sexta-feira, 23 de novembro de 2007

CHICO MENDES E PLACIDO DE CASTRO

FONTE: http://www.maryallegretti.blogspot.com/2007/03/chico-mendes-e-placido-de-castro.html

"Foram os nordestinos, os seringueiros, que se transformaram em soldados, de uma hora para a outra, prá defender, quer dizer, tomar, conquistar essa terra que pertencia aos bolivianos. Eles julgam, por isso, eles se julgam donos da terra, porque foram seus antepassados que lutaram por ela." Entrevista de Chico Mendes a Mary Allegretti, maio de 1981, Rio Branco, Acre.Assisto com um dia de atraso, no meu computador, aqui em Madison, Wisconsin, a minissérie Amazônia. Apesar de saber que a história da borracha estava mais para bordéis do que para heróis, no começo achei que parecia mais uma novela que um documentário. A fase Galvez não consegui ver direito porque estava de mudança prá cá - ainda vou assistir novamente. Mas a fase Plácido de Castro está realmente impressionante.

A história é muito boa porque vai mostrando os diferentes interesses em torno da borracha. Primeiro, os regionais, do Estado do Amazonas, querendo continuar coletando impostos, não desagradar o governo central e, ao mesmo tempo, financiando os descontentes para assegurar a influência, em qualquer circunstância. Segundo, a posição do governo federal, que é paradigmática: não sabe o que acontece, não quer saber, não se interessa pelo que está na margem e, quando decide fazer algo, interfere sem respeitar o que já foi feito no local, porque o local não existe do ponto de vista do governo central. Pouco mudou desde então, por incrível que pareça. Depois, os seringalistas, estranhos à região tanto quanto os seringueiros, sem outro interesse na disputa com a Bolívia que manter seus seringais, altamente lucrativos, funcionando.

Placido de Castro foi um militar profissional que soube manter sob controle os diferentes interesses para alcançar um objetivo maior, ganhar pelas armas um território que, pelos tratados diplomáticos era da Bolívia e, pela economia, dos brasileiros. Galvez cumpriu a primeira etapa de catalizar a indignação com o Bolivian Syndicate e Placido de Castro fez a guerra. O Tratado de Petrópolis consagrou o acordo pela compra do Acre aos bolivianos, negociação feita pelo Barão do Rio Branco.É claro que os bolivianos tinham todo o direito formal àquele território, e claro também que não haviam conseguido ocupá-lo de verdade, diferentemente dos brasileiros que, em poucos anos ocuparam toda a bacia. Mas os bolivianos lutaram com heroísmo também e perderam muitos territórios com essa e outras guerras. E a minissérie os trata com respeito, sem caricatura, o que acho louvável.Os seringueiros, transformados em soldados de um dia para o outro, como descreve Chico na entrevista que fiz com ele em 1981, serão traídos, como Placido. Nada do que foi acertado com eles - o perdão da dívida, a posse definitiva da colocação, a liberdade - será cumprido, promessa que será retomada por Chico quase cem anos depois e que certamente a minissérie vai mostrar.Acho que o conflito entre índios e seringueiros talvez pudesse estar mais forte na minissérie.

Ou talvez eu não tenha visto todas as cenas e isso já foi mostrado. No vale do Acre, em Xapuri, eles foram completamente exterminados e os sobreviventes se refugiaram nos altos rios onde depois foram incorporados à empresa seringalista. Mas não acho suficiente apresentá-los apenas pelas duas figuras femininas Ashaninka, que aliás são historicamente da fronteira com o Peru e não com a Bolívia. Por outro lado, é claro que muitas liberdades criativas são justificáveis e as duas índias estão muito lindas e os Ashaninka, assim como outros grupos indígenas no Acre são de fato grupos muito fortes em suas tradições e dignidade.A memória desta história ainda estava muito viva nos seringueiros quando comecei minha pesquisa no Acre em 1978. A mobilização que Placido fez dos seringueiros foi em torno dessa idéia de libertar o Acre e, junto, os seringueiros. Mas essses objetivos não foram cumpridos, a não ser quando os seringueiros conseguiram fazer eles mesmos sua própria revolução, na década de 80.As cenas que mostram a famosa história da corrente sendo limada e os soldados morrendo, um após outro, que eu já havia lido tantas vezes, ficou realmente chocante, principalmente com o hino acreano ao fundo. Eu choro facilmente, mas me emocionei à bessa nessa cena.Parece tudo muito distante, mas de fato não é. O curso que dou aqui conta essa história e os alunos ficaram as últimas quatro semanas lendo tudo sobre reservas extrativistas e Chico Mendes.

É uma pena que não entendam uma palavra de português, caso contrário eu poderia mostrar a eles, ao vivo e a cores, as cenas atualizadas que milhões de brasileiros estão vendo da mesma história que eles estão lendo nos livros e artigos científicos produzidos em inglês. Certamente estarão mais bem informados sobre esses eventos todos do que nossos jovens brasileiros que não estudam esse assunto nas universidades brasileiras.Heroísmo e traição são duas faces da história acreana, talvez brasileira. Somos capazes de feitos realmente heróicos, tanto no passado quanto no presente, mas vítimas também das mais infames, mesquinhas e grotescas traições.E é incrível como somos refratários a aprender com nossa própria história. Esse descaso, desconhecimento e ignorância do Brasil com a cultura, os interesses e prioridades dos que vivem nas margens e fronteiras, é hoje tão presente quanto foi no caso da Revolução Acreana.Como aprender mais sobre nós mesmos, não canso de me perguntar.

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