quarta-feira, 28 de novembro de 2007

História do Acre - Debate

Autor: Eduardo de Araújo Carneiro[1] Orientadora: Profª. Drª. Marisa Martins Gama-Khalil[2] “Porque os habitantes, ali, queriam ser brasileiros e o Brasil não os devia obrigar a reconhecerem outra pátria!”. (Galvez, apud: TOCANTINS, p. 414) “Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo”. (FOUCAULT, 2005, p.20) O presente texto é uma versão com alguns ajustes de um subitem da dissertação de mestrado que tem por título provisório “O discurso fundador no Centenário da Revolução Acreana (1999-2003)” - já em fase final de redação e com defesa prevista para março de 2008, na UFAC.
Entende-se por discurso fundador aquela dispersão de textos que age sobre o universo discursivo tanto para nomear o sem-sentido, quanto para re-nomear um sentido já existente, de modo que essa (re)nomeação regra a formação de outros discursos, estabelecendo, com isso, um eterno retorno a si próprio e um constante vir a ser.
Nomear é o processo que funda o “novo”, atribuindo identidade ao nunca experimentado. Re-nomear é o processo que instaura o “outro” onde o “novo” já existe. Sem-sentido é aquilo que ainda não foi representado pelo discurso. Eterno retorno é a perpetuação do momento fundador através de sua repetição. Estas, por sua vez, são as responsáveis por deixarem o discurso fundador sempre fundante, ou seja, em um estado permanente de vir a ser.
O Acre não tem uma identidade natural, essencial e imanente. Ele é uma invenção. As fronteiras conceituais que o definem são porosas e moventes. Isso possibilita com que assuma várias formas de acordo com a situação e a posição ideológica de quem o emprega. Assim, podemos falar de “Acres”. Cada um com o seu passado, cada um com a sua história discursiva, que por sua vez, se inscreve uma na outra, pelo interdiscurso.
Em sua tese de doutorado, a professora Maria José Bezerra (2006) caracterizou o processo histórico de invenção do Acre em quatro momentos: o Acre estrangeiro, o Acre brasileiro, o Acre emancipado e o Acre viável. Certamente o assunto não foi esgotado. Podemos falar de um Acre amazonense nos discursos de Rui Barbosa (ALENCAR, 2005) e de um Acre pré-histórico no discurso de Marcos Vinícius (2004).
O espaço geográfico que hoje abriga os limites fronteiriços de atuação de um ente político-administrativo chamado pelo homem civilizado de Acre deve ter sido imaginado das mais diversas maneiras, pelas centenas de tribos aborígines que ali viviam há milênios. Todas essas representações de pertencimento ao local foram sacrificadas para a emergência do signo Acre, que é polissêmico, apesar de todo autoritarismo que o instaurou.
A dissertação em apreço pretende analisar o Acre, comunidade de acreanos, como um acontecimento discursivo. Comunidade que se diz distinguir de outras pela identidade peculiar de seus membros. Comunidade que se imagina singular por ter um passado original glorioso, feito de atos heróicos e patrióticos de antepassados que não só conquistaram bravamente um território predestinado a lhes pertencer, mas também estabeleceram os marcos fundacionais de um povo, se tornando, com isso, arquétipos de gerações futuras.
A Análise do Discurso compreende a identidade como uma função do discurso e das relações de poder. O processo de (re)nomeação de uma identidade não é passivo. Há disputas em torno da fixação de uma significação desejada. Sua evidência ou aparente estabilidade representa a vitória de uma prática discursiva sobre outras. É a prática discursiva que instaura os acontecimentos sob os quais nascemos, e quais deles continuarão a nos atravessar.
Para abordar os discursos que fundam o Acre, será utilizado o método arqueológico elaborado por Michael Foucault (2005), que assim o define: “A arqueologia descreve os discursos como práticas especificadas no elemento do arquivo” (p.149), “busca definir não os pensamentos, as representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto prática que obedecem a regras [...] ela dirige ao discurso em seu volume próprio, na qualidade de monumento” (p. 157).
Em síntese, a arqueologia tem como objeto de análise o arquivo. Não o conjunto de documentos conservados por uma sociedade em uma determinada época, num determinado lugar, mas “a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (FOUCAULT, 2005, p. 147).
Encontrar a lei que regra o aparecimento de um discurso, é determinar as condições sócio-históricas que permitiram seu pronunciamento, circulação e conservação. Uma pergunta sempre acompanha o fazer arqueológico: por que nessas condições específicas foi arquivado esse discurso e não outro em seu lugar?
O arquivo do discurso fundador do Acre é formado pelo conjunto de discursos efetivamente materializados durante o processo de anexação do Aquiri ao Brasil, que nomearam como “acreano” os mais diversos tipos humanos que para a parte sul-ocidental da Amazônia migraram com o fim de explorar economicamente a havea brasiliense no final do século XIX e início do XX. Nessa época, uma lei regrava o que podia e devia ser dito sobre a comunidade nascente. É preciso revolver o solo que possibilitou o aparecimento dessa lei, para compreendermos o porquê da raridade enunciativa instalada, que privilegiou o patriotismo e o heroísmo e interditou a ganância e a violência como componentes da formação da identidade acreana.
Por questão de espaço, optamos por analisar nesse texto, somente um caractere do discurso fundador do Acre - o patriotismo constituinte da identidade acreana. Para tanto, selecionamos o arquitexto “Manifesto dos Chefes da Revolução Acreana”, escrito em fevereiro de 1900 e endereçado “ao venerado Presidente da República Brasileira, ao povo brasileiro e às praças do comércio de Manaus e do Pará”.
Para a Análise do Discurso, o sentido de uma palavra não existe em si mesmo, mas é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que ele é produzido. Portanto, devemos perguntar: os Chefes da Revolução empregaram qual concepção de pátria e patriotismo no referido Manifesto?
Seguramente não foi o patriotismo grego - sentimento de fidelidade cívico-religioso que os cidadãos tinham em relação à cidade em que nasciam. Nem o romano, símbolo do amor ao império. Nem o patriotismo aterritorial dos bárbaros, para quem a pátria era sinônimo da tropa. Nem o medieval, que coincide com o sentimento de fidelidade feudal. Nem o do Estado Absolutista, em que a pátria se identificava com a pessoa do monarca. Nem a do nativo, vinculada exclusivamente ao solo - a terra dos ancestrais. Também não era o patriotismo jacobino que pregava mudanças na “velha ordem”. Não podia ser o patriotismo moderno, que “define pátria como nossa própria nação” (HOBSBAWM, 2004, p. 28).
O conceito de nação, em sua concepção moderna, ainda estava em plena formação no final do século XIX, na Europa. Os nacionalistas elaboranvam-na de modo a uní-la ao conceito de Estado e seus derivados como governo, território e soberania popular.
Portanto, o patriotismo dos revolucionários não podia ser o do amor à nação, pois “no Brasil do início da república, inexistia tal sentimento [de comunidade, identidade coletiva]” (CARVALHO, 2006, p.32). O conceito de homogeneidade cultural de nação ainda não havia se firmado. “Somente ao final do Império começaram a ser discutidas questões que tinham a ver com a formação da nação” (ibidem, p. 23).
O Manifesto dos Chefes da Revolução foi assinado por dezesseis ricos seringalistas e homens de negócios da região. Vale lembrar que nenhuma das quase sessenta rubricas colhidas por José de Carvalho, na ocasião da expulsão da delegação boliviana em maio de 1899, constam no Manifesto. Fica claro que o referido documento não foi fruto de um consenso.
Ora, se não era consenso nem entre a elite gomífera, muito menos assegurava a opinião dos humildes seringueiros, que era interditada na sociedade do discurso. Os chefes falavam em nome da “soberana vontade popular” (BRAGA, 2002, p. 20), mas nunca convocaram uma única assembléia de seringueiros para deliberar sobre o teor das dezenas de decretos assinados por Galvez.
O Manifesto afirma que “os rebeldes acreanos, ao enfrentarem os prós e contras do seu patriótico movimento, conheciam minuciosamente os convênios realizados e os fatos pretéritos, contemporâneos do Brasil colonial e do Brasil Imperial”. Ora, quem eram esses “rebeldes acreanos”? Todos os acreanos? Certamente que não, pois os seringueiros, infelizes analfabetos, isolados com estavam do mundo, não conheciam nem todas as regras do seringal direito, que dirá as discussões sobre convênios e fatos históricos do Brasil.
Em outro momento diz: “Os insurretos não estão dispostos a ceder um palmo do seu território” (Ibidem, p. 25) [grifo nosso]. Ora, os “insurretos” desse discurso não podia ser qualquer acreano, mas somente àqueles que tinham propriedades a defender. Como sabemos, o seringueiro não era dono da terra onde morava.
Na página seguinte diz: “asseguram os revolucionários do Acre que toda a goma elástica baixará, logo que o Brasil dissimule as negociações diplomáticas incabíveis (Ibidem, p. 26) [grifo nosso]. Quem eram esses “revolucionários” do discurso? Os seringueiros não podiam ser, já que nada podiam fazer sem a autorização de seu patrão.
O grupo de Galvez queria mostrar para a opinião pública uma falsa unidade em torno de seu governo. É por isso que o Manifesto fala de “levantamento patriótico do povo acreano” (ibidem, p. 11). Com certeza o “povo acreano” ao qual o discurso se referiu não existia, era um efeito de sentido para convencer a opinião pública da existência de uma união entre os habitantes daquela região. Carvalho (2006) diz que, no início do século XX, a idéia de povo no Brasil era “abstrata”, todas as referências a esse vocábulo eram tão somente “simbólicas” (p.26).
De José Carvalho a Plácido de Castro, sempre houve os dissidentes - aqueles que apoiavam o governo boliviano; os opositores – aqueles que desejavam esperar a intervenção direta do governo brasileiro; os indiferentes – aqueles que, mesmo sabendo da insurreição, preferiram não tomar parte dela; e os desinformados, aqueles que nem ao menos souberam que estava acontecendo uma “revolução”.
A famosa “Questão do Acre” foi, na verdade, a questão de uma minoria. Para o seringueiro, por exemplo, pouco importava de que país era realmente aquelas terras, seu vínculo direto era com o patrão. O argumento de que a “revolução” foi o evento fundador da comunidade acreana por ter unido todos os brasileiros da região em prol de uma causa é outro mito historiográfico. A revolução não era uma causa comum e a unidade em torno dela nunca existiu.
Basta dizer que Plácido de Castro, no auge de sua campanha militar, não conseguiu arregimentar mais do que dois mil seringueiros para essa causa “de todos”. A população “branca” da região (rios Acre, Purus e Iaco) era estimada em 15.000 habitantes, segundo Tocantins (2001, p.191); em 25.000, de acordo com os próprios “chefes da Revolução” (BRAGA, 2002, p.15. Cf.: CABRAL, 1986, p.35); e em 100.000, segundo Craveiro Costa (2005, p.219).
Ora, se levarmos em consideração este último número, chegaremos à conclusão que não mais de 2% da população local verdadeiramente empunharam armas para defender a $ pátria $.
Outro exemplo é o de José de Carvalho, que em maio de 1899 almejou conseguir o máximo de assinaturas para endossar o manifesto contra o governo boliviano. Com todo esforço do revolucionário, não colheu sessenta rubricas. Por que o restante do “povo” não assinou? O motivo não pode ser explicado simplesmente pelo analfabetismo.
Com Galvez não foi diferente. O Estado Independente nunca foi consenso, até por que se tratou de um projeto “partejado” (cf.: BARROS, 193, p. 39) com o apoio de alguns poucos seringalistas de expressão da região do baixo Acre. Desde os primeiros meses de seu governo, o espanhol teve que combater “energicamente todos os focos de agitação” (TOCANTINS, 2001, p.349).
Vários grupos se insurgiram: o liderado pelo coronel Neutel Maia, do seringal Empresa; o do Capitão Leite Barbosa, de Humaitá; e a da Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros; do Alto Acre. Além do mais, segundo Tocantins, “as pessoas de maior destaque [de Xapuri] não haviam aderido ao Estado Independente” (ibidem, p. 350). Isso sem dizer do Juruá, que nem se quer tomou conhecimento dos decretos expedidos por Galvez. De Xapuri, Galvez receberia ofício assinado por Manoel Odorico de Carvalho, auto-intitulado Prefeito de Segurança Pública pela vontade soberana do povo, comunicando que, no alto Acre, a população resolvia não aderir a essa revolução sem primeiro ouvir a decisão do governo brasileiro [...] Somava-se a este movimento dissidente do Alto Acre, um outro que, sob a denominação de Comissão Garantidora dos Direitos Brasileiros, procurava, de todas as formas, minar o governo provisório. No baixo Acre, para completar, havia, ainda, a propaganda anti-governo provisório, liderado por Neutel Maia do seringal Empresa e pelo Capitão Leite Barbosa, do seringal Humaitá, este último outrora ativo colaborador na administração Paravicini. (CALIXTO, 2003, p. 162) [grifo nosso]. O Manifesto tem início com os seguintes enunciados: “Os brasileiros livres nunca serão bolivianos. Independência ou morte! Viva o Estado Independente do Acre!”. Como se pode perceber, os ideais liberais claramente atravessam os três enunciados. Façamos três perguntas ingênuas: Para quem seria a liberdade? De quem seria a independência? Para quem seria a morte? Ora, “Independência ou morte!” foi o que dizem ter gritado D. Pedro I ao proclamar a independência do Brasil. Recitando esse enunciado, os “chefes da revolução” desejavam inscrever os acontecimentos dos quais eram protagonistas na memória discursiva da independência do Brasil. Queriam familiarizar seus feitos àqueles da independência do Brasil.
Os “chefes da revolução” definiram a revolução como “uma rebelião sagrada, que só visava a defesa da Pátria Brasileira” (BRAGA, 2002, p.17). No decorrer do texto, as palavras pátria e patriotismo aparecem cerca de vinte e sete vezes. E foi assim que a Revolução Acreana foi monumentalizada, e é assim que a conhecemos até hoje.
A concepção de pátria que os revolucionários trazem no Manifesto é bastante influenciada pela concepção liberal do sentimento de pertencimento a um país. Eles diziam “advogar a causa do Brasil” (ibidem, p.20). O patriotismo deles “não podia admitir que o Brasil republicano abandonasse sem cerimônia a área mais produtiva da federação [...] prepararam aberta e francamente a revolução contra as prepotências da Bolívia, a fim de reentregarem a mãe pátria a pérola que ela queria soterrar” (ibidem, p. 13). Eles só queriam “defender a integridade da pátria” (ibidem, p. 14) e acrescentam: “tudo se fez por amor da pátria” (ibidem, p. 14). Diziam “os acreanos querem ser brasileiros e não tolerarão que o Brasil os obrigue a reconhecer outra pátria!” (ibidem, p. 24). No entanto, historicamente, nessa época, esse tipo de sentimento ainda era muito raro no Brasil. Era mais freqüente nos discursos políticos da elite do que no coração dos cidadãos brasileiros. Basta lembrar-se da dificuldade que se teve para recrutar patriotas para a guerra contra o Paraguai (1865-70). “No exército do Império do Brasil, para cada soldado branco, havia nada menos que quarenta e cinco negros!” (CHIAVENATTO, 1984, p.111).
Em fins do século XIX, o patriotismo no Brasil ainda não havia se tornado uma religião cívica capaz de garantir a lealdade do cidadão ao país. Da mesma forma como é difícil acreditar que os negros lutaram na guerra do Paraguai em prol de um país que os oprimia. Igualmente é incabível pensar que no Acre, seringueiros teriam lutado para defender um país que os ignorava. Dizer que o seringueiro defendeu o solo acreano por amor ao Brasil não passa de uma grande demagogia que se perpetuou na historiografia acreana.
Desamparados como estavam da “mãe gentil” e sendo diariamente oprimido por outro brasileiro, o Patrão, na “mais imperfeita organização do trabalho que engenhou o egoísmo humano” (CUNHA, 2000, p. 152), é difícil de imaginar ao menos alguma centelha de patriotismo nessa criatura chamada pelo Dr. Oliveira Viana, de “o mais apolítico dos brasileiros” (Apud, COSTA, 2005, p. 221).
O ingresso do seringueiro na chamada Revolução Acreana acontecia quando seu patrão aderia o movimento e o colocava à disposição dos revolucionários. O seringueiro não tinha o direito de escolha. Não era ele que decida se tinha ou não que ir para a trincheira. Mas a guerra se mostrava uma boa oportunidade de saldar a dívida e, quem sabe, ter um saldo para comprar uma terra ou voltar para sua terra natal. E era exatamente isso que os coronéis ofereciam a ele. Escravo da gleba e escravo do seringalista tuchaua, o nordestino tinha duas saídas: fugir do “centro” ou fugir do Acre. Já verificamos como era impossível a volta ao nordeste. Sobrava, contudo, a oportunidade da “descida” para a margem. O cearense ficou espiando essa “oportunidade” e eis que ela surgiu como contingência histórica: a guerra com a Bolívia. Este foi o momento em que ele pela primeira vez “se libertou” [...] A “descida” para a guerra era como uma fuga: fuga do “centro” [...] com a guerra, sonhavam quebrar todas as pesadas correntes que os amarravam cruelmente na grande selva [...] Depois da guerra, se vitoriosa, acreditavam que os proprietários passariam a ser seus irmãos, que poderiam, eles seringueiros, possuir terras e bens, que os seus “saldos” seriam vultosos e que todo o sistema latifundista seria abalado para oferecer-lhes mais amplas possibilidades de vida. (BASTOS, in.: COSTA, 2005,p. 47-48). Ma o patriotismo cumpria uma função importante no discurso dos revolucionários - tornava mais aceitável o descumprimento dos acordos internacionais firmados pelo Brasil. Poderia o governo federal punir cidadãos que agiam por amor à pátria? Além do mais, a retórica patriótica soava bem aos ouvidos da opinião pública.
Duro é aceitar que um espanhol recém chegado à Amazônia, tornara as região dos rios Acre, Purus e Iaco independentes do Brasil em nome do patriotismo do povo brasileiro. Foi assim criada a República de Galvez, aventura infeliz e criminosa que tanto comprometeu os destinos da questão do Acre [...] custou ao Estado do Amazonas mil e duzentos contos, e que ainda hoje, por cúmulo! É tida como ponto de partida da insurreição acreana. (CARVALHO, 2002, p. 45-46) [grifo nosso]. A cena chega a ser lúdica, mas Leandro Tocantins afirma que quando chegou a Antimari, “a população tomou Galvez por boliviano” (TOCANTINS, 2001, p. 324). Esse “demagogo e figurante, escolhido a dedo” (BARROS, 1993, p. 38), não só arriscou-se a entrar na ordem arriscada do discurso patriótico, como foi um privilegiado interlocutor dela. Vejamos o trecho de seu pronunciamento no dia da proclamação do Estado Independente do Acre: Aceitamos leis, pagamos tributos e impostos e obedecemos, passivamente todos os julgamentos de alta e baixa justiça praticados pelo Delegado nacional da Bolívia, na esperança que nossa idolatrada Pátria e gloriosa e humanitária Nação brasileira acudisse em nosso socorro e atendesse nossos justíssimos pedidos. O governo do Brasil não respondeu aos nossos patrióticos alarmes; a Pátria, a nossa estremecida mãe personificada em grupo de valentes [...] os habitantes destas regiões pertencem à livre e grande Pátria brasileira! É justo, pois que cidadãos livres, conhecedores dos seus direitos civis e políticos, não se conformem com estigma de párias criado pelo governo de sua pátria, nem podem, de forma alguma, continuar sendo escravos de uma outra nação – a Bolívia. Impõe-se a independência destes territórios [...] é necessário levantar nossa honra pela Bolívia depreciada [...] se não aceitais a independência continuaremos a sofrer humilhações que nos impõem uma nação estrangeira. (Apud, AGUIAR, 2000, p.54, 55) [grifo nosso]. Ouvir o “dom-juan” (BARROS, 1993, p. 33) expressar sentimentos de amor ao Brasil realmente era patético. Mas esse discurso foi “uma demagogia necessária para o gênero do papel que estava desempenhando” (TOCANTINS, 2001, p. 326). Afinal, “era o melhor caminho para exaltar o amor cívico, assim como persistir no estilo derramado de patriotismo [...] tinha em mira comover os brios regionais dos que escutavam a oração” (Ibidem, p. 327). Como vemos, o que estava em jogo não era a defesa da “pátria mãe gentil”, e sim a manutenção de uma ordem que garantisse um ambiente tranqüilo para os negócios gomíferos. Bizarra aquela República? Sem dúvida, mas os proprietários mais abastados e esclarecidos sabiam que, sem a Ordem, sem que aquela vasta região, com seus milhares de habitantes fosse política e juridicamente organizada, mais difícil se tornaria a acumulação e circulação de capital. Desde que Galvez organizasse o recém criado Estado, de modo a não obstar o fluir da riqueza advinda da exploração da força de trabalho nos seringais, eles, os patrões, também poderiam tolerar as bizarrices humanitárias de seu presidente [...] Convivendo no reino do caos, grande número de patrões sabiam o quanto o estado de anomia representava um entrave à acumulação, uma acumulação pseudofáustica diríamos nós. (CALIXTO, p. 158). Não havia na região do Aquiri “heróis” lutando romanticamente por ideais, como afirma a historiografia oficial. Ninguém era inocente, ninguém foi para aquelas paragens impunemente. Não se enfrentava o impaludismo, os índios selvagens, a natureza hostil, o isolamento social, a falta de infra-estrutura básica, a insalubridade, a falta de mulher, a ausência da família, a semi-escravidão, os assassinatos a sangue frio, a ausência do poder público, etc., com o propósito de alargar o território do país.
Os migrantes tinham objetivos claros: queriam obter “rápidos lucros, de forma que em pouco tempo pudessem voltar a sua terra de origem em melhores condições de vida” (CALIXTO, 2003, p. 43). Assim aconteceu com o “herói” Plácido de Castro que foi “seduzido pela remuneração que a Agrimensura tinha” (CASTRO, 2002, p. 29). Igualmente com Galvez, que “decide tentar a vida em Manaus, atraído pelo eldorado amazônico, para onde se voltavam todas as vistas, na ânsia de adquirir fortuna” (TOCANTINS, 2001, p. 317). Assim aconteceu com os seringueiros. Só importava o bem presente, como as perspectivas imediatas de lucro certo, do dinheiro e do crédito fácil. A miragem da riqueza célere e a volta à terra de origem compunham o binômio psicológico do seringueiro, a idéia-força que o animava ao sacrifício na floresta (TOCANTINS, 2001, p. 255) [grifo nosso]. Porque as notícias diziam tratar-se duma terra sem dono. Portanto, desocupada e livre. Era só chegar e, estabelecer-se. Cair no “corte” como o garimpeiro na bateia. Depois recolher o látex e ouro. Depois enriquecer e voltar (BASTOS, in.: COSTA, 2005, p. 29) [grifo nosso]. Essa população (nordestinos), movida pelos interesses econômicos ligados à extração do látex, devassa a floresta tropical brasileira, incorpora um território de quase 200 mil KM2 retirado da Bolívia, extermina parte da população indígena. (CARDOSO, 1977,p. 25) [grifo nosso]. Na época, nem todos concordavam com o malogro do discurso patriótico dos chefes da revolução. Achavam que o idealismo não era o melhor traço que caracterizava o acreano. No entanto, muitas vozes foram sufocas para que o arquivo do patriotismo fosse montado. Vejamos o que diz o jornal Pátria, do dia 6 de julho de 1899: O fundo desse quadro triste em que os traidores da pátria transformaram a esplendorosa região do Acre [...] julgaram encontrar asada ocasião para, patrioticamente, roubarem o suor do incauto habitante do Acre [...] essa rebelião [...] não subsistirá jamais porque ali o que impera é a ambição desordenada, porque dali fugiu os sentimentos generosos, porque ali o mal tem guarida e a traição subsiste! [...] empregara a chantagem e a chantagem reuniu adeptos; mentiram e a mentira congregou entorno de uma bandeira despedaçada os que deixaram se amasiar pelo canto da sereia, belo mais traidor, harmonioso, mas desgraçado [...] Para roubar, vestiram mendaz capa de patriotismo, cobriram os rostos com a máscara de fingido amor à pátria. (n° 205, p1, cl 1,2 e 3) [grifo nosso]. O que tudo leva a crer é que o patriotismo do governo do Estado do Amazonas chamava-se impostos pagos. O dos seringalistas chamava-se manutenção do lucro e garantia da propriedade privada. O dos profissionais liberais chamava-se obtenção de cargos públicos. E o do seringueiro, quitação das dívidas e livramento do “centro” gomífero. Como todas as guerras, a chamada revolução acreana teve múltiplas motivações.
Mas por que os revolucionários sentiram a necessidade de escrever tal Manifesto? Tudo se explica se levarmos em consideração que o mesmo foi redigido em fevereiro de 1900, época em que o Estado Independente do Acre vivia a (des)ordem do retorno de Galvez ao governo.
Galvez havia sido deposto na virada do ano de 1899, pelo influente seringalista Souza Braga, dono dos seringais Benfica, Riozinho e Niterói. Ele havia ficado insatisfeito com a proibição da exportação da borracha, editada por Galvez como represaria às Casas Exportadoras de Manaus e Belém por se negarem a reconhecer os atos fiscais do governo provisório, ou seja, a cobrança de 10% de imposto sobre a exportação da borracha.
Como “naquela terra, tudo girava em torno de interesses da produção e comercialização do látex” (CALIXTO, 2003, p. 167), muitos dos seringalistas que antes o defendiam, não aceitaram sacrificar seus negócios em prol de um patriotismo que transformaria as pélas de borracha em trincheiras. Em 28 de dezembro de 1899, Souza Braga “apoiado por um pequeno grupo de descontentes” (AGUIAR, 2000, p. 88), é aclamado presidente do Estado Livre do Acre. O primeiro decreto expedido foi o banimento de Galvez; o segundo, o restabelecimento da ordem comercial, declarando livres os rios daquela região para o transporte da goma elástica.
Braga dizia que “entre o Governo de Paravicini e o de Galvez não há grande diferença, assemelha-se na forma e no fundo, deprimir o caráter nacional brasileiro e arruinar a nossa fortuna” (Apud, TOCANTINS, 2001, p. 389) [grifo nosso]. O interessante é que Souza Braga também fez uso do discurso patriótico para justificar essas ações e também intitulou o golpe como sendo um “movimento revolucionário”. (cf.: ibidem, p. 391).
Por essa mesma época, chegou a Puerto Alonso, uma comitiva boliviana que vinha fazer valer os impostos bolivianos na região. O chefe da expedição, Ladislau Ibarra, logo que chegou, decretou estado de sítio, suspendendo todas as garantias constitucionais da população. O local viraria uma “torre de babel”. Ninguém sabia quem realmente mandava na região, e de quem realmente pertencia, de direito, os patrióticos impostos a serem pagos.
A situação se tornava cada vez mais delicada e, devido a isso, Souza Braga foi forçado a renunciar em prol do retorno de Galvez ao governo, ocorrido em 30 de janeiro de 1900. Araújo Lima (1998) fala sobre o assunto: “irrisória a pérfida reparação. Ela só se consumava porque o usurpador sabia que, àquelas horas, uma flotilha brasileira, sob o comando do capitão-tenente Raimundo Ferreira, subia o Acre, com a missão de depor e prender o aventureiro atraiçoado” (p. 52).
Para a surpresa de muitos, após o incidente, o seringalista Souza Braga passa a apoiar Galvez e dele recebe uma “importante comissão a ser exercida junto às praças de Manaus e Belém” (TOCANTINS, 2001, p. 399). Tudo estava muito confuso. As principais autoridades do país e a opinião pública de modo geral estavam perplexas com as informações recebidas daquelas paragens.
Mal souberam do Estado Independente do Acre, já se escutava falar sobre a deposição de Galvez e da fundação do Estado Livre do Acre pelo seringalista Souza Braga. Quase concomitante a essas informações, espalhou-se a notícia de que Galvez havia retornado à presidência do Estado Independente do Acre, e desta feita, com o apoio de seu algoz, Souza Braga.
Os “chefes da revolução” temiam que a tumultuada conjuntura política do Estado Independente prejudicasse a liberação dos créditos vindos das Praças de Manaus e Belém, sem os quais todo o sistema de aviamento estaria fadado ao fracasso. E foi exatamente esse temor que motivou os “chefes da revolução” a escreverem o Manifesto no decorrer de fevereiro daquele ano.
Era preciso esclarecer aqueles acontecimentos, mostrar como ficou “garantidíssima a paz em todo o território” (BRAGA, et al., 2002, p. 16), enumerar o progresso ocorrido naquele lugar com advento do Estado Independente (cf.: Ibidem, p. 15), assegurar que toda goma elástica baixaria aos portos (cf.: Ibidem, p. 26) e “demonstrar ao público as suas intenções patrióticas e humanitárias” (Ibidem, p. 16). Lida em março de 1900, na capital do Pará, pelo Sr. Rodrigo de Carvalho, um dos chefes acreanos de maior vulto, diante de uma vasta assembléia que se reuniu no edifício da Associação Comercial [...] o manifesto acreano repercutira em todo o país, despertando as simpatias nacionais para o grande pleito. (COSTA, 2005, p. 123-124). No Manifesto, afirmaram que “da revolução pretendemos unicamente a glória de trabalhar pela reivindicação dos seculares direitos brasileiros à região por nós arroteada e engrandecida. Nada mais, nada menos” (BRAGA, et al., 2002, p. 18), “nada pretendemos, provento algum alvejamos, posições de natureza alguma almejamos” (ibidem, p. 30).
Mas a história testou o fervor patriotismo desses revolucionários. Mesmo longe do perigo do consórcio yanque e da bolivianização do Acre, as hostilidades não cessaram. Após a anexação definitiva do Acre ao Brasil pela assinatura do Tratado de Petrópolis (1903), esperava-se que as coisas acalmassem, pois os revolucionários haviam conquistado aquilo pelo qual tanto diziam estar lutando – a nacionalidade brasileira. No entanto, agora, os brasileiros se voltam contra os próprios brasileiros e contra a própria pátria.
Finda a Questão do Acre, bem que os “chefes da revolução” poderiam ter denunciado o sistema de aviamento como engrenagem imperialista anglo-yanque para arrancar o ouro-negro da Amazônia, afinal, o capital internacional foi quem abriu as “veias” acreanas. Poderiam ter combatido a situação miserável em que vivia e trabalhava os seringueiros, ou, quem sabe, iniciado uma campanha em prol da extração racional do látex.
No entanto, os “heróis” preferiram lutar entre si em busca de poder. Optaram em pugnar contra a Pátria, por ela insistir em cobrar impostos e nomear outros brasileiros que não eles, para ocuparem os cargos públicos do recém criado Território do Acre. Para o seringueiro, nada mudou, a “revolução” faltou-lhe ao encontro, ele continuou “expatriado” e o que é pior, “trabalhando para se escravizar” (CUNHA, 2000, p. 152).
Segundo Calixto, “mesmo reconhecido oficialmente brasileiro, o Acre continuou área de disputa entre grupos econômicos e políticos [...] Na luta pela hegemonia econômica, grupos da classe dominante rivalizavam-se entre si, contradição típica do capitalismo” (s/d, p. 129).
Isso pode ser explicado pelo fato de as preocupações patrióticas daqueles heróis estarem, na verdade, centradas no volume de negócios que aquela região movimentava em torno do comércio da borracha. Afinal, era o Aquiri a “área mais produtiva da federação na atualidade” (BRAGA, et al., 2002, p.13), “a única zona próspera e feliz desta imensa República” (Ibidem, p.27), “[...] a pérola que ela (a pátria) queria soterrar (Ibidem, p.13). BIBLIOGRAFIA ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Trad. Catarina Mira. Edições 70, Lisboa, 2005. AGUIAR, José Wilson. Estado Independente do Acre: Governo Provisório Luis Galvez de Arias. Rio Branco: PMRB, FMC/AC, 2000. ALENCAR, Fontes de. História de uma polêmica: Rio Branco, Rui Barbosa, Gumersindo Bessa. Brasília: Thesaurus, 2005. BARROS, Glimedes Rego. Nos Confins do Extremo Oeste: a presença do capitão Rego Barros no Alto Juruá (1912-1915). Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1993, Vol. I. BRAGA, Antonio de Souza (et al.). A questão do Acre: Manifesto dos chefes da revolução acreana ao venerado presidente da república brasileira, ao povo brasileiro e às praças de comércio de Manaus e do Pará. Rio Branco: FEM, 2002. CARDOSO, Fernando Henrique. MÜLLER, Geraldo. Amazônia: Expansão do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1977. CARVALHO, José. A primeira insurreição acreana. Rio Branco: FEM, 2002. CABRAL, Francisco Pinto. Plácido de Castro e o Acre Brasileiro. Brasília: Theraurus, 1986. CALIXTO, Valdir de Oliveira. Plácido de Castro e a Construção da ordem no Aquiri: contribuição à história das idéias políticas. Rio Branco: FEM, 2003. CALIXTO, Valdir (et al.). Acre: uma história em construção. Rio Branco: Secretaria de Educação e Cultura do Estado do Acre, s/d. CASTRO, Genesco. O Estado Independente do Acre: excerptos históricos. Brasília: Senado Federal, 2002. CHIAVENATTO, Julio J. Genocídio Americano: A Guerra do Paraguai. 17 ª Ed. São Paulo: Brasiliense, 1984. COSTA, João Craveiro. A conquista do deserto ocidental: subsídios para a história do território do Acre. Brasília: Senado Federal, 2005. CUNHA, Euclides da. Um paraíso perdido: ensaios amazônicos. Brasília: Senado Federal, 2000. FEBVRE, Lucien. Honra e Pátria. Trad. Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. FOUCAULT, Michel. A arqueologia do Saber. Ed. 7°. Tradução Luiz Felipe Neves. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2005. HOBSBAWM, Eric. Nações e Nacionalismo desde 1780. Trad. Maria Célia Paoli. 4º Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2004. Jornal Pátria, 6 de julho de 1899, n° 205, ano I, Manaus, p1. LIMA, Cláudio de Araújo. Plácido de Castro: um caudilho contra o imperialismo. Rio Branco: Fundação Cultural do Estado do Acre, 1998. TOCANTINS, Leandro. Formação Histórica do Acre. Ed.4°. Brasília: Senado Federal, 2001, Vol. I. NEVES, Marcos Vinícius. Uma breve história acreana. 2004. Disponível em: . Acesso em 22 de nov. 2007. [1] Acadêmico do Mestrado em Letras da UFAC (eduardoaraujocarneiro@gmail.com). [2] Doutora em Estudos Literários pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e professora da UFU.

Nenhum comentário: