quinta-feira, 17 de março de 2016

A REVOLUÇÃO ACRIANA E A GÊNESE DO POVO ACRIANO




“Não podemos nos esquecer que antes da Revolução não havia acreanos, mas tão somente brasileiros do Acre. E foi durante essa luta que surgiu nossa identidade como povo” (VIANA, Jorge. Apresentação. In: CALIXTO, 2003).

Esta identidade, bastante fraca, contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob uma máscara é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela disputam(FOUCAULT, 2001, p. 34).

O Acre constituiu-se no final do século passado, como uma unidade de território, povo e Estado(VIANA, Jorge. Apresentação. In: Revista Galvez e a República do Acre, 1999).




A história oficial afirma que os brasileiros do Acre foram movidos pelo patriotismo quando resolveram se unir para “expulsar” os bolivianos daquelas terras. Então, nesse caso, o patriotismo foi o motivo e, a guerra, o acontecimento mobilizador da comunhão. Mas realmente houve um consenso entre os acreanos em relação à Revolução Acreana? Teria ela significado a mesma coisa para todos os que nela se envolveram?  É provável que não.
O discurso histórico fez da revolução o exemplo constituinte da unidade do povo acreano, no entanto, é inegável que durante todo período revolucionário, de José Carvalho a Plácido de Castro, sempre houve dissidentes - aqueles que apoiavam o governo boliviano; opositores – aqueles que desejavam esperar a intervenção direta do governo brasileiro na questão; indiferentes – aqueles que, mesmo sabendo da insurreição, preferiram não fazer parte dela; e desinformados, aqueles que nem ao menos tomaram conhecimento da revolução.
Em maio de 1899, José Carvalho (2003), o líder da chamada “primeira insurreição acreana", dispôs-se a colher o máximo de assinaturas possíveis num Manifesto a favor da expulsão do governo boliviano da região. Apesar de todo o esforço do revolucionário, não conseguiu nem sessenta rubricas. Por que o restante do “povo” não assinou? O motivo não pode ser explicado simplesmente pelo analfabetismo.
Com Galvez não foi diferente. O Estado Independente nunca foi consenso, até porque se tratou de um projeto “partejado” (cf.: BARROS, 1993, p. 39) com o apoio de alguns poucos seringalistas de expressão da região do baixo Acre. Desde os primeiros meses de seu governo, o espanhol teve que combater “energicamente todos os focos de agitação”, como afirma o historiador Leandro Tocantins (2001, p.349).
 Vários grupos se insurgiram: o liderado pelo coronel Neutel Maia, do seringal Empresa; o do Capitão Leite Barbosa, de Humaitá; e a da Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros; do Alto Acre. Isso sem dizer que “as pessoas de maior destaque [de Xapuri] não haviam aderido ao Estado Independente” (idem, p. 350). Sem citar que o Juruá, no geral, nem sequer tomou conhecimento dos decretos expedidos por Galvez.

De Xapuri, Galvez receberia ofício assinado por Manoel Odorico de Carvalho, auto-intitulado Prefeito de Segurança Pública pela vontade soberana do povo, comunicando que, no alto Acre, a população resolvia não aderir a essa revolução sem primeiro ouvir a decisão do governo brasileiro [...] Somava-se a este movimento dissidente do Alto Acre, um outro que, sob a denominação de Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros, procurava, de todas as formas, minar o governo provisório. No baixo Acre, para completar, havia, ainda, a propaganda anti-governo provisório, liderado por Neutel Maia do seringal Empresa e pelo Capitão Leite Barbosa, do seringal Humaitá, este último outrora ativo colaborador na administração Paravicini. (CALIXTO, 2003, p. 162) [grifo nosso].

A famosa Expedição dos Poetas é o exemplo clássico da desunião. Ela partiu de Manaus em fins de 1900 com o objetivo de expulsar os bolivianos que regressaram à região após a derrocada do governo de Galvez. “As divergências sempre surgiam, a toda hora, por falta de unidade de comando” (MEIRA, 1974, p. 57).
O próprio Plácido de Castro se queixou da dificuldade em arregimentar voluntários. E isso é mencionado por Azcui Benjamin (1925), como prova de que os acreanos eram de modo geral pacíficos em relação ao governo boliviano. É o próprio Plácido de Castro quem diz que “todos declaravam que empenhariam o melhor da vida, mas ninguém queria ser o primeiro” (CASTRO, 2002, p.55); “os proprietários tudo prometiam, mas em verdade mostravam-se receosos” (idem, p.57).

Al estalhar la conflagración separatista, el Acre contaba con más de treinta mil habitantes, mostrándose case la totalidad indiferente a lo que ocurría, de tal modo que los promotores de la revueta, para hacer consentir en su popularidad expedían despachos de coroneles a granel, sin que por ello lograsen el concurso de los agraciados, porque el ideal de los acreanos era el de continuar como hasta entonces, sin freno a sus desmanes ni autoridade que los gobernase, imperando entre ellos los de mayor fuerza física o institinos sanguinarios más deprazados (BENJAMIN, 1925, p. 45). [grifo nosso].

No tenían la suficiente preparación, ni combatían en defensa de un sagrado derecho, conscientes de la justicia que les asistiera; mercenarios recolectados en los antros del vicio y la miseria, trabajandores obligados por sus patrones a batirse y perder la vida pro una causa ignorada por ellos, lógicamente, debían perder la moral ante individuos patriotas que abandonaron las fruiciones del hogar por acudir en amparo de nuestra integridad territorial” (idem, p. 97) [grifos nossos].

É Plácido de Castro quem toma as providências para que todos os acontecimentos do dia 6 de agosto de 1902 fossem devidamente documentados. Uma ata da proclamação do Estado Independente do Acre foi redigida e 20 cópias dela foram enviadas “rio abaixo”. Castro acreditava que com essa medida “se alguém franqueasse, não pudesse recuar, visto se haver comprometido com a assinatura da ata” (CASTRO, 2002, p.58). Enfim, o coronel conhecia bem as “convicções revolucionárias e patrióticas” de seus comandados. Por isso, teve que liderá-los “pela espada e pelo revólver” (ibidem, p. 60).
A unidade dos acreanos em torno da Revolução Acreana foi tão grande que Plácido de Castro inicia sua campanha com apenas 33 seringueiros-soldados (cf.: idem, p. 56). E no auge da guerra esse número não ultrapassou o montante de 2.000 revolucionários (cf.: GOYCOCHÊA, 1973, p. 118). O argumento de que eles se uniram por causa de um ideal, a de darem “o melhor de suas vidas à causa de tornar o Acre parte do Brasil” (MARQUES, 2008, p. 71) é tão evidente que o próprio Cel. Plácido de Castro afirmou que “a autoridade do chefe teve de ser mantida pela espada e pelo revólver” (Apud BENCHIMOL, 1977, p. 389).
A população “branca” na região das margens do rio Acre foi estimada em: 15.000 habitantes, por Tocantins (2001, p. 191); em 25.000, pelos próprios chefes da Revolução (BRAGA, 2002, p.15. Cf.: CABRAL, 1986, p.35); em 50.000 por Hernán Messuti (RIBERA, 1997, p. 54) e em 100.000, por Craveiro Costa (2005, p.219).
Se for levado em consideração esse último número, significa dizer que menos de 2% da população local verdadeiramente empunharam armas contra os bolivianos. E isso sem levar em consideração a população da região do Juruá, que sofreu apenas “ecos” do movimento. Essa paupérrima porcentagem dispensa comentários.
Até hoje não se tem provas que confirmem o envolvimento da maioria da população do Acre na chamada Revolução Acreana. Tudo indica que essa  “espinhosa questão”, como dizia Rocha (1903, p.5), não tenha sido unanimidade entre a elite da sociedade gomífera. E é provável que aqueles que nela se envolveram, não tenham assim procedido pelos mesmos motivos. “Cada segmento se relaciona com a guerra por motivos e interesses bastante particulares”, já dizia Miceli  (1994, p. 78).
Sendo assim, não é errado dizer que os acontecimentos que ficaram etiquetados como  “Revolução Acreana” foram alvos de diversas representações. Uma coisa foi o “olhar” de quem participou da luta armada, outro foi de quem não participou. Dentre aqueles que participaram certamente a polifonia era reinante. As expectativas do seringueiro com relação aos resultados do conflito armado certamente não eram os mesmos do seringalista. “Waterloo não foi a mesma coisa para um soldado e um marechal” diria Veyne (1982, p. 12). Além do mais, alguns dos seringalistas que fizeram parte da idealização e execução do combate, no decorrer dele, mudaram de posição política.
Como podemos observar o passado fundador com o qual o acreano é ensinado desde o ensino fundamental a venerar, não passa de uma região tumultuada de discursos. A imagem compacta e homogênea que temos da Revolução Acreana não passa de uma construção discursiva politicamente sustentada. Quando se olha a representação da Revolução Acreana hoje, diria Foucault, está se olhando para um “monumento”, crivado de subjetividades e de silêncios.
A “questão acreana” foi sustentada por múltiplos interesses. O governo do Amazonas queria garantir a arrecadação dos impostos. Os seringalistas queriam garantir suas propriedades privadas e a manutenção do lucro gomífero. Os profissionais liberais sonhavam em assumir importantes cargos públicos. E os seringueiros pretendiam quitar suas dívidas e, quem sabe, ter saldo ou para comprar o seu próprio seringal ou para voltar à sua terra natal. Desnecessário dizer que os interesses aqui mencionados foram os parecem ter prevalecido em cada segmento social, o que não quer dizer que outros não tenham existido.
O Acre enquanto comunidade carecia de unidade, isso é um fato. O que existia em comum entre aqueles brasileiros do Acre para torná-los uma comunidade? Seria o território? Com certeza não, pois as fronteiras só foram plenamente consolidadas em 1909. Seria a língua? Não, naquela região existia de tudo: do espanhol aos dialetos indígenas. A cultura? Não, as mais diversas tradições estavam ali representadas pelos nordestinos, gaúchos, sírios, libaneses, franceses, bolivianos etc.

Apesar de todo esforço dos chefes da revolução, o que parece é que a unidade foi uma construção discursiva póstuma. Não havia nada forte o suficiente que ligassem aqueles migrantes, a não ser a ambição pelo “ouro negro”. Naquela realidade social era impossível qualquer sentimento de solidariedade e comunhão entre seringueiro e seringalista. A unidade ganhava forma e tornava-se “sólida” somente no e pelo discurso. 

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