Fonte: Jornal Pg 20, 15 de janeiro de 2003.
Texto: Tatiana Campos
Historiador e sociólogo morre aos 64 anos, deixando uma lacuna na academia acreana
Um tipo bonachão, que não largava o chapéu estilo Pablo Neruda e as sandálias franciscanas. Emanava uma sensibilidade especial, profundamente humanista, que marcou sua existência e seu modo de tratar as pessoas. Era dono de uma forma peculiar de tratar alunas e colegas acadêmicas. Assim, o primeiro doutor do corpo docente da Universidade Federal do Acre (Ufac), Pedro Martinello, era visto pelos amigos.
A vida do professor com mais de 30 anos dedicados à universidade pública acreana foi ceifada por complicações respiratórias na madrugada de ontem. Pedro Martinello partiu aos 64 anos deixando uma lacuna na academia e no coração de familiares e amigos.
Descendente de italianos, nascido em Criciúma (SC), chegou ao Acre no início da década de 70, após três longos dias de viagem a bordo de um DC-3 da extinta Cruzeiro do Sul.
Sua situação com os serviços de segurança da Ditadura Militar era complicada, devido à guarida oferecida a jovens ligados à União Nacional dos Estudantes (UNE) e ele estava sendo pressionado pelo Dops para deixar o país. Diante dos fatos, decidiu que seria de bom alvitre passar uns tempos no Acre até as coisas esfriarem.
Chegou ao Acre ao convite do bispo dom Giocondo. Pedro Martinello foi convidado pelo bispo dom Giocondo Maria Grotti para assumir a paróquia da catedral e atuou ativamente nos contextos das lutas sociais e políticas da época. Em seu último texto escrito, publicado pela Fundação Elias Mansour, Pedro Martinello descreveu as impressões que marcaram sua chegada no Estado:
“De mil crianças nascidas, 838 morriam no primeiro ano de vida... De mil pessoas, dezesseis sofriam de lepra... Em alguns rios, como no Caeté e no Iaco, a média de vida de cada pessoa não ultrapassava os 20 anos de idade. Diante desse quadro, não podiam os missionários e o seu prelado ficar impassíveis ou como meros espectadores de tamanha tragédia”.
Segundo a historiadora Maria José Bezerra, Martinello sempre se contrapôs à violência numa perspectiva humanista, sempre lutou contra as desigualdades, valorizando o ser humano e seus direitos.
“Após alguns anos como padre, ele deixou a ordem, casou-se com Ivanilde, constituiu família e sempre foi muito querido pelo povo, pela sua maneira simples de ser. Não largava as sandálias e o chapéu estilo Pablo Neruda nem o cachimbo com o qual tanto brincávamos. Sempre se referia às alunas como ‘minha santa’ ou ‘abençoada’. Por seu exemplo de vida, ele sempre foi respeitado por todos e dificilmente alguém tinha algo contra ele, que buscava solucionar tudo na perspectiva cristã”, comentou Maria José.
“Nós aprendíamos com sua vivência e não só com os livros”
Pedro Martinello era doutor em História do Brasil aposentado. Foi pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação na gestão do reitor Sansão Ribeiro. Estava atuando como professor visitante da universidade.
“Enquanto professor, Martinello tinha uma coisa legal, e eu, como seu aluno, posso falar: ele não dava aulas explicando o que tinha lido nos livros. Ele passava para nós suas vivências, nos fazia viajar pelas galerias e obras da Renascença, nos levava até os campos de batalhas das grandes guerras mundiais. Transmitia o que tinha visto em suas viagens, seus estudos. Lia as grandes obras nos originais, em inglês, em latim, em grego, e não perdia a riqueza que não se conhece através das traduções”, comentou o professor e chefe do Departamento de História da Ufac, Gerson Albuquerque.
Para o presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado (Sinteac), Márcio Batista, Martinello é um símbolo da academia acreana. “O mais significativo é ter podido aprender com ele, que reunia em si a sede da pesquisa, do ensino e da extensão, o tripé da universidade. Ele formava a elite da Ufac, reunindo o conhecimento com a alegria de ensinar. Dificilmente algum aluno do professor Pedro falará que não gostava dele ou do modo como ele lecionava”, ressaltou.
Maior legado de Martinello será reeditado pela Ufac. Uma de suas contribuições mais importantes para a universidade foi a tese de doutorado, publicada em 1988 pela Ufac, que se tornou referência para pesquisas no Brasil e no exterior. Intitulada “A Batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial e suas Conseqüências para o Vale Amazônico”, a tese é um acervo documental amplo e inédito, construído também através de consultas à documentações americanas.
“A tese é uma documentação rica e significativa que permite várias abordagens. Trouxe algumas inovações como o uso de depoimentos orais, uso de fragmentos riquíssimos de poesia e pesquisa em documentos existentes nos Estados Unidos, aos quais outros historiadores acreanos não tinham acesso”, comenta o historiador Gerson Albuquerque.
Além de uma importante fonte para a história econômica da época, Albuquerque ressalta que a tese dá margens para pesquisas sociais, trazendo costumes, o modo de vestir, a mentalidade, as confusões da década de 40. O estudo apontou os caminhos da resistência oculta dos nordestinos.
REEDIÇÃO - “A tese do professor Martinello virou uma referência para a maioria das pesquisas sociológicas. A publicação em formato dos Cadernos da Ufac é a obra acreana mais conhecida no Brasil e também uma das mais citadas na Região Norte”, disse Albuquerque.
O livro “A Batalha da Borracha na Segunda Guerra Mundial e suas Conseqüências para o Vale Amazônico” está sendo reeditado pela Ufac. O lançamento está previsto para o primeiro semestre deste ano, previamente agendado no calendário acadêmico.
Um comentário:
Como servidor da Ufac tive a oportunidade de conhecer e conversar com o Professor Pedro Martinello. Sua simplicidade nos contagiava. Quando militei no SINTEST nos encontramos muitas vezes na passarela que levava ao Departamento de História, nas proximidades da Sede do Sindicato. Quando isso acontecia ele sempre me sorria e me cumprimentava com o seu olhar cativante.
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