Por: Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa e Luiz Manoel do Eirado Amorim.
A história do Acre é desde cedo lugar de encontros de culturas diferentes sendo mais um exuberante capítulo da história do Brasil. Portugueses, nordestinos, sulistas, sírio-libaneses e bolivianos, entre outros, aliaram-se aos nativos da região, os indígenas, no amalgama dos saberes culturais e o entrelaçamento de raças, costumes e interesses, reproduzindo, guardando as devidas proporções, a época dos descobrimentos.
É, pois, o último ponto de expansão de fronteira brasileira ao noroeste da Amazônia, no fim da primeira metade do século XIX. Tem a origem de seu nome no dialeto indígena Ipurinã Wuawiukiru, que logo foi aportuguesado “Aquiry” - Acre - pelos recém-chegados. Pretende-se, aqui, contar uma breve história da arquitetura, e a aparição das primeiras cidades, naquela região, enfatizando as contradições harmônicas entre a tradição vernácula e moderna num ambiente de floresta.
Como um espaço natural desconhecido do mundo civilizado sofreu um processo de ocupação lento, tendo uma primeira fase apenas geográfica, registrada cartograficamente pelas missões científicas e exploratórias, como a de William Chandless, um geógrafo enviado pela Royal Society of London em 1864, iniciando a efetivação da fronteira acreana, forçada pelo extrativismo da nativa hevea brasiliensis, cujo látex produz a borracha vegetal.
A ocupação da Amazônia, porém, começou muito antes e teve momentos distintos: um de ordem pontual, com a coroa portuguesa, e subliminarmente com a francesa, a espanhola, a holandesa e inglesa; prosseguindo depois à fase da busca pelas drogas exóticas, o interesse pela pesquisa e logo a seguir a implementação da atividade extrativa da hevea brasiliensis, e, por último, o pós-ciclo da borracha, marcado por uma ocupação caótica, ligada ao ciclo da agropecuária.
Na fase ainda geográfica, o Acre foi anexado à Província do Amazonas, fazendo parte da Comarca do Rio Negro. Em 1898, inicia-se a segunda fase, quando o ministro boliviano Paravincini estabeleceu o Departamento Boliviano do Acre, em Porto Alonso, com a intenção de arrendar aquele território aos Estados Unidos da América. Fato que acabou por provocar a Revolução Acreana que terminou com a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 17 de novembro de 1903, com a Bolívia, incorporando-o ao Brasil, e, depois de ter sido Território, passou à Estado em 1962.
O Acre atual faz divisa com Amazonas e Rondônia e fronteira com Peru e Bolívia. Sua extensão territorial é de 445 quilômetros no sentido norte-sul e 809 quilômetros entre o extremo leste-oeste. Sua população é de aproximadamente 546.732 habitantes distribuídos numa superfície territorial de 153.149,9 quilômetros quadrados, que corresponde a 3,9% da área amazônica brasileira e a 1,8% do território nacional (ZEE, 2000).
A selva inabitada pela civilização recebeu as primeiras intervenções do imperialismo com o capitalismo industrial, vindas com a implantação dos seringais, cuja espacialidade de seu núcleo traduziu a primeira unidade produtiva da região, no caso para extração do látex e produção da borracha vegetal.
Há uma divergência de opiniões entre historiadores a respeito da gênesis das cidades acreanas. Uns acreditam que se desenvolveram a partir dos seringais e outros defendem que nasceram paralelamente às atividades dos mesmos, abrigando funções comerciais alternativas. Podemos considerar as duas questões, uma vez que as cidades estavam sempre próximas aos seringais e de uma forma ou de outra estabeleceram relações de dependência e de desenvolvimento.
Assim, nessa primeira fase geográfica, os aglomerados surgem de forma espontânea, seguindo os cursos das navegações ribeirinhas, responsáveis pela penetração no território tendo como marco para fixação a quantidade de seringas, como é sutilmente chamada a árvore que faz jorrar o ouro negro. Mas, logo em seguida, esses aglomerados recebem planos de organização espacial, projetados por engenheiros militares, já na república.
Os núcleos, então, ainda não tinham autonomia de cidades, coisa que só veio a acontecer em 1912/1913, mas passaram à condição de vilas. Como principais citaremos Rio Branco, Cruzeiro do Sul, Xapuri e Sena Madureira, que tiveram diferentes tipos de colonizações e receberam de forma diferenciada os planos urbanísticos que a República Brasileira, distante, lhes enviava.
Xapuri foi a primeira capital do estado e teve planta idealizada pelo engenheiro militar Gastão Lobão em 1903, fortemente marcada pelo traçado reticulado que foi delineado praticamente in situ, nas quadras que já estavam ocupadas por ordem de Plácido de Castro, militar que comandou a Revolução Acreana.
Rio Branco, a atual capital do Estado, só veio a ter seu plano em 1908, quando Gabino Besouro, o prefeito do Departamento na época, designou os engenheiros Manoel Maria de Figueiredo Aranha e Álvaro Conrado de Niemeyer, ambos 2º tenentes, para ordenar um projeto de arruamento e implantar, na margem oposta do rio Acre, em Penápolis, um posto meteorológico, quando a cidade veio ocupar as duas margens, tornando-a mais pitoresca, também com traçado reticulado.
Esses planos não foram imediatamente adotados, tornaram-se, porém, importantes nos traçados das cidades atuais. Caso diferente de Sena Madureira que foi desde logo destinada à sede do Departamento do Alto Purus e seu plano é marcado por uma riqueza de detalhes e beleza de desenho da implantação das obras civis e religiosas.
Cruzeiro do Sul teve, sob a batuta do coronel Gregório Thaumaturgo de Azevedo, seu plano elaborado pelos engenheiros José de Berredo, Manfredo Castanhede e Alferes Sulpício Cordovil que, além de locar residências na planta, desenhou a cadeia, a biblioteca, a usina de eletricidade e uma escola. Seu desenho foi comparado ao de Belo Horizonte de Aarão Reis (1896), exemplo de intervenção moderna nas cidades brasileiras, devido à semelhança do traçado e a ocupação da paisagem de seu sítio.
Essas cidades tornaram-se municípios pela lei federal nº 9.831/’1912, com datas diferentes durante o ano de 1913. Apesar disso continuaram por um longo tempo na incerteza administrativa entre os núcleos rurais dos seringais que eram auto-suficientes e as respectivas sedes das Comarcas. Só a partir de 1970, e a Ditadura Militar, que a urbanização, no então Estado, passa a ser acelerada, já na fase da agropecuária.
Nesta época, inicia-se um período marcado pela ideologia desenvolvimentista que resultou na degradação das atividades econômicas tradicionais e na exploração dos recursos regionais, causando um desmesurado desequilíbrio. Ao mesmo tempo em que, pelo tipo de ocupação e uso do solo, terminou por configurar, nos assentamentos urbanos, um acentuado processo de degradação sócio e ambiental. Vale lembrar que a legalização das terras no Acre, ainda é uma questão não muito bem resolvida, com um processo histórico de alternâncias de apropriação cultural.
Mas, o principal patrimônio histórico do Acre é seu próprio território, composto por uma admirável bacia hidrográfica e uma estupenda biodiversidade abrigada numa vegetação de floresta tropical densa e tropical aberta. Seu patrimônio edificado, porém, pode ser descrito através dos significados culturais que sua população lhe assegurou. Significados que foram elaborados harmoniosamente entre as contradições, como um bom solo brasileiro. E, também, por isso mesmo tem sua importância.
Na arquitetura encontramos uma forte presença da construção vernácula, com materiais locais, como: madeira, palha e terra, cuja linguagem ‘cabocla’ vem da interação do primitivo saber dos nativos, com as maneiras inovadoras trazidas pelos migrantes. Como exemplo a sede dos seringais, núcleo principal e administrativo, chamado de “barracão”, é o lugar dessas contradições harmônicas. Primeiramente foram construídos de forma improvisada, utilizando o taperi, para o abrigo, e o paperi para a defumação do látex da borracha.
Depois, em virtude da ampliação da atividade extrativista, modelos foram trazidos pré-cortados em madeira do Pará e de Manaus, com coberturas de telhas tipo Marselha, de cerâmica, compondo uma linguagem moderna do ecletismo. Junto com estes modelos foi trazido para o seringal Bom Destino uma capela toda em ferro. A junção dessas duas situações proporcionou um ‘modelo urbano’ que se verifica até hoje, aliando numa mesma composição estética a maneira vernácula e a erudita.
O processo de urbanização, forçou, no entanto, o aparecimento de outras técnicas construtivas, como a alvenaria de tijolos cozidos, incentivados na década de 20 do século XX, ancorada na proposta de higiene e sanitarismo, principalmente na época do presidente Afonso Pena. A cultura regional resistiu por longo tempo à nova técnica, apesar de todos os incentivos administrativos que foram empregados, e hoje a realidade é bastante diferente, tendo a alvenaria alcançado a supremacia na maioria das cidades e a madeira sendo utilizada nas colocações, que são as moradias dos seringueiros ou nas periferias urbanas.
O Patrimônio Histórico específico da arquitetura foi construído a princípio em madeira e seguiu um padrão que se tornou tradicional na região. A partir da década de 20 do século XX, essa particularidade tende à transformação. A primeira obra monumental foi construída por Hugo Carneiro. Trata-se do Palácio do Governo, com projeto do arquiteto Massler, vindo do Ceará, em alvenaria. Inaugurado na década de 40, substituiu o antigo prédio da Intendência, que era todo em madeira com uma interpretação do eclético.
Nessa época, a idéia de modernidade na construção em alvenaria se alastrou pelas cidades acreanas do interior, onde os prédios públicos e algumas residências passaram a ser construções mistas, apresentando tão somente as fachadas em alvenaria e algumas seguindo a estética protomoderna, que já se manifestava em outras cidades brasileiras. O taperi, a casa eclética, tipo chalet, e as novas construções contribuem para dar às cidades uma feição de mudança e modernidade convivendo com o padrão local regional.
Cada cidade buscou construir um monumento moderno, ainda que singelo, de forma especial. Cruzeiro do Sul recebeu o estilo alemão, devido à sua colonização. O estilo aparece com enxaimel e coberturas de caimento avantajado distribuído em várias águas, identificadas nas escolas e nas obras da Prelazia. A Igreja Nossa Senhora da Glória, mais recente, da década de 60, mistura no erudito uma linguagem regional e talvez indígena.
As obras religiosas de missionários católicos, alemães e italianos principalmente, assim como as dos protestantes americanos, foram importantes na formação de operários e mestres para a construção civil. Na construção da igreja de Xapuri, por exemplo, e da nova sede do Colégio Divina Providência, que substituiu o de madeira, foram treinados os operários que atuaram na construção do Colégio São José e da Catedral Nossa Senhora de Nazaré de Rio Branco. Sena Madureira ergue também sua igreja e em seu interior aparece uma sutil mistura do românico com o marajoara. E Tarauacá expõe uma inovação, um painel de mosaico colorido na fachada principal.
Mesmo considerando o isolamento do Estado, em relação às demais cidades brasileiras e entre as suas cidades, constatamos que lentamente ele não deixou de receber as idéias modernas com suas temporalidades, interagindo e modificando-as conforme o gosto local. O tradicional e o moderno sempre conviveram bem na região, conjugando a composição de culturas diferentes que amalgamaram o espaço de fronteira acreano.
Na década de 70 do século XX, um fato novo determina significativas intervenções qualitativas na arquitetura em geral, o que deve ser creditado às escolas de arquitetura do sul do país. A presença do IAB – Instituto de Arquitetos do Brasil – ajuda a organizar e fundar no Estado o CREA - Conselho Regional de Engenharia, Arquitetura e Agronomia – que passou de forma sistemática a promover a atuação de profissionais na construção civil, com pouquíssimos profissionais (só recentemente foi aberta uma escola de arquitetura em Rio Branco).
Os reflexos desse fato se manifestam a partir de então, e, na arquitetura são revelados procedimentos, também acompanhados de contradições, como a substituição mais efetiva de novos materiais construtivos e a incorporação de uma linguagem impessoal. Alguns projetos são, no entanto, inovadores pela sua resistência, não ao novo, mas ao compromisso com a qualidade e a tradição local.
Assim alguns desafios surgem, procurando a harmonia da convivência. Severiano Porto projeta, na década de 80, o complexo do SENAI, no bairro da Cadeia Velha. Uma arquitetura voltada para a racionalidade e desempenho, ancorada na premissa modernista, utilizando concreto armado, amplas aberturas com vidro e cobertura com telhas amianto para grandes vãos.
Outros projetos apostam na técnica tradicional em madeira, como a Casa do Índio (199?), construção destinada a acolher os índios na cidade. E, anterior a ela, o prédio do Laboratório de Madeira, na década de 80, hoje FUNTAC – Fundação de Tecnologia do Acre – construído com painéis aglomerados e encaixados em perfis de madeira.
Esse mesmo espírito de resistência, procurando manter o emprego da madeira na construção, tem o projeto para APADEQ – Associação de Parentes e Amigos de Dependentes Químicos – inaugurado em 2002. A proposta parte do uso do material orgânico que atua na percepção das pessoas. Foram utilizadas tábuas em madeira serrada, pregadas aos perfis, com paredes de duplo revestimento e cobertura com telha de barro e forro. Seu interior foge à idéia do ”panóptico”, prevalecendo a vantagem da convivência familiar.
Atualmente, o Poder Público Estadual tendo como prerrogativa o embelezamento das cidades, tem promovido obras de reforma e restauro de vários monumentos. Uma delas é a do Palácio do Governo que foi reinaugurado em 2000. Construiu, entre outras, o Memorial dos Autonomistas e a sede do Barracão do Seringal Bom Destino, de reconhecido valor histórico, por ter abrigado o início da Revolução Acreana.
Também para projetos de urbanismo, a década de 70 tornou-se um marco. A acelerada urbanização causou um maior adensamento urbano, principalmente em Rio Branco. É o início da verticalização. Optou-se por reproduzir modelos projetados no sul para Habitação Popular. Assim surgem novos bairros alargando a estrutura urbana. Como exemplo da verticalização temos na década de 80 o Conjunto Manuel Julião, composto por vários blocos de quatro pavimentos, e cuja implantação teve o desenho completamente desconectado da malha urbana da época.
A resistência é presente também no urbanismo, quando é construído o Conjunto Adalberto Sena, todo em madeira, com implantação paisagística e infra-estrutura básica. A técnica utilizada é inovadora. São usadas réguas residuais que correm por dentro de perfis, ambos de madeira. Interessante ressaltar a excelente aceitação desse processo construtivo pelo usuário que pouco o modificou ao longo do tempo.
Na atualidade, o maior projeto de intervenção urbanística foi a implantação do Parque da Maternidade, em Rio Branco. Um enorme parque urbano que corta transversalmente quase toda a cidade, seguindo a trajetória do canal do mesmo nome. Nesse parque está presente em vitrine a cultura acreana, disposta a competir com a imagem de outras cidades, numa perspectiva de marketing e empreendedorismo, prerrogativas da globalização.
Como intervenção, apresenta-se também contraditoriamente ao parque da Maternidade a obra de recuperação do Calçadão da Gameleira, com a recuperação do “lugar”, baseada numa das temporalidades pela qual aquele espaço passou, seguindo exemplo da intervenção do Pelourinho na Bahia, além de outros parques urbanos na franja da cidade.
Finalizando este pequeno inventário sobre a arquitetura no Acre, e as contradições entre as formas tradicionais e as modernas de construir e ocupar aquele espaço, não podemos deixar de mencionar o amplo projeto de “referência cultural” que envolveu a atuação do líder ambientalista Chico Mendes. Nascido no Acre, Chico Mendes era um bravo e entusiasta defensor da identidade da região.
Como seringueiro, gritou contra essas contradições realçadas pela modernidade e liderou na década de 70 os “empates”, que eram barreiras humanas literais contra as motoserras que derrubavam a floresta, para transformá-la em fazendas nos moldes paulistas. Sua residência é hoje o Museu com o seu nome, que incentiva produção artística tradicional.
Por ser um progressista insistiu na necessidade de autonomia da população e da floresta, ressaltando a contradição do desenvolvimento, que por um lado prevê e comporta o crescimento e por outro necessita de limites para que haja sempre equilíbrio. Seus seguidores continuam lutando através de seu pensamento pela auto-sustentabilidade: usar sim e cada vez mais proteger.
Referências Bibliográficas
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sobre os autores
Ana Lúcia Reis Melo Fernandes da Costa é arquiteta (UGF), mestre em História (UFPE) e doutoranda em Desenvolvimento Urbano (MDU / UFPE).
Luiz Manoel do Eirado Amorim é arquiteto (UFPE), PhD UCL/University London e orientador do texto.
http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/07.083/257
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