segunda-feira, 16 de março de 2009
A TERRITORIALIDADE SERINGUEIRA: Geografia e Movimento Social
Por CARLOS WALTER PORTO GONÇALVES
Universidade Federal Fluminense
Introdução
Neste artigo objetivamos avançar algumas reflexões, em grande parte generalizações,
a respeito do Movimento Social como categoria geográfica, partindo do
rico material empírico obtido da minha experiência como assessor do Conselho
Nacional dos Seringueiros (1987 e 1992) e da pesquisa que culminou em minha
tese de Doutorado (1993 e 1998). Seu tema é, portanto, Movimento Social e
Organização do Espaço.
O movimento dos seringueiros acreanos é, a esse respeito, emblemático, pela
importância que emprestou à sociedade/geografia acreana como resultado da interseção
de múltiplos processos instituintes que ali se territorializaram.
O melhor exemplo disso é o fato de o Acre, em 1998, ter dois dos três
Senadores da República ligados a um movimento social em grande parte tecido em
torno das lutas dos seringueiros; quatro dos doze Prefeitos Municipais do Estado
ligados ao mesmo processo instituinte; o Governador do Estado eleito pelo mesmo
partido a que estavam ligadas as principais lideranças do movimento dos
seringueiros que, diga-se de passagem, teve no Acre o primeiro Estado da federação
em que o Partido dos Trabalhadores foi legalizado1; a Comissão Pastoral da
Terra teve seu primeiro coordenador nacional o Bispo da Prelazia do Acre-Purus,
D. Moacir Grechi, exatamente a região onde se travaram as intensas lutas dos
seringueiros. Resta saber se toda essa arquitetura política, principal conquista da
sociedade civil acreana que teve, sem dúvida, o movimento dos seringueiros como
seu eixo estruturante, será capaz de consolidar os elos políticos que os levou até aí
e, nas novas circunstâncias, propiciar instituições que não substituam os sujeitos
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1 - Ao qual estavam ligadas as principais lideranças seringueiras.
instituintes. Afinal, a justiça social e a participação democrática autogestionária
sempre foram as principais reivindicações deste movimento.
Considerações Teóricas
A configuração de qualquer identidade político-cultural é parte constitutiva
dos grupos/segmentos sociais que se põem em movimento. O historiador marxista
inglês E. Thompson já nos alertara que a classe social ‘é uma relação e não uma
coisa’ (THOMPSON, 1987 : 11) e, assim, abria espaço para questionar o sentido
extremamente arraigado de na expressão luta de classes enfatizar-se o lado classes
e secundarizar o lado luta2. Assim desemboca-se, com facilidade, naquilo que, em
outro contexto, Pierre Bourdieu (1989) chamara de ‘classes no papel’. Confundese,
com freqüência, o modo como os grupos/segmentos/classes sociais se constituem
nas e pelas circunstâncias das relações com que concretamente têm que se
haver, de um lado, com o processo de conhecimento, de outro.
Qualquer classificação significa, rigorosamente, estabelecer um sistema de classes.
Trata-se de um processo heurístico que permite ao analista estabelecer parâmetros
importantes para desvendar aspectos relevantes da realidade que se propõe estudar.
Classificar significa reunir segundo determinados critérios e, assim, discriminar, separar.
Organiza-se assim um mapa ‘lógico’ onde uma dada realidade é enquadrada para
análise. Envolvido nesse universo gnoseológico o pesquisador deve tomar todo o cuidado
para não confundir as coisas da lógica com a lógica das coisas. Pressupõe-se, por
exemplo, que os lugares estão dados a priori e não que os lugares sejam, eles mesmos,
instituídos 3. A materialidade do espaço geográfico, sem dúvida, propõe/impõe/põe
condições às mudanças de lugar. “Qualquer ação que tenha em vista opor o provável ao
possível, isto é, ao porvir objetivamente inscrito na ordem estabelecida tem de contar
com o peso da história reificada e incorporada que, como um processo de envelhecimento,
tende a reduzir o possível ao provável” (BOURDIEU, 1989 : 101).
Pierre Bourdieu, com sua preocupação com o espaço social, abre uma importante
senda para um diálogo com a geografia, particularmente com a concepção
teórica que abraçamos, que entende a geografia menos como um substantivo e
mais como um verbo, ou melhor, como o ato/a ação de marcar a terra, de geografar.
Nessa perspectiva teórica, as marcas, os limites, as fronteiras são sempre instituídas
e, como tais, implicam sujeitos instituintes o que nos remete à própria configuração
do que seja a sociedade como tal. É Bourdieu quem nos diz que
Num primeiro momento a sociologia apresenta-se como uma topologia social. Pode-se
representar o mundo social em forma de um espaço (a várias dimensões) construído na base de
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GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
2 - Ver, também, do mesmo autor ‘A Miséria da Teoria’ (THOMPSON, 1981)
3 - E aqui é que as observações do também marxista E. Thompson, do sociólogo Pierre Bourdieu, dos
filósofos Cornelius Castoriadis e Henri Lefebvre ganham relevância ao lado dos geógrafos E. Soja,
D. Harvey, Milton Santos, Marcelo J. L. de Souza, Regina Sader e outros.
princípios de diferenciação ou de distribuição constituídos pelo conjunto das propriedades que
actuam no universo social considerado, quer dizer, apropriadas a conferir, ao detentor delas,
força ou poder neste universo. Os agentes e grupos de agentes são assim definidos pelas suas
posições relativas neste espaço. Cada um deles está acantonado numa posição ou numa classe
precisa de posições vizinhas, quer dizer, numa região determinada do espaço, e não se pode
ocupar realmente duas regiões opostas do espaço - mesmo que tal seja concebível. Na medida
em que as propriedades tidas em consideração para se construir este espaço são propriedades
actuantes, ele pode ser descrito como um campo de forças, quer dizer, como um conjunto de
relações de forças objetivas impostas a todos os que entrem nesse espaço e irredutíveis às
intenções dos agentes individuais ou mesmo às interações diretas entre os agentes’
(BOURDIEU, 1989 : 133-4).
As classes sociais se constituem, assim, nas e pelas lutas que os protagonistas
travam em situações concretas e que conformam os lugares que não só ocupam,
mas constituem. Relembremos que protagonista deriva do grego protos, primeiro,
principal e agonistes, lutador, competidor (CUNHA, 1992 : 641). É claro que ao se
privilegiar a dimensão luta e não a classe, se abre um enorme espaço à contingência
e ao acaso, escapando assim às reduções determinísticas racionalistas.
A expressão movimento social ganha, assim, para a nossa compreensão das
identidades coletivas um sentido geográfico muito preciso: é que o vemos como
aquele processo através do qual um determinado segmento social recusa o lugar
que, numa determinada circunstância espaço-temporal, outros segmentos sociais
melhor situados no espaço social pelos capitais (Bourdieu) que já dispõem tentam
lhe impor e, rompendo a inércia relativa em que se encontravam, se mobilizam
movimentando-se em busca de afirmação das qualidades que acreditam justificarem
sua existência. A própria idéia de que toda sociedade institui uma determinada
ordem nos remete ao fato de que uma ordem é sempre um determinado modo
(ele mesmo instituído) como os entes se colocam entre si configurando uma totalidade
que faz sentido para aqueles que a constituíram. Pode-se, por exemplo, falar
de ordem alfabética ou de ordem numérica sempre indicando o modo como cada
parte se coloca em relação à outra configurando essa mesma ordem. Assim o
movimento (social) é, rigorosamente, mudança de lugar (social) sempre indicando
que aqueles que se movimentam estão recusando o lugar que lhes estava reservado
numa determinada ordem de significações. Deste modo, todo movimento social é
portador de uma nova ordem em potencial não sendo destituído de sentido o fato
daqueles que se colocam em posição hegemônica numa determinada ordem
estigmatizar como desordeiro todo aquele que questiona essa (sua) ordem. Aqui,
sem dúvida, geografia e sociologia se tornam imbricadas.
Todavia, insistimos, a passagem de uma determinada condição social à condição
de uma determinada identidade político-cultural não é automática. É no espaço
geográfico “que toda acção histórica põe em presença dois estados da história (ou
do social): a história no seu estado objectivado, quer dizer, a história que se acumulou
ao longo do tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumentos, livros,
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A Territorialidade Seringueira
teorias, costumes, direito, etc., e a história no seu estado incorporado, que se
tornou habitus4.(...) Esta actualização da história é conseqüência do habitus, produto
de uma aquisição histórica que permite a apropriação do adquirido histórico.
A história no sentido de res gestae constitui a história feita coisa a qual é levada,
‘atuada’, reactivada pela história feita corpo e que não só actua como traz de volta
aquilo que a leva ( segundo a dialética do levar e ser levado, bem descrita por
Nicolai Hartmann) (Bourdieu, 1989 : 82-3, os grifos são do original).
Essa dialética habitat e habitus ou, se se preferir, história reificada e história
incorporada ou, ainda sistema de objetos e sistema de ações5, permite-nos captar a
constituição da identidade político-cultural e do ordenamento do espaço geográfico
como se pode depreender das lutas intensas para afirmar “o modo de percepção
legítima” (Bourdieu) do próprio espaço, isto é, das lutas tensas e intensas pelo
poder de nomear, afirmar/reconhecer identidades, atribuir valores/sentidos aos
diferentes seres, do espaço e do tempo. Afinal, “a passagem do implícito ao explícito
nada tem de automático, podendo a mesma experiência social reconhecer-se em
expressões diferentes, e porque, por outro lado, as diferenças objectivas mais acentuadas
podem estar dissimuladas por diferenças mais imediatamente visíveis
(como as que separam as etnias, por exemplo). Se é verdade que existem na objectividade
das configurações perceptivas, Gestalten sociais, e que a proximidade das
condições, portanto, das atitudes, tende a retraduzir-se em ligações e em reagrupamentos
duradoiros das unidades sociais imediatamente perceptíveis, tais como as
regiões ou bairros socialmente distintos (com a segregação espacial), ou dos conjuntos
de agentes dotados de propriedades visíveis perfeitamente seme-lhantes, tais
como o Stände, também é verdade que só há diferença socialmente conhecida e
reconhecida para um sujeito capaz não só de perceber as diferenças, mas também
de as reconhecer como significantes, interessantes, quer dizer, para um sujeito
dotado da aptidão e da inclinação para fazer as diferenças que são tidas por significativas
no universo social considerado.
Assim o mundo social por meio sobretudo das propriedades e das suas distribuições,
tem acesso, na própria objectividade, ao estatuto de sistema simbólico
que, à maneira de um sistema de fonemas, se organiza segundo a lógica da diferença,
do desvio diferencial, constituído assim em distinção significante. O espaço
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4. “Aquele que tira o chapéu para cumprimentar reactiva, sem saber, um sinal convencional herdado
da Idade Média no qual, como relembra Panofsky, os homens de armas costumavam tirar o seu elmo
para manifestar as suas intenções pacíficas” citado pelo próprio Pierre Bourdieu.
5. Em livro recente, Milton Santos (SANTOS, 1997), aponta na mesma direção ao abordar o espaço
geográfico como um “sistema de objetos” e um “sistema de ações”.
social e as diferenças que nele se desenham ‘espontaneamente’ tendem a funcionar
simbolicamente como espaço dos estilos de vida ou como conjunto de Stände, isto
é, caracterizados por estilos de vida diferentes’ (Bourdieu, 1989 : 143-4)6.
Podemos, pois, afirmar que são nas circunstâncias dos encontros/das
relações/das lutas que se desenham concretamente essas diferenças e que toda
classe se constitui, se classifica, se diferencia, constrói um Nós em relação a um
Eles, a partir de situações 7 que atualizam múltiplas possibilidades inscritas nos
corpos (história incorporada) através do que Pierre Bourdieu chamou habitus.
Os Novos Elos das Escalas/Escadas do Poder
A construção da identidade seringueira não estava dada a priori: ela foi sendo
tecida nos embates concretos que os seringueiros se viram obrigados a travar nas
circunstâncias singularíssimas dos anos setenta/oitenta (tempo) nas regiões do vale
do rio Acre, ao longo das BRs 364 e 317, no estado do Acre (espaço).
É claro que os seringueiros existiam naquele lugar/naquele momento, tanto no
sentido geográfico como social. No entanto, sabemos, a existência de uma determinada
condição socio-geográfica seringueira, ou outra qualquer, não implica necessariamente
que venha a se constituir numa identidade político-cultural assumida
pelos próprios protagonistas como tal. Já vimos em outro contexto8 como aqueles
que viviam de extrair o látex se identificaram como agricultores, quando da crise do
seringal empresa e a queda do preço da borracha impelira-os a diversificar suas atividades
produtivas e a buscar outras estratégias de sobrevivência, tanto material como
simbólicas, o que ensejou que identificassem a borracha com seu sofrimento e miséria,
sobretudo entre os anos 1920 e 1942, e passassem a perceber a agricultura
como sua salvação. Naquelas circunstâncias ser agricultor era estar superando o
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A Territorialidade Seringueira
6 . O mesmo pode ser visto com a importância que Thompson (THOMPSON, 1981: 182) empresta à
experiência quando nos diz que “os homens e mulheres retornam como sujeitos, dentro deste termo -
não como sujeitos autônomos, ‘indivíduos livres’, mas como pessoas que experimentam suas situações
e relações produtivas determinadas como necessidades e interesses e como antagonismos, e em
seguida ‘tratam’ essa experiência em sua consciência e sua cultura ( as duas outras expressões excluídas
pela prática teórica) das mais complexas maneiras (sim, ‘relativamente autônomas’) e em seguida
( muitas vezes, mas nem sempre, através das estruturas de classes resultantes) agem por sua vez sobre
sua situação determinada)”.
7. Situações no sentido de ações situadas.
8. “Geografando: Nos Varadouros do Mundo – Da territorialidade Seringalista à Territorialidade
Seringueira (Do Seringal à Reserva Extrativista)” tese de Doutorado defendida junto ao Programa de
Pós-graduacão em Geografia da UFRJ, Rio de Janeiro, 1998.
extrativismo em decadência. Não nos esqueçamos, todavia, que a borracha mobilizara
os so-nhos de toda essa/aquela gente e, como um sonho que fôra mais que um
sonho, posto que implicara em toda uma prática social que se materializara no seu
modo de vida (e, na memória, no melhor de suas vidas) pode, a partir de novas e outras
circunstâncias, ser atual, ser atualizada. Espaço e Memória. Habitat e habitus.
Com a desestruturação dos elos que, “por cima”, conformavam o pacto territorial
regional/nacional 9 (1942 a 1958/1967), as relações socioespaciais acreanas
sofreram uma profunda transformação que, no entanto, não mereceu a devida
atenção dos analistas. Talvez tenhamos aqui no Acre a demonstração do paroxismo
de uma formação social que se fez/faz sem reconhecer aos “de baixo” o direito à
voz, primeira condição para que se seja conhecido/reconhecido enquanto portador
de direitos.
Os seringais, de fato, começaram a mudar de donos, expressão que viria a ser
muito usada para o período dos anos setenta/oitenta quando os “de fora”, sobretudo
os “paulistas”, começam a adquirir terras no Acre 10. O que não se via no Acre
é que uma mudança de donos já vinha se dando a décadas onde os “de baixo”,
enquanto ocupantes, mais do que se apossar das condições naturais de produção,
estavam se tornando, rigorosamente, trabalhadores livres, seringueiros autônomos.
É isso mesmo: desde os anos 20 vinha aumentando significativamente no Acre
aquilo que o IBGE, a partir dos anos 40, passa a designar como ocupantes, ou seja,
aqueles que comandam um estabelecimento de produção sem que sejam proprietários
da terra e sem estar subordinados a ninguém. Em suma, sem Estado (não
pagam impostos) e sem Patrão (são autônomos).
A idéia já consagrada de que o Acre era um verdadeiro caos fundiário é, assim,
indicativa de quadros de referência socioculturais e espaciais diferenciados e, também,
de um processo onde os “de baixo” empreendem uma organização socioespacial
prática sem que tivesse correspondência nos estatutos legais.
Viu-se, portanto, que a Territorialidade dos Coronéis de Barranco (1942 a
1958-67) entra em franca desestruturação até porque a dominação/hegemonia que
exerciam dependia das articulações políticas com os “de fora”, para se reproduzir.
1958 e 1967 são datas de triste memória para os Coronéis de Barranco posto que
sinalizam a quebra dos elos, dos degraus que os articulavam às escadas/escalas
(èchelles) do poder nacional.
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GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
9. Refiro-me, aqui, à extinção do monopólio de importação (1958) e de exportação (1967) da borracha
pelo Estado atendendo às pressões das grandes empresas transnacionais automobilísticas tanto
do setor automobilístico, como de pneumáticos. Assim os elos, as alianças, deixaram de se fazer com
o bloco histórico regional amazônico (as Casas Aviadoras e Seringalistas) e sim com os grandes capitais
internacionais.
10. Entenda-se que nesse contexto os “de fora” não são mais os que vieram dos sertões nordestinos,
como nos finais do século XIX e início do XX, e são, por isso, agora considerados estranhos no
ninho.
Por outro lado crescia a importância daqueles que, pelo menos desde os anos
40 (quando, enquanto registro oficial, apareceram pela primeira vez no Censo, em
Xapuri) na prática, garantiam sua própria sobrevivência reproduzindo-se por si
próprios de modo autônomo: os Ocupantes. Com suas mulheres e filhos, com sua
produção não só voltada para o mercado, até porque tiveram que desenvolver suas
estratégias de sobrevivência com a crise do seringal enquanto empresa (1870 a
1912-20), integrados à floresta aprendendo com os índios, com os caboclos, plasmaram
uma outra sociedade/geografia acreana.
Assim, no Acre, estivemos diante de uma situação sui generis: os seringalistas
não colocaram, de fato, resistência ao novo processo que se abria a partir dos anos
setenta. Ao contrário, procuraram se desfazer de suas dívidas junto ao Banco da
Amazônia vendendo suas propriedades. Na verdade, sabemos que, do ponto de
vista das classes dominantes regionais acreanas, não se tratou propriamente de
uma invasão dos “paulistas”. As classes dominantes regionais fragilizadas pela
quebra de seus elos com o bloco de poder nacional não lhe restara muitas alternativas
além daquela que lhes indicara arrogantemente, em 1974, o Presidente da
Associação Nacional de Criadores de Nelore do Brasil, Sr. Mario Junqueira, não
sem causar tensões entre seringalistas e fazendeiros.
Nessa transferência de titularidade das propriedades que, como não podia
deixar de ser, foi, também, uma mudança da naturalidade desses titulares, agora
vindos do Sul, houve, num segundo momento, uma mudança radical nas relações
sociais com a natureza: não se tratava mais de um processo de desenvolvimento
com a floresta, mas de um processo que era, também, contra a floresta. E por tudo
que já agregamos na compreensão desse processo sabemos que o complexo seringal-
colocação não era simplesmente um lugar de produção de borracha, que era.
Era não só um lugar ocupado, que era; era, também, um lugar habitado, habitat e
habitus, e assim um locus de conformação de subjetividades.
...Nós temos que... dizer a eles (os compradores de terra) que isso é nosso, não é o que
eles compraram do seringalista. Então, se este seringalista vendeu essa posse para ele, ele
vendeu o movimento que ele tinha. Então ele vendeu esse mundo de terra com todos esses
posseiros, ele deve ter vendido os posseiros também e nós não aceitamos que nós somos tão
bandidos para ser comprados. (...) Prá nós a terra tem valor porque é a nossa vida. Não pode
ser vendida, que nós não vendemos a nossa vida’.
(DUARTE, 1987 : 113. O grifo é meu.)
É isso que nos ajuda a entender esse seringueiro que reconhece legitimidade
no seringalista para vender o movimento do seringal mas não para vender as suas
colocações, as suas posses/os posseiros. Com a tentativa de transformar o habitat,
isto é, o seringal em fazenda pecuarista, desfazia-se uma relação socio-espacial
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A Territorialidade Seringueira
que, como tal, implicava uma identidade, mesmo que de contrários, entre
seringueiros e seringalistas. E, mais, sem que aqueles que se tornam os novos proprietários
queiram exercer domínio/hegemonia sobre os que ali habitavam 11.
Se o seringueiro tornou-se autônomo num processo de fundo em que deixou de
pagar renda, como a condição de ocupante no próprio censo reconhece, ele agora
se verá tendo que se haver com/contra aquele que vem de fora e lhe quer tomar a
terra. No entanto, sabemos, considerar a terra sem a floresta não é só uma questão
econômica como se quer fazer crer. É uma das maneiras historicamente produzidas
de recortar o real. É, sobretudo, uma determinada maneira de se dar valor às
coisas, ao tempo, ao espaço, à natureza. É, assim, toda uma cultura. Há, aqui nesse
caso, de modo emblemático, um des-loca-mento das relações socioespaciais de
poder. Ele implica todo o espaço e não mais só o seringal, a colocação. E a força
que os seringueiros tinham emanava do seu espaço-doméstico-e-de-produção.
Enfim, é de uma outra tensão de territorialidades que se trata a partir dos anos
setenta ...
Assim, o habitat adquire um significado ímpar para se compreender as
relações socioespaciais. Afinal, toda uma organização do espaço havia sido engendrada
no Acre sob, com ou, como costumava falar Chico Mendes, e que causava
uma certa estranheza, o ‘pela floresta’, que colocará frente a frente esses diferentes
processos de territorialização.
Assim, de fato, a partir de 1970 em diante assistiremos a um processo tenso e
intenso de conflitos entre aqueles que dependem da floresta para viver e aqueles
que querem desmatar, posto que a floresta não tem nenhum valor de uso para quem
quer fazer pasto. Para uns, esses habitantes da floresta, trata-se de manter o
habitat, locus do seu habitus. Para outros, os “paulistas”, para os “de fora”, tratase
de afirmar o progresso nessas terras ainda dominadas pela natureza, conforme
reza o imaginário da modernidade. Na prática, os portadores desse imaginário,
aqueles que o transportam, são fazendeiros ávidos de adquirir as férteis terras acreanas
a baixo preço, até porque tratava-se da fronteira mais externa dos ‘anéis de
Thünen’. Empate !
Deste modo, emerge um movimento dos seringueiros que emana da compreensão
interessada do que é comum, o que implica uma comunidade territorial que vá
além do espaço vivido, pressupondo-o; que vá além do lugar/dos lugares, contendoos.
É isso que diz a expressão união, tão invocada na conformação de identidades
coletivas: o que se une é o igual e esse igual se constitui na percepção interessada
do que é igual e do que é diferente. “Eles tem o capital, nóis temos a união”, assim
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GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
11. A começar pelo fato de a pecuária demandar um número pequeno de trabalhadores, exceto no
período de formação da fazenda. Embora importante não é esse o aspecto que estou querendo
ressaltar aqui.
se expressa um seringueiro. “O sindicato não é o presidente. O que faz a nossa
força é a necessidade” diz um outro seringueiro diante da ameaça de morte ao líder
de seu sindicato. É rigorosamente, uma fala interessada que, assim, reage à ameaça,
ameaçando que a luta vai continuar. O conflito se constitui, assim, como um
momento privilegiado dessa conformação de identidades, de configuração de
“comunidades de destino”. É quando cada um começa a perceber que o seu destino
individual está num outro com/contra o qual tem que se ligar/se contrapor.
Nesse trabalho de construção de hegemonia, de construção dessa geografia
imaginária os intelectuais têm uma papel fundamental e não sem razão fala-se de
“visões de mundo”. O teórico comunista italiano Antonio Gramsci captou a
importância desses intelectuais, sobretudo daqueles que chamou de intelectuais
orgânicos, ou seja, daqueles que expressam vontades coletivas de determinados
interesses que podem ser de classe, de grupos religiosos, étnicos, entre outros e,
deste modo, constróem hegemonias e contra-hegemonias con-sagrando um determinado
estágio da correlação de forças políticas e simbólicas numa geografia
imaginária. Esses intelectuais com suas falas autorizadas, conhecidas e reconhecidas,
tornam o real mais-real, numa espécie de mais valia simbólica. Eles participam
de uma luta tensa e intensa pela afirmação do “modo de percepção legítimo”
(Bourdieu).
No caso do Acre vamos encontrar esse intelectual tradicional na pena de um
Leandro Tocantins, de um Alberto Zaire, de um Artur César Ferreira Reis, Samuel
Benchimol como, também, na de Euclides da Cunha. Neles encontramos o
“seringueiro-herói” não reconhecido desde a epopéia do Acre ou como
“seringueiro-soldado-da-borracha”; o “seringueiro-vítima” da exploração brutal
dos seringalistas e dos Coronéis de Barranco, sempre desaparecendo, sempre em
extinção; o “seringueiro-fujão”, que escapa do seringal endividado dando prejuízo
ao patrão; o “seringueiro-que-rouba-o-patrão” colocando paus e pedras no princípio
das pélas; o “seringueiro-preguiçoso” que prefere caçar e pescar a produzir
borracha; o “seringueiro-caboclo-traiçoeiro” que pode matar o patrão numa tocaia
e, ainda, o “seringueiro-bom-de-leite”, aliás, o “verdadeiro-seringueiro”, o
“seringueiro-que-produz-muito”, o “seringueiro-trabalhador” que (se) enche o
peito não simplesmente para dizer que é um seringueiro, mas que é “O
Seringueiro”.
Foi com/contra essa imagem hegemônica, esse verdadeiro senso comum construído,
que os seringueiros tiveram que forjar, nas mais diferentes circunstâncias,
uma nova identidade político-cultural a partir dos anos setenta 12. Para nós a nova
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A Territorialidade Seringueira
12 . Aqui é preciso retirar a aura positiva que assume qualquer ente quando lhes atribuímos a qualidade
de novo/a. Umberto Eco fala de fundamentalismo como aquela prática discursiva que prescinde
de argumentar e, tal como um dogma, afirma a qualidade de algo pela simples afirmação. Assim,
podemos falar de um fundamentalismo moderno que empresta qualidade positiva a tudo que é novo e
negativa a tudo que é tradicional, sem precisar argumentar porque tudo que é novo é positivo e tudo
que é tradicional é negativo. O fascismo foi novo apesar de invocar a tradição.
identidade político-cultural dos seringueiros e caboclos se colocou como uma possibilidade
concreta diante da ameaça à sobrevivência material e simbólica derivada
da nova configuração socio-geográfica mundial-nacional e, particularmente, acreana,
implicada pela co-presença de novos sujeitos/processos instituintes e, portanto,
novos encontros/relações com/contra quem terão que se haver a partir do que,
concretamente, tiveram que desenvolver suas novas/outras estratégias de sobrevivência,
sempre e ao mesmo tempo, material e simbólicas.
Em diferentes situações os seringueiros/caboclos se verão tendo que manipular,
num sentido e direção próprios, diferentes atributos, qualidades e estigmas,
afirmando-os ou negando-os. Afinal, o “seringueiro-herói” que conquistou o Acre
para o Brasil, que foi “soldado da (‘batalha’ da) borracha”, pode não querer ir
para a Bolívia expulso pelos “paulistas”. Aqui a história incorporada atua, a
história é atualizada, a história é atual pelos atos ensejados nas e pelas circunstâncias
pelos seringueiros. Afinal, é ele quem produz a borracha que serve para tudo
e, assim, é “O Seringueiro”, não porque produz muito para o patrão, mas porque
produz muito para a pátria. Ou então, a preguiça é o contraponto do negócio, ou
seja, aquilo que é visto como ócio pelos patrões pode ser, para os seringueiros, a
afirmação da sua autonomia com a caça e a pesca, ou com o roçado que o liberta
do barracão e, assim, de fato, contrário à lógica de quem está preocupado com o
negócio, com a borracha-mercadoria, que tem que negar o ócio.
Essa identidade vai sendo forjada, portanto, nas circunstâncias, nas situações,
no cotidiano com todas as “suas ambigüidades marcadas pelas oscilações entre
fragilidade e força, indeterminação e determinação, indefinição e definição” numa
dinâmica “da luta de classes constantemente redefinida e que traz à tona a sua
riqueza enquanto movimento que engendra transformações sociais; dinâmica essa
cujos aspectos frágeis, indefinidos e indeterminados indicam por vezes campos
novos de combate ainda pouco vivenciados pela classe ...” (MARONI, 1982 : 16).
Essa “experiência obscurecida”, “oculta”, “não-explícita” foi denominada por
Amnéris Maroni (MARONI, 1982) como discurso da ação13.
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13. “O discurso da ação não verbaliza propostas políticas, no entanto elas existem; não propõe alvos
claros contra os quais se desenvolve o combate, porém eles não estão ausentes; não define estratégias
explícitas para alcançar o fim desejado, porém, estas se fazem o tempo todo presentes. Por sua
dinâmica, se faz presente e ausente, contínuo e descontínuo, definido e indefinido. Em outras
palavras, o discurso da ação não oferece visibilidade enquanto tal. Ou seja, é preciso ‘querer ver’ o
discurso da ação; caso contrário ele não se mostra. É preciso buscá-lo lá onde ele se esconde; um
pouco para além do social visto de forma institucionalizada; para além dos esquemas teóricos que
estabelecem verdades prontas e acabadas; para além dos dogmas políticos que estabelecem trajetórias
seguras para a transformação social etc. Para que se mostre, o discurso da ação exige de quem quer
vê-lo a compreensão de que o poder permeia o social de múltiplas formas; e também a compreensão
de que a luta que tem lugar ‘aqui e agora’ traz em si propostas de intenções futuras, não asseguradas
de antemão pela inevitabilidade histórica, mas possíveis de ser construídas” (MARONI, 1982 : 18).
Enfim, com a Reserva Extrativista os seringueiros obtiveram uma chancela
formal de reconhecimento, de direito, resultante de um longo processo de lutas que
conformaram habitus, habitats, modos de vida e de produção. Essa invenção que o
movimento dos seringueiros produziu ao ser sancionada oficialmente como uma
Unidade de Conservação Ambiental14, tende a ser vista como uma entidade jurídica
reificada e, tal como o território enquanto limite do poder de Estado, ocultar os,
muitas vezes sangrentos, processos (os fronts) e seus sujeitos instituintes.
A Reserva Extrativista expressa a Territorialidade Seringueira com os recursos
materiais, políticos e simbólicos que o movimento dos seringueiros dispunha no
momento que vai de 1985, quando a idéia é, pela primeira vez formulada como tal,
a 1990 quando é con-sagrada e sancionada formalmente, tendo grafado a terra,
construído seus varadouros não só com os memoriais com suas descrições e seus
mapas necessários para a decretação legal mas, também, deixando rastros de
sangue pela floresta.
O que tentaremos agora é expor essa descoberta da pesquisa: a Reserva
Extrativista como expressão da Territorialidade Seringueira e, como tal, como
materialização de um processo/sujeito instituinte que é o movimento dos
seringueiros. Tentar expor como o instituído contém esse processo instituinte, ver
no produto os seus produtores, na criação os seus criadores. Acreditamos que,
assim, estamos contribuindo não só para explicitar uma temática de importantes
conseqüências teórico-conceituais para a geografia como para explicitar que,
subjacentes aos territórios (Reservas Extrativistas, por exemplo), existem
processos/sujeitos instituintes (movimento dos seringueiros) e, assim, que a Geografia,
mais do que um substantivo é, sobretudo, um verbo: é o ato/a ação de marcar, de grafar
a terra.
Nova Espacialidade, Novos Meios, Novos Mediadores - algumas reflexões
teóricas em diálogo com a empiria
Quando uma nova geografia social se engendra mudam, como não poderia
deixar de ser, as relações dos lugares entre si e dos espaços entre eles e, assim,
mudam as hierarquias, as escalas. É a ordem social que muda15. Nessa nova
geografia que se engendra no Brasil a partir dos anos cinqüenta o próprio sentido
da territorialidade brasileira estará se redesenhando, posto que novos sujeitos se
insinuam instituindo novas territorialidades. Não só passamos a ter novos meios de
transportes, mas também novos portadores que se fazem através dos mediadores,
77
A Territorialidade Seringueira
14. Passível, inclusive, de transferência para outros contextos socio-geográfico-culturais.
15. Não nos esqueçamos que ordenar é colocar as coisas nos seus devidos lugares, em ordem e, assim,
há, no mínimo, uma topologia no próprio processo instituinte do social, de cuja materialidade a
geografia é formadora dessa sociedade que a forma.
eles mesmos trans-portadores de práticas sociais possíveis pelos novos significados
dos lugares nas novas relações societárias que se estão engendrando.
Na medida que a relação personalizada, corpo a corpo, tão característica do
meio rural 16 (o Coronelismo, por exemplo), tende a ser transformada com as
novas relações espaciais - migração, rede de transportes e de comunicação - cresce
o espaço para os profissionais da intermediação, da mediação - daí dizer-se media
-, ou seja, dos profissionais da palavra nos seus mais diferentes modos - a
Imprensa, o Direito, a Igreja.
É necessário, portanto, que exploremos aqui um pouco mais essa problemática
da língua, ou da palavra se se preferir, enquanto modo de apropriação do mundo,
de tornar o mundo um mundo próprio, enfim, de dar sentido ao mundo, ao atribuir
sentido aos diversos seres, ao espaço, ao tempo. Não é destituído de sentido que os
religiosos atribuam tanta importância à palavra, instrumento, por excelência, da
criação/invenção de sentidos. O domínio da palavra é, assim, a possibilidade prática
de instaurar a própria socialidade, posto que é o reconhecimento do que se designa
como sendo comum que instaura a possibilidade de configuração de uma comunidade
de destino, um território, ou seja, que se configure um espaço próprio, quer
dizer, com sentido comum 17.
Além disso a palavra torna o ausente presente, enquanto símbolo que é, e, por
isso, tende a substituir aquilo que não é ela própria: o real na sua materialidade. Os
meios através dos quais a palavra circula é pleno de significação geográfica.
Sociedades que não têm escrita e, portanto palavra escrita, tendem a se organizar
até onde se ouve a voz ou até onde o corpo pode se deslocar. A escrita, enquanto
técnica, implica um código que tende a emprestar àquele que o domina um poder
sagrado de trazer um mundo desconhecido que, mesmo estando em outro lugar,
está presente em todos os lugares através daqueles que têm o domínio deste código.
Os profissionais da religião sabem, melhor do que ninguém, a importância
disso.
O antropólogo e filósofo Pierre Clastres (CLASTRES, 1982) já nos havia alertado
para esse caráter da escrita que permite que o poder possa escapar de uma
relação espacial imediata, inscrita na relação corpo a corpo, e tornar-se império
através da escrita. Assim, não é destituída de sentido geográfico a expressão
império e o que aqui estamos tentando exprimir se torna claro quando atentamos
para o significado de expressões como ‘império da lei’ ou o ‘império da mídia’ ou
o ‘império da religião’: todos eles implicam um poder que vai além do local. O
poder local, como aquele regido por relações coronelísticas, não invoca o ‘império
78
GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
16. Anthony Giddens fala que essa co-presença física é característica de todas as sociedades até o
século XIX. O interessante é que este autor destaca exatamente essa dimensão que chamamos de deslocalização
como característica da sociedade capitalista industrial moderna (GIDDENS, 1989).
17. Mesmo que regido por relações contraditórias, posto que para haver contradição é necessário que
haja identidade.
da lei’. A lei, por sua vez, dizem-nos, deve ser impessoal, não deve olhar para
quem se volta e deve ser igual para todos. Em suma, uma lógica conflitante com a
lógica do favor.
Tomando-se como referência aqueles que habitam o mundo rural18, essa passagem
do lugar para o espaço mais amplo coloca-os, sempre, na contingência de
ter que se relacionar com os intermediários em virtude, antes de tudo, da própria
dispersão espacial inerente às atividades agrícolas (ABRAMOVAY, 1992). É isso,
por exemplo, que leva o extrator seringueiro a reconhecer como legítima a função
que o barracão/o patrão cumpre no movimento do seringal, apesar de saber que a
escrita ali presente parece, sempre, lhes tirar mais do que devia. Esse sentimento é
da mesma natureza daquele que temos em relação àqueles que aumentam os
preços ao consumidor e pagam pouco ao produtor. Assim, é nesses intervalos entre
os lugares, onde se inscrevem os (inter)mediadores, os que vivem na/da travessia,
atravessadores que podem ser tanto aqueles dos negócios da economia, como
aqueles dos negócios do campo simbólico, como da política, por exemplo 19.
É por aí também que se inscrevem esses muito especiais profissionais da intermediação
que são os jornalistas e a Imprensa; ou então esses intermediários das
almas, profissionais por excelência das ligações, das religações (religare) que são
os profissionais das religiões e as Igrejas; ou então esses intermediários da norma
comum, os advogados e os juristas, que exatamente por serem do campo das normas
que se querem comuns consagram idéias não locais, mas universais: O
Direito.
Enfim, estamos diante de uma nova territorialidade onde novos segmentos,
grupos e classes sociais - jornalistas, advogados, religiosos, políticos e intelectuais
de um modo geral - se fazem presentes e, com suas práticas, conformam novos
pactos, novas identidades de contrários. Vemos, assim, nessa nova configuração
que se está desenhando da geografia social brasileira que novos sujeitos e processos
instituintes (e suas instituições que geralmente se querem com maiúscula)
estão, como sempre, subjacentes à conformação dessa territorialidade.
É necessário distinguir que há aqueles cuja natureza do seu fazer não é
falar/dizer ou escrever o que fazem20. Há, todavia aqueles cujo fazer é, por
natureza, o dizer/falar/escrever: o padre, o advogado, o intelectual - o jornalista, o
professor - e o político enquanto aquele que se inscreve como mediador na Pólis
hoje, sabemos, o Estado-Nação.
79
A Territorialidade Seringueira
18. O mesmo pode ser pensado para a ‘aldeia global’ que muitos têm visto como global, mas que deve
ser vista como aldeia, ou seja, mundo pequeno onde alguns poucos podem controlar o que se passa,
ou pelo menos, acreditam nisso.
19. Afinal, há sempre um preço a pagar pela intermediação, seja por um lado ou por outro, podendo,
no entanto, ser maior ou menor esse preço dependendo da correlação de forças políticas (e simbólicas)
entre os diversos segmentos.
20. Que sabem, sabem pois, do contrário, não fariam. Há, assim e sempre, um saber inscrito no fazer.
Há, assim, uma tensão entre aqueles que participam das relações de poder
inscritas nas próprias relações quotidianas, do espaço vivido, onde desenvolvem
múltiplas estratégias de sobrevivência, conformam toda uma cultura, seu habitus, e
aqueles que fazem as mediações cujo fazer é, sobretudo, dizer/falar 21.
Esse mediador, fique bem claro, pode estar bem próximo, bem pode ser um
dirigente sindical, até mesmo de origem autêntica. No entanto, enquanto sindicalista
é da sua natureza promover a união e, como tal, desenvolver os atributos
necessários ao campo: saber interpretar, saber falar, construir um nós e um eles,
promover a passagem do eu-individual ao eu-coletivo. Enfim, o seu fazer-saber já
é o interpretar, falar e o seu reconhecimento se faz na medida que os representados
se reconheçam na sua fala, que se sintam re-presentados, ou seja, presentes
enquanto bandeiras, reivindicações, palavras de ordem, aspirações, desejos. Afinal,
a palavra torna o ausente presente enquanto símbolo.
Assinalemos, por todas as suas implicações teóricas e políticas, que há um
processo de invisibilização que tenta impor silêncio a esses cuja natureza do seu
fazer não é o dizer, processo esse que esquece22 essas revoluções moleculares
inscritas nas relações de poder quotidianas, invisibilização essa que é produzida
não só pelos chamados intelectuais tradicionais 23.
A construção de uma identidade coletiva é possível não só devido às condições
sociais de vida semelhantes mas, também, por serem percebidas como interessantes
e, por isso, é uma construção e não uma inevitabilidade histórica ou natural.
E, mais, na afirmação dessa identidade coletiva há uma luta intensa por afirmar os
“modos de percepção legítima” (Bourdieu), da (di)visão social, da (di)visão do
espaço, da (di)visão do tempo, da (di)visão da natureza.
Há aqui, portanto, na construção das identidades coletivas um lugar privilegiado
para os intelectuais, com a ressalva de estendermos esse conceito de intelectual,
80
GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
21. Essa tensão contraditória é inerente às relações daqueles que fazem com seu próprio corpo e
aqueles que são os mediadores, os intermediários, os profissionais da media, sejam eles do próprio
sindicato, ou do partido, ou da comunidade eclesial de base, ou do jornalista, ou do profissional da
militância de uma entidade civil sem fins lucrativos. Não há alternativa.
22. Daí dizer-se que não são ouvidos, que querem ter voz, caso contrário, são esquecidos.
23. Como já nos ensinara Pierre Bourdieu, por um desses mecanismos de deslocamento, se oferece
sempre a possibilidade de uma aproximação entre os intelectuais e os “de baixo”, posto que a superioridade
que tem o intelectual no campo simbólico, onde ele estaria “por cima”, não corresponde necessariamente
a uma superioridade enquanto poder político e econômico, onde ele estaria “por
baixo”. Assim há sempre a possibilidade que intelectuais estejam próximos dos movimentos sociais,
cujas falas contribuem para forjar a identidade do movimento, até porque, por definição, como intelectuais,
é da natureza do seu fazer o dizer. Assim, eles vivem das suas formulações, das suas teorias,
“da sua capacidade de análise”, enfim do seu capital cultural, em grande parte derivado dos seus
títulos que tornam suas falas autorizadas, da sua capacidade de antecipar o futuro (as análises de conjuntura
têm esse poder mágico). Assim, é possível que visualizemos um discurso sobre a ação e um
discurso da ação.
como o faz o comunista italiano Antonio Gramsci, para além daqueles que o sejam
por profissão, como os professores, advogados, padres, jornalistas, cientistas de
um modo geral, os doutores e, sim, para todos aqueles que contribuem com suas
falas para produzirem “visões de mundo”, das (di) visões do mundo e, assim, de
forjarem identidades como, por exemplo, homens comuns que se tornam expressão
de um eu-coletivo e que são reconhecidos por aqueles que nele se reconhecem .
Chico Mendes, Raimundo de Barros, Osmarino Amâncio Rodrigues, Júlio Barbosa
de Aquino e Marina Silva, todos seringueiros, são, rigorosamente, intelectuais
nesse sentido gramsciano.
Essa tensão contraditória é inerente às relações daqueles que fazem com seu
próprio corpo e aqueles que são os mediadores, os atravessadores, os profissionais
da media, sejam eles do próprio sindicato, ou do partido, ou da comunidade eclesial
de base, ou do jornalista, ou do profissional da militância de uma entidade civil sem
fins lucrativos. Não há como escapar à natureza dessas relações, mais cedo ou mais
tarde mais ou menos tensas, entre representantes e representados, entre o instituído
e o processo instituinte 24. Vejamos o depoimento de um desses intelectuais.
Indagado por Varadouro porque estava indo “quebrar castanha”, já que era
vereador, e se isso significava um certo desencanto com a política, Chico Mendes,
que ali tinha chegado através do movimento sindical, responde:
- Não é bem isso. O problema é que, como político, estava sentindo certa dificuldade de
entrar em contato com os trabalhadores, com o Sindicato. Além disso, o estatuto do Sindicato
não permite que eu, como político, seja sócio. Pensei, então, que voltando a ser trabalhador,
teria toda liberdade de agir. Por achar que a tribuna da Câmara não dá solução para o trabalhador
e por achar que o político que realmente se compromete com a luta do trabalhador
deve estar ao seu lado, decidi, então, ir quebrar castanha para estar ao lado dos seringueiros.
(...) É, não é fácil, porque como seringueiro, a gente fica isolado, mais preso ao trabalho
e não pode se movimentar para acompanhar o trabalho em outros seringais. Por isso, inclusive,
estou pensando em adquirir uma colônia, que permitiria maior movimentação.
Vou (continuar trabalhando) sim. Trabalhando a gente fica perto do povo e no momento em
que houver qualquer problema, a gente também se apresenta como um trabalhador, com as mãos
calejadas
(Varadouro n. 18, mar 1980 : 05).
A dificuldade está claramente posta entre a classe e os seus próprios instrumentos
de mediação, isto é, o sindicato ou mesmo o partido político. A dimensão
espacial inscrita no fato político salta à vista (se se quer ver): “a gente fica perto”,
“a gente fica isolado”, “não pode se movimentar”, “uma colônia que permitiria
81
A Territorialidade Seringueira
24 . Como nos ensinara o filósofo holandês Baruch Spinoza são os encontros/as relações que fazem
desabrochar as potencialidades.
maior movimentação”. Para que se seja político é preciso se movimentar, mediar,
se deslocar, podendo até mesmo implicar que se deixasse de ser seringueiro para
ser “colonheiro”, como se chama tradicionalmente no Acre aquele que tem um
pequeno pedaço de terra para fazer seu roçado. As circunstâncias levariam a que
Chico Mendes tivesse que ser seringueiro e dirigente sindical ao mesmo tempo, o
que, convenhamos, não foi fácil.
As tensões que aqui se abrem são enormes, até porque os protagonistas diretos,
os seringueiros-caboclos, não dominam esses espaços de intermediação com a
mesma naturalidade com que o fazem os intelectuais no sentido estrito. É da
natureza dos intelectuais falar do geral, do universal, das leis, das normas, dos
processos. São eles que ocupam esses espaços.
No entanto, registre-se, há vários movimentos 25 que abrem mais possibilidades
para que os “de baixo” possam vir a ocupar um lugar de destaque tendo que
invocar, também, a idéia de um eu-coletivo, contribuindo para construir identidades
coletivas e, assim, tornar-se um intelectual orgânico. Há aqui todo um conjunto
de atributos que se colocam como necessários para que se ocupe esse campo
como, por exemplo, o domínio de recursos da linguagem (a retórica, a oratória, a
escrita) tão necessárias para que se manifeste.
No caso daqueles que, pela natureza do seu fazer, não se encontra o falar, o
escrever, a sua força está fortemente associada à sua presença física no espaço. É
preciso ocupar o espaço, se fazer presente, rigorosamente, perturbar a ordem, posto
que é essa ordem que não lhes reconhece, que não lhes vê. Não sem sentido se diz
massa, onde o seu poder está na manifestação da quantidade, do volume, da densidade
numa verdadeira medição de forças, onde a individualidade fica subsumida
nesse coletivo que tenta, exatamente enquanto coletivo, superar a fragilidade que
está inscrita no isolamento, na individualidade. Daí as manifestações, as marchas,
as passeatas para que se faça notado. Quando se trata de poder as metáforas espaciais
(tamanho, volume, posição que é relação entre lugares) são parte da sua linguagem
natural (Foucault).
Como esses atos são, por sua própria natureza, temporalmente pontuais
(episódicos), entre esses momentos se fazem necessários os intermediários e,
novamente, a valorização de quem dispõe de capital cultural acumulado para representar
e, assim, falar em nome de quem não está presente enquanto
corpo/matéria, mas enquanto idéia/ símbolos: re-presentar. Daí as bandeiras, as
palavras de ordem que tentam fixar a presença na memória coletiva procurando
afirmar um lugar na geografia real e imaginária.
Afastemos aqui um possível simplismo que poderia se estabelecer quando
falamos da tensão entre os seringueiros/caboclos e aqueles que não o são, como
sendo entre os que são do Acre e os que não são. Este jogo é habilmente manipulado
sobretudo pelos intelectuais tanto os “de dentro” como pelos “de fora”, cada
82
GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
25. Processos instituintes e suas instituições.
qual lançando mão do prestígio que acreditam ter no mercado político-simbólico,
seja exatamente porque se é “de fora”, sobretudo quando se é do Sul do país que,
na atual correlação de forças políticas e simbólicas, é o centro do poder na atual
correlação de forças nessa geografia imaginária; seja porque se é “de dentro” e,
por isso, invocam um maior conhecimento de causa, da causa, posto que estão
próximos, argumentos através dos quais procuram tornar suas falas mais autorizadas,
seus modos de percepção mais legítimos, cada qual.
Sabemos o quanto isso é forte quando se trata de analisar o Acre onde os “de
fora”, do Sul, historicamente exerceram o controle político do território e, particularmente,
quando o movimento dos seringueiros, sobretudo após os anos setenta,
trouxe para si essa histórica acreanidade num momento de absoluta crise de hegemonia
dos setores dominantes tradicionais.
Essas identidades e essas oposições entre os “de dentro” e os “de fora” do
Acre, sem dúvida, estão presentes. Todavia, é preciso destacar que as tensões e
contradições se dão lá mesmo entre “as bases”, onde estaria a classe, e a própria
direção dos sindicatos e dos partidos políticos (onde os marxistas dizem estar a
consciência da classe) que são, também, instituições da ordem das (inter)mediações,
que por sua própria natureza operam com um espaço que se faz numa outra
escala e, com isso, já estamos indicando uma hierarquia. Há, assim, um “em cima”
e um “em baixo” lá mesmo entre os “de baixo”, assim como há um ‘em baixo’
entre os “de cima”. As lutas de classes são, assim, mais complexas do que quer
uma dialética classes dominantes versus classes dominadas.
A construção de uma possível, mas não natural ou inevitável, identidade
seringueira pelo movimento dos ocupantes - índios-seringueiros- caboclos - não se
fez, portanto, somente com/contra os “de cima”, os patrões, os fazendeiros, os latifundiários,
os “paulistas” e os seus intelectuais tradicionais mas, também, com/contra
a igreja, os sindicatos, os ambientalistas, os partidos políticos e seus intelectuais.
Essa constatação é fundamental para que superemos um novo senso comum
que tenta atribuir a projeção e visibilidade política alcançado pelo movimento dos
seringueiros e de sua proposta de Reservas Extrativistas seja ao papel da Igreja, seja
ao do Sindicato, seja ao dos Partidos Políticos, seja ao Movimentos Ambientalista,
seja a um ou outro Intelectual ligado ou não a cada uma dessas instituições.
O movimento dos seringueiros é mais amplo do que esses outros movimentos/
processos instituintes/instituições, posto que o/as abarca, mas não se esgota
nele/as 26. O espaço social é multidimensional e essas múltiplas dimensões fazem
com que o movimento dos seringueiros seja também-mas-não-só movimento sindical;
também-mas-não-só movimento ambientalista; também-mas-não-só movimen-
83
A Territorialidade Seringueira
26. O mesmo pode ser dito de cada um desses movimentos seja o religioso, seja o sindical, seja o partidário,
seja o ambientalista que, com toda certeza, no Acre, se relacionam/se encontram todos com o
movimento dos seringueiros e que, também, não se esgotam neste
to de classe; também-mas-não-só movimento cultural fazendo-se sempre, de uma
maneira singular: seringueiro.
E o fato de ser seringueira essa identidade em construção indica que o habitat
e o habitus tiveram um papel relevante na sua conformação identitária, contribuindo
para que se classificassem, isto é, se constituíssem enquanto classe desde que
vejamos a classe para além do lugar que se ocupa diante dos meios de produção,
como nos ensinaram Thompson, Bourdieu, Castoriadis, Leffort, Chauí, Maroni, de
Certeau, Lefebvre, Luxemburgo, entre outros.
O movimento dos seringueiros alcançou uma legitimidade que o inscreve num
novo mapa de significações que, até aqui, tem feito com que os seringueiros não
sejam esquecidos ou abandonados e, assim, sejam parte de uma nova geografia
imaginária que, sabemos, está sempre sendo refeita 27. O que expusemos nos
obrigou a sublinhar o até aqui dessa legitimidade do movimento dos seringueiros,
posto que o próprio sucesso de suas propostas, tão bem materializado nas Reservas
Extrativistas, nos faz esquecer os processos instituintes que estão subjacentes.
Insistimos que não há habitat que não comporte habitus, que não há instituído que
não tenha processos/sujeitos instituintes portados/incorporados pelos que o
habitam. Assim é necessário que se diga que as Reservas Extrativistas, são a
expressão de uma identidade possível dos seringueiros, construída enquanto movimento
dos seringueiros e seus encontros (Spinoza) do que a Reserva Extrativista é
sua expressão teórico-prática num determinado momento de sua história. Assim,
falar de seringueiros sem falar do movimento que deu/dá sentido e qualidade a
essa identidade é contribuir para, com essa descontextualização, reduzi-lo ao folclore.
Desmontado o lado seringalista da sociedade acreana, os seringueiros
começarão a construir uma identidade política própria. Com a retirada dos “de
cima” da cena os “de baixo” tiveram que se haver mais uma vez e em outros sentidos
por conta própria. De início, sem dúvida, sem mediações e, depois, com/contra
as Comunidades Eclesiais de base; com/contra os sindicatos, e com/sem a imprensa
alternativa e com/contra alguns intelectuais e, assim como em algum momento
os marreteiros, se constituíram em meios, em mediadores importantíssimos para
lhes proporcionar a afirmação de suas matrizes de racionalidade, de seus modos de
vida, de seu habitat, a floresta.
Daquela histórica tensão de territorialidades que comandou a sociedade/geografia
acreana até os anos sessenta entre, de um lado, a Territorialidade dos
Coronéis de Barranco que se estruturava por cima e, de outro, a Territorialidade
dos Seringueiros Autônomos que se estruturara por baixo, restara aos protagonistas
dessa última ter que se reterritorializar numa luta tensa e intensa com/contra os
novos protagonistas chegados do Sul, os “paulistas”.
84
GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
27. Essa legitimidade impele todos os outros movimentos a procurarem se qualificar invocando aquelas
qualidades que acreditam suas e que vêm traduzidas na identidade seringueira.
Nossa pesquisa permitiu identificar alguns desses encontros através dos quais
os seringueiros construíram sua própria identidade e que estão materializados na
Reserva Extrativista, numa evidente Territorialidade Seringueira. Encontros esses
cujos sujeitos instituintes se faziam a partir de diferentes lugares e escalas e
com/contra os quais os seringueiros moldaram/foram moldados a partir de suas
próprias experiências materializadas/incorporadas. Destaquemos, pois, esses
encontros/confrontos:
1- Com/contra o Capital na sua forma específica de fazendeiros pecuaristas ou
simplesmente de rentistas que, com seus títulos de propriedade, se credenciavam
a captar mais valia social via incentivos fiscais, logo, via Estado. Na linguagem
acreana são os “paulistas”, os “latifundiários”.
2- Com/contra o Estado que ora patrocina o capital, os “paulistas”, ora oferece
um lote a um seringueiro na própria medida em que a resistência às expulsões
aumenta. Os ocupantes seringueiros-caboclos, na medida que se transformam
em “posseiros”, em Kaxinauá, Apurinãs, em “colonos”, em Kampa, em
“seringueiros”, enfim, na medida que se qualificam exigem que o Estado os
qualifique como interlocutores. Assim, ora são tratados como caso de polícia,
ora com mini-usinas ou com Projetos de Assentamento Dirigido sempre contra
as organizações instituídas pelos próprios protagonistas “de baixo”.
3- Com/contra a Igreja com suas Comunidades Eclesiais de Base, suas pastorais,
sobretudo a Comissão Pastoral da Terra mas, também, o Conselho Indigenista
Missionário - CIMI - e ainda seus párocos mais ou menos ligados e, até
mesmo, contra a Teologia da Libertação com/contra sua percepção da questão
da terra e da lei. E, sobretudo, com/contra sua visão de colono do sul do país,
legalista por sua inserção territorial específica de um Estado dentro de um
Estado.
4- Com/contra o movimento sindical, a Confederação Nacional dos
Trabalhadores na Agricultura - Contag - e os mais diferentes sindicatos, e toda
uma cultura já materializada nesse campo específico, sobretudo a tensão entre
o legal, enquanto direito a ser estendido à categoria, e a invenção de direitos.
Registre-se que a Reserva Extrativista não é uma figura jurídica dada. É, muito
mais, invenção de direitos o que, por si mesmo, indica sua relação com/contra
a legalidade.
5- Com/contra o Movimento Ambientalista que via mais a floresta do que os
Povos da Floresta e, reconheçamos, menos no Acre do que nas escalas
nacional e internacional. Registre-se que a Reserva Extrativista é uma ruptura
teórica com o conceito de unidade de conservação ambiental que não incorpora
o homem e sua cultura como seu protagonista e aponta para aquilo que
Enrique Leff chamou racionalidade ambiental (LEFF, 1994).
6- Com/contra os Partidos Políticos que, assim como expressavam, nas diferentes
circunstâncias, as demandas postas pelos seringueiros, ao mesmo tempo que-
85
A Territorialidade Seringueira
riam tutelá-los. Aqui o PMDB, o PT, o PV, o PC do B e sua dissidência o PRC
foram os mais significativos. Aqui, o fato do principal intelectual seringueiro,
Chico Mendes, ser ele mesmo comunista jogou um papel relevante nesse jogo
de espelhos com/contra o qual o movimento dos seringueiros foi tecendo sua
identidade.
7- Com/contra o Movimento Cultural - Varadouro ou pelo Projeto Seringueiro
que se encontra com o Projeto Integração do Ministério da Cultura - que busca
inventar, nas circunstâncias, uma identidade para um Acre/para uma Amazônia
que parecia não ser nosso/a posto que invadido/a por “paulistas” ou pelo “capital
estrangeiro”. Ser seringueiro e/ou ser caboclo que se faz índio, ou melhor,
Caxinauá, Kampa, Jamamadi, Apurinã, Kulina.
Foi sobretudo através do movimento sindical que, no Acre, os seringueiros
inventaram sua identidade e a materializaram na proposta de Reserva Extrativista.
Através de múltiplos encontros/confrontos os seringueiros vão se fazendo através
dessas outras identidades, delas se apropriando/negando e, assim, se definindo,
num sentido muito preciso do que seja definir, isto é, que busca se delimitar, num
processo de autonomia que, sabemos, mergulha numa trajetória histórica secular.
Esse Seringueiro Autônomo, ocupante, que dominava a paisagem acreana,
com seu
discurso da ação não verbaliza propostas políticas, no entanto elas existem; não propõe
alvos claros contra os quais se desenvolve o combate, porém eles não estão ausentes; não
define estratégias explícitas para alcançar o fim desejado, porém, estas se fazem o tempo todo
presentes. Por sua dinâmica, se faz presente e ausente, contínuo e descontínuo, definido e
indefinido. Em outras palavras, o discurso da ação não oferece visibilidade enquanto tal.
(MARONI, 1982 :18)
Esse Seringueiro Autônomo é que se constituirá no sujeito da resistência, de
uma luta para afirmar um determinado modo de ser, de existir.
A TERRITORIALIDADE SERINGUEIRA
Resumo: O artigo parte do pressuposto que na expressão “luta de classes” o termo forte é “luta” e
não “classes”, acompanhando o historiador inglês E. Thompson e o sociólogo francês P. Bourdieu.
Assim, é a luta que cria o movimento social entre os seringueiros, evidenciando-se que são as lutas, e
não o contrário, que dão origem às classes. O movimento social é visto, assim, rigorosamente, como
“mudança de lugar” (social). O movimento dos seringueiros significa a passagem da ação territorial
à identidade que ela inventa, validando a teoria da ação de que é através das lutas que o implícito
cresce e ganha a dimensão do explícito.
Palavras-chave: Teoria da Ação, Luta territorial, Identidade.
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GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
RUBBER-TAPPER’S TERRITORIALITY
Summary: This article has the pressuposition that in the expression “class struggles” the main
term is “struggle” and don’t “classes”, likewise the English historian E. Thompson and the French
sociologist P. Bourdieu. So, the struggle create the social movement among rubber-tappers, showing
that the struggles originate classes, not the opposite. The social movement is seen just as “change of
(social) place”. The rubber-tappers movement means the way from the territorial action to the identity
that it creates. So, it validates the action theory in which it is through the struggles that the implicit
grows and acquires the concret dimension of the explict.
Keywords: Action Theory, Territorial Struggle, Identity.
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GEOgraphia – Ano 1 – No2 – 1999 Gonçalves
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