quarta-feira, 8 de abril de 2009

Produção artística e burocracia: reflexão sobre a cultura institucional em Rio Branco

Dalmir Ferreira - poeta, artista plástico, membro da Academia Acreana de Letras, e ex-presidente do Conselho de Cultura do Estado do Acre.
06/04/2009 Durante toda a década de 1970 não houve em Rio Branco uma burocracia de Estado voltada para o apoio às artes. Malgrado a grande ebulição que causaram artistas e público neste período, a participação do Estado no âmbito da cultura nesta década esteve restrita a um pequeno setor da Secretaria de Educação, o DAC (Departamento de Assuntos Culturais). Ele foi o responsável em sua curta existência operacional por poucas iniciativas, que também por sua vez dependia dos projetos impostos de cima para baixo vindos do Governo Federal. Tais projetos eram raros e restritos e dependiam da iniciativa de quem estivesse por ele encarregado localmente, de forma que, essencialmente, tudo o que aconteceu neste período, além de brotar espontaneamente dos grupos de artistas e militantes de diversas áreas, foi sem o amparo oficial. Repito: as coisas aconteciam em função da iniciativa dos próprios artistas e do interesse com que o movimento passou a despertar naqueles que passariam a apoiá-lo, sem dizer que com o crescimento populacional, aumentava-se também o público. As artes nos diversos âmbitos foram gradativamente substituindo as velhas modas e costumes da província. E na medida em que crescia a cidade, em população e em acesso às novas tecnologias; e na medida em que se trocavam os "velhos" modos de vida por outros menos obsoletos; e na medida em que se agravava a crise no campo; enfim, até mesmo quando o consumo local do futebol atingiu seu declínio, mudanças radicais e essenciais foram se operando e contribuíram para o estabelecimento de novos comportamentos, uma nova forma de agregar-se a um mundo "novo" que se formava. O primeiro grande acontecimento da área cultural realizado nessa época foi no campo da música. Em 1969 foi realizado o Primeiro Festival Acreano da Música Popular. O evento se constituiu no primeiro grande acontecimento da cultura a mobilizar parte das mentes riobranquenses. Isso por que embora a populaçao já houvesse presenciado no ano anterior a Primeira Exposição de Pintores Acreanos (1969) no salão do Rio Branco, tal evento não conseguiu a mobilização que pretendia, talvez por sua precocidade, o certo é que tal mobilização só viria quase dez anos mais tarde.
A segunda grande mobilização no campo das artes foi através do Teatro. Esse segmento artístico se instalou e foi gradativamente se multiplicando por conta dos diversos grupos teatrais que iam surgindo e das apresentações que eles realizavam. Mesmo com a falta de espaços apropriados, jamais levaram em conta os obstáculos, que surgiam, mas que serviram para enriquecê-los cada vez mais, com peças teatrais de inegável valor crítico, estético, histórico.
Isso propiciou um verdadeiro enriquecimento social ao público que atendia ao chamado. Afinal não há forma melhor de educação do que a feita através de uma peça cênica. Era como se colocasse a platéia frente a um espelho. Isso proporcionava uma leitura abalizada do momento em que se passava, das mudanças essenciais de nossa história. Chegou, inclusive a mobilizar a população quanto aos diversos posicionamentos políticos que se configuravam por conta do tal “milagre brasileiro” operado pela ditadura militar. Pode-se afirmar que no campo das artes plásticas, a Primeira Exposição Acreana de Artes Plásticas, que também aconteceu de forma espontânea e praticamente sem apoio governamental, foi o marco inicial nesta área para a cidade de Rio Branco, porque marca o início do estabelecimento efetivo de uma forma perene do acontecer artístico, que ainda não havia sido experimentada, significando que a partir de então, não só exposições coletivas como, principalmente passam a acontecer e se multiplicar as exposições individuais, iniciando-se, além disso, a participação em eventos fora do estado, o que assegurou que se levasse o nome do Acre e de seus artistas para os mais diversos lugares do País e posteriormente para o mundo. Hoje consegue-se enumerar a dedo o pequeno número de valorosos artistas que naquele tempo desfilou nas diversas áreas da cultura, em prol da luta pela construção e do estabelecimento das artes em Rio Branco. Era comum na época os artistas atuarem em diversas áreas da arte ou darem apoio a elas. Isso se repete no acontecer artístico da cidade atualmente.
Quanto a formação dessa nova mentalidade é importante salientar também o relevante papel de instituições como a Igreja Católica quer seja com os grupos de jovens, quer seja com as atividades realizadas por padres que defendiam mudanças. Outro acontecimento foi a instalação da Universidade Federal do Acre, que implicou na vinda de professores de outros Estados. Esse intercâmbio foi essencial, principalmente na criação do Cine Clube Aquiry, espaço que aglutinava, mostrava e debatia os filmes fora do circuito oficial. O Cineclube não era apenas um cinema diferenciado, era, sobretudo um espaço de cultura, lá também circulava as noticias e debates de encontros, shows, peças, exposições, etc. Enfim, O Cineclube nasceu na universidade, mas não era da Universidade.
A criação da Delegacia do SESC foi também um outro acontecimento essencial no apoio à expansão das artes em Rio Branco, pois a despeito de seus outros objetivos, a mentalidade de seus dirigentes esteve sempre atenta para as circunstâncias daquele momento. Essa instituição foi a primeira instituição pública apoiar e contribuir efetivamente com a expansão das artes e da cultura de um modo geral em Rio Branconaquele momento. Em 1980 é criada a Fundação de Desenvolvimento de Recursos Humanos, da Cultura e do Desporto, a velha Fundação Cultural. A criação dela não foi uma ação isolada do Governo do Estado. Como sempre, de forma tardia seus idealizadores concebem uma estrutura burocrática autoritária, sem um projeto de cultura definido e sem previsão orçamentária.
A Fundação irá permitir investimentos na área da cultura, que num primeiro momento, pela competência de seu dirigente, alcançou grandes conquistas, mas que com as mudanças que a democracia presume, logo se tornou não só um grande cabide de emprego, mas também um "caixa três" oficial que permite a total falência da instituição a cada final de mandato. Não se tinha compromisso com a consolidação de uma instituição forte e representativa.
A primeira falha da Fundação Cultural do Estado foi ter sido criada para ser dirigida por um presidente nomeado pelo governador. Inteligente e democrático seria que ela fosse conduzida por um Conselho representativo, além disso, deveria se ter assegurado-lhe um Plano de Cultura e um orçamento mínimo para seu desenvolvimento.
Pode-se afirmar, portanto, que esse modelo de Instituição já nasceu predestinado à tutela do Estado. E que em se tratando de Cultura (tal como a educação), não se poderia em hipótese alguma permitir que ela fosse dirigida por qualquer burocrata escolhido pelo poder, sem vínculo com a cultura. Outra coisa prejudicial é a formação de uma burocracia sem vínculo com a cultura.
A alegação de que tudo era experimental improcede porque em quase todo o Brasil de norte a sul já se tinha estabelecido os mais diversos tipos de instituições para a cultura. Isso mostra não só a tardia instalação da FDRHCD, como prova que a intenção era mesmo a criação de uma instituição para servir aos burocratas do Estado e não aos artistas e produtores dessa área.
E foi assim seu desempenho desde seu nascimento: embora incorporando o grande número de espaços e instituições da cultura, nada foi feito de forma a consolidar esses espaços como espaços de cultura, seja através da criação oficial do espaço, ou da contratação de gente especializada, ou enfim, de se elaborar um levantamento completo de artistas ou de espaços ou de equipamentos. E o pior: jamais houve preocupação por parte da Fundação Cultural na preservação de espaço, equipamento ou qualquer documento da arte ou da cultura. As mudanças na chefia do executivo estadual jamais serviram para qualquer reflexão sobre a renovação na Fundação Cultural, no máximo promovem renovações conservadoras. Embora nenhum candidato tenha prometido algo em campanha para a cultura, também nunca se fez nada, que não propicie algum lucro. Não parece ser de interesse ou da conta de ninguém que transite na burocracia pensar sobre cultura.
Assim tem sido essas quase três décadas de apoio governamental à cultura. Se houvesse um pouco de consciência nesse âmbito, não se esperaria tanto para se fazer o se sabe que deve ser feito. Chegou-se ao cúmulo de promover o fechamento de instituições como o Instituto Histórico e Geográfico, o Museu de Belas Artes e a Galeria Municipal sem que isso causasse o menor constrangimento a ninguém. O que se observa é a conivência silente e servil dos eleitos, que chamados para compor a burocracia de Estado, pouco podem fazer, pois seu compromisso com a própria sobrevivência é maior do que com a cultura. Segundo Marilena Chauí a irracionalidade burocrática é aparente: serve para disfarçar e ocultar formas precisas de exercício de poderes (ainda que sejam pequenos poderes). Um processo (documento que dá existência administrativa e legal a uma ação qualquer) pode percorrer seu caminho pelas instancias administrativas em algumas horas ou em muitos meses: a diferença não é determinada pela complexidade do assunto, mas pela vontade de quem o faz caminhar ou parar nos escaninhos e nas gavetas.
Longe de funcionar com a impessoalidade de uma máquina, a burocracia funciona segundo relações de favor, clientela, tutela, boa ou má vontade, interesse ou desinteresse de seus membros que possuem um álibi precioso: a indiferença do assunto ou do objeto tratado, que segue o mesmo procedimento e percorre os mesmos andares e corredores, seja ele qual for. Afirma ainda Chauí, que a burocracia não é uma “máquina administrativa” e sim um sistema de poder movido por gente, no qual a vontade dos indivíduos-burocratas é mais determinante e imperiosa do que as leis e os procedimentos.
Os hábitos burocráticos operam para a manutenção de mando e poderes e não para a proteção efetiva da coisa pública. E tal como corrobora a afirmação de Claude Lefort, a burocracia a burocracia é uma formação social e não um modo de organizar serviços. Pois de fato, hierarquia, segredo, rotina, impessoalidade aparente, alem de cristalizar poderes, possuem duas outras funções precisas: de um lado a sabotagem política, de outro perpetuar um sistema de irresponsabilidades, uma vez que cada escalão burocrático lança para o outro as decisões mais importantes e nenhum se responsabiliza por nenhuma. Inconscientes dessa realidade tão próxima de seu nariz, o acreano de modo geral, artistas, público e burocratas, impedidos da visão desse contexto pela desinformação, lutam por uma arte cada vez mais difícil de acontecer, pois como se sabe, ela também requer um crescimento conjunto de seus produtores, além de outros cuidados inerentes a seu crescimento como é a questão da educação formal e informal dos implicados em seu acontecer. Mas esse é um outro assunto que requer o mesmo grau de aprofundamento e de uma complexidade não menor que esta. Como se vê em todo esse nosso contexto de administração da cultura há toda uma série de entraves que perduram e que se agravam na medida em que afiançam a persistência desses problemas, denotando o total desinteresse na mudança efetiva desse quadro.
Por exemplo, fala-se em Conselho, mas nada se faz pela instalação efetiva desse conselho. Fala-se na elaboração democrática e participativa do Plano de Cultura, mas não se faz nada a respeito.
Enfim, há por traz do discurso do poder um desejo deliberado da manutenção desse quadro, um desejo que desafia regras e leis e sobrevive certo da impunidade, enquanto os verdadeiros militantes da cultura, apenas aguardam que o tempo mude, sem nada fazer para que a mudança efetivamente possa acontecer. No aspecto municipal a questão do apoio institucional à cultura não é tão diferente da situãção do Estado. Criada mais ou menos no mesmo período, a Fundação Municipal de Cultura sofre dos mesmos males da criação da Fundação de Cultura do Estado. Sendo concebida por burocratas de indisfarçável interesse pelo lucro, temos uma Fundação que também não atende aos interesses para os quais fora criada. Seus estatutos e seu planejamento não têm afinidade comprovada com a cultura. Bem, mais esse assunto fica para outro artigo!
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