 e o coronel Fontenele 1.755. Já Oscar Passos teve 3.998 votos, Adalberto Sena 1.174 e Ruy Lino 234. Votaram ao todo 12. 551 eleitores. O Juruá, ano 02, n° 35, p. 03, 01/01/55.
[40]Em âmbito nacional também ocorriam acordos semelhantes entre esses partidos. Nunes (1997) ao analisar o governo de Juscelino Kubitschek neste mesmo período afirma que: “João Goulart (vice-presidente) controlava a política trabalhista através do Ministério do Trabalho e de uma rede corporativista que unia sindicatos, institutos de previdência social. O PSD controlava outras redes clientelistas na administração, através de ministérios como Viação e Obras Públicas, Justiça, Agricultura e Fazenda” (p. 109).
[41]“Acordo amplo”. O Acre, nº 1119. P. 01, 03/05/53.
[42]O PSD indicou o nome do major Adolfo Barbosa Leite, como segunda opção tinha o do coronel Manoel Fontenele de Castro. Getúlio Vargas acabou indicando Abel Pinheiro para o cargo (vide em Apêndices, Tabela V). No entanto, isto não redundou em nenhum empecilho para o acordo previamente estabelecido.
[43]“Exploração em torno do acordo político no Acre”. O Acre, nº 1134, p. 01. 06/09/53.
[44] Ibidem. Os grifos são meus.
[45] “Desmascaramento”. O Acre, nº 1135, p. 04. 13/09/53.
[46]Termo cunhado por Nunes (1997).
[47]Confira nos Apêndices a Tabela V.
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