sexta-feira, 2 de janeiro de 2009

Coincidência Intelectual é Outra Coisa

Por Gerson Rodrigues de Albuquerque - Possui graduação em História pela Universidade Federal do Acre (1988), mestrado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2001). Ex-Diretor do Centro de Documentação Histórico da Universidade Federal do Acre. Atualmente é professor adjunto - 4 ligado ao Centro de Educação, Letras e Artes da UFAC.
“A criação vive como gênese sob a superfície do visível da obra. Para trás, todos os espíritos enxergam; à frente - no futuro – só os criadores”. (Paul Klee, 1914). A letra da canção “Inútil”, do grupo Ultraje a Rigor, muito reproduzida em meados da década de 1980, expressa uma dupla provocação à norma culta da língua portuguesa e à mente colonizada daqueles que, tratados como incapazes, se aceitam como incapazes e se promovem como incapazes, seguindo às cegas – feito horda ou rebanho - seus líderes que prometem “tomar conta de tudo”, propagandeando quimeras absurdas ou distribuindo discursos fáceis, prometendo resolver tudo.
Há poucos minutos, conclui a leitura de uma reportagem, assinada por Fábio Pontes, em que o mesmo afirma ter entrevistado a reitora da Universidade Federal do Acre. Em uma passagem de sua fala, a professora Olinda Batista lança mão do argumento de “coincidência intelectual” para justificar ou tornar irrelevantes as imoralidades que fizeram com que as provas do vestibular 2008 fossem anuladas. Tal anulação, vale ressaltar, não apenas lesou o erário e o patrimônio público, como violentou os milhares de estudantes que se inscreveram e participaram de tal concurso público.
Quem vai pagar a conta dos prejuízos materiais e financeiros que essa instituição pública teve para arcar com o vestibular? Quem vai pagar os custos dos desgastes emocionais e físicos dos milhares de jovens que apostaram suas energias, seu tempo, suas expectativas e ansiedades em tal exame? Quem vai cobrir as despesas com deslocamento/alojamento/alimentação de todos os que, provenientes de várias localidades, se submeteram às provas?
O discurso de ocasião e os dispositivos artificiais utilizados pela reitora – para justificar o injustificável - constituem-se outras formas de violência e de subestimação da opinião pública e da capacidade de reflexão daqueles que atuam nesta instituição e se esforçam para que a mesma corresponda aos anseios e expectativas de toda a sociedade com relação ao ensino superior.
Dizer, como está escrito na reportagem, que “não se sabe de quem é a autoria daquelas questões” ou “que não há uma outra pergunta a se fazer”, como ressalta a reitora é, no mínimo, estarrecedor para quem, em julho de 2008, na condição de candidata, difundia seus desejos de ser reitora, pelos quatro cantos do Estado do Acre, para “...cuidar, zelar, promover a instituição” e, mais ainda, que não carregava consigo “...um jogo de ‘faz de conta’, mas uma seriedade que [imprimiria] qualidade em todas as ações, agindo, sempre, com justeza, caráter, dignidade, compromisso ético com a função educativa”.
Sugerir que um determinado conteúdo, um nome, uma passagem, um personagem, uma localidade, ou seja lá o que for, somente pode ser “manipulado” ou “tratado” de uma maneira, que não há outra forma de fazer pergunta ou afirmar “que não há uma outra pergunta a se fazer”, é o mesmo que dizer que o conhecimento está esgotado, que nossa condição não é histórica, que não traduzimos. É, no dizer do professor espanhol Jorge Larossa, ficar restrito, condenado a uma hermenêutica tradicional, “segundo a qual o corpo das palavras opera como simples portador de seu sentido, como representante ou vicário, ou lugar-tenente de seu sentido, como o lugar que tem ou con-tém o sentido”.
Ao contrário do que tenta fazer crer a reitora, o conhecimento é infinito, porque é algo não cumulativo, porque é ampliado, rompido, retomado, abandonado, atualizado, significado ou re-significado pelos que se propõem a vivenciar tal experiência. Nesse aspecto, vale a pena retomar as considerações de Larossa: “o que o corpo das palavras revela é justamente a alteridade constitutiva da linguagem, sua distância e sua ausência com respeito a si mesma”.
Desse modo, os programas das provas do vestibular ou os conhecimentos difundidos através dos livros didáticos, a partir dos quais os estudantes se debruçaram para ficar em condições de responder às questões formuladas, jamais estarão sujeitos às mesmas formulações, ao mesmo estilo, às mesmas entonações, independentemente de quantas vezes ou por quantos professores forem manuseados.
A formulação (cópia, plágio, reprodução), em determinadas provas do vestibular da Ufac, das mesmas questões formuladas em provas de outras instituições, é fraude, é roubo ou apropriação indevida e nada tem a ver com coincidência intelectual que é uma outra coisa, bem diferente do que disse a reitora. Não se combate a farsa com arremedos, com atenuantes inconcebíveis.
“À verdade não se opõe a mentira, mas sim o erro”, afirma o professor Márcio Pugliesi na introdução à edição brasileira do livro “A origem da tragédia”, de Friedrich Nietzsche. “Para mentir é preciso conhecer-se o verdadeiro e mascará-lo. Para errar, basta desconhecer a verdade”.
Desmerecer esse debate, artificializar o problema ou torná-lo insignificante não tem nada de educativo e muito menos ético. Ao fazer isso a reitora perde uma chance ímpar de, longe de sua fantasmagórica e pirotécnica campanha, manter a indissociabilidade entre o discurso e a ação, agindo, como ela mesma fez questão de afirmar: “...com justeza, caráter, dignidade, compromisso ético com a função educativa”.
“A gente somos inúteis”, dizia a canção de Roger Moreira, e parece que nossos “dirigentes” resolveram tomar isso ao pé da letra, posto que “cuidar da gente” virou sinônimo de enganar a gente e, como “a gente não sabemos tomar da conta da gente”, nos governam do alto de seus delírios, suas crendices, seus dizeres a serem desditos em outra ocasião. Nesse caso, temos que, na contracorrente, bradar a plenos pulmões que “não somos inúteis”. Mesmo quando nos encontramos diante do grotesco. Mesmo quando vivemos sob a égide de uma mentalidade pré-política, caracterizada pela “tirania doméstica”, como ressalta Lima Barreto, em Triste Fim de Policarpo Quaresma, cujo lema é: “o bebê portou-se mal, castiga-se”.

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